Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6284/2003-4
Relator: SARMENTO BOTELHO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
VALOR PROBATÓRIO
FÉ EM JUÍZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROCEDENTE.
Sumário: Não faz fé em juízo o auto de notícia no qual a inspectora do trabalho que o lavrou não refere, em parte alguma, que tenha presenciado pessoal e directamente, por qualquer forma (mediata ou imediatamente) a infracção noticiada.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

(A) Ldª., com , interpôs recurso, para o Tribunal do Trabalho do Funchal, da decisão da Inspecção Regional do Trabalho do Funchal que a condenou na coima de 2.800 Euros, por infracção ao n.º 1 do art.º 18.º, conjugado com as als. a), c) e d) do art.º 19.º e als. a) e b) do n.º 1 do art.º 21º, todos do D.L. n.º 49.408, de 24/11/69 (LCT), em resultado da violação do dever de ocupação efectiva, o que, constitui infracção grave, nos termos do n.º 2 do art.º 127.º da LCT, com a redacção introduzida pelo art.º 3.º do D.L. n.º 170/2001, de 25/5, a que corresponde coima de 2.070,01 Euros a 7.232,57 Euros, por a mesma ser punida a título de dolo, em conformidade com o n.º 3, d), do art.º 7.º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n.º 116/99, de 4/8, na redacção do art.º 5.º do D.L. n.º 323/2001, de 17/12 .
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A recorrente e o M.P. não se opuseram a que a decisão do recurso, fosse preferida pelo M.mo Juiz do Tribunal recorrido, por simples despacho.
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O M.mo Juiz proferiu, então, despacho que julgou improcedente o recurso interposto pela arguida.
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Mais uma vez inconformada, recorre a arguida para este Tribunal da Relação, concluindo, assim, a sua motivação do recurso:
1.º O trabalhador (B) intentou contra a ora Recorrente (A) L.DA uma providência cautelar não especificada invocando a eventual violação de direitos que lhe assistiam;
2.º O Tribunal do Trabalho do Funchal deferiu esta providência cautelar;
3.ª No entanto, uma providência cautelar tem apenas um carácter instrumental e acessório da acção principal, tendo as decisões nelas tomadas natureza precária e provisória;
4.º A providência cautelar não visa discutir e apreciar a questão de fundo que apenas na acção principal pode ser decidida;
5.º Não pode a douta sentença ora em recurso vir, pois, condenar a Recorrente (A) L.DA com base no deferimento dessa mesma providência cautelar;
6.º Para além disso, como se pode ler na douta decisão recorrida, do deferimento dessa providência cautelar a Recorrente TECNOVIA MADEIRA SOCIEDADE DE EMPREITADAS, L.DA interpôs recurso de agravo com efeito suspensivo, o que impediu a produção de efeitos da decisão recorrida enquanto não é proferida nova decisão pelo Tribunal de recurso;
7.º A Recorrente (A) L.DA não foi, pois, condenada a atribuir ao trabalhador as funções que anteriormente tinha, visto estar pendente este recurso com efeito suspensivo interposto;
8.º Além de não ser verdade que a Recorrente tenha deixado de atribuir funções ao referido trabalhador nem que lhe tenha retirado os instrumentos de trabalho que eram necessários para as funções que exercia;
9.º Para além disso, na acção principal que correu os seus termos sob o n.º 148/2002, a Recorrente (A) L.DA e o trabalhador chegaram a um acordo quanto ao pedido feito nessa mesma acção;
10.º Em consequência desse mesmo acordo, o Meritíssimo Juiz do Tribunal do Trabalho do Funchal proferiu despacho no sentido de considerar a providência cautelar intentada pelo trabalhador à Recorrente (A) L.DA extinta por inutilidade superveniente da lide;
11.º Assim, terá de se considerar este processo de contra-ordenação também inútil por se ter chegado neste momento a um acordo com o trabalhador (B) quanto aos seus direitos e por outro lado, por nunca ter sido feita prova conclusiva de que na realidade houve mesmo infracção desses direitos por parte da Recorrente;
12.º Pelo que terá de ser aplicado o princípio “in dubio pro reo”, já que do auto de notícia não constam quaisquer provas documentais ou testemunhais que contrariem a prova testemunhal apresentada nos autos de contra-ordenação pela Recorrente (A) L.DA, testemunha essa que corroborou o afirmado na defesa apresentada pela Recorrente;
13.º Não se podendo, portanto, considerar que a Recorrente confundiu a questão laboral cível e a questão laboral contra-ordenacional, quando impugnou a decisão administrativa;
14.º Limitando-se a invocar a questão laboral cível já que a decisão da questão laboral contra-ordenacional se baseou na primeira, embora sendo esta provisória e inexequível;
15.º A Recorrente (A) L.DA, pelas razões e factos expostos, não violou o disposto no n.º 1 do art. 18.º, as alíneas a), c) e d) do art. 19.º e as alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 21.º, todos do DL n.º 49408 de 24 de Novembro de 1969;
16.º Não lhe devendo, assim, ser exigível a coima constante da douta sentença recorrida;
17.º Assim não o entendendo, o Meritíssimo Juiz “a quo”, na douta decisão em recurso, salvo melhor e douto entendimento, não fez a correcta interpretação e aplicação dos art.ºs 3.º alínea d), art. 7.º do DL. n.º 116/99 de 4 de Agosto, dos arts. 6.º n.ºs 1 e 3.º n.º 1 do DL. n.º 17/91, de 10/01, dos arts. 18.° n.º 1 als. a), c) e d) do art.º 19.º e als.) a) e b) do art. 21.º do DL. n.º 49408, de 24/11/69, para além do n.º 2 do art. 127.º da LCT, com a redacção introduzida pelo art.º 3.º do DL. n.º 170/2001.

Pelos factos e razões alegadas, deverá pois ser revogada a douta sentença recorrida, sendo a Recorrente (A) LDA absolvida da contra-ordenação em que foi condenada e do pagamento da coima respectiva
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Contra-alegou o Ministério Público à motivação do recurso da arguida, concluindo, assim:
1.° - A Recorrente foi condenada por violação do dever de ocupação efectiva de um trabalhador, previsto nos artigos 18.° n.° 1, 19.° alíneas a), c) e d), 21.° alíneas a) e b) do DL 49408 de 24/11/69, considerada infracção grave, nos termos do artigo 127.° n.° 2 da LCT.
2.° - Aceitando-se os factos e conclusões constantes dos números 1.°, 2.°, 3.°, 4.°, 5.°, 6.°, 7.°, 9.° e 10.° da motivação de recurso.
3.° - Mas a Recorrente confunde duas realidades distintas, seja, a questão cível laboral e a questão laboral contra-ordenacional.
4.° - A Recorrente não foi condenada com base na decisão proferida na providência cautelar.
5.° - A Recorrente foi condenada tendo por base os factos constantes do auto de notícia de fls. 4, que preenchem ilícito contra-ordenacional.
6.°- O auto de notícia faz fé em juízo até prova em contrário (artigos 2.° da Lei 116/99 de 4/8, 66.° da LQCO e artigo 6.° n.° 1 do DL 17/91 de 10/1, não havendo no caso vertente de recorrer-se ao princípio “in dubio pro reo”
7.° - O presente processo de contra-ordenação não é inútil em face do acordo celebrado com o trabalhador, face ao âmbito de incidência da contra-ordenação laboral e da questão cível suscitada.
8.° - “O nosso sistema jus laboral consagra um verdadeiro “dever de ocupação efectiva” a cargo do empregador, pelo que tendo-o violado a Recorrente incorreu na prática de contra-ordenação.(Ac. do STJ de 22/9/93, CJ/STJ 1993. Ano I, Tomo 3, pág.269, Ac. Rel. Lx de 29/9/99 in CJ, IV, 1999, pág.167 e Ac. Rel. de Lisboa de 18/3/92 in BTE, 2.ª série n.°s 10-11-12/94, pág. 1027)
9.° - A douta decisão em recurso, fez a correcta interpretação e aplicação dos artigos 3.° alínea d), artigo 7.° do DL n.° 116/99 de 4 de Agosto, dos artigos 6.° n.° 1 e 3.° n.° 1 do DL 17/91, de 10/1, dos artigos 18.° n.° 1 alíneas a), c) e d) do artigo 19.° e alíneas a) e b) do artigo 21.° do DL n.° 49408, de 24/11/69, para além do n.° 2 do artigo 127.° da LCT, com redacção introduzida pelo artigo 3.° do DL 170/2001.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto mantendo-se nos seus precisos termos a douta decisão recorrida.

II - COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS CUMPRE DECIDIR
Ao que julgamos, o conhecimento do objecto do recurso está relacionada directamente com a questão de se saber se auto de notícia de fls. 2 e v.º faz fé em juízo, pois, foi com este único fundamento que o despacho recorrido deu como assente que a recorrente “violou o dever de ocupação efectiva mantendo o trabalhador inactivo desde 21/12/2001 até 1/4/2002 (e não 1/04/2001, como, por lapso, consta do despacho recorrido), data em que, por essa razão, este rescindiu o contrato de trabalho”
A própria recorrente aceita que o auto de notícia faz fé em juízo até prova em contrário (cfr. conclusão 22.ª da motivação do recurso), mas o nosso entendimento, in casu, não é esse, como iremos procurar demonstrar.
Escreveu-se, a propósito, no despacho recorrido.
«Não é correcta a alegação de que a condenação administrativa se baseou apenas na decisão da providência cautelar, porque foi elaborado o auto de notícia de fls. 4, onde a inspectora autuante referiu os factos, além de mencionar a decisão do procedimento cautelar.
O auto faz fé em juízo até prova em contrário (art.º 2.º da Lei n.º 116/99, de 4/8; art.º 66.º da L.Q.C.O., na versão do D.L. n.º 244/95, de 14/9 e art.º 6.º, n.º 1, do D.L. n.º 17/91, de 10/1).
Mesmo que fosse ouvida a testemunha arrolada pela recorrente, não iria ela adiantar mais do que aquilo que disse no processo administrativo e foi irrelevante para a respectiva decisão; por isso, bem andaram a recorrente e o M.P. em prescindir de julgamento. O auto de notícia foi lavrado segundo a percepção da inspectora, com base em informações e documentos que recolheu, sendo a decisão da providência apenas uma delas, pelo que o auto continua a fazer fé em juízo e demonstra que a recorrente violou o dever de ocupação efectiva do citado trabalhador, mantendo-o inactivo desde 21/12/2001 até 1/4/2001 (queria dizer-se 1/04/2002), data em que, por essa razão, este rescindiu o contrato de trabalho.
A arguida, através de quem a representa, actuou com dolo, pois bem sabia não poder obrigar o trabalhador a ficar inactivo.
Pelo exposto, a recorrente violou o disposto no n.º 1 do art.º 18.º, conjugado com as als. a), c) e d) do art.º 19º e als. a) e b) do n.º 1 do art.º 21.º do D.L. n.º 49.408, de 24/11/69 (LCT), por violação do dever de ocupação efectiva, que constitui infracção grave, nos termos do n.º 2 do art.º 127.º da LCT, com a redacção introduzida pelo art.º 3º do D.L. n.º 170/2001, de 25/5, a que corresponde coima de Euros 2.070,01 a Euros 7.232,57, por a infracção ser punida a título de dolo, em conformidade com o n.º 3, d), do art.º 7.º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n.º 116/99, de 4/8, na redacção do art.º 5.º do D.L. n.º 323/2001, de 17/12.»
Ora, não podemos concordar, com a afirmação, no despacho recorrido, de que o “auto faz fé em juízo até prova em contrário”, nem com a sua fundamentação baseada no disposto no art.º 2.º da Lei n.º 116/99, de 4/08, no art.º 66.º da L.Q.C.O., na versão do D.L. n.º 359/89, de 27 de Outubro (e não na versão do D.L. n.º 244/95, de 14/9, como por lapso se refere) e art.º 6.º, n.º 1, do D.L. n.º 17/91, de 10/1).
Vejamos:
A primeira observação que se nos oferece realçar, é que, no art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho (Estatuto da Inspecção Geral do Trabalho), embora mantendo o princípio de que o auto de notícia carece de confirmação pelo dirigente com competência inspectiva (cfr. n.º 3 da disposição legal citada), não refere, ao contrário do que dispunha o art.º 33.º, n.º 3 do anterior Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 327/83, de 8 de Julho, que “o auto de notícia depois de confirmado, tem força de corpo de delito e faz fé em juízo até prova em contrário”.
Na verdade, o actual Estatuto da Inspecção Geral do Trabalho revogou o anterior Estatuto que tinha sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º 327/83, de 8 de Julho e, nomeadamente o seu art.º 33.º, a que atrás já fizemos referência, e que, determinava que o auto de notícia depois de confirmado, tinha força de corpo de delito e fazia fé em juízo até prova em contrário, na medida em que o n.º 1 do art.º 27.º daquele Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, determinou expressamente o seguinte:
«1. É revogada a parte em vigor do Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 327/83 constante dos art.ºs 28.º a 49.º».
Também não se pode justificar a fé em juízo do auto de notícia nas contra-ordenações laborais, com o disposto no art.º 6.º, n.º 1 do D. L. n.º 17/91 (diploma que regula o processamento e julgamento das contravenções e transgressões – art.º 1.º), na medida em que o art.º 66.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82 na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 359/89, de 27 de Outubro, apenas manda aplicar aquele 1.º diploma em relação às formalidades da audiência constantes do seu art.º 13.º (cfr. António Oliveira Mendes/José dos Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, nota 2 ao art.º 66, pág. 177 e António Joaquim Fernandes, in Regime Geral das Contra-Ordenações, nota 2 ao art.º 66, pág. 121).
Os autos de notícia nas contra-ordenações laborais fazem efectivamente fé em juízo, como qualquer outro auto de notícia, desde que os factos noticiados tenham sido directa e pessoalmente presenciados pela autoridade autuante, nos precisos termos do estabelecido no art.º 166.º do Código de Processo Penal de 1929, a que lhe corresponde o art.º 243.º do actual Código de Processo Penal, como documentos autênticos que são (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), fazendo por isso prova dos factos materiais deles constantes, mas naturalmente, sem prejuízo das garantias de defesa do arguido nem do princípio do contraditório, consignadas no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, cfr. João Soares Ribeiro, in Contra-Ordenações Laborais, pág. 154 e ss., Acórdão da Relação de Évora, de 9/04/03, in CJ - Ano 2003 - Tomo II - Pág. 255 e Acórdão da Relação de Coimbra , 19/03/2003, Ano 2003 – Tomo II – pág. 39).
Em relação ao auto de notícia em que a infracção laboral de natureza contra-ordenacional é verificada pessoal e directamente pelos inspectores do trabalho no exercício das suas funções, é-lhe feita referência no n.º 1 do art.º 20.º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, sem necessidade de identificação de qualquer testemunha (cfr. art.º 21.º do mesmo Regime Geral e art.º 7.º do actual Estatuto da Inspecção do Trabalho, aprovado pelo Decreto Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho), o que, não deixa de ser sintomático e só reforça a ideia de que os autos de notícia levantados pelos inspectores do trabalho, naquelas circunstâncias de presencialidade, fazem efectivamente fé em juízo. Tenha-se em atenção que quanto às infracções laborais cuja verificação de natureza contra-ordenacional não sejam verificadas pessoalmente pelo inspectores, as mesmas já obrigam à elaboração de participação instruída com o respectivos elementos de prova e com indicação de pelo menos duas testemunhas, até ao máximo de três por cada infracção (cfr. n.º 2 do art.º 20.º do mesmo Regime Geral e art.º 8.º do actual Estatuto da Inspecção do Trabalho, aprovado pelo Decreto Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho).
Esta diferenciação de regime quanto ao processamento dos “autos de notícia” e das “participações”, denota claramente que foi intenção do próprio legislador laboral aceitar a fé em juízo dos autos de notícia de infracções laborais, apesar de não o referir, actualmente, de forma expressa (ao contrário do que acontecia no domínio de vigência do já citado Estatuto da Inspecção-Geral do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 327/83, de 8 de Julho, revogado, na sua totalidade, pelo art.º 27.º do actual Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, e que, já tinha sido revogado parcialmente pelo art.º 57.º do Decreto-Lei n.º 219/93 que criou e regulamentou o Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho), por, seguramente, não o ter julgado necessário.
Chegámos, assim, à conclusão, mas por motivos diferentes do constante no despacho reclamado, que o auto de notícia dos presentes autos faria, por princípio, fé em juízo, após o mesmo ter sido confirmado pelo Inspector Regional do Trabalho da Região Autónoma da Madeira, conforme resulta do carimbo aposto a fls. 2 dos autos.
Mas, para que tal auto de notícia fizesse fé em juízo haveria, como já referimos, que obedecer aos requisitos da presencialidade da infracção, a que fazia alusão o disposto no art.º 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro, e a que alude, actualmente, o n.º 1 do art.º 20.º do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, aprovado pela Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, ou seja, tornava-se necessário que a infracção noticiada tivesse sido verificada ou comprovada pessoal e directamente pelos Inspectores do Trabalho, ainda que de forma não imediata.
Ora, da leitura do auto de notícia, não se pode concluir que a infracção noticiada tenha sido presenciada pessoal e directamente, por qualquer forma, (mediata ou imediata), pela Inspectora Autuante, tendo a sua autuação ocorrido na própria Inspecção Regional do Trabalho e apenas com o fundamento expresso numa decisão do tribunal do trabalho do Funchal de 27/02/de 2002, proferida em providência cautelar intentada pelo trabalhador António Rodrigues da Silva.
Atentemos na redacção da infracção noticiada, constante do auto de notícia:
«A arguida tinha ao seu serviço o trabalhador António Rodrigues da Silva, admitido em 22/05/95, com a categoria profissional de encarregado de l.ª, exercendo as suas funções em diversas obras na R.A.M., sendo que, a partir de 21/12/01, a arguida deixou de lhe atribuir funções e instrumentos de trabalho, mantendo-o, assim, inactivo, na medida em que lhe foi retirada a coordenação de equipas de trabalho, sendo-lhe comunicado que passaria a estar na carpintaria da arguida, onde se manteve até 1 de Abril de 2002, data em que rescindiu a prestação de trabalho com fundamento em violação do dever de ocupação efectiva.
Refira-se que a arguida foi condenada a atribuir ao trabalhador referido as funções de encarregado, de que este estava incumbido em Dezembro de 2001, por decisão do Tribunal do Trabalho do Funchal de 27 de Fevereiro de 2002 e, não obstante, não se determinou nesse sentido, quando podia e devia tê-lo feito, bem sabendo que, assim, praticava contra-ordenação punida com coima.
Registe-se que, por parte desta Inspecção Regional, foram empreendidas diversas diligências e feitos contactos e comunicações aos responsáveis da arguida no sentido de os mesmos sanarem a infracção cometida sem que, no entanto, até ao momento, isso tenha acontecido.
Anexo cópia de sentença do Tribunal do Trabalho do Funchal, cópia de rescisão contratual pelo trabalhador e mapa de quadro de pessoal/01.»
Ora, para que um auto de notícia possa fazer fé em juízo é necessário que preencha cumulativamente as seguintes condições:
a) Ter por objecto factos materiais, sensorialmente perceptíveis e não também, juízos do valor, proposições conclusivas;
b) Ser feita presencialmente pela autoridade competente, entendendo-se esta presencialidade como toda a comprovação pessoal e directa, ainda que não imediata, por forma a abranger as situações em que não é possível uma percepção sensorial contemporânea dos factos, casos em que é suficiente uma constatação directa dos elementos constitutivos da infracção (v.g., através de exame documental).
Só, assim, os autos de notícia levantados pela Inspecção do Trabalho, e cuja forma de verificação obedeça aos requisitos enunciados nas duas alíneas precedentes, gozam de fé em juízo, até prova em contrário (cfr. neste sentido, Parecer da Procuradoria Geral da República, n.° 177/80, de 4 de Dezembro de 1980: BMJ, 306.°-113).
Ora, em parte alguma do auto de notícia, se refere que a Inspectora Autuante se tenha deslocado à empresa e, aí, tenha presenciado pessoal e directamente a infracção noticiada.
Por outro lado, a prova documental que foi junta ao auto de notícia (sentença do tribunal do trabalho proferida em providência cautelar intentada pelo trabalhador, cópia do documento de rescisão do contrato pelo trabalhador e mapa do quadro de pessoal), na qual, a Inspectora Autuante se baseou para concluir pela prática da infracção noticiada pela arguida, são de todo insuficientes para provar, mesmo que, só mediatamente, tal infracção, pois, não havendo, no auto de notícia, referência a qualquer outra prova documental (ou de outra espécie), é de mediana clareza que, só por si, esta mesma prova documental é, de todo, insuficiente para dar como provada a prática da contra-ordenação a que se reporta o auto de notícia.
Vejamos:
O quadro de pessoal nada tem a ver com a eventual manutenção do trabalhador num estado de inactividade profissional, em violação do dever de ocupação efectiva, por parte da recorrente.
A cópia do documento de rescisão do contrato pelo trabalhador, sendo da autoria do próprio trabalhador, não faz prova, de que, o seu conteúdo seja verdadeiro. Como se sabe os factos compreendidos na declaração, contida em documentos particulares, só se consideram provados se forem contrários aos interesse do próprio declarante (n.º 2 do art.º 376.º do Código Civil).
Por último, a sentença do tribunal do trabalho proferida em providência cautelar intentada pelo trabalhador tem, como bem refere a recorrente na sua motivação do recurso, “caracter meramente instrumental e acessório da acção principal, tendo, naturalmente, a decisão nela tomada, natureza precária e provisória”.
Tal instrumentalidade (dependência formal em face do processo principal) - cfr. art.ºs 381.º e ss. do Código de Processo Civil - não dão, à decisão proferida em providência cautelar, carácter de certeza e, por isso, aquela “sentença” nada pode provar em definitivo.
Tanto nos basta para concluirmos, in casu, que o auto de notícia não obedece aos requisitos exigidos, já atrás referidos, para que o mesmo faça fé em juízo.
E, não fazendo o auto de notícia fé em juízo e, dado que a decisão recorrida que manteve a decisão administrativa que aplicou a coima à recorrente, se fundamentou, erradamente, em tal pressuposto, forçoso é concluir que o recurso terá de proceder.
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III – DECISÃO:
Nestes termos acorda-se em julgar totalmente procedente o recurso e, consequentemente, absolver a recorrente da contra-ordenação de que vinha acusada e do pagamento da coima que lhe foi aplicada.
Sem custas.
Lisboa, 19/11/03
(Sarmento Botelho)
(Simão Quelhas)
(Seara Paixão)