Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4/17.4YUSTR.L2-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: LEI MAIS FAVORÁVEL
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Determinando o tribunal superior, na sequência de requerimento do arguido, apresentado depois do acórdão proferido em 2ª instância, mas antes do respectivo trânsito em julgado, que a 1ª instância se pronuncie sobre aplicação de lei alegadamente mais favorável entretanto publicada, não pode a 1ª instância deixar de se pronunciar sobre essa questão com o argumento que o tribunal superior não podia ignorar a entrada em vigor dessa lei e que a decisão final de mérito já transitara em julgado.

(Sumário elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1. No processo nº4/17.4YUSTR, do 1.° Juízo do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Juiz 2, foi proferida sentença em 22 de Março de 2017, julgando procedente o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa e absolvendo a recorrente X, SA, da contraordenação que lhe foi imputada pela ANACOM.

O Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação (9ª Secção) que, por acórdão de 6 de Julho 17 (fls.1010 a 1058), deu provimento ao mesmo, decidindo revogar "a decisão judicial recorrida que absolveu a arguida, nos termos acima descritos, e alterando a matéria de facto nos termos do disposto nos art.°s 410 e 431, ambos do C.P.Penal ex vi art.41 do R.G.C.O., se mantém na íntegra a decisão administrativa que condenou a arguida X, SA, na coima no montante de €3.000,00, pela prática negligente do ilícito previsto na alínea c) do n° 1 do art. 33° do Decreto-Lei n°192/2000, de 18 de agosto".

Notificada deste acórdão, em 13Julho17, a arguida X, S.A. («CPC DI»), veio alegar que o Dec. Lei nº192/2000, de 18 de Agosto, foi revogado pelo Dec. Lei nº57/17, de 9Jun., em vigor desde 10Jun.17, pelo qual o facto por que a arguida foi condenada deixou de ser punido, terminando requerendo que o Tribunal da Relação conheça a questão suscitada e declare extinto o procedimento contraordenacional, em virtude da entrada em vigor de lei mais favorável que “descriminaliza” a conduta por que a arguida foi condenada.

Exercido o contraditório, a 9ª Secção deste Tribunal da Relação, por acórdão de 28Set.17 (fls.1109 e segs.), considerando “… com a prolação do acórdão, esgotou-se o poder jurisdicional deste tribunal da Relação, que se pronunciou sobre as questões que eram da sua competência. Proferido o acórdão, este tribunal da Relação apenas detém competência para conhecer de nulidades ou para a sua correcção ... o que não é o caso. Pelo que a questão agora suscitada apenas poderá ser conhecida pelo tribunal recorrido, o que, para além do mais, resultará em favor da arguida, que, assim, manterá aberta a via de recurso em caso de decisão de que eventualmente venha a discordar…”, concluiu, decidindo “ Pelo exposto, e em consequência decide-se não apreciar a questão suscitada pela recorrente, sendo outrossim competente para o efeito o tribunal recorrido, indeferindo-se o requerido”.

A arguida X., S.A. («CPC DI»), por requerimento de 10Out.17, apresentado no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, renova o requerimento que apresentara em 13Julho17 na 9ª Secção deste Tribunal da Relação e que justificou o acórdão de 28Set.17.

Em 1ª instância, após audiência, em 13Nov.17, o tribunal proferiu a seguinte decisão:
“…
Subidos os vertentes autos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, após prolação da sentença a 22 de março de 2017, veio a mesma a ser revogada e a Arguida condenada numa coima de 3.000,00€, pela prática, na forma negligente, da contraordenação, prevista e punida pelo artigo 33. º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei nº192/2000, de 18 de agosto, por acórdão datado de 6 de julho de 2017.
Regularmente notificada do douto acórdão, a Arguida logo apresentou a 13 de julho de 2017, requerimento, no qual pede a declaração de extinção do procedimento contraordenacional, em virtude a conduta que serve de fundamento à condenação ter deixado de ser punida, considerada a entrada em vigor de nova lei.
Após vários despachos proferidos pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e cumprimento de contraditório, tudo devidamente detalhado de folhas 1087 a 1105 dos autos, a 28 de setembro de 2017, decidiu-se “não apreciar a questão suscitada pela recorrente, sendo outrossim competente para o efeito o tribunal recorrido, indeferindo-se o requerido”.

Após, a Arguida apresentou novo requerimento, a 11 de outubro de 2017, renovando o anteriormente formulado.

A 3 de novembro de 2017, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão designou o dia 9 de novembro de 2017 para realização de audiência, cumprindo agora apreciar e decidir.

1. Primacialmente, não pode este Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão deixar de expressar o adequado regozijo por ver acolhidos pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de forma integral, os fundamentos de direito que foram adotados e expressos, na sentença proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão no processo n.º132/15.0 YUSTR, proferida a 6 de julho de 2015.
2. Para apreciação do vertente requerimento, importa considerar o disposto no artigo 371. º-A, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41. º, n.º 1, do Regime Geral das Contra ordenações e Coimas, o qual dispõe: “Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”.
3. Importa assim considerar dois momentos distintos para reconhecer a aplicabilidade da norma. Por um lado, o momento do trânsito em julgado da decisão condenatória, e por outro, o momento da entrada em vigor da lei nova. Só depois, e verificados os pressupostos, poderá o Tribunal aferir das condições substanciais da aplicação retroativa da lei mais favorável.
4. Ora, olhados os autos, constata-se que a lei nova entrou em vigor em data anterior à própria prolação do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Está em causa a publicação do Decreto-Lei n.º57/2017, de 9 de junho, cujos artigos 52. º e 53. º, preveem a revogação do Decreto-Lei n.º 192/2000, de 18 de agosto e a entrada em vigor da nova legislação no dia seguinte à data da sua publicação, isto é 10 de junho de 2017.
5. Assim, quando o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o acórdão, já o novo diploma legal tinha iniciado a sua vigência.
6. Logo se afere que o pressuposto previsto para a abertura da audiência para aplicação retroativa da lei mais favorável não se verifica, contanto após o trânsito em julgado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa não entrou em vigor lei mais favorável, sendo aquele contemporâneo desta.
7. Com efeito, e salvo melhor opinião, caberia à Arguida promover o impulso processual pertinente perante o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, mas revela-se que a abertura da audiência ao abrigo do disposto no artigo 371. º-A, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41. º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, não constitui o modo adequado, porque não consentido processualmente.
8. Maria João Antunes pronuncia-se no sentido de quando não tenha sobrevindo trânsito em julgado, “o que o tribunal de recurso não deverá fazer é «ignorar» a entrada em vigor da lei mais favorável, com o argumento de que, uma vez transitada em julgado a decisão, o condenado poderá sempre requerer a abertura da audiência” – conferir “Abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável” , in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, N.º 2 e 3, 2008, Coimbra Editora, p. 341.
9. Temos como certo que, no caso vertente, a ser admitida a abertura da audiência nos termos supra traçados, tal conflituaria com os interesses constitucionalmente garantidos pelo princípio do caso julgado.
*

Em face do exposto e pelas sobreditas razões, o Tribunal, em obediência ao mandato constitucional de administrar a justiça em nome do povo, indefere o requerido pela Arguida.
…”.

2. Inconformada com este despacho, a arguida X., S.A. («CPC DI»), interpôs recurso, concluindo:
i.  Nulidade da decisão recorrida por inobservância de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa
a.-O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, enquanto Tribunal de primeira instância, é hierarquicamente inferior ao Tribunal da Relação de Lisboa.
b.-Em face da reclamação tempestivamente apresentada junto do Tribunal da Relação de Lisboa pela ora Recorrente a propósito da aplicação retroativa de lei mais favorável, o Acórdão que sobre ela recaiu, em 28 de setembro de 2017, constitui complemento e parte integrante do acórdão condenatório (cfr. artigo 617.°, n.° 2, do CPC, ex vi artigo 4.° do CPP, ex vi artigo 41.°,n.° 1, do RGCO).
c.-Tal acórdão determinou que a questão suscitada «apenas poderá ser conhecida pelo tribunal recorrido, o que, para além do mais, resultará em favor da arguida, que, assim, manterá aberta a via de recurso em caso de decisão de que venha a discordar» (p. 6 do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 28 de setembro de 2017).
d.-Ao Tribunal a quo estava assim vedada a possibilidade de recusar a apreciação da questão suscitada pela ora Recorrente, por tal decisão configurar um não acatamento ilegítimo da decisão do Tribunal superior que determinou que a mesma fosse apreciada e decidida em primeira instância.
e.-Consequentemente, ao ter-se abstido de conhecer questão relativa à aplicação de lei mais favorável, a sentença recorrida não obedeceu à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso, encontrando-se, por conseguinte, ferida de nulidade insuprível, por violação do disposto nos artigos 4.°, n.° 1, 42.°, n.° 1, e 188.°, n.° 5, da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto, bem como do disposto no artigo 152.° do CPC, ex vi artigo 4.° do CPP e 41.", n.° 1, do RGCO.
f.-Nulidade da sentença que se deixa expressamente arguida no presente recurso, nos termos do disposto no artigo 379.°, n.° 1, alínea c), do CPP, ex vi artigo 41.°, n.° 1, do RGCO.

ii. Subsidiariamente, do inadmissível non liquet
g.-Dispõe o artigo 8.°,n.º1, do Código Civil, que «[o] Tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio».
h.-No caso, o Tribunal a quo em inobservância do que foi determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, absteve-se de decidir com fundamento na pretensa inexistência de preceito legal que regule a abertura da audiência nas situações em que a nova lei de conteúdo mais favorável tenha entrado em vigor em momento anterior à prolação de decisão condenatória. No entender do Tribunal a quo, se aquela decisão se encontrasse transitada em julgado no momento da entrada em vigor da lei mais favorável, então, a questão da extinção do procedimento contraordenacional já poderia ser apreciada.
i.-Sucede que, ao decidir não decidir, o Tribunal recorrido gera uma situação de non liquet, não ignorando, no entanto, a decisão do Tribunal da Relação nesta matéria, que o mandou ponderar em que moldes a nova lei teria aplicação, o que só não aconteceu por razões de natureza adjetiva.
j.-Por conseguinte, também por esta razão - por originar uma situação de non liquet -, a sentença recorrida é nula (cfr. artigo 379.°, n.° 1, alínea c), do CPP, ex vi artigo 41.", n.° 1, do RGCO).

iii. Subsidiariamente, do erro de julgamento
i.- O Tribunal recorrido fez ainda uma incorreta interpretação e aplicação do regime legal aplicável, em concreto do disposto no artigo 3.°, n.° 2, do RGCO e, bem assim, do artigo 371.°-A do CPC.
j.- Com efeito, o artigo 371.°-A do CPP não deve ser aplicado no âmbito do processo contraordenacional, sem mais, ou seja, da forma como poderia ser aplicado no processo penal.
m. Para se aferir da correta compatibilidade do artigo 371.°-A do CPP com o Regime Geral das Contraordenações, é necessário analisar as disposições legais que regulam a aplicação da lei no tempo neste regime legal.
n.- Colocando em perspetiva o artigo 3, n°2, do RGCO (norma de Direito substantivo) e o artigo 371.°-A do CPP (norma de Direito adjetivo) constata-se que este último preceito fica aquém do disposto no artigo 3.°, n.° 2, do RGCO.
o.- No caso concreto, não obstante a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa - a decisão condenatória - tenha transitado em julgado, a mesma não foi ainda executada, pelo que sempre se impõe a reabertura da audiência, para aplicação da lei mais favorável à Recorrente, nos termos do disposto no artigo 3.°, n°2, do RGCO, aplicando, para o efeito, com as adaptações necessárias, o disposto no artigo 371.°-A do CPP.

iv. Subsidiariamente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva
p.- Ainda que se procurasse sustentar que caberia à Recorrente o ónus de impedir o trânsito em julgado do acórdão condenatório para assim ver apreciada a questão da aplicação da lei mais favorável, a verdade é que, imediatamente após a notificação do primeiro acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a Recorrente reagiu, dirigindo a este Tribunal o requerimento onde suscitou aquela questão, no prazo de 3 (três) dias a contar da notificação do acórdão (ou seja, ainda antes de o mesmo transitar em julgado).
q.- Em face da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que, em 28 de setembro de 2017, decidiu «não apreciar a questão suscitada sendo outrossim competente para o efeito o tribunal recorrido» - sem nunca suscitar, porém, a questão da intempestividade do pedido de aplicação retroativa da lei mais favorável - a Recorrente não tinha alternativa senão a de renovar o requerido junto do tribunal que o Tribunal superior considerara competente para o efeito, aguardando que o mesmo, em observância do superiormente determinado, apreciasse e decidisse sobre o pedido da ora Recorrente.
r.- A sentença recorrida gera, com a sua não decisão, um "conflito negativo decisório", resultante da circunstância anómala de tanto a instância recursiva com a primeira instância se recusarem a conhecer uma questão de conhecimento oficioso.
s.- Assim, a norma extraída por interpretação conjugada dos artigos 371.°-A do CPP e do artigo 3.°, n.° 2, do RGCO, no sentido de que «a entrada em vigor,  em momento anterior ao do trânsito em julgado da decisão condenatória  proferida em sede de recurso, de lei mais favorável não permite a reabertura  da audiência prevista no artigo 371.°-A do CPP, ex vi artigo 41.°, n.° 1, do  RGCO», é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 20, n°4 e 29, nº1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido, nos termos do artigo 73.°, n.° 1, do RGCO, julgando-se o mesmo procedente, e, em consequência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, dando cumprimento ao disposto no artigo 3.°, n.° 2, do RGCO, conheça do regime mais favorável em concreto à Arguida, por força da aplicação da lei no tempo, com as demais consequências legais.

3. Admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, a ANACOM e o Ministério Público responderam, ambos concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância, a que respondeu a recorrente, reafirmando o alegado no recurso.
5. Após os vistos legais, realizou-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação da invocada nulidade da decisão recorrida e aplicação da lei mais favorável à arguida.
*     *     *

IIº1. Invocando o determinado pela 9ª Secção deste Tribunal por acórdão de 28Set.17, a recorrente, alega que o tribunal recorrido não respeitou o decidido por este Tribunal Superior, abstendo-se de conhecer questão que devia apreciar, o que integra a nulidade do art.379, nº1, al.c, CPP ex vi art.41, nº1, do RGCO.
Contudo, tendo a 9ª Secção deste Tribunal, em relação a requerimento da arguida de 13Julho17 (que esta renovou em 10 Out.17, fls.1147), decidido “…não apreciar a questão suscitada pela recorrente, sendo outrossim competente para o efeito o tribunal recorrido…”, o tribunal recorrido não omitiu pronúncia sobre a questão sucitada pelo recorrente, tendo-se debruçado sobre ela e decidido “… indefere o requerido pelo arguida”.
A recorrente pode discordar do sentido da decisão, mas não ocorre nulidade por omissão de pronúncia.
Por outro lado, a situação não pode ser reconduzida a um non liquet, não constando do despacho recorrido qualquer invocação de falta ou obscuridade da lei ou alegada dúvida insanável acerca dos factos em litígio, mas antes uma posição clara sobre a situação controvertida, com ponderação dos respectivos fundamentos (trânsito em julgado posterior à lei que a arguida pretende ver aplicada e caso julgado obstativo de reapreciação da questão) e prolação da decisão (indefere o requerido pela arguida).

2. Inexistindo nulidade da decisão recorrida, importa apreciar o seu mérito.
Requereu a arguida a aplicação ao caso dos autos do regime jurídico do Dec. Lei nº57/17, de 9 de Junho, alegando estar em causa lei mais favorável, em relação à vigente na data da prática dos factos.
Aquele Dec. Lei nº57/17, foi publicado depois da decisão administrativa e da sentença de 1ª instância de 22Mar.17, mas é indiscutível que já estava em vigor quando foi proferido o Acórdão da 9ª Secção deste Tribunal de 6Julho17 (o Dec. Lei nº57/17 entrou em vigor em 10Jun.17 – art.53).
O acórdão de 6Julho17, não se pronunciou sobre a aplicabilidade ao caso desse diploma legal, nem sobre a existência de sucessão de leis no tempo, sendo tal questão suscitada pela arguida por requerimento de 13 de Julho17, apresentado antes do respectivo trânsito em julgado, após o que foi proferido o acórdão de 28Set.17.
Pronunciando-se sobre o requerido pela arguida, como foi determinado por este acórdão de 28Set.17, o despacho recorrido considera que o caso dos autos não é de sucessão de leis no tempo uma vez que não existe qualquer lei nova posterior ao trânsito em julgado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Não esclarece a decisão recorrida, porém, quando considera transitado esse acórdão e o alcance do caso julgado formado.
De acordo com o art.628, CPC “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.
Assim, quando a arguida suscitou a questão da sucessão de leis no tempo e de aplicação da lei mais favorável (requerimento de 13Julho17), o acórdão de 6Julho17 ainda não tinha transitado, em relação a ele sendo admissíveis as correcções previstas no art.380, CPP, mas também reforma nos termos do art.º 616º, CPC, ex vi art.4, CPP, nomeadamente “…2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; …”.

Confrontado com aquela pretensão da arguida, este Tribunal da Relação (9ª Secção), por acórdão de 28Set.17, não emite qualquer decisão de mérito sobre a mesma, nem decide que sobre tal questão não pode já incidir qualquer decisão de mérito, antes decidindo “… não apreciar a questão suscitada pela recorrente, sendo outrossim competente para o efeito o tribunal recorrido…”.
É certo que termina “… indeferindo-se o requerido”, mas esta parte decisória só pode referir-se ao pedido final do requerimento da arguida “… declarar o presente procedimento contra-ordenacional extinto, absolvendo-se a arguida da prática da contraordenação …”, pois na fundamentação o acórdão é claro no sentido de entender que a questão suscitada pela arguida ter de ser apreciada (a fls.6, o acórdão refere … a questão agora suscitada apenas poderá ser conhecida pelo tribunal recorrido, o que, para além do mais, resultará em favor da arguida, que, assim, manterá aberta a via de recurso em caso de decisão de que eventualmente venha a discordar”.

Deste modo, a 9ª Secção deste Tribunal entendeu que a questão suscitada pela arguida no requerimento de 13 de Julho17 devia ser apreciada e que a competência para tal apreciação pertencia ao tribunal de 1ª instância.

Considerando o alcance do caso julgado, definido pelo art.621, CPP “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga …”, terá de entender-se que a decisão final da 9ª Secção (constante dos acórdãos de 6 de Julho17 e 28Set.17 – art.617, nº2, CPC), na medida em que não se pronuncia sobre a questão concreta suscitada de existência de sucessão de leis no tempo e aplicação de lei mais favorável, não constitui caso julgado em relação a essa questão (não conhecida em nenhum momento dos acórdãos de 6Julho17 e 28Set.17) e determinando essa mesma decisão que tal questão seja objecto de pronúncia pela 1ª instância, admitindo que daí resulte decisão mais favorável, tem de entender-se que ficou assente, por decisão transitada em julgado, que o tribunal recorrido deve conhecer dessa mesma questão.

Não se desconhecem as referências da doutrina à problemática subjacente ao caso, designadamente a citação constante do despacho recorrido da Prof. Maria João Antunes “o que o tribunal de recurso não deverá fazer é ignorar a entrada em vigor de lei mais favorável …”, ou da jurisprudência, em particular o Ac. desta Secção de 16 de Outubro de 2007 (Relator Nuno Gomes da Silva, Proc. 5585/07-5, decidindo no sentido da aplicação obrigatória do novo regime dever ser feita pelo tribunal de recurso, desde que este disponha de todos os elementos necessários para o efeito.

Contudo, essa problemática não pode já ser discutida neste processo, pois nem o tribunal recorrido, nem este Tribunal da Relação no recurso agora interposto, podem questionar o mérito da decisão da 9ª Secção nos termos em que a mesma transitou em julgado.

Não se pode considerar sequer que a pronúncia sobre a questão suscitada pela arguida contende com os limites dos poderes jurisdicionais de quem proferiu a decisão de 6 Julho 17, pois esses decisores, por acórdão de 28 Set.17, entenderam que a questão suscitada pela arguida “… poderá ser conhecida pelo tribunal recorrido, o que, para além do mais, resultará em favor da arguida, que, assim, manterá aberta a via de recurso em caso de decisão de que eventualmente venha a discordar”, nessa parte existindo decisão transitada em julgado que terá de ser respeitada.

A 9ª Secção não determinou a reabertura da audiência ao abrigo do art.371-A, CPP que, como refere a decisão recorrida, pressupõe o trânsito em julgado da decisão final de mérito.

Ao contrário do alegado pela recorrente entende-se que o tribunal recorrido não desrespeitou decisão do tribunal superior mas, como o devido respeito, decidiu com base em pressuposto errado, que existia decisão transitada em julgado impeditiva de apreciação da questão suscitada pela arguida pois, repete-se, o que existe é decisão transitada remetendo para o tribunal de 1ª instância a apreciação de questão suscitada nos autos e ainda não decidida.

Os acórdãos de 6 de Julho de 2017 e de 28 de Setembro de 2017 não se pronunciaram sobre essa questão suscitada pela arguida, daí que não haja decisão transitada em julgado sobre ela, nem existe impedimento processual a que o tribunal de 1ª instância se pronuncie sobre ela, pois essa pronúncia foi determinada pelo tribunal superior.

Em conclusão, reconhecendo que não será caso de aplicação do art.371-A, CPP, deve o tribunal recorrido proferir decisão, apreciando o requerido pela arguida, considerando que não existe decisão transitada em julgado quanto à questão por esta suscitada, de existência de sucessão de leis no tempo e aplicação à arguida de lei mais favorável.

IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em dar provimento ao recurso interposto pela arguida X., S.A. («CPC DI»), revogando o despacho recorrido de 13 de Novembro de 2017, determinando que seja substituído por outro que aprecie o requerido pela arguida no requerimento de 13 de Julho de 2017, renovado em 10 de Outubro de 2017 e que tenha em conta o âmbito do caso julgado formado nos termos supra referidos.
Sem tributação.



Lisboa, 6 de Fevereiro de 2018


(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Ricardo Cardoso)