Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73/16.4PHLRS.L1-3
Relator: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Descritores: QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
DESCRIMINALIZAÇÃO
DESPACHO
QUEIXA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, passou a constituir contraordenação, p. e p. pelo artº 38 º r), “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves”, não integrando tal conduta a prática do crime, p. e p. pelo art. 148.º, n.º1 do Código Penal.

O proprietário de um animal doméstico, neste caso um cão, tem o encargo de o vigiar sob pena de responder pelos danos que ele causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte, artigo 493º, nº1 do CCivil. Ou seja, o ilícito resulta não da utilização do animal mas do facto de se possuir um animal não cumprindo os deveres de vigilância exigidos.

A qualificação jurídica dos factos não é, em si, sequer, causa de rejeição da acusação, excepto quando os factos não constituírem crime – art. 311.º n.º 2, a) e 3, d) do CPP.
Os comportamentos em causa estão contidos nesta lei e saem do artº 148º independentemente de existir ou não queixa e não necessitando da mesma para prosseguir ou ser instaurado procedimento criminal.
A não ser assim, não fazia sentido a criação do diploma em causa que envolve os animais de estimação e/ou companhia perigosos ou potencialmente perigosos e o dever de por eles zelar evitando lesões a terceiros.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão proferido na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes autos veio o MP recorrer do despacho proferido a fls. a 104 a 110, no qual o Mmo. Juiz determinou o arquivamento dos autos face á descriminalização operada pelo DL N°315/2009, de 29/10, no que respeita ao crime de ofensas corporais negligentes, pelo qual a arguida ML..., vinha acusado, nos termos do artº 148º nº1 do C.P., por entender que os factos descritos na acusação e que delimitam o objecto do processo não constituem crime, mas antes sim uma contraordenação p.p. pelo art. 38º al. r) do supra citado DL.

Apresentou para tanto as seguintes

CONCLUSÕES:
Fundamentou o Mmo Juiz a sua posição referindo que a arguida vinha acusada da prática de um crime de ofensas negligentes p.p. pelo art. arts 148º nº1 do C.P., e que de acordo com os factos descritos na acusação, nas circunstâncias de tempo e lugar aí referidas, a ofendida foi mordida pelo cão da arguida, no braço esquerdo que lhe provocou uma lesão que lhe determinou 10 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho;
Tal lesão resultou da falta de cuidado da arguida, que não acautelou, como podia e devia, a presença do cão na via pública, permitindo que o animal caminhasse na via pública sem trela ou açaime e admitindo como possível que o animal nessas condições pudesse ofender a saúde e integridade física da ofendida.
A arguida agiu livre voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
Tais factos são susceptíveis de integrar a prática do crime pelo qual a arguida vinha acusada, no entanto uma vez que ocorreram quando já estava em vigor o D.L. n° 315/2009, de 29/10, que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, tal conduta é enquadrada nesse mesmo diploma no art. 38° n°1 r);
Entendeu o Mm° Juiz, que conjugando o art. 38° e o 33°, desse diploma legal, se pode concluir que apenas constituem crime as ofensas corporais á integridade física graves por negligência, e não as meras ofensas simples como é o caso dos autos;
7 -Desse modo, entendeu que a conduta descrita apenas integraria a prática de uma contraordenação nos termos do art. 38° n°1 r) do já referido DL, preconizando o entendimento do Ac. do TRE de 5/06/2012, proc. n° 193/10.9GACTX.E1, que refere que a aplicação subsidiária do art. 34°, não impede a aplicação do art. 38º, existindo um concurso de normas entre tais preceitos, prevalecendo o art. 38º sobre o art. 34º porque é especial, pois caso contrário existiria uma duplicação da punição do mesmo facto, violando o principio “ne bis in idem”;
Assim, só existiria crime se as lesões provocadas fossem graves, caso contrário será uma contra- ordenação;
Consequentemente, declarou extinto o procedimento criminal, logo no início da audiência de discussão e julgamento, portanto sem que o mesmo fosse efectuado, face á descriminalização operada, determinando o arquivamento dos autos;
Salvo o devido respeito, não concordamos com a decisão do Mmº Juiz, por duas ordens de motivos;

Primeiramente, quanto ao momento em que é proferido o despacho objecto do presente recurso, ou seja já depois de recebida a acusação pelo crime de ofensas negligentes e sem que fosse realizado o julgamento, pois que tal questão, de descriminalização da conduta, poderia ter sido analisada em sede de sentença;
Seguidamente, quanto a se a conduta descrita na acusação configura a prática de um crime de ofensas negligentes ou de uma contraordenação;
Quanto à primeira questão, ou seja o momento em que é proferido o despacho objecto do presente recurso, entendemos que o Mmo Juiz, não o podia fazer pelos motivos que passaremos a enunciar;
Salvo o devido respeito, não concordamos com a decisão do Mmº Juiz, atendendo a que, foi recebida a acusação a fls 73 a 75, pelos factos e pela qualificação jurídica dela constante, os quais se deram como integralmente reproduzidos;
O Mmº Juiz, preconizando o entendimento de que os factos descritos na acusação não integram a prática de qualquer crime, mas antes sim de uma contraordenação em virtude de as ofensas produzidas não serem graves, determinou a extinção do procedimento criminal com o posterior arquivamento dos autos, dando assim, na prática, sem efeito o despacho já anteriormente proferido que havia recebido a acusação nos seus precisos termos;
Ora, não podemos, de modo algum concordar com tal entendimento, pois que, na nossa modesta opinião, depois de proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, nos seus precisos termos e transitado em julgado tal despacho, não pode depois, o Juiz proferir despacho a arquivar os autos por entender não existir crime seja de ofensas negligentes ou qualquer outro;
Na verdade, tendo o tribunal a quo, no momento processual a que se referem os artigos 311 ° a 313°, do C. P. Penal (fls114), recebido a acusação deduzida com a expressa menção de que recebia a mesma pelos factos e segundo a qualificação jurídica dela constante e que se deu como integralmente reproduzida, estava-lhe vedada, segundo entendemos, até por esgotamento do seu poder cognitivo, a possibilidade de, posteriormente, seja no inicio da audiência ou ainda que já no decurso da mesma, reapreciar a mesma questão e proferir novo despacho que, inutilizando o anterior, em termos práticos, rejeitou a acusação;
Ultrapassada aquela fase de saneamento do processo, e a entender-se que a acusação padece de alguma anomalia, seja por insuficiência dos factos nela descritos, ou por qualquer outro motivo, cremos que o tribunal a quo apenas poderá agir nos termos e com observância do disposto nos artigos 358° e 359°, do C. P. Penal;
Preconizando o que refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código do Processo Penal, 2007, págs. 780/781, em anotação ao artigo 311°, a propósito da "imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos": «... o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (acórdão do TC n.º 518198), podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior. Razão pela qual o juiz, aquando da prolação do despacho do artigo 311º, não deve rejeitar a acusação e devolvê-la ao MP para corrigir erros "claros" de qualificação jurídica dos factos, sendo certo que a "clareza" do direito não é indiscutível».
Note-se, o entendimento que é perfilhado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/13, de 13 de Junho de 2013, que fixou jurisprudência no sentido de que «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º, nºs. 1 e 3 do CPP.».
Na mesma linha de raciocínio se pronuncia o Professor Alberto dos Reis (CPC anotado, reimpressão, 1981, Vol. V, págs. 126/127), quando ensinava que «0 juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível. [...] A razão pragmática do princípio da extinção do poder jurisdicional consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via de recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio Juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.».
A fase em que os presentes autos se encontram, em que foi deduzida acusação e não tendo sido requerida a abertura de instrução, ou seja o processo transitou directamente para a fase de julgamento, a primeira intervenção do juiz é, então, para sanear o processo, sendo este o primeiro de três distintos momentos em que pode conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa;
Foi o que foi efectuado pelo Mmº Juiz, verificando a competência do tribunal, legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal e atestando a inexistência de “nulidades, exceções e outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa, de que cumpra conhecer”.
Ora, sob pena de se instalar a confusão e a incerteza, não é processualmente admissível que o próprio juiz autor de uma decisão, ou outro posteriormente, antes de efectuado o julgamento, ou durante o mesmo e sem a emergência de circunstâncias supervenientes, venha proferir decisão totalmente oposta;
Na prática, ainda que por forma indirecta, o que fez o Mmo Juiz foi revogar a decisão anteriormente proferida, revogação só possível mediante recurso e por tribunal superior;
-É sabido que tem sido largamente discutido o âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 311.º ao juiz de julgamento e, se pode considerar-se pacífico, p. ex., o entendimento de que “não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação”, já não deparamos com a mesma unanimidade quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido.
No entanto, o aspecto que tem suscitado maior controvérsia prende-se com o âmbito do poder de sindicância da acusação pelo juiz de julgamento, nomeadamente, se o Juiz pode emitir um juízo sobre a (in)suficiência dos indícios para ter sido deduzida acusação e, portanto, se pode rejeitar a acusação com fundamento em indiciação insuficiente, ou, se o juiz é livre de valorar jurídico-penalmente os factos da acusação e, portanto, se pode modificar a qualificação ou subsunção jurídica desses factos logo no despacho previsto no artigo 311.' do Cód. Proc. Penal ou em qualquer altura até à prolação da sentença, ou, o que deve considerar-se uma acusação manifestamente infundada.
Ora, para respondermos a estas questões não se pode deixar de ter presente a estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art.º 32.', n.' 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que uma pessoa só pode ser julgada por um crime mediante acusação deduzida por um órgão distinto do julgador, que lhe imputa esse crime, sendo a acusação condição e limite do julgamento, ou seja, sendo a acusação que define e fixa o objecto do processo e, portanto, o objecto do julgamento;
É de notar a importância da separação das diversas fases e respectivas competências, pois que, como adverte Teresa Beleza, que já anteriormente citamos, mesmo sendo diferentes a entidade que investiga e acusa e a entidade que julga, se esta (a entidade que julga) puder, livremente, investigar, procurar e acrescentar factos novos para decidir determinada causa, então, a estrutura acusatória do processo será puramente formal, pois acabará por ser o juiz a moldar o objecto do processo;
Corolário deste modelo processual é o princípio do acusatório ou princípio da vinculação temática que significa que o juiz de julgamento está tematicamente vinculado aos factos que lhe são trazidos pela entidade que acusa, neste caso específico, o Ministério Público;
O objecto do processo é fixado, quando o Ministério Público (ou o assistente, no caso de crimes particulares) deduz acusação ou, abstendo-se o M.° P.° de acusar, com o requerimento de abertura da instrução (RAI) pelo assistente;
Esta é uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial: cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não intrometer-se na definição do thema decidendum;
Como refere o Professor Figueiredo Dias, “segundo o princípio da acusação (...) a actividade cognitória e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação. Deve pois afirmar-se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo esta que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória) e a extensão do caso julgado (actividade decisória).
É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal”.;
A vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz de julgamento não esteja envolvido na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação constituem corolários decisivos do princípio do acusatório de primordial importância;
Principalmente depois da introdução do actual n.º 4 do artigo 339.º do Código de Processo Penal, reúne amplo consenso o entendimento de que o objecto do processo não é constituído pelo tipo legal de crime acusado, pela incriminação imputada ao agente/arguido;
É, isso sim, constituído pelo “facto histórico unitário”, pelos concretos factos que se revelam como uma “tranche de vie”, que formam um acontecimento da vida, delimitado no espaço e no tempo, que se imputam a um indivíduo determinado;
É assim, esse pedaço de vida que há-de subsumir-se à descrição abstracta de uma proposição penal, de um tipo legal, ou seja, o concreto comportamento atribuído a determinado agente há-de corresponder, ou não, ao comportamento abstractamente previsto na lei penal, ou seja a um determinado tipo de crime;
Importa aqui recordar que, no despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 312.' do Código de Processo Penal, o Sr. Juiz recebeu a acusação pela prática dos factos e violação dos preceitos legais incriminadores aí descritos, e que deu por integralmente reproduzidos nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 313.°, n.° 1, al. a), do Código Penal;
Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença, após, ou durante, a realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz não pode apreciar do mérito da acusação;
Deste modo, uma vez proferido o despacho a que aludem os artigos 312.' e 313.' do Código de Processo Penal, o juiz não pode, quer no início da audiência, ou no decurso dela, quer em momento anterior, proferir decisão que implique o conhecimento do mérito da causa quanto às questões relacionadas com a matéria de facto, designadamente considerando que estão, ou não estão, indiciados factos atinentes à especial censurabilidade ou perversidade do agente e convertendo, por isso, a imputação de um crime simples num crime qualificado ou agravado e vice-versa, ou concluir pela não existência de qualquer crime;
-Convém reafirmar que, definido e delimitado o objecto do processo pela acusação (ou pela pronúncia, tendo havido instrução), assim se fixando o thema decidendum, a regra é a de que esse quid (“pedaço da vida real portador de uma unidade de sentido”) deve manter-se inalterado até ao trânsito em julgado da condenação;
Com efeito, em certos casos e situações, por razões várias, já depois de deduzida a acusação, algumas vezes no decurso do julgamento, outras mesmo na fase de recurso, apuram-se novos factos ou constata-se que os factos da acusação foram deficientemente ou insuficientemente descritos ou deficientemente ou incorrectamente qualificados (valorados jurídico-penalmente), possibilitando a lei, desde que salvaguardadas as garantias de defesa do arguido, a alteração dos factos e/ou a alteração da sua qualificação jurídica, para que o processo possa alcançar o seu concreto fim, isto é, a descoberta da verdade e a realização da justiça;
Possibilidade que a lei prevê e disciplina nos artigos 358.° e 359.° do Código de Processo Penal;
O ponto que tem sido objecto de controvérsia é o de saber qual o momento processualmente adequado para o tribunal de julgamento se pronunciar sobre a qualificação jurídica dos factos que constituem o objecto do processo;
A melhor doutrina defende que esse momento é, necessariamente, posterior à produção de prova e mesmo à decisão sobre os factos da acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, da pronúncia, pois é claro o propósito do legislador de que a discussão sobre a qualificação jurídica dos factos ocorra na audiência de julgamento e só nesse momento.
Como já referimos, a alteração da qualificação jurídica poderá ocorrer em consequência de uma alteração (não substancial) dos factos ou, mesmo sem qualquer alteração factual, se o tribunal considerar incorrecta a valoração jurídico-penal efectuada na acusação ou na pronúncia;
Ora, tendo em conta a inserção sistemática do artigo 358.° do Código de Processo Penal no capítulo que define as regras e princípios que regulam a actividade da produção de prova, não há lugar para grandes dúvidas de que o mecanismo da alteração da qualificação jurídica do n.º 3 daquele preceito foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, quando se conhece do mérito da causa;
48 -As divergências que existiam ao nível da jurisprudência sobre essa questão justificaram a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça que fixou jurisprudência no seguinte sentido (AUJ n.º 11/2013, de 12.06.2013, DR, I SÉRIE, 138, de 19.07.2013):
«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art.º 358º nºs 1 e 3 do CPP»
49 -Por identidade de razão, não pode haver alteração da qualificação jurídica dos factos em momento anterior à audiência, ou durante a mesma, nem apreciação sobre a prática do crime ou não ou verificação dos seus pressupostos, uma vez proferido o despacho a que aludem os artigos 312.º e 313.º do Código de Processo Penal e no qual o juiz recebeu a acusação, com expressa remissão para os factos nela descritos e com o enquadramento jurídico-penal na mesma efectuado, este tem que se manter até á prolacção da sentença;
50 -Deste modo, se os factos referidos na acusação configuram, ou não a prática de qualquer crime, só poderia ser apreciada em sede de sentença, após a produção de prova, e nunca por mero despacho, quer no decurso da audiência, antes dela ou em qualquer outro momento que não em sede de sentença, pois que com o recebimento da acusação o juiz esgotou o seu poder de cognição (A tal respeito já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto (em douto acórdão de 10/05/2000, in CJ, XXV, tomo 3, 2243), "proferido despacho a receber acusação deduzida pelo MP, não pode, depois, o juiz proferir despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação de despacho de recebimento.").
51 -Tal deverá ser conjugado com o teor do decidido pelo S.T.J. em douto acórdão de fixação de jurisprudência proferido em 16-05-95, no processo n° 047096 (in www.dgsi.pt), que decidiu "A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311 °, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.". Neste sentido Ac. TRE de 10/12/09, proc nº 17/04GBORQ.E1, relator António José Latas)
Conclui-se, assim, em nosso entender e salvo melhor opinião da conjugação de ambos os acórdãos citados que, ao proferir despacho no âmbito do art. 311° do C.P.P., esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal quanto às questões ali apreciadas; no entanto, o teor da decisão concreta não vincula o tribunal, podendo este vir, em sede de julgamento, a entender de forma diversa e a decidir em sentido oposto ao anteriormente determinado naquele despacho;
Ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 3110 do CPP), fica precludida a possibilidade de apreciação dos factos nela contidos, nomeadamente se estes são, ou não susceptíveis de integrar a prática de um crime ou de uma contra-ordenação, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos;
No caso vertente, a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a acção penal em julgamento e os vícios previstos no n03 do art. 3110 , apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável.
Não pode, pois, afirmar-se, que a decisão de rejeição proferida em momento anterior à abertura de audiência ou mesmo no início, ou decurso desta, ao abrigo do disposto no art. 3380 n01 do CPP, se limita a antecipar a decisão que infalivelmente virá a ser proferida após a audiência de julgamento, com os consequentes ganhos de economia e celeridade, processuais;
Concluímos, assim, que a partir do momento em que foi recebida a acusação pelo despacho a que se refere o art. 311° do CPP, não pode o mesmo juiz ou juiz diferente, decidir arquivar os autos em momento processual posterior, com fundamento de que entende que os factos descritos na acusação, não configuram a prática de qualquer crime, correspondendo como que a uma rejeição da acusação, nessa parte, (maxime o disposto nos arts 358° e 359°, do CPP – que permite o aproveitamento de acusação imperfeita no decurso da Audiência            de julgamento).
Assim, se o juiz não rejeitou a acusação no despacho a que se reporta o art. 311° do CPP, qualquer vício ou insuficiência da acusação eventualmente verificado deixa de relevar enquanto fundamento de rejeição da mesma, tomada tal rejeição como consequência atípica ou sui generis, apenas verificável naquele momento processual, sem prejuízo de o vício em causa poder vir a fundamentar decisão processual (maxime o cumprimento do disposto nos arts 358° ou 359°, do CPP) ou de mérito (v.g. absolvição) a proferir no decurso ou após a audiência de julgamento;
O que verdadeiramente se encontra na decisão recorrida é uma rejeição da acusação por manifesta improcedência, ignorando a extinção de poder jurisdicional e a formação de caso julgado no processo com a não rejeição decidida a fls.73 e 75.
O Juiz, ao decidir pelo «arquivamento dos autos» por razões de mérito, antes do decurso da audiência de discussão e julgamento viola caso julgado formado no processo e, ainda, omite por inteiro a produção da prova arrolada na acusação (por não a apreciar); na verdade, em vista da devida estabilização processual e da preservação do exercício das garantias de defesa e, sobretudo, do contraditório, sendo a acusação que define o objecto do julgamento, os limites de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado, a sua rejeição, designadamente, por manifestamente infundada, que na prática foi o que sucedeu, deve ser conhecida aquando do saneamento do processo, previsto naquele art. 311.º, assim se interpretando a sua referência expressa à acusação e bem distinta, na sua natureza, de nulidades ou outras questões prévias ou incidentais a que o seu n.º 1 se reporta;
-Assim, afigura-se que o poder de rejeição da acusação, que foi o que na realidade sucedeu, se achava precludido, não se aceitando que, se tivesse descurado o anterior recebimento da mesma;
-Não obstante o compreensível desiderato de que, antevendo-se inviabilidade da acusação conduzir à condenação dos arguidos, se evitaria a realização do julgamento, e a prolacção de uma sentença, processualmente, não é admissível;
Por conseguinte, por tudo o exposto, não podia o Mmo Juiz ter determinado a extinção do procedimento criminal, com o posterior arquivamento dos autos, e ao fazê-lo violou o disposto nos arts 148 do C.P., e 311º, 312 e 313º todos do C.P., pelo que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, designando-se dia para a audiência de discussão e julgamento.
Caso assim se não entenda e quanto á segunda questão suscitada, ou seja, quanto ao facto de que a conduta descrita na acusação não constitui a prática de um crime, mas antes sim de uma contraordenação, importa desde já, fazer uma breve referência, de que as lesões aqui em causa nos autos, foram praticadas por um animal de raça cocker caniche, conforme se constata de fls 8v, não se tratando assim de nenhuma das raças referidas no anexo á portaria 422/2004 de 24/04 e portanto consideradas potencialmente perigosas;
Depois, que a ofendida nestes autos apresentou queixa;
O DL315/2009, de 29/10, que revogou o DL312/2003, de 17/12, alterado pela Lei 49/2007, de 31/8, estabelece o actual regime jurídico da detenção de animais perigosos, nos quais não se inclui os da raça caniche, conforme prevê a Portaria 422/2004, de 24/4, que determina as raças de cães potencialmente perigosos.
Nos termos do art.33.° do DL 315/2009 «Quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa, causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»
O crime tem natureza pública, contrariamente ao que sucede com o crime de ofensa à integridade física por negligência previsto no art.148.° do C.Penal, que tem natureza semi-pública.
-Como refere Plácido Conde Fernandes, in Comentário das Leis Extravagantes, Vol.I, Universidade Católica Editora, pág.318, o legislador ao atribuir natureza pública ao crime em questão, teve o intuito de reforçar a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na protecção dos bens jurídicos protegidos.
Aliás, situação esta que já sucedeu em relação a outros crimes, em que se visou precisamente efectuar esse reforço de uma resposta mais punitiva, como por exemplo sucedeu com o crime de ameaça agravado que passou a ter natureza púbica em vez de semi-pública (segundo o nosso entendimento).
Por sua vez, o art.38.º do citado DL 315/2009, sob a epígrafe Contra ordenações, dispõe: 1 - Constituem contra ordenações puníveis com coima de (euro) 750 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60 000, no caso de pessoa colectiva:
A falta de licença, de identificação ou registo a que se referem os artigos 5.º a 7.º;
A falta do seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 10.º;
O alojamento de animais perigosos ou potencialmente perigosos sem que existam as condições de segurança previstas no artigo 12.º;
A circulação de animais perigosos ou potencialmente perigosos na via pública, em outros lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos, sem que estejam acompanhados de pessoa maior de 16 anos de idade, caso em que a responsabilidade contra ordenacional recai sobre o detentor que não obste a tal situação, ou sem os meios de contenção previstos no artigo 13.°, ou a circulação ou permanência em zona proibida e sinalizada para o efeito nos termos do n.° 4 do mesmo artigo;
A introdução em território nacional de cães potencialmente perigosos das raças ou cruzamentos de raças constantes da portaria prevista na alínea c) do artigo 3.° sem o registo ou a autorização prévia prevista no artigo 16.° ou em violação das condicionantes ou proibições estabelecidas ao abrigo daquele mesmo artigo;
A criação ou reprodução de cães potencialmente perigosos das raças ou cruzamentos de raças constantes da portaria prevista na alínea c) do artigo 3.° sem que seja em centros de hospedagem com fins lucrativos que disponham da permissão administrativa prevista no artigo 17.°;
A reprodução de cães perigosos ou potencialmente perigosos ou a sua não esterilização em desrespeito pelo disposto no artigo 19.°;
A não manutenção pelos centros de hospedagem com fins lucrativos autorizados para criação ou reprodução de cães potencialmente perigosos dos registos de nascimento e de transação previstos nos artigos 18.° e 20.°, pelos períodos de tempo neles indicados;
A não esterilização nas condições estabelecidas nos artigos 5.° e 19.°;
O não envio pelo médico veterinário da declaração prevista no artigo 19.° ou o desrespeito das condições estabelecidas nos termos da mesma disposição para o efeito;
A comercialização e publicidade de animais perigosos em desrespeito pelo disposto no artigo 20.°;
O treino de animais perigosos ou potencialmente perigosos tendo em vista a sua participação em lutas ou o aumento ou reforço da agressividade para pessoas, outros animais ou bens;
A falta de treino de cães perigosos ou potencialmente perigosos, nos termos do artigo 21.°, ou o seu treino por treinador sem título profissional emitido nos termos do artigo 25.°;
O treino de cães realizado em local que não disponha das condições estabelecidas no artigo 23.°;
A não comunicação dos treinadores certificados, nos termos do n.° 1 do artigo 26.°;
O desrespeito por alguma das obrigações dos treinadores estabelecidas no artigo 28.°;
A falta de entrega à DGAV do título profissional de treinador de cães perigosos e potencialmente perigosos, nos termos previstos no n.° 3 do artigo 29.°;
A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves. 2 - A tentativa e a negligência são punidas, sendo os limites mínimos e máximos das coimas reduzidos a metade.»
Segundo o mesmo autor, ainda na linha do reforço à protecção dos bens jurídicos e da confiança comunitária, as ofensas simples passam a ter dois regimes, crime semipúblico e, subsidiariamente, contra ordenação. «Assim existem as seguintes situações de concurso aparente ou concurso de normas, em três níveis:
Ofensa simples à integridade física por negligência, sem queixa, e aí seria sancionada pela contra-ordenação prevista no artigo 38.' n.'1 al.ªr), subsidiária face ao artigo 148.' n.'1, do Código Penal, que exige a existência de uma queixa. A contra-ordenação inova, por prever o dano ao invés do mero perigo de lesão (como sucedia anteriormente), visando evitar que estas condutas fiquem descobertas de protecção apenas porque o ofendido optou por abdicar do procedimento  criminal;
-Ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo artigo 148.' n.'1 do Código Penal, excluindo a contra-ordenação, prevista no artigo 38.° n.°1 al.ªr), por subsidiariedade (ex vi artigo 36.° n.°3). A única alternativa a este entendimento, absurda por colidir frontalmente com a enunciada ratio legis e a mens legislatoris, seria a descriminalização das ofensas simples negligentes, nestes casos e que um animal é a fonte do perigo, mediante a degradação  sancionatória para aquela contra-ordenação.
3 -Ofensa grave à integridade física negligentes (e animal), é punida pelo artigo 33.° é lex specialis face ao artigo 148.° n.°3, do Código (Penal, cuja principal diferença que traz e a natureza procedimental pública da infracção» - ob cit., pág.318.
-No caso presente, atenta a factualidade dada como provada, estamos perante ofensas corporais causadas por um cão da raça caniche, cujo detentor não teve o cuidado de vigiar o animal, como lhe cabia, ofensas essas que não se integram nas ofensas corporais graves, tal como estão previstas no art.144.° do C.(Penal, subsidiariamente aplicável por força do art.34.° do citado DL315/2009.
-Considerando que ao longo dos tempos tem sido entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência a aplicação do crime de ofensas à integridade física por negligência aos detentores de animais que ataquem pessoas, não teria sentido que com a entrada em vigor do DL315/2009, que visou reforçar a protecção dos bens jurídicos face ao elevado número de ataques a pessoas por animais potencialmente perigosos, se descriminalizassem as ofensas corporais simples provocadas por animal a que deu azo uma conduta negligente do seu detentor ou proprietário, subsumindo-as tão-só a contra-ordenação. Tal descriminalização seria contrária ao espírito que presidiu à elaboração do DL315/2009, que visou reforçar a confiança da comunidade, através de um maior sancionamento, perante frequentes ataques de animais potencialmente perigosos.
-Por isso, concordamos com o entendimento preconizado no Ac. do TRP de 10/05/2007, proc. n°124/13.4GBOAZ- Relatora Maria Luísa Arantes, que cita, “Plácido Conde Fernandes quando defende que a ofensa corporal simples por negligência, em que não foi apresentada queixa, é sancionada pela contra-ordenação prevista no art.38.°, n.°1, alínea r), do DL325/2009, mas já será punida como crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.148.°, n.°1, do C.Penal, quando foi apresentada queixa.
- Revertendo ao caso presente, considerando que a ofendida apresentou queixa, a conduta da arguida enquadra-se na prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.148.°, n.°1, do C.Penal.
- Neste caso, a contra ordenação prevista pelo citado art.38.°, n.°1, alínea r), cuja violação constitui elemento do crime de ofensa à integridade física, é consumida por este, sob pena de dupla valoração – art.20.° do DL433/82, de 27/10, que prevê o regime geral das contra ordenações.
- No mesmo sentido, decidiu o TRP Ac. de 11/06/2014, proc. n°444/08.0GEGDM.P1- Relatora Lígia figueiredo, onde é citado, mais uma vez ,“Para Conde Fernandes, Comentário das Leis Penais Extravagantes, há concurso aparente entre o crime e as contra-ordenações previstas no Decreto Lei nº315/2009 de 29 de Outubro, “cuja violação constitua elemento do crime que são necessariamente consumidas pela incriminação porque não é permitida a dupla valoração; mas já não, sendo o concurso efectivo, face àquelas normas de cuidado e detenção e circulação de animal autónomas, embora com conexão objectiva ou subjectiva, que não se integram na mesma unidade de acção.”
- E escreve ainda o mesmo autor que a “ofensa à integridade física negligentes (e animal), é punida pelo art° 33°, é lex specialis face ao artigo 148° n°3, do Código Penal, cuja principal diferença que traz é a natureza procedimental pública da infracção.”
- Para este autor a contra-ordenação prevista na alínea r) do art' 33', não representa alguma descriminalização, antes se sancionando aqui a ofensa à integridade física simples, sem queixa, mantendo-se a ofensa à integridade física simples, com queixa na previsão.”
-Entendimento este que perfilhamos na íntegra.
-Não faz qualquer sentido, que visando-se punir mais severamente uma conduta, como foi sem dúvida o objectivo do legislador com o DL já referido, acabasse por a discriminalizar.
-Pelo exposto, não temos qualquer dúvida de que a conduta descrita na acusação configura a prática do crime de ofensas á integridade física por negligência e não a prática de uma contra-ordenação, como entendeu o Mmº Juiz.
- Deste modo, igualmente, por este motivo deveria o Mm' Juiz de ter realizado o julgamento e não ter declarado extinto o procedimento criminal, como fez, e ao não o fazer violou o disposto no art. 148' do C.P. e arts 328', 341', 345', 348', 360' e 361' do C.P.P., pelo que deve tal despacho ser revogado e substituído por outro que designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento, prosseguindo os autos.
Nestes termos deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido
Contudo V. Ex.as. farão como sempre
JUSTIÇA
*****

CUMPRE DECIDIR:
Do despacho recorrido resulta:

Da não punição criminal da conduta imputada na acusação face à entrada em vigor do DL n.º 315/2009, de 29 de Outubro:
O Ministério Público deduziu acusação imputando à arguida ML..., a prática, em autoria material, de um crime de ofensa integridade física por negligência, p. e p. pelo art.148º, n.º1, do Código Penal.
Na acusação são imputados à arguida os seguintes factos:
No dia 17.01.2016, pelas 10h50m, na Rua Afonso de Albuquerque, Sacavém, Loures, a ofendida MO... encontrava-se apeada a passear o cão de que é proprietária, preso pela trela.
No mesmo local encontrava-se a arguida e o cão de que esta é proprietária, sem trela ou açaime.
Ao avistar o cão da ofendida o cão da arguida correu na direção do mesmo.
Ao chegar próximo da ofendida e do cão desta o cão da arguida desferiu uma dentada no braço esquerdo.
A arguida viu o cão de que é proprietária a morder o braço da ofendida e nesse momento aproximou-se do seu cão colocou-lhe a trela e afastou-se do local, levando o cão.
Em consequência direta e necessária da conduta do cão da arguida, a ofendida sofreu ferida na região posterior do braço esquerdo, com hematoma, que lhe determinaram 10 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
Nada nem ninguém determinou a prática dos factos descritos, a não ser a falta de cuidado da arguida, que não acautelou, como podia e devia, a presença do cão na via pública permitindo que o animal caminhasse na via pública sem trela ou açaime e admitindo como possível que o animal nessas condições pudesse ofender a saúde e a integridade física da ofendida.
A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Os factos acima referidos são passíveis de integrar os elementos típicos do crime de ofensas à integridade física simples por negligência p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal.
Sucede que, quando os factos foram praticados, estava já em vigor o Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, que entrou em vigor no dia 01 de Janeiro de 2010.
De acordo com o referido diploma legal, os factos que são objecto deste processo integram a prática de uma contra-ordenação e não de um crime.
Prevê o artigo 38.º, n.º 1, alínea r) do referido diploma legal que “constituem contraordenações puníveis com coima de (euro) 750 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60 000, no caso de pessoa coletiva: (...) r) A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.”
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, a tentativa e a negligência são punidas, sendo os limites mínimos e máximos das coimas reduzidos a metade.
Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 33.º do mesmo diploma, “quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”
Desta forma, conjugando as duas disposições legais acima mencionadas, podemos concluir que apenas constituem crime, as ofensas graves à integridade física por negligência, e não as meras ofensas simples, como sucede no caso dos autos.
Pelo exposto, a conduta descrita na acusação integra a prática da contraordenação prevista na alínea r) do n.º 1 do art. 38.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro porquanto, segundo a acusação, a arguida não observou os deveres de cuidado ou vigilância dando azo a que o seu animal ofendesse o corpo de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não são consideradas graves.
Verifica-se, assim, uma coincidência entre os factos objecto da acusação nos autos e a descrição constante das modalidades de acção reprimidas pelo Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.

De acordo com o disposto no artigo 34.º do referido diploma legal que “em tudo o que não esteja expressamente previsto na presente secção são aplicáveis as normas constantes do Código Penal”.
Poder-se-ia entender que essa norma remeteria para o disposto no artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, continuando a qualificar-se a conduta aqui imputada à arguida como crime previsto naquela disposição legal.
Neste sentido, pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-05-2017 (processo n.º 124/13.4GBOAZ.P1, disponível em www.dgsi.pt), em que, citando Placido Conde Fernandes, sustenta que “a ofensa corporal simples por negligência, em que não foi apresentada queixa, é sancionada pela contraordenação prevista no art.38.º, n.º1, alínea r), do DL325/2009, mas já será punida como crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.148.º, n.º1, do C.Penal, quando foi apresentada queixa.”
Refere-se nesse aresto que a “descriminalização seria contrária ao espírito que presidiu à elaboração do DL315/2009, que visou reforçar a confiança da comunidade, através de um maior sancionamento, perante frequentes ataques de animais potencialmente perigosos.”
Porém, não podemos concordar com essa posição, pois ainda que o legislador pudesse ter ido mais longe na protecção dos interesses que visou tutelar, a letra da lei não consente outra interpretação senão que a conduta aqui imputada à arguida passou a ser qualificada como uma contra-ordenação.
Aderimos aqui por inteiro à argumentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-06-2012 (processo n.º 193/10.9GACTX.E1, disponível em www.dgsi.pt), em que se pode ler que “a aplicação subsidiária daquele art. 34.º, não obstante a sua vertente generalizante, não poderá contrariar o que noutros preceitos, de carácter especial, se dispõe no Dec. Lei n.º 315/2009, o que remete para a interpretação do concurso de normas que se verifica entre esse art. 34.º e o citado art. 38.º, n.º 1, alínea r), tal como sublinhado pela Digna Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer.
Na verdade, ainda que tendo ambas aptidão para serem aplicadas aos factos narrados na acusação, a norma especial (desse art. 38.º, n.º 1, alínea r)) tem de prevalecer sobre a norma comum (desse art. 34.º), dado que contém elementos especializantes, isto é, independentemente de que a última seja uma norma de aplicação subsidiária e, assim, destinada apenas a colmatar lacunas do diploma, todos ou alguns dos seus elementos constitutivos são reduzidos na sua amplitude por uma caracterização específica.

A não ser assim, haveria uma duplicação da punição do mesmo facto, em violação do princípio “ne bis in idem”, dado que, no caso, não se trata de que a mesma infracção constitua crime e contra-ordenação, em que o agente seria punido apenas pelo crime (art. 36.º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 315/2009), mas sim de erigir à categoria de crime comportamento que expressamente é tipificado como contra-ordenação.”
Conclui o referido Acórdão que “todos os elementos interpretativos confluem, pois, para que os factos narrados na acusação não constituem crime, tal como decidido. Aliás, estranho seria que, a uma norma de aplicação subsidiária, fosse conferida a dignidade de tipificar um crime, como resultaria se acolhida fosse a posição do recorrente, em detrimento das garantias da legalidade, da tipicidade e da intervenção mínima que ao direito penal são reservadas.”
Podemos, assim, concluir que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, passou a constituir contraordenação, p. e p. pelo artº 38.11, n.111, al. r), “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves”, não integrando tal conduta a prática do crime, p. e p. pelo art. 148.º, n.º1 do Código Penal.
Pelo exposto, os factos imputados na acusação consubstanciam a prática de uma contraordenação e não de um crime, razão pela qual não existe qualquer responsabilidade criminal a apurar, justificando-se a extinção do procedimento criminal, por inexistência de crime, o que obsta ao conhecimento do mérito dos autos.
Sem prejuízo do que antecede, a conduta da arguida descrita na acusação pode configurar a prática da contraordenação acima referida prevista na alínea r) do n.º 1 do art. 38.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
Não existindo qualquer prática de crime pelo arguido (atenta a despenalização da conduta operada pela lei acima referida e que entrou em vigor antes da prática dos factos), este Tribunal deixa de ser competente para o processo contra-ordenacional ou para a aplicação de qualquer coima, nos termos dos artigos 38.º, n.º 1 e 39.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Impõe-se, assim, a comunicação dos factos à autoridade administrativa competente para o processo contra-ordenacional.
De acordo com o disposto no artigo 41.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, a instrução dos processos de contraordenação compete à Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária.
Deste modo, importa ordenar a extracção de certidão dos autos e remetê-la, após trânsito, à entidade acima referida para instauração de eventual processo contra-ordenacional, arquivando-se os presentes autos.
*
B) Do pedido cível:
O demandante Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida.
Nos termos do artº 71º do C.P.P., o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal tem que se fundar na prática de um crime.
Também, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, do CPP, o lesado é entendido como a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime.
No presente caso, como acima vimos, não existe qualquer crime porquanto os factos descritos na acusação poderão integrar a prática de uma contraordenação, mas não de um crime, por efeito do disposto no Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, não sendo este Tribunal materialmente competente para a aplicação da contraordenação.
A falta de punição criminal dos factos constantes da acusação já ocorria antes sequer do pedido de indemnização civil ser admitido, porquanto o Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, entrou em vigor em 01/01/2010, ainda antes dos factos imputados na acusação terem ocorrido.
Conforme dispõe expressamente o artº 377º, nº 1 do C.P.P., “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado”.
Esta última disposição legal apenas tem aplicação quando é realizado o julgamento e a sentença vier a absolver o arguido dos crimes que originaram os danos invocados no pedido de indemnização civil.
No caso dos autos, não será apreciado o mérito da causa por não existir crime nos termos acima expostos.
Seria, assim, contrário ao espírito da lei a apreciação do pedido cível quando não existe responsabilidade penal a apurar, mas apenas a questão cível.

Face à inexistência de crime, importa concluir pela impossibilidade legal de prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido de indemnização civil, uma vez que o mesmo não é fundado na prática de um crime (artigo 71.º do CPP), sem prejuízo do demandante demandar a demandada em acção cível própria, atenta a absolvição da instância nestes autos.
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CUMPRE DECIDIR

Nos presentes autos veio o MP recorrer do despacho proferido a fls. a 104 a 110, no qual foi determinado o arquivamento dos autos face á descriminalização operada pelo DL N°315/2009, de 29/10, no que respeita ao crime de ofensas corporais negligentes, pelo qual a arguida ML..., vinha acusada, nos termos do artº 148º nº1 do C.P e extração de certidão para envio à autoridade administrativa competente para o processo contraordenacional - 41.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, - Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária.

Argumenta que a partir do momento em que foi recebida a acusação pelo despacho a que se refere o art. 311° do CPP, não pode o mesmo juiz ou juiz diferente, decidir arquivar os autos em momento processual posterior, com fundamento de que entende que os factos descritos na acusação, não configuram a prática de qualquer crime, correspondendo como que a uma rejeição da acusação, nessa parte, (maxime o disposto nos arts 358° e 359°, do CPP – que permite o aproveitamento de acusação imperfeita no decurso da Audiência            de        julgamento).
Argumenta ainda que a factualidade vertida na acusação corresponde a um crime ppp artº 148º do CP uma vez que houve queixa.
Entende pois que a conduta descrita na acusação configura a prática do crime de ofensas á integridade física por negligência e não a prática de uma contraordenação, como entendeu o Mmº Juiz.
Pelo que   deveria, o Mmº Juiz, ter realizado o julgamento e não ter declarado extinto o procedimento criminal, como fez, pelo que  violou o disposto no art. 148º do C.P. e artºs 328º, 341º, 345º, 348º, 360º e 361º do C.P.P., devendo  despacho ser revogado e substituído por outro que designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento, prosseguindo os autos.

Vejamos:
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, passou a constituir contraordenação, p. e p. pelo artº 38 º r), “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves”, não integrando tal conduta a prática do crime, p. e p. pelo art. 148.º, n.º1 do Código Penal.
Entendeu o tribunal a quo que os factos imputados na acusação consubstanciam a prática de uma contraordenação e não de um crime, razão pela qual não existe qualquer responsabilidade criminal a apurar, justificando-se a extinção do procedimento criminal, por inexistência de crime, o que obsta ao conhecimento do mérito dos autos - r) do n.º 1 do art. 38.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
Assim, não existindo qualquer prática de crime (atenta a descriminalização da conduta operada pela lei acima referida e que entrou em vigor antes da prática dos factos), não é o tribunal o competente para o processo contra-ordenacional ou para a aplicação de qualquer coima, nos termos dos artigos 38.º, n.º 1 e 39.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Entendeu ainda o tribunal a quo que, no que respeita ao pedido cível não devia o tribunal prosseguir  com os autos uma vez que não estamos perante uma   sentença  absolutória nem perante  responsabilidade criminal  de onde, se fosse caso disso emanaria a  responsabilidade civil resultante da mesma. Tal não prejudica contudo demanda  em acção cível própria.

Pretende a recorrente que tal questão seja analisada em sede de sentença e fala de alteração da qualificação jurídica confundindo-a, em nosso entender com descriminalização proveniente de processo legislativo esquecendo ainda o princípio da economia processual e insistindo  se trata de crime previsto no código penal e não de contraordenação.

Nesta parte talvez as considerações sobre a responsabilidade civil no caso nos ajudem a entender que na verdade não pode tratar-se de um crime p.p.p. artº 148 do CP
O proprietário de um animal doméstico, neste caso um cão, tem o encargo de o vigiar sob pena de responder pelos danos que ele causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte, artigo 493º, nº1 do CCivil. Ou seja, o ilícito resulta não da utilização do animal mas do facto de se possuir um animal não cumprindo os deveres de vigilância exigidos.

Impendia sobre a Réa, proprietária do animal causador do acidente/ agressão/ ofensa corporal que se encontrava à solta na via pública, a ilisão da presunção de culpa ali estatuída, uma vez que,  na sua efectiva detenção assumiu o encargo da vigilância daquele ser, sobre si recaindo o dever de tomar todas as providências indispensáveis a evitar qualquer possível lesão.

Diferente é a responsabilidade decorrente do artigo 502º do CCivil onde se dispõe que «Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do processo especial que envolve a sua utilização.».
 Ora, aqui sim, resultando esta responsabilidade de uma actuação punível ela só pode ser crime porque voluntariamente provocada e no interesse do individuo que detém o animal.
Uma actuação criminosa tem em si a característica de ocorrer numa esfera de interesse próprio. O dono de um animal não o detém para que agrida terceiros ou provoque desacatos e lesione outrem. No seu interesse só a companhia do animal por quem deve zelar e por quem, dada a sua natureza de pertencer a outra espécie que não detém a racionalidade suficiente para se comportar de acordo com as regras impostas ao ser humano, deve zelar e é responsável.

Tendo em conta estas duas obrigações de indemnizar reparamos que o primeiro se refere às hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto este segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse.

No primeiro caso temos uma situação de culpa presumida e no segundo vigora a responsabilidade pelo risco, sempre que os danos estejam em conexão com os perigos especiais que sejam inerentes à utilização do animal, o que não ocorreu no caso sub judicio. Trata-se de uma situação típica de culpa in vigiland, em que o dano resulta da omissão do dever de guarda dos animais, cuja presunção de culpa radica na perigosidade inerente a estes, decorrente da imprevisibilidade dos respectivos comportamentos, a justificar especiais cuidados por parte da pessoa que os tem à sua guarda.
 Estamos firmemente convencidos que o legislador quis retirar estas situações do artº 148º CP colocando-as no diploma em causa e onde também, pune os crimes de ofensas corporais COM animais.

Para além do mais  Mmº Juiz não rejeitou a acusação, nem a devolveu para corrigir erros, nem alterou a qualificação jurídica sem mais. Limitou-se a declarar a sua incompetência material para julgar factos que se enquadram numa contraordenação.

Na verdade, nesta fase do processo nada impede  o juiz de  controlar os vícios estruturais da acusação referidos no art. 311.º n.º3 do CPP, nomeadamente pronunciar-se sobre se determinados factos dela constantes constituem ou não crime e retirar daí as devidas ilações. Não se  trata de qualquer controlo da prova indiciária obtida no inquérito, cuja valoração apenas compete ao Ministério Público, ou ao juiz de instrução, caso esta intervenção tivesse sido requerida.
Trata-se apenas de apreciar se a acusação é manifestamente infundada, nomeadamente, se a factualidade que se visa submeter a julgamento constitui ou não crime e está devidamente enquadrada juridicamente nos termos do disposto no n.º 2 e 3 do artº 311ºCPP.
Não pode o ilustre recorrente pretender sujeitar o Juiz a uma acusação sem suporte fáctico suficiente ou a uma subsunção jurídica dos factos errada que não encontra eco no art. 311.º do CPP como é o caso nos autos e obrigá-lo a prosseguir para a prática de um acto inútil.

A competência do tribunal é um pressuposto processual.
A incompetência funcional do tribunal constitui uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso e a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final -art. 119.º,e) e 32.º n.º1 do CPP.

A competência em matéria penal, tal como definida e estabelecida nas leis de processo e de organização dos tribunais, delimita a medida da jurisdição, em matéria penal, entre os diferentes tribunais e não só.
O despacho recorrido não fez qualquer interpretação desconforme com a Lei Fundamental, nem merece qualquer reparo por ter declarado que se encontra descriminalizada a conduta em causa.

Diz a recorrente que importa aqui recordar que, no despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 312º do Código de Processo Penal, o Sr. Juiz recebeu a acusação pela prática dos factos e violação dos preceitos legais incriminadores aí descritos, e que deu por integralmente reproduzidos nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 313.°, n.° 1, al. a), do Código Penal e acrescenta que, depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença, após, ou durante, a realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz não pode apreciar do mérito da acusação.

Não podemos concordar uma vez que o Mmª Juiz não conheceu nem do mérito nem do desmérito da acusação.
O que aconteceu foi a apreciação sobre a acusação e, se é manifestamente infundada, nomeadamente, se a factualidade que se visa submeter a julgamento constitui ou não crime e está devidamente enquadrada juridicamente como já dissemos e se o tribunal é competente para a factualidade em causa. A não ser assim, estaríamos a esvaziar de conteúdo o artº 311º.
Há que  ter em conta que a decisão não se pronunciou sobre a legitimidade do MP, nem sindicou a apreciação dos factos feita no inquérito ou a investigação.
A qualificação jurídica dos factos não é, em si, sequer, causa de rejeição da acusação, excepto quando os factos não constituírem crime – art. 311.º n.º 2, a) e 3, d) do CPP.
 A decisão em causa limitou-se a não deixar prosseguir uma audiência de julgamento que sabia estar condenada em termos de competência para a fazer e chegar ao fim, sem qualquer alteração de factos, concluir pelo já concluído ou seja, obstou á prática de um acto inútil.
Não rejeitou a acusação, nem sequer disse que a acusação era manifestamente infundada, ordenou que fosse extraída certidão e prosseguisse a questão na entidade competente para a decidir.

Vejamos agora se a questão é de remeter a entidade administrativa por ser a competente uma vez que estamos, segundo o despacho recorrido, perante uma contraordenação.
Na perspectiva do recorrente o despacho recorrido afastou a punição dos factos como crime, ao considerá-los tão-só como contraordenação nos termos do 38.º, n.º 1, r), do Dec. Lei n.º 315/2009, que aprovou o regime jurídico da detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos enquanto animais de companhia.
A questão reconduz-se, pois, à interpretação das normas determinando o seu conteúdo e o seu pensamento, não esquecendo o art. 9.º do Código Civil e que o intérprete não deve cingir-se à letra da lei mas que também não deve considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência uma vez que, na fixação do sentido e alcance da lei, se presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e que a lei da todas as garantias de defesa ao arguido.
 Por outro lado há que não esquecer o artº 4º EMJ que nos diz que os juízes não estão sujeitos a ordens ou instruções e que o dever de obediência á lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas.
A definição da qualificação jurídica feita perante a indiciação não pode naturalmente ser vinculativa sob pena de o juiz de julgamento não poder deixar de a seguir, o que não foi querido pelo legislador. Em julgamento, pode o juiz considerar que a factualidade apurada, mesmo sendo ela a que já constava da pronúncia ou acusação, deverá ser subsumida a outra qualificação jurídica, desde que use dos mecanismos legais para o efeito.

A lei não prevê que a possibilidade de definição ou de alteração da qualificação jurídica dos factos tenha de ser feita uma única vez no processo e apenas na fase de julgamento.
E, na verdade, em situações de maior certeza jurídica é razoável fazê-lo em fase de saneamento. É o caso.
Há que distinguir duas situações que poderão ocorrer no momento em que o juiz a quem foi distribuído o processo para julgamento efectua o exame preliminar, nos termos do art. 311.º do CPP, ter havido ou não instrução.
No nosso caso não houve instrução pelo que nada impede o control de vícios estruturais - art. 311.º n.º3 do CPP, como o definir ou pronunciar-se sobe se os factos em causa enquadram um crime ou uma contraordenação . Como já dissemos não se trata aqui de qualquer controlo da prova indiciária obtida no inquérito, cuja valoração apenas competia ao Ministério Público, ou ao juiz de instrução caso esta tivesse sido requerida, mas tão-somente apreciar se a acusação é manifestamente infundada, nomeadamente, se a factualidade que se visa submeter a julgamento constitui ou não crime e está devidamente enquadrada juridicamente tudo de acordo com o disposto nos n.º 2 e 3 do art.311º CPP.
E, como já dissemos estamos claramente perante um comportamento que se contém  no que é contraordenacional e não no que é crime.

Vejamos:
Os crimes previstos na referida Secção II do Capítulo V do Dec. Lei n.º 315/2009 estão tipificados nos arts. 32.º e 33.º deste, respectivamente como Ofensas à integridade física dolosas e Ofensas à integridade física negligentes, e, neste último caso só atribuível a quem, por não observar deveres de cuidado e vigilância, cause a outra pessoa ofensas graves à integridade física por ter um animal de companhia que pode considerar-se perigoso.
Ou seja, o comportamento imputado surge, expressamente, previsto no artº 38.º, n.º 1 r), do Dec. Lei n.º 315/2009:
- não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves -, incluído na mencionada Secção III desse Capítulo, definido como negligente e, objectivamente, com resultado que exclui ofensas tipificadas como graves, sendo punido como contraordenação.
O artº 148º do CP pelo qual vinha a arguida acusada determina que:
1 - Quem causar, por negligência, ofensas no corpo ou na saúde de outrem será punido com prisão até 6 meses ou multa até 50 dias.
2 - O juiz pode isentar de pena o agente quando a culpa deste se revelar sensivelmente diminuída e:
a) O agressor for médico e, no exercício da sua função, provocar ofensas no corpo ou na saúde que não causem doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias;
b) Da agressão não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais 3 dias.
3 - Se do facto resultar uma ofensa corporal grave, nos termos do artigo 143.º, ou a criação de um perigo para a vida, nos termos do artigo 144.º, a pena será a de prisão até 1 ano e multa até 100 dias.
4 - O procedimento criminal depende de queixa.

 Precisamos provavelmente de fazer um curto percurso pela vontade do legislador ou pelo espírito do legislador.
O legislador português, a partir de 2003, regulou a matéria em dois diplomas distintos, consagrando um aos animais de companhia em geral – Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 315/2003, de 17 de Dezembro – e outro aos animais de companhia perigosos e potencialmente perigosos – Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro, revogado pelo Decreto-Lei n.º 315/2009 , de 29 de Outubro, diploma que, na altura, se encontrava em vigor .
É também relevante, para o efeito, o disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, diploma em que são estabelecidas as condições em que os cães podem circular na via pública.
O cão dos nossos autos é um caniche que não pertence a uma raça considerada potencialmente perigosa, nos termos da Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril até ao dia em que se indiciam os factos constantes do processado.
Embora a definição de animal potencialmente perigoso, constante da alínea c) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, possa ser equívoca, resulta dela e do diploma em que se integra, que animais potencialmente perigosos são os que pertencem às sete raças indicadas na Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril, e os que tiverem resultado dos cruzamentos dessas raças indicados nesse mesmo preceito legal.
 Logo, o cão dos nossos autos não está nelas incluído, mas, as indicações dadas ao intérprete para definir animal perigoso são meras indicações que tendo em conta as regras da experiência indiciam ou podem indiciar a perigosidade de um animal como acontece com o morder alguém.
Essas características, só por si e na ausência de qualquer quantificação ou qualificação suficientemente precisa, não permitem delimitar essa categoria de animais mas ajudam a definir o conceito.
A partir da data dos factos, passou então o cão dos autos, a ser um cão perigoso. – pontos i) e ii) da alínea b) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
E mesmo que assim se não entenda, porque o comportamento dos animais depende muito do seu perfil mas também do treino que lhes é dado e das solicitações exteriores muitas vezes provocadas por terceiros, não podemos afastar a responsabilidade do  detentor do animal o dever de o vigiar, de forma a evitar que ponha em risco a integridade física de outras pessoas e animais – artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 315/2003, de 17 de Dezembro, não podendo nenhuma animal circular na via pública desacompanhado do seu dono - artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro estando quem por eles é responsável obrigado a observar deveres de cuidado e vigilância, com vista a que não cause a outra pessoa ofensas graves à integridade física. Entendemos que não há lugar a aplicação subsidiária das normas constantes do CP -art. 34.º do diploma - e concretamente pelo art. 148.º do CP.

Assim, bem andou o tribunal a quo que entendeu que, com o decreto Lei nº315/2009 de 29 de Outubro, a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves, passou a ser punida como contraordenação nos termos do artº 38º nº1 alínea r) ou como crime-  artº 33º - quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Entendeu o legislador regular e sancionar ofensas corporais graves ou não, provocadas por animais de companhia que tenham lugar porque os seus donos não atuaram como o exigível dever de vigia e controlo que é exigível a quem tem um animal de companhia e fez a destrinça entre comportamentos criminosos e comportamentos contraordenacionais.
O legislador criou um espaço que poderá ser punido com mais ou menos severidade, como crime ou como contraordenação, tendo em conta os resultados do comportamento do animal e não se argumente que é mais leve já que temos penas de prisão no diploma legal em causa, retirando do âmbito criminal estes comportamentos.

Não sendo necessário no caso dos autos sempre diremos que a ser crime, este tem natureza pública, contrariamente ao que sucede com o crime de ofensa à integridade física por negligência previsto no art.148.º do C.Penal.
Como refere Plácido Conde Fernandes, in Comentário das Leis Extravagantes, Vol.I, Universidade Católica Editora, pág.318, o legislador ao atribuir natureza pública ao crime em questão, teve o intuito de reforçar a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos protegidos. Mas, argumentamos nós, já não concordamos com o mesmo autor quando defende que o facto de ter sido apresentada queixa, “empurra” necessariamente os factos para o artº 148º do CP. Na verdade assim não é, nem sequer é a existência de queixa ou a falta dela que determina que determinados factos sejam julgados ou no âmbito do CP ou no âmbito do diploma em aplicação.

Para este autor a contraordenação prevista na alínea r) do artº 33º, não representa descriminalização, antes se sancionando aqui a ofensa à integridade física simples, sem queixa, mantendo-se a ofensa à integridade física simples, com queixa na previsão do 148ºCP.
Não nos parece que assim seja.
Os comportamentos em causa estão contidos nesta lei e saem do artº 148º independentemente de existir ou não queixa e não necessitando da mesma para prosseguir ou ser instaurado procedimento criminal. A não ser assim, não fazia sentido a criação do diploma em causa que envolve os animais de estimação e/ou companhia perigosos ou potencialmente perigosos e o dever de por eles zelar evitando lesões a terceiros.

Da comparação do referido nesse arts. 33.º e 38.º, ressalta inequivocamente, em termos literais, que a distinção entre crime e contra-ordenação (ambos decorrentes de omissão de dever jurídico que incumbe ao detentor) opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves, tornando-se irrelevante, para o efeito, que a autoridade competente tenha, ou não, remetido o processo ao Ministério Público, aqui recorrente.

Na verdade, independentemente dessa circunstância, quer no âmbito penal, quer na vertente contraordenacional, o que importa é o respeito pelo princípio da legalidade na tipificação das infracções respectivas (arts. 1.º, n.º 1, do CP e art. 1.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, p. e p. pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10) e não o modo como se iniciou o procedimento.

Por seu lado, afigura-se compreensível que o legislador tenha operado distinções em razão do desvalor do resultado dos comportamentos, tal como acontece no domínio penal em sede de crimes contra a integridade física e, mesmo, no âmbito dos crimes por negligência.

Todos os elementos interpretativos confluem, pois, para que os factos narrados na acusação não constituem crime, tal como decidido e se contêm no diploma criado para comportamentos como os trazidos à apreciação de um tribunal em vez de uma entidade administrativa que á altura da prática dos factos era já a competente para decidir dos mesmos.
A norma de aplicação subsidiária que o diploma contém – artº 34º não tem a dignidade ou a força para tipificar uma conduta como crime isso, iria claramente contra as garantias da legalidade da tipicidade e da intervenção mínima do direito penal.

Bem andou o tribunal em ordenar o arquivamento declarando-se incompetente para o processo contraordenacional e para a aplicação de qualquer coima, nos termos dos artigos 38.º, n.º 1 e 39.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e em declarar extinta a instância cível, em relação ao pedido de indemnização cível formulado pelo demandante Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, por impossibilidade da lide, absolvendo o demandado da instância;

Bem andou ainda, em ordenar a comunicação dos factos à autoridade administrativa competente para o processo contraordenacional - 41.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, - Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária.
Assim, e bem, ordenou a extração de certidão e remessa, após trânsito, à entidade acima referida para instauração de eventual processo contraordenacional declarando extinto o procedimento criminal instaurado contra a arguida por inexistência de crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.148º, n.º1, do Código Penal, face à descriminalização operada pelo Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
 Assim sendo,

Nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida

Sem custas por a elas não haver lugar.

Ac elaborado e revisto pela relatora


 Lisboa, 11 de Julho de 2018

 Adelina Barradas de Oliveira

João Moraes Rocha

Jorge Raposo (junta voto de vencido)
 
Voto de vencido:
Com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência 11/13, de 13.6.2013, «a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º, ns. 1 e 3 do CPP», pelo que deixou de ser possível evitar julgamentos através de uma alteração da qualificação jurídica, embora tal fosse uma praxis judiciária corrente.
É certo que, não tendo havido instrução, no momento do saneamento do processo, o juiz pode rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada (art. 311º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal), mormente por considerar que os factos constantes da acusação não constituem crime.
Não foi o caso dos autos. O juiz recebeu a acusação nos seus precisos termos, já na vigência do Decreto-Lei 315/2009 de 29.10, assim fixando o objecto do processo em termos factuais e jurídicos.
Não tendo havido qualquer alteração legislativa impunha-se o julgamento, podendo no decurso deste proceder à alteração da qualificação jurídica ou, simplesmente, absolvendo por considerar que os factos não constituem crime e conhecendo do pedido cível deduzido.
A evidência de que assim devia ser está na interposição do presente recurso.
Efectivamente, a posição jurídica em que se fundamentou o despacho recorrido não é pacífica como o próprio despacho reconhece. Assim, não se pode falar de descriminalização mas de uma manifestação antes de tempo de preferência por uma das correntes jurisprudenciais sobre a questão. Face à controvérsia existente nem sequer se pode considerar que seja manifestamente infundada a posição jurídica constante da acusação. Por isso, o que ocorreu foi uma alteração da qualificação jurídica sem que tivesse havido alteração da lei, assumida em termos contrários à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça e a permitir, assim, a interposição de recurso nos termos do art. 446º do Código de Processo Penal.
Teria, assim, decidido pela revogação do despacho recorrido que deveria ser substituído por outro que fizesse prosseguir o julgamento, não conhecendo da questão substantiva.
*
Porém, o acórdão que fez vencimento, considerando não ser situação em que devesse ser aplicado o Acórdão de Fixação de Jurisprudência 11/13, de 13.6.2013 teve de apreciar a bondade da tese jurisprudencial seguida no despacho recorrido, considerando que os factos narrados na acusação não constituem crime.
Por isso, devo manifestar sumariamente a minha dissonância em relação a essa tese que, como se sabe, também tem apoio jurisprudencial.
É que, ao contrário do doutamente expendido, os caniches não pertencem a raça potencialmente perigosa e, aquele em concreto, não tendo antes mordido em nenhum ser humano não podia ser classificado naquele momento como animal perigoso, o que o que só ocorre depois de morder a 1ª vez e tem de ser declarado, seguindo o procedimento burocrático do art. 11º do Decreto-Lei 315/2009. Por isso, o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia não lhe era aplicável e consequentemente, não foi cometida qualquer contra-ordenação pela dona e detentora do canídeo, designadamente a da al. r) do nº 1 do art. 38º do Decreto-Lei 315/2009 – o que se compreende, tendo em atenção que a raça não é de animais potencialmente perigosos e aquele animal em concreto ainda não tinha sido declarado perigoso.
Decorrentemente, ou a conduta em apreço corresponde à prática do crime de ofensa à integridade física negligente ou não tem relevância jurídico-penal…
Tenho como seguro que se mantém na íntegra o regime penal decorrente do Código Penal, assim salvaguardando a congruência do sistema, face à diversidade de bens jurídicos em causa, não decorrendo da introdução no nosso ordenamento jurídico do Decreto-Lei 315/2009 nenhuma descriminalização: não existe nenhum argumento no sentido de ser essa a intenção implícita do legislador (que acarretaria problemas de inconstitucionalidade orgânica por força do art. 165º nº 1 al. c) da Constituição da República Portuguesa). O valor tutelado pelas normas penais convocáveis, é a integridade física pessoal. O bem jurídico tutelado pelo regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia é supra-individual e reside na perigosidade canina para a sociedade em geral, como decorre do preâmbulo do diploma em apreço. Consequentemente, os donos dos cães classificados como perigosos ou cães potencialmente perigosos que mordam sem causar ofensa grave são sempre responsabilizáveis pela contra-ordenação da al. r) do nº 1 do art. 38º. Quanto a esses canídeos, a problemática da existência de concurso real ou aparente entre o crime e a contra-ordenação não pode deixar de ter em atenção os diferentes valores protegidos pelas normas e a necessidade de uma interpretação sistemática harmónica que responda à pergunta: a prática do crime esgota o significado, efeito, ou ilicitude da contra-ordenação?
Lisboa, 11 de Julho de 2018