Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
220/16.6PECSC.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
AMEAÇA A BENS PATRIMONIAIS
CONCEITO DE CONSIDERÁVEL VALOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - O conceito de "valor considerável" do artigo 153°, n°1 do Código Penal –crime de ameaça- não pode ser interpretado como sendo todo aquele valor que ultrapasse o valor “diminuto” tal como este é definido na alínea c) do artigo 202.° do Código Penal, ou seja todo aquele valor patrimonial que seja superior a 102,00 € (cento e dois euros) [uma unidade de conta, avaliada no momento da prática do facto (cfr. art. 202.º, alínea c), a contrario);

II - Não foi essa manifestamente a intenção do legislador ao incluir no art. 153.°, n.º 1, do CP, a ameaça a bens patrimoniais a par dos relevantes bens jurídicos – e só também destes - vida, integridade física, liberdade pessoal e liberdade de autodeterminação sexual;

III - Os bens patrimoniais ameaçados, in casu de dano, terão de ser de considerável valor para beneficiarem de proteção penal a esse título, sendo quanto a este tribunal ad quem por demais evidente que se excederem apenas cento e dois euros não podem ser merecedores de tal tutela criminal. No art. 202.° do C.P., o legislador optou por definir os conceitos legais de "valor elevado", "valor consideravelmente elevado" e "valor diminuto". No entanto, no art. 153.° n.° 1, do CP, o legislador utilizou apenas o conceito indeterminado de "considerável valor", cabendo ao aplicador do direito integrá-lo casuisticamente;

IV - Não obstante o respeito devido à interpretação de que "considerável valor" é igual a "valor elevado" não pode igualmente com a mesma concordar-se, pois seria totalmente irrazoável que o legislador, para aludir a um valor superior a 50 unidades de conta, fosse utilizar outro conceito diverso da terminologia do seu próprio "dicionário". Pelo contrário: das definições legais do art. 202.° se retira o inequívoco sentido de que a utilização de um conceito diferente (considerável valor) tem como clara intenção referir uma realidade patrimonial diferente das aí contempladas (valor diminuto, elevado ou consideravelmente elevado);

V - Considerável valor será, pois, um valor a aferir caso-a-caso, mas que não se quedará nem pouco acima do diminuto nem tem que ser equiparado ao elevado, devendo situar-se entre um e outro, mas mais próximo deste último pela tal pretendida relevância penal. Dito de outro modo: "Considerável valor" terá de ser um valor importante ou relevante para um homem médio;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 220/16.6PECSC, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 1, foi submetido a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, o arguido PP, casado, contabilista, nascido a …, natural da freguesia da …, concelho de Lisboa, filho de XX e de ZZ, titular do Cartão de Cidadão n.º …, residente na Rua … Carcavelos, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e na forma consumada, de factos que, em seu entender, integram um crime de ameaça, previsto e punido pelo art. 153.º, n.º 1, do Cód. Penal, consubstanciados nos factos descritos na acusação formulada a fls. 100 a 103 que aqui se dá por reproduzida.
MM constituiu-se na qualidade de assistente (fls. 90), aderiu à acusação pública e deduziu acusação particular contra o arguido PP, imputando-lhe, como autor material, a prática de factos que, em seu entender, integram a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181.º, n.º 1, do Cód. Penal, consubstanciado nos factos descritos na acusação formulada a fls. 113 e 113 verso, que aqui se dá por reproduzida, e deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido/demandado, que integra fls. 113 verso a 115 dos autos, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelo receio e temor de que padeceu em resultado da ameaça que lhe foi dirigida, e no pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, em resultado do desgosto, tristeza, humilhação e perturbação de que padeceu, em resultado das injúrias que lhe foram dirigidas.
Por despacho, datado de 4 de outubro de 2017, que integra fls. 122 a 124, o Ministério Público declarou acompanhar a acusação particular deduzida pelo assistente.
Realizado o julgamento, por sentença, proferida e depositada em 6 de junho de 2018, foi decidido:
"julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público, e, consequentemente:
A) Absolver o arguido PP relativamente à prática de um crime de ameaça, p.p. pelo art. 153.º, n.º 1 do Cód. Penal;
B) Condenar o arguido PP, pela prática, em autoria material, de um crime de injúria, p.p. pelo art. 181.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante global de 300,00 (trezentos euros)
C) Julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante MM, e, em consequência, dele se absolver o arguido/demandado PP." (fim de transcrição).

2. O arguido, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1. O presente recurso limita-se à parte da sentença que julgou parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação deduzida pelo MP e que, consequentemente, condenou o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de injúria, p.p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do CP (alínea b) do dispositivo), e nas custas do processo, e impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto.
2. O arguido nunca proferiu as palavras “seu filho da puta” e “vai para a puta que te pariu” ao assistente.
3. O que o arguido disse, naquela noite do jogo de futebol no dia 06.03.2016, já na rua pública, foi “foda-se”, “caralho”, e “boca” em voz alta, e num contexto de desabafo depois de ter sido provocado por outro cliente (Sr. AA) por causa do futebol e por lhe ter sido recusado uma bebida, mas nunca disse “seu filho da puta”, nem “vai para a puta que te pariu”.
4. Por conseguinte, não é verdade o alegado nos pontos 6., 8., 10., 11., 15., 18. e 24. da matéria de facto provada da sentença.
5. Também existe uma contradição insanável na fundamentação da sentença, entre os pontos 9. a 11. da matéria de facto provada.
6. Porquanto, no ponto 9. é referido que o arguido “abandonou o café” e no ponto seguinte (10.) refere que, ao mesmo tempo, dirigiu-se ao assistente; ora se ele já tinha saído do café como é que ele se dirigiu ao assistente que estava no interior do café? O arguido não podia estar a sair do café de costas voltadas para a porta.
7. Também existe outra contradição insanável da fundamentação, pois no ponto 15. da matéria de facto provada é referido que o arguido “efectivamente ofendeu” o assistente. Contudo, no 2§ da página 8 da douta sentença é referido que o próprio assistente, nas declarações que prestou, não se considerou melindrado ou ofendido na sua honra e consideração em resultado das expressões injuriosas que alegadamente lhe foram endereçadas pelo arguido referidas no ponto 10.
8. A tese trazida ao Tribunal a quo pelo assistente (gravado em suporte digital no ficheiro: file:///E:/20180516102638_4035718_2871350.html, no dia 16.05.2018, das 10:37:03 às 11:12:57) não foi corroborada pelas testemunhas inquiridas, pois nenhuma testemunha proferiu que o arguido disse: “vai para a puta que te pariu”.
9. A testemunha VV demonstrou que o arguido não estava dentro do café, pois se disse “vocês aí dentro é tudo a mesma merda”, como é aliás referido na sentença (na página 6), é porque o arguido não estava dentro do café, por isso se eventualmente disse (o que não disse) “filho da puta” não foi para ninguém em especial, pois ele estava na rua sozinho a falar sozinho.
10. Por outro lado, esta testemunha não devia ter sido considerada relevante, nem credível, pois nota-se perfeitamente no seu depoimento que tem algo contra o arguido (gravado em suporte digital no ficheiro: file:///E:/20180516102638_4035718_2871350.html, no dia 16.05.2018, das 11:13:48 às 11:30:34).
11. A testemunha GG não assistiu aos acontecimentos de dia 06.03.2016 relatados na acusação, pelo que nunca o seu depoimento poderia ter qualquer influencia na condenação do arguido pela prática do crime de injúria ao assistente. Aliás, esta testemunha até relata factos que o assistente nunca relatou e que não aconteceram, pois disse que o arguido chamou o assistente de “filho da puta” na manhã de dia 19.03.2016 quando o assistente referiu que tal expressão foi proferida na noite do jogo em 06.03.2016 (cfr. a título de exemplo, o auto de declarações a fls. 13 a 14 do 1.º volume dos autos).
12. O depoimento desta testemunha evidencia que não é ocular e que não esteve presente no café no referido dia e no momento em causa.
13. Outro motivo ou prova de que o arguido não proferiu estas palavras é o depoimento da testemunha RR, pois esta testemunha nada depôs sobre ter ouvido estas palavras da boca do arguido, fossem dirigidas para quem fosse.
14. Esta testemunha referiu foi a animosidade que tem para com o arguido, o que a torna uma testemunha parcial e inidónea para depor (gravado em suporte digital no ficheiro: file:///E:/20180516102638_4035718_2871350.html, no dia 16.05.2018, das 11:48:13 às 11:59:40).
15. Pelo que, deveria ter sido considerada não provada a seguinte matéria de facto:
“(…)

g) Face ao comportamento conflituoso do arguido, o assistente chamou-o a atenção para moderar a linguagem.”
“h) O assistente recusou-se a servi-lo, uma vez que o arguido já tinha consumido, durante o visionamento do jogo, seis cervejas, e face ao comportamento provocatório deste.”
“i) E ao mesmo tempo, perante a presença de vários clientes, dirigiu-se ao assistente, em voz alta e sem que nada o justificasse, tendo proferido as seguintes palavras: “seu filho da puta” e “vai para a puta que te pariu”
“j) As referidas expressões, lesivas da honra e consideração do assistente, foram proferidas em viva voz, em pleno café, onde se encontravam vários clientes do estabelecimento.”
“k) Ao proferir ao assistente as expressões a que é feita menção em i), o arguido quis ofendê-lo na honra e consideração que lhe são devidas, como efectivamente e ofendeu, bem sabendo que tais expressões eram ofensivas da honra e consideração do assistente.”
“l) O arguido agiu, assim, de modo deliberado, voluntário, livre e consciente, bem sabendo que os seus actos, a que é feita referência em i), eram proibidos e punidos por lei e, não obstante ter capacidade de determinação em sentido diverso, não se inibiu de os realizar.”
“m) As expressões a que é feita menção em i), lesivas da honra e consideração do demandante MM, foram proferidas, repetidamente e de viva voz, perante os cliente do café “S…”.”
16. Os pontos 6. e 8. da matéria de facto provada da sentença deverá ser alterada para passar a ter a seguinte redacção:
“6. O assistente chamou-o a atenção para moderar a linguagem.”, “8. O assistente recusou-se a servi-lo.”
17. Pelo que, em conclusão, não foi correctamente apreciada a prova gravada referente a estes factos, nem toda a restante prova carreada para os autos.
18. Alterada a matéria de facto provada e não provada nos termos supra expostos, não se encontrará preenchido o tipo legal de crime de injúria no caso sub judice, devendo o arguido ser absolvido da prática do crime relativamente ao qual foi condenado pelo Tribunal a quo.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, procedendo-se, entre o mais, à reapreciação da prova gravada, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas VV, GG, e RR.
Devendo, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida na parte que condenou o arguido pela prática, em autoria material, do crime de injúria e nas custas do processo, e substituída por outra que absolva o arguido da prática, em autoria material, do crime de injúria na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5€, pois só assim se fará JUSTIÇA.(fim de transcrição).

3. Também o assistente inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
I - O Tribunal a quo absolveu o arguido da prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, por a acusação não ter alegado, nem provado em julgamento, que o valor patrimonial do café e do seu recheio era de valor superior a 50 unidades de conta, pelo que estaríamos perante uma conduta atípica;
II – O Tribunal a quo, com o salvo devido respeito, erradamente interpretou o disposto do artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, designadamente o preenchimento do conceito de “considerável valor”;
III – De facto, a douta sentença viola o disposto do n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, na medida em que, com o salvo devido respeito, erradamente confundiu o conceito de “considerável valor” com o conceito de “valor elevado” definido na al. a) do artigo 202.º do Código Penal;
IV – Citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/11/2011, Proc. N.º 568/05.5TAAVR.C1., “a expressão “considerável valor”, utilizada no art. 153°, nº 1 do Código Penal (crime de ameaça) deve ser interpretado como sendo um conceito objectivável por referência às alíneas a), b) e c) do artigo 202° do Código Penal e que apenas exclui o “valor diminuto” definido na alínea a)”;
V – Nos crimes contra o património, designadamente no crime de dano, é essencial quantificar o valor do dano ou do prejuízo causado, visto que são, em regra, crimes de consumação;
VI – Já o crime de ameaça, ao contrário, é um crime de perigo e consubstancia-se na eventual prática de um mal futuro, pelo que não há que quantificar o prejuízo;
VII – Pelo que, o conceito de “considerável valor” deve ser interpretado no sentido que deve ser excluída maxime do crime de ameaça todos os bens patrimoniais de valor diminuto;
VIII – Um estabelecimento comercial “café” não é, notoriamente, um bem patrimonial de valor diminuto;
IX O valor não diminuto do café é logo do conhecimento do arguido na acusação;
X – Pelas razões de direito aduzidas, e por dedução lógica, não deve constar da MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA a sua al. b), até porque é uma conclusão e não um facto;
XI – Como todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça constantes da acusação pública estão provados, deverá, consequentemente, o arguido ser condenado na prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal;
XII – Bem como do pedido de indemnização deduzido pelo demandante, no montante de Euros 2.000,00, por provado;

Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirem, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o arguido condenado pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, bem como do pedido de indemnização civil peticionado, dado que, com o salvo devido respeito, a sentença erradamente interpretou no sentido que o conceito “considerável valor” deve ser lido “valor elevado”.(fim de transcrição).


4. Foi proferido despacho judicial admitindo os recursos, como se alcança de fls. 188.

5. O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pelo assistente, concluindo que ao mesmo deverá ser negado provimento, como consta de fls. 191 a 194 que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
O Ministério Público na 1.ª instância igualmente apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo que ao mesmo deverá ser negado provimento, como consta de fls. 196 a 200 que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
Não houve outras respostas aos recursos.

5. Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu “Visto” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de acompanhar a posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância, nada mais se lhe oferecendo acrescentar (cfr. fls. 217).

6. Foi cumprido, oficiosamente, o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido respostas.

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição dos recursos.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.



II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).

As questões suscitadas pelo recorrente-arguido PP, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento de alguma ficar prejudicado pela solução dada àquela que a antecede, são, em síntese, as seguintes:
- Devem se dados como não provados os factos assentes nos pontos 6., 8., 10., 11., 15., 18. e 24. da matéria de facto provada na sentença;
- Existe uma contradição insanável na fundamentação da sentença, entre os pontos 9. a 11. da matéria de facto provada, porquanto, no ponto 9. é referido que o arguido “abandonou o café” e no ponto seguinte (10.) refere que, ao mesmo tempo, dirigiu-se ao assistente; ora se ele já tinha saído do café como é que ele se dirigiu ao assistente que estava no interior do café? O arguido não podia estar a sair do café de costas voltadas para a porta;
- Também existe contradição insanável da fundamentação quando no ponto 15. da matéria de facto provada é referido que o arguido “efectivamente ofendeu” o assistente e, posteriormente, no 2§ da página 8 da sentença é referido que o próprio assistente, nas declarações que prestou, não se considerou melindrado ou ofendido na sua honra e consideração em resultado das expressões injuriosas que lhe foram endereçadas pelo arguido referidas no ponto 10.

Por seu turno, as questões suscitadas pelo recorrente-assistente MM, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, são, em síntese, as de que o “considerável valor” a que se refere o n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, para preenchimento do elemento objetivo do crime de ameaça, não pode ser reconduzível nem confundido com o conceito de “valor elevado” definido na al. a) do artigo 202.º do Código Penal. O conceito de “considerável valor” deve ser interpretado no sentido que devem ser excluídos maxime do crime de ameaça todos os bens patrimoniais de valor diminuto, sendo que um estabelecimento comercial “café” não é, notoriamente, um bem patrimonial de valor diminuto. Pelas razões de direito aduzidas, e por dedução lógica, não deve constar da matéria de facto não provada a sua alínea b), até porque é uma conclusão e não um facto, e, finalmente, como todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de ameaça constantes da acusação pública estão provados, deverá, consequentemente, o arguido ser condenado na prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, bem como no pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante, no montante de 2.000,00 € (dois mil euros), por provado.


2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
   
a) O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):
1. O assistente MM ajuda a sua filha na exploração do café designado “S…”, localizado na Rua … Carcavelos, área desta Comarca.
2. No dia 6 de Março de 2016 realizou-se o jogo de futebol da 1.ª Liga entre o FC de Braga e o FC do Porto, que teve o pontapé de saída pelas 20H30.
3. Nesse dia, o arguido PP esteve presente no café “S…”, a televisionar o jogo.
4. Durante o visionamento, o arguido consumiu uma sandes de carne, vulgo prego, e ingeriu bebidas alcoólicas, designadamente seis cervejas.
5. A certa altura, durante o visionamento do jogo de futebol, o arguido entrou em discussão verbal com o ofendido MM e com outros clientes do café.
6. Face ao comportamento conflituoso do arguido, o assistente chamou-o a atenção para moderar a linguagem.
7. O arguido, não satisfeito com a chamada de atenção, dirigiu-se ao assistente dizendo que “a culpa é minha em te ter dado confiança” e pediu mais uma cerveja.
8. O assistente recusou-se servi-lo, uma vez que o arguido já tinha consumido, durante o visionamento do jogo, seis cervejas, a face ao comportamento provocatório deste.
9. Na sequência de tal discussão, o arguido dirigiu-se para a porta de saída do estabelecimento e abandonou o café, sem ter pago a despesa do que tinha ingerido e consumido, que era de € 10,10 (6 cervejas = € 1,10x6; 1 prego = € 3,50).
10. E ao mesmo tempo, perante a presença de vários clientes, dirigiu-se ao assistente, em voz alta e sem que nada o justificasse, tendo proferido as seguintes palavras: “seu filho da puta” e “vai para a puta que te pariu”.
11. As referidas expressões, lesivas da honra e consideração do assistente, foram proferidas em viva voz, em pleno café onde se encontravam vários clientes do estabelecimento.
12. Entre o dia 6 e o dia 19 de Março de 2016, pessoa cuja identidade se desconhece, furou os pneus da viatura do arguido.
13. O arguido ficou convencido que havia sido MM o autor dos danos.
14. Assim, no dia 19 de Março de 2016, pelas 11H00, o arguido dirigiu-se ao café “S…”, interpelou o ofendido MM e proferiu a seguinte expressão: “Se eu souber que foste tu que os furaste os pneus, venho aqui e parto o café todo”.
15. Ao proferir ao assistente as expressões a que é feita menção em 10., o arguido quis ofendê-lo na honra e consideração que lhe são devidas, como efectivamente ofendeu, bem sabendo que tais expressões eram ofensivas da honra e consideração do assistente.
16. O arguido, ao dirigir-se a MM e dizer-lhe que lhe rebentava o café todo se voltassem a furar-lhe os pneus, fê-lo de forma adequada a provocar medo e inquietação no visado.
17. O arguido actuou com o propósito concretizado de dirigir ao ofendido palavras e comportamentos em que prometia atentar contra o património deste bem como da sua família, bem sabendo que as palavras proferidas eram susceptíveis de perturbar a liberdade de determinação do ofendido.
18. O arguido agiu, assim, de modo deliberado, voluntário, livre e consciente, bem sabendo que os seus actos, a que é feita referência em 10., eram proibidos e punidos por lei e, não obstante ter capacidade de determinação em sentido diverso, não se inibiu de os realizar.
19. Em resultado dos factos a que é feita menção em 14., o demandante MM sentiu-se muito inquieto e receoso.
20. A partir daquela data a sua atenção redobrou-se face à possibilidade do demandado, que reside perto do café, regressar ao estabelecimento, que é propriedade da sua filha, e onde o demandante a costuma ajudar durante o período nocturno.
21. Em resultado da ansiedade que a expressão proferida pelo demandado causou ao demandante, aquele, ocasionalmente, durante a madrugada, levantava-se da sua cama e deslocava-se ao café “S:::”, para verificar que o estabelecimento não sofreu qualquer dano.
22. A expressão proferida pelo demandado, a que é feita referência em 14., foi escutada pelos clientes do café.
23. Que pretendem estar no café a conviver sossegadamente e não num estabelecimento com potenciais focos de conflito e perturbadores.
24. As expressões a que é feita menção em 10., lesivas da honra e consideração do demandante MM, foram proferidas, repetidamente e de viva voz, perante os clientes do café “S…”.
Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:
25. O assistente MM trabalhou durante muitos anos no ramo da hotelaria, encontrando-se actualmente reformado.
26. Aufere uma pensão de reforma no valor mensal de € 480,00.
27. Vive com a esposa, que se encontra reformada, com a filha e com a neta, em casa própria.
*
28. O arguido PP possui, como habilitações literárias, a licenciatura em contabilidade e gestão, que concluiu no Instituto Militar dos Pupilos do Exército.
29. Tem a profissão de contabilista, tendo trabalhado nessas funções, no período compreendido entre o ano de 2009 e o dia 31 de Julho de 2016, na “…”, encontrando-se desde esta data inactivo em termos laborais.
30. Encontra-se inscrito no Centro de Emprego.
31. Aufere subsídio de desemprego no valor mensal de € 900,00.
32. Vive sozinho, em casa própria, pagando o valor mensal de € 300,00 relativo à prestação do empréstimo bancário que contraiu para compra da casa.
33. Tem dois filhos, com as idades de 4 anos e de 7 anos, que vivem com a mãe, de quem o arguido se encontra separado há cerca de dois anos, pagando o arguido o valor mensal de € 100,00 relativo à pensão de alimentos de cada um dos menores, acrescido do montante de € 60,00 do ATL e de metade das despesas de saúde.
34. O arguido PP não tem condenações averbadas no respectivo registo criminal." (fim de transcrição).

b) Factos declarados não provados:
"a) – que as expressões a que é feita menção em 10. foram proferidas em circunstâncias que não só facilitaram como efectivaram a sua divulgação;
b) – que o comportamento do arguido, a que é feita referência em 14., é proibido e punido por lei;
c) - que o assistente MM sempre foi uma pessoa respeitada no meio, sendo-lhe reconhecida uma grande autoridade moral;
d) – que o demandante é uma pessoa de bem, trabalhadora e educada, sendo estimada por todos aqueles que consigo privam, designadamente os clientes do café “S…”;
e) – que ao dirigir ao demandante as expressões a que é feita referência em 10., o demandado ofendeu de forma grave e profunda o demandante, tendo este ficado, em consequência das expressões proferidas por aquele, muito desgostoso, triste, humilhado e perturbado e que se reflectiu no ambiente dos utilizadores do café “S…”;
f) – que esta atitude do demandado causou ao demandante forte abalo psíquico, sobretudo pela vergonha, perturbação e medo, desgosto, vexame, dissabores e tristezas." (fim de transcrição).

c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:
"Nos termos do art. 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei, consagrando o Código de Processo Penal a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O arguido PP remeteu-se ao silêncio, relativamente ao objecto da acusação, direito que processualmente lhe é conferido, de maneira que não contribuiu, em nada, para o apuramento dos factos.
O tribunal fundamentou, assim, a sua convicção, quanto aos factos constantes da acusação considerados como provados, em primeira instância, na análise ponderada das declarações do assistente/demandante MM, que confirmou toda a factualidade que o tribunal considerou como demonstrada, a que é feita menção nos pontos 1. a 14. e 22. a 24., tendo prestado um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente, sendo certo que as suas declarações, apesar da posição que ocupa nos presentes autos, foram eloquentes, convincentes e elucidativas quanto às concretas situações em que o arguido lhe dirigiu as expressões injuriosas e as ameaças objecto dos presentes autos, tendo respondido de forma congruente a todas as questões que lhe foram colocadas. No seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido, ou de querer enfatizar defeitos deste, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de evidente naturalidade, procurando tão-só esclarecer o tribunal, de forma clara, objectiva e pormenorizada, quanto aos aspectos mencionados na acusação, explicando ainda em juízo as circunstâncias da actuação do arguido e os motivos que o levaram a assim proceder. Nesta medida, deram-se como provados todos os factos constantes das acusações e do pedido de indemnização civil relatados pelo próprio ofendido, tanto mais que as suas declarações, não tendo sido infirmadas por qualquer prova em contrário, não podem deixar de prevalecer.
Saliente-se, ainda, que as declarações do assistente encontram suporte probatório na demais prova produzida em audiência de julgamento.
Assim, a testemunha VV, deu conta ao tribunal de ser cliente do café “S…” desde há cerca de dez anos, e de se encontrar presente no estabelecimento na data em que, no final de um jogo de futebol, e na sequência de uma discussão relacionada com o jogo, o arguido recusou pagar o consumo e apelidou o ora assistente MM de “filho da puta”, e, dirigindo-se aos presentes, referiu “vocês são uma cambada de filhos da puta e de cabrões” e “vocês aí dentro são todos a mesma merda”.
E a testemunha GG deu conta ao tribunal de ser cliente do café “S…”, e de, na manhã do dia 19 de Março de 2016, se encontrar no interior do estabelecimento, na companhia da sua esposa, quando o arguido aí compareceu e, em voz alta, acusou o assistente de ter andado a rondar o seu carro e de alguém o ter visto a fazer alguma coisa no carro, tendo-se dirigido ao assistente a afirmado: “filho da puta, parto-te os cornos, cabrão, anda cá para fora que eu trato de ti”. A testemunha GG adiantou, ainda, que na sequência deste comportamento do arguido, cerca de quatro ou cinco clientes ficaram assustados e saíram para o exterior do estabelecimento, tendo-se a própria esposa do depoente refugiado numa outra mesa.
Embora sem conhecimento directo dos factos, foi relevante o depoimento da testemunha RR, que deu conta ao tribunal de ser cliente do café “S…”, onde se costumava deslocar com frequência para assistir aos jogos de futebol que eram transmitidos na “Sport TV”, e de ter deixado de o fazer por o arguido, sempre que havia jogos de futebol, estar sistematicamente a provocar e a insultar os presentes, tendo numa ocasião afirmado “tudo o que é verde é merda”, o que deixou o depoente de tal maneira enervado, que decidiu nunca mais assistir a nenhum jogo de futebol no café, tendo, a partir daí, optado por subscrever a “Sport TV”.
Todos os referidos depoimentos testemunhais, na matéria aludida, foram relevantes, tendo todos eles deposto com isenção, de forma explicativa e circunstanciada. Ora, em face das declarações do assistente, depoimentos das testemunhas e da sua conjugação com as regras da experiência comum, dúvidas não restaram ao tribunal da prova de toda a factualidade apurada, enunciada nos pontos 1. a 14. e 22. a 24. da Matéria de Facto Provada.
O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 15. a 18., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que o arguido PP agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
Atendeu-se, ainda, às declarações do assistente e ao depoimento da testemunha CC, sua filha, quanto às sequelas emocionais da conduta do arguido na pessoa do assistente, a que é feita menção nos pontos 19. a 21., já que, em virtude das relações de proximidade existentes, esta logrou depor sobre essa factualidade, de modo coerente com as regras da experiência comum, de acordo com as quais é possível inferir um juízo baseado na cultura das pessoas de que a vítima de ameaças da natureza daquelas que constituem objecto dos presentes autos, se sente nervosa, descontrolada e tem receio que o agente das ameaças as concretize, tendo a testemunha adiantado que, após a prática dos factos, foram muitas as noites em que o seu pai se levantou e se dirigiu ao café para se certificar de que estava tudo bem, tendo, nesta matéria, confirmado, no essencial, o que o próprio assistente já tinha adiantado.
Os factos dos pontos 25. a 27. e 28. a 33. resultaram provados, tendo por base as declarações do assistente e do arguido, quanto às respectivas condições pessoais, laborais e económicas, que se consideraram credíveis, não sendo postas em causa, mostrando-se a ausência de antecedentes criminais do arguido certificada no respectivo CRC, com data de emissão de 15/05/2018.
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Os factos que se deram como não provados foram excluídos por não ter sido produzida prova que os confirmasse, importando a este respeito concretizar, no que respeita à factualidade a que é feita menção nas als. e) e f), ter sido o próprio assistente, nas declarações que prestou, a dar conta ao tribunal de não se ter considerado melindrado ou ofendido na sua honra e consideração em resultado das expressões injuriosas que lhe foram endereçadas pelo arguido, tendo salientado que não ligou, que quando se trabalha atrás do balcão aparecesse de tudo e que as expressões que o ofendido lhe dirigiu “são palavras que ás vezes saem”." (fim de transcrição).

d) Por seu turno, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à escolha e medida da pena, expendeu-se na decisão revidenda:
"A) ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
O arguido PP vem acusado pela prática de um crime de injúria, p.p. pelo art. 181.º, n.º 1, e de um crime de ameaça, p.p. pelo art. 153.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal.  
De harmonia com o citado art. 181.º, n.º 1 do Cód. Penal, incorre na prática de um crime de injúria quem, dirigindo-se a outra pessoa, lhe imputar factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou lhe dirigir palavras, ofensivas da sua honra ou consideração.
Assim, são elementos constitutivos de tal crime:
- a imputação, a qualquer pessoa, de factos, mesmo sob a forma de suspeita ou o proferimento de palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, sendo tal conduta endereçada ao próprio ofendido e na sua presença;
- a ilicitude da conduta, o que implica que o agente actue sem uma causa de justificação do facto;
- a culpa do agente expressa na sua liberdade de decisão e no carácter proibido da sua conduta e por si conhecido.
A existência do crime de injúria basta-se com o carácter objectivamente injurioso das expressões usadas e com a consciência de que o que se disse ofende a pessoa visada na sua honra e consideração, não sendo elemento essencial o dolo específico, ou seja, a especial intenção de injuriar.
O bem jurídico protegido na injúria é a honra e a consideração devida e a que tem direito cada pessoa como ser humano, e que beneficia de tutela constitucional (art. 26.º, n.º 1 C.R.P. – “A todos são reconhecidos os direitos (...) ao bom nome e reputação”).
Integra o crime de injúria todo aquele que, de forma livre, voluntária e consciente dirige a outra pessoa palavras ofensivas da sua honra e consideração.
Da matéria de facto apurada resultou provado que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas nas peças acusatórias, o arguido PP, dirigindo-se a outra pessoa, o assistente, lhe dirigiu as expressões “seu filho da puta” e “vai para a puta que te pariu”.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se tais expressões são, ou não, idóneas a lesar a honra e consideração do ofendido.
A honra é um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade.
Segundo Faria Costa “a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior (...). O que se protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. Fundamento essencial da honra interior e, desta forma, núcleo da capacidade de honra do indivíduo, é a irrenunciável dignidade pessoal que lhe pertence desde o nascimento e cuja inviolabilidade a Lei Fundamental reconhece (...). Da honra interior decorre a pretensão jurídica, criminalmente protegida, de cada um a que nem a sua honra interior nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas” – Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, pp. 607.
Ora, é sabido que qualquer uma das duas expressões proferidas suscitam a indignação e a censura das pessoas que as presenciem e atingem a honorabilidade da pessoa a quem seja endereçadas, sendo qualquer uma das aludidas expressões, subjectiva e objectivamente, injuriosa, exprimindo e carregando consigo um indesmentível desvalor objectivamente ofensivo, sendo reputada por toda a comunidade falante como ofensiva da honra e da consideração.
O arguido era conhecedor do carácter injurioso das aludidas expressões, e, não obstante, quis proferi-las, consciente do seu significado ofensivo para a honorabilidade e consideração de MM.
Por conseguinte, e em face da matéria de facto provada, não existindo causas de justificação da ilicitude nem causas de exclusão da culpa, concluímos que o arguido PP é jurídico-penalmente responsável pelo crime de injúria, que lhe vem imputado na acusação particular.
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O Ministério Público imputa, ainda, ao arguido PP a prática, em autoria material, de um crime de ameaça, p.p. pelo art. 153.º, n.º 1 do Cód. Penal, disposição de onde resulta incorrer na prática de um crime de ameaça quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime dirigido contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
São, assim, elementos constitutivos do crime de ameaça, p.p. pelo art. 153.º, n.º 1 do Cód. Penal:
- o anúncio de que o agente pretende infligir a outrém um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;
- que esse anúncio seja idóneo a provocar na pessoa a quem se dirige receio, medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação;
- que o agente tenha actuado com dolo.
Ora, no caso em apreciação, a matéria factual apurada evidencia não se mostrarem preenchidos, pela conduta do arguido, os elementos constitutivos do crime de ameaça, que lhe vem imputado na peça acusatória.          
De facto, pese embora se tivesse provado que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação, o arguido, dirigindo-se ao ofendido MM, lhe disse: “Se eu souber que foste tu que os furaste os pneus, venho aqui e parto o café todo”, não se tendo provado, nem, tão pouco, sido alegado na acusação, o valor patrimonial do referenciado café e do respectivo recheio, nada nos autos permite afirmar que o mesmo fosse de “considerável valor”, leia-se, de valor elevado, ou seja, de valor superior a € 5.100,00 (art. 202.º, al. a) Cód. Penal), pelo que a verbalização da referida frase, pelas razões apontadas, não integra a prática de um crime de ameaça, ou de qualquer outro crime, constituindo um facto criminalmente atípico, pelo que nesta parte se impõe, sem mais, a absolvição do arguido.
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B) – DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Definido qual o tipo de crime que a conduta do arguido PP preenche, cumpre proceder à determinação da pena.
Ao crime de injúria, em cuja prática o arguido incorreu, corresponde a pena compósita alternativa de prisão de um mês até três meses ou multa de 10 até 120 dias (art. 181.º, n.º 1 Cód. Penal), sendo que a cada dia de multa corresponde uma quantia a graduar entre o mínimo de € 5,00 (cinco euros) e o máximo de € 500,00 (quinhentos euros).
O crime praticado pelo arguido é, pois, punível com pena privativa da liberdade (pena de prisão) ou pena não privativa da liberdade (pena de multa), pelo que se mostra necessário proceder à escolha da pena, como determina o art. 70.º do Cód. Penal.
Os critérios legais para a escolha da pena expressam-se neste artigo, o qual estipula que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, quais sejam a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1 Cód. Penal).
Nas palavras de Leal-Henriques e Simas Santos, “A fundamentação a que se refere este artigo consiste na demonstração de que a pena não detentiva se mostra suficiente para que, no caso concreto, sejam alcançados os efeitos que se pretendem obter com qualquer reacção criminal, na justificação da prognose social favorável que está na base da opção pela pena não privativa da liberdade” – Código Penal Anotado, I Vol., Editora Rei dos Livros, 2.ª ed., 1995, pp. 547.
Ponderando as exigências de prevenção que se fazem sentir, no caso vertente as mesmas não são prementes, uma vez que, pese embora a prática de tal ilícito apresente elevada incidência, ao nível especial importa ponderar que o arguido PP, que contava a idade de 42 anos, à data da prática dos factos, não evidencia antecedentes criminais, denota hábitos de trabalho e se encontra socialmente integrado.
Por conseguinte, tendo em conta as concretas necessidades de prevenção que se fazem sentir, considera-se que a mera submissão do arguido a julgamento, com a efectiva aplicação de uma pena de multa, será suficiente para satisfazer a finalidade punitiva do Estado, obviando aos efeitos nefastos do ponto de vista da reinserção social do arguido decorrentes da aplicação de uma pena de prisão.
Termos em que se decide aplicar ao arguido uma pena não privativa da liberdade.
Cabe agora determinar, tendo por base a referida moldura legal abstracta, qual a pena concreta a aplicar ao arguido.
Para tanto, há que ter em conta os critérios previstos no art. 71.º do Cód. Penal, tendo como referência a culpa do agente e as exigências de prevenção.
O n.º 2 da citada disposição legal estabelece que o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra ou a favor do agente, enunciando algumas dessas circunstâncias nas suas alíneas:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.      
As circunstâncias e critérios do art. 71.º do Cód. Penal devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.
Assim, nesta perspectiva, valorando a matéria fáctica provada nos termos do art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, importa atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do arguido e contra ele, designadamente:
- o dolo, o qual se mostra na modalidade de dolo directo;
- a ilicitude dos factos, a qual se mostra de grau elevado, tendo em conta a concreta natureza das expressões injuriosas dirigidas ao ofendido (“seu filho da puta” e “vai para a puta que te pariu”) e o contexto em que as mesmas foram proferidas, no café explorado pela filha do ofendido e na presença dos clientes que aí se encontravam;
- são prementes as razões de prevenção geral, uma vez que a injúria é um crime frequente, perturbando fortemente a paz social, que importa reforçar;
- a conduta anterior e posterior aos factos, tendo em conta que o arguido, que contava 42 anos de idade, à data da prática dos factos, não tem antecedentes criminais e que, posteriormente à prática do crime em análise, decorrido que se encontra um período superior a dois anos, não voltou a delinquir;
- quanto às exigências de prevenção especial, porque estamos longe, muito longe mesmo, como é óbvio (pelo acima dito quanto à idade do arguido e á ausência de práticas criminosas), da necessidade de socialização, somente pela via da advertência, então, mínima, é que aquelas se destacam;
- as condições pessoais do arguido mostram tratar-se de pessoa que denota hábitos de trabalho e que se encontra socialmente inserido.
Numa visão de conjunto, e ponderadas as circunstâncias pessoais, a intensidade do dolo, o grau de ilicitude, a gravidade da culpa, e todas as circunstâncias preventivas ou retributivas dentro da moldura penal abstracta susceptíveis de consideração, tem-se por justo e adequado, fixar uma pena de 60 (sessenta) dias de multa, situada ligeiramente abaixo do ponto intermédio da diferença entre o mínimo e máximo aplicáveis.
O art. 47.º, n.º 2 do Cód. Penal estipula que a quantia a que corresponde cada dia de multa deve ser fixada (e só) em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias, é seguro que deverá atender-se (numa base, em todo o caso jurídico-penal, que não jurídico-fiscal) à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte, e aos gastos - Direito Penal Português, Vol. II – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 129.
Ora, no caso vertente, e do que se sabe, porque provado, o arguido, que se encontra desempregado, aufere o montante mensal de € 900,00, de subsídio de desemprego, suporta um encargo mensal de € 300,00, relativo à prestação do empréstimo bancário que contraiu para compra da casa, e tem despesas mensais fixas não inferiores a € 260,00, a título de pensão de alimentos e demais despesas a que tem de fazer face relativas aos seus dois filhos menores.
O referido montante de € 900,00, deduzidos os valores de € 300,00 e de € 260,00, a que o arguido tem de prover, perfaz o montante de € 340,00, o que, considerando um período de 30 dias, equivale ao rendimento médio diário de pouco mais de € 11,00.
Pelo exposto, e tendo em conta os critérios fixados no artigo 47.º, ns.º 1 e 2 do Código Penal e em face da matéria de facto provada (pontos 31. e 32. da Matéria de Facto), o tribunal entende que a cada dia de multa deve corresponder a quantia de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global € 300,00 (trezentos euros). (fim de transcrição).

3. Vejamos se assiste razão aos recorrentes.

3.1. Comecemos por atentar no recurso interposto pelo arguido.
Defende este existirem contradições insanáveis na fundamentação da sentença recorrida.
Segundo n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, "mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova".
Características comuns a todos aqueles vícios, além de serem, de conhecimento oficioso, são os de fundamentarem o reenvio do processo para outro julgamento quando insanáveis no tribunal de recurso (artigos 426.º e 436.º CPP) e resultarem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.
Vícios da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, página 121).
Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida.
Quanto ao vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP), que ora vem alegado, dir-se-á que «para se verificar contradição insanável da fundamentação, têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis, como por exemplo dar o mesmo facto como provado e como não provado, em situações que não possam ser ultrapassadas pelo tribunal de recurso»[1].
«A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja sanável pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. Na verdade, tratando-se, por exemplo, de um erro no assentamento da matéria de facto, ou mesmo da respetiva fundamentação de facto, um erro percetível pela simples leitura do texto da decisão, não poderá falar-se em vício de contradição, o qual só existirá se eliminado o erro pelo expediente previsto no artigo 380.º do CPP, correção a que o próprio tribunal de recurso pode e deve proceder (nº 2 do mesmo artigo), a contradição persistir, então, sim, sendo insanável.
A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p. ex. «provado que matou», «não provado que matou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal.»[2]
Em suma, o vício a que alude a al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP verifica-se «quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal»[3].
A contradição insanável prevista na alínea b) é um vício na construção das premissas, determinando a formação defeituosa da conclusão.
Se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível, não passa de mera falácia.
O conteúdo da fundamentação da sentença vem definido no n.º 2 do artigo 374.º CPP: narração dos factos provados e não provados, exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Assim, este vício pode ocorrer entre vários sectores, no mesmo plano - contradição entre factos provados, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre a indicação das provas e os factos provados, contradição entre a indicação das provas e os factos não provados.
Não conseguindo o tribunal de recurso, pela análise do texto da decisão recorrida, eventualmente com o auxílio das regras da experiência comum, descobrir qual a proposição falsa e eliminá-la, o processo terá de ser reenviado para novo julgamento.
Revertendo ao caso concreto e na esteira do doutamente expendido pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso do arguido, também considera este tribunal ad quem, ao contrário da defesa, que a sentença que o mesmo ora põe em crise, limitada à impugnação da matéria de facto, nos termos em que ora é feita por aquele, não padece do alegado vício, ou de qualquer outro, tendo efetuado uma apreciação da prova de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e, consequentemente, considerado que da mesma resultam elementos que sustentam - como fez constar da respetiva motivação - a imputação e condenação do arguido pela prática de um crime de injúria, numa pena de multa, adequada e proporcional, em estrito cumprimento dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal e das exigências de prevenção geral e especial.
 Com efeito, e pese embora outras considerações vertidas pelo arguido no recurso que interpõe, o mesmo visa apenas a impugnação da matéria de facto dada como provada e que se encontra assente nos pontos 6., 8., 10., 11., 15., 18. e 24., entendendo aquele, ao invés, que a mesma deveria ter constado na não provada, com exceção do seguinte (partes dos pontos 6 e 8 da matéria de facto dada como provada):
- O assistente chamou-o (ao arguido) à atenção para moderar a linguagem;
- O assistente recusou-se a servi-lo.
Ora, e da leitura dos factos vertidos nos identificados pontos, resulta claro que o arguido põe em causa toda a matéria de facto dada como provada e que sustenta a sua condenação pela prática do crime de injúria.
E, fá-lo com referência a pequenos excertos das declarações das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, bem como através de uma apreciação dos referidos depoimentos, alegando que os mesmos não foram imparciais e que em todos eles ficou demonstrado um “sentimento de vingança”' para com o arguido, fazendo dessa forma a sua apreciação à prova.
Em primeiro lugar, e no que respeita aos considerandos referentes à forma como as testemunhas prestaram o seu depoimento, sempre se dirá que as afirmações a que o arguido faz referência em sede do recurso que interpôs, demonstram a frontalidade e objetividade com que os depoimentos foram prestados. De facto, nenhuma das testemunhas se inibiu de opinar, de forma frontal e honesta, sobre o modo de atuação do arguido com eles próprios e de dar conta e conhecimento ao Tribunal da relação com este (in)existente.
Parece-nos, pois, ao contrário do arguido, que as afirmações efetuadas e que o mesmo sublinha são nota da credibilidade dos referidos depoimentos.
Em segundo lugar, e no que respeita à impugnação da matéria de facto, sempre se dirá que a mesma mais não é do que uma diferente apreciação da prova.

Na realidade, não podemos deixar de ter em consideração a data em que os factos ocorreram, em 2016 - decorridos já dois anos à data do julgamento -, bem como o facto de, como resultou dos depoimentos prestados pelas testemunhas e pelo assistente, a realidade observada pelas testemunhas e pelo assistente o foram de modo diferente da vivenciada pelo arguido na acção por este visada.
Ora, e como se lê na sentença proferida, a base da fundamentação da matéria de facto dada como provada mostra-se sustentada nas declarações do assistente, considerando-se que o mesmo “tendo prestado um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível e coerente, sendo certo que as suas declarações, apesar da posição que ocupa nos presentes autos, foram eloquentes, convincentes e elucidativas quanto às concretas situações em que o arguido lhe dirigiu as expressões injuriosas e as ameaças objecto dos presentes autos, tendo respondido de forma congruente a todas as questões que lhe foram colocadas. No seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido, ou de querer enfatizar defeitos deste, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de evidente naturalidade, procurando tão-só esclarecer o tribunal, de forma clara, objectiva e pormenorizada, quanto aos aspectos mencionados na acusação, explicando ainda em juízo as circunstâncias da actuação do arguido e os motivos que o levaram a assim proceder”. (fim de transcrição).
E, acrescenta-se que as declarações do assistente encontram suporte probatório na demais prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente do depoimento das testemunhas inquiridas, daí resultando assente toda a matéria constante da factualidade dada como provada.
Por último, e no que respeita às contradições identificadas pelo arguido no âmbito dos factos, cumpre afirmar que elas não se verificam.
Da leitura da totalidade dos factos provados 9 e 10 resulta explícito que, ao mesmo tempo que o arguido abandonava o café (coisa diferente é ele ter saído, interpretação essa que é dada pelo arguido no seu recurso), o mesmo dirigiu-se ao assistente e proferiu a expressão que consta dos autos e que é integradora do ilícito pelo qual foi condenado. Em momento algum se afirma que o arguido já se encontrava no exterior do referido estabelecimento.
No que respeita à contradição identificada entre o facto provado no ponto 15 e o constante no 2§ da página 8 da sentença proferida, entendemos que também não subsiste razão ao arguido, porquanto os fundamentos aí enunciados derivam dos sentimentos do ofendido e respeitam, em concreto, à prova dos factos respeitantes ao pedido de indemnização civil do qual o arguido foi absolvido.
De facto, a previsão normativa do ilícito criminal constante no artigo 181.º do Código Penal estabelece apenas que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”, basta-se pois com a conduta do arguido ao proferir as palavras que foram dadas como provadas na direção do ofendido.
Resulta pois, de tudo o que se expôs, que não subsiste razão ao arguido, nos fundamentos que aduz no recurso que interpõe, tendo a sentença proferida efetuado um juízo dentro dos critérios previstos no artigo 127.º do Código de Processo Penal e, consequentemente, considerando como provados factos que se mostram integradores do ilícito criminal pelo qual o arguido veio a ser condenado numa pena de multa.
Termos em que, o recurso do arguido PP não pode lograr provimento.

3.2. Passemos agora a apreciar o recurso interposto pelo assistente.
Defende o recorrente assistente que não deve constar da matéria de facto não provada a sua alínea b), por se tratar de uma conclusão e não um facto. Ora, isso não é exato. Tal menção é factual e importa para se aquilatar da existência ou inexistência da falta de consciência da ilicitude do agente. Aliás, para ser coerente com esta sua linha argumentativa deveria então o recorrente assistente pugnar, com base nos mesmo critério, pela eliminação e/ou alteração do facto provado sob n.º 18 onde se deu por assente, e bem, que “O arguido agiu, assim, de modo deliberado, voluntário, livre e consciente, bem sabendo que os seus actos, a que é feita referência em 10., eram proibidos e punidos por lei e, não obstante ter capacidade de determinação em sentido diverso, não se inibiu de os realizar.”
Dito isto, avancemos.

Em abono da sua argumentação, chama o recorrente MM à colação a posição expressa no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de novembro de 2007 (e não de 2011, como certamente por lapso refere o assistente), proferido no proc. n.º 568/05.5TAAVR.C1 e consultável na JusNet.
Lembremos que aí pode ler-se, a dado-passo e no que ora releva o seguinte: “significado do conceito "considerável valor" do art. 153º nº 1 do Código Penal.
No Acórdão da Relação de Coimbra de 12.12.01 (recurso 2880/2001, sumariado no site do Tribunal da Relação de Coimbra) sustenta-se que "o crime objecto da ameaça tem que ser um crime contra a vida (131º e ss); um crime contra a integridade física (143º e ss); um crime contra a liberdade pessoal (153º e ss.); um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (163º e ss); bens patrimoniais de considerável valor, que equivale a "valor elevado" do artº 202º a)".
Também Taipa de Carvalho, "Comentário Conimbricense", T. 1, pg. 346, sustenta que "quando a ameaça tiver por objecto a prática de crime contra bens patrimoniais, poder-se-á dizer que, em geral, embora não necessariamente, ou haverá crime de ameaça qualificada (art. 153°-2) ou pura e simplesmente não haverá crime de ameaça. Isto, porque, se o bem patrimonial não for de "considerável valor" (art. 153°-1), não há sequer crime de ameaça; e se o bem patrimonial for de "considerável valor" (="valor elevado" do art. 202° a), então já haverá ameaça qualificada (art. 153°-2), uma vez que, na generalidade dos casos, os crimes contra o património, em que esteja em causa um "valor considerável" ou "elevado" (p. ex., furto qualificado: art. 204°-1 a); dano qualificado: art. 213°-1 a), são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos".
Esta posição, sustentada pelo MMº Juiz de Instrução no despacho de não pronúncia e pela arguida na sua resposta limita-se a afirmar a correspondência entre os conceitos de "considerável valor" e de "valor elevado" sem, no entanto, demonstrar essa similitude.
Ora, essa correspondência não existe como se procurará demonstrar.
Vejamos.
O art. 155º do Código Penal, na sua versão de 1982 estatuía:
1. Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou multa até 100 dias.
2. No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
Nota-se que não existia qualquer limitação em relação à tipologia dos crimes com os quais o agente pode ameaçar outrem.
Foi com a revisão do Código Penal (Decreto-Lei 48/95 de 15.3) que se limitaram os tipos de crimes determinantes do crime de ameaça, entre os quais os crimes contra bens patrimoniais de considerável valor, no art. 153º do Código Penal:
1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
Um dos propósitos da alteração foi, confessadamente, "estreitar-se a sua aplicação pela indicação dos bens ameaçados" (Prof. Figueiredo Dias, no "Código Penal -Actas e Projecto da Comissão de Revisão", Min. Justiça, 1993, pg. 232).
Porém esta alteração ocorre simultaneamente com "a definição quantificada de conceitos como valor elevado, consideravelmente elevado e diminuto, enquanto fundamentos de qualificação ou privilégio" e com o "abandono do modelo vigente de recurso a conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de agravamento ou privilégio, de modo a obviar as dificuldades que têm sido reveladas pela jurisprudência e a que o legislador não se pode manter alheio" como afirma o preâmbulo do diploma que procede à alteração.
Ora, o art. 153º do Código Penal então revisto é a única norma em que se refere o conceito de "considerável valor" e uma das poucas normas em que se refere um conceito de valor diferente dos contidos no art. 202º al.s a), b) e c) dessa lei - sendo os dois outros casos o do emprego da expressão "valor apreciável" a propósito do peculato de uso no art. 376º e "grande valor" na al. h) do nº 1 do art. 241º do Código Penal (crimes de guerra contra civis).
Há que extrair as necessárias ilações do emprego de uma fórmula diferenciada.
A tese de que para efeitos do Código Penal "considerável valor" é igual a "valor elevado" peca por presumir que o legislador usou uma técnica pouco apurada e descuidada:
Primeiro porque usou expressões diferentes com significado igual;
Depois, porque prevê a punição pelo nº 1 do art. 153º de condutas (ameaça com crime contra bens patrimoniais de considerável valor) que, a admitir-se a tese da identidade de significado, como bem observa Taipa de Carvalho, são punidas pelo nº 2 da aludida norma "uma vez que, na generalidade dos casos, os crimes contra o património, em que esteja em causa um "valor considerável" ou "elevado", são puníveis com pena de prisão superior a 3 anos" (cfr. supra).
Também a tese sustentada pelo Digno Magistrado do Ministério Público Recorrente de que o "valor considerável" constitui uma realidade patrimonial diferente, que não depende propriamente da quantificação do seu valor, mas do que ele revela de importante e relevante segundo os padrões do homem médio reclamado pela ordem jurídica, não pode colher porquanto recorre exactamente aos conceitos indeterminados e cláusulas gerais de valor que, declaradamente, a lei penal pretendeu abandonar com a reforma de 1995.
A lei impõe que se presuma que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º nº 3 do Código Civil).
Ambas as interpretações discutidas se mostram inaceitáveis exactamente por se fundarem no pressuposto de que o legislador não usou de rigor conceptual e que o sistema introduzido não é harmónico (considerável valor = valor elevado; introdução de um conceito indeterminado num sistema que abandona esses conceitos).
Sustentamos, pois, que o conceito de "valor considerável" do artigo 153°, n°1 do Código Penal se há-de definir, na harmonia do sistema, como um conceito quantificado e objectivamente determinável, tendo por referencial as alíneas do art. 202° do Código Penal, mas diferente de qualquer desses conceitos.
Seguindo de perto a posição do Sr. Procurador-Geral Adjunto, o "valor considerável" é algo mais do que aquilo que é tido como padrão mínimo e que está para além de um determinado valor de referência ou de partida (tal como o "valor consideravelmente elevado" releva em associação e como acréscimo expressivo ao conceito de "valor elevado"). Na ausência de outro critério, deve assentar naquilo que foi pensado como valor mínimo atendível para efeitos penais e que se expressa no conceito de valor diminuto (valor este - artigo 202° al. c) - que deve ser assim considerado de referência e, como tal, genericamente acolhido como decisivo elemento interpretativo na precisão de conceitos afins, como o ora em questão). Concluindo, o conceito de "considerável valor" abrange todos os valores que excedam o "valor diminuto".
O sentido que a assim se dá ao vocábulo "considerável" tem correspondência com o seu significado comum, "do que excede as proporções habituais ou normais" ("Dicionário de Morais", vol. 3, pg. 428), é distinto do significado da palavra "elevado" (alto, ob. Cit. vol 4, pg 236) e tem correspondência com o significado comum de ambas as expressões.
A solução é, além do mais, equilibrada do ponto de vista da realidade social, ainda permitindo a censura de condutas como a indiciariamente ocorrida nos autos, com manifesta relevância jurídico-penal se considerarmos (como Faria Costa, "Direito Penal Especial -Contributo a uma Sistematização dos Problemas "Especiais" da Parte Especial", pg.s 56 a 59) "que a actuação do legislador no âmbito da definição da moldura penal abstracta não pode ser imotivada, antes tem de atender a critérios materiais, desde logo, ao critério da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e a pena".
Por outro lado, compreende-se que o conceito de "considerável valor" não seja definido numa das al.s do art. 202º do Código Penal, já que o 153º (única norma que utiliza essa terminologia) não prevê um crime contra o património.
10. Como se afirmou supra, uma das poucas normas em que também se refere um conceito de valor diferente dos contidos no art. 202º al.s a), b) e c) do Código Penal é o art. 376º que usa a expressão "valor apreciável" a propósito do crime de peculato de uso.
Neste caso trata-se de uma expressão que já vem da versão originária do Código Penal de 1982 (art. 425º) e será apenas o diferente momento de elaboração das normas que explica o uso de vocábulos diferentes com o mesmo sentido.
De facto, não se descortina qualquer critério jurídico ou linguístico pertinente que permita distinguir de forma evidente o "considerável valor" do "valor apreciável", sendo certo que o dicionário supra citado (vol. 1, pg. 1032) refere considerável e apreciável como sinónimos.
Curiosamente, o "Comentário Conimbricense" (T III, pg.s 708 e 709), no que respeita à concretização do valor apreciável, afirma que "estará algo abaixo do valor elevado, mas bastante além do valor diminuto" na esteira de Simas Santos e Leal Henriques ("Código Penal Anotado", 1996, 2º vol., pg. 1200). Sustenta, portanto, posição marcadamente distinta da explanada a propósito do "considerável valor"...
Ora, 1.494,35 EUR é um valor abaixo do valor elevado, mas bastante além do valor diminuto.
Por isso, mesmo que se acolhesse esta tese, aplicando-a ao "considerável valor" e ponderando o valor indiciário (1.494,35 EUR) dos prejuízos que poderiam resultar da concretização da ameaça a que os autos se referem, ter-se-ia de concluir pela verificação indiciária de uma ameaça com a prática de crime contra bens patrimoniais de considerável valor juridico-penalmente relevante.
11. Face ao supra exposto, conclui-se:
- O valor de referência para efeito de qualificação do crime de dano é o valor do prejuízo causado no bem visado.
- A expressão "considerável valor", utilizada no art. 153°, nº 1 do Código Penal (crime de ameaça) deve ser interpretado como sendo um conceito objectivável por referência às alíneas a), b) e c) do artigo 202° do Código Penal e que apenas exclui o "valor diminuto" definido na alínea a).(fim de transcrição).

Ora, com o devido respeito, estamos em total desacordo com esta posição. A nosso ver, salvo melhor opinião, a expressão "considerável valor", utilizada no art. 153.°, n.º 1, do Código Penal (crime de ameaça) não pode ser interpretada como sendo todo aquele valor que ultrapasse o “diminuto” tal como este é definido na alínea c) do artigo 202.° do Código Penal, ou seja todo aquele valor patrimonial que seja superior a 102,00 € (cento e dois euros) [uma unidade de conta, avaliada no momento da prática do facto (cfr. art. 202.º, alínea c), a contrario)].

Não foi essa manifestamente a intenção do legislador ao incluir no art. 153.°, n.º 1, do CP, a ameaça a bens patrimoniais a par dos relevantes bens jurídicos – e só também destes - vida, integridade física, liberdade pessoal e liberdade de autodeterminação sexual.
Os bens patrimoniais ameaçados, in casu de dano, terão de ser de considerável valor para beneficiarem de proteção penal a esse título, sendo quanto a este tribunal ad quem por demais evidente que se excederem apenas cento e dois euros não podem ser merecedores de tal tutela criminal.
 No art. 202.° do C.P., o legislador optou por definir os conceitos legais de "valor elevado", "valor consideravelmente elevado" e "valor diminuto". No entanto, no art. 153.° n.° 1, do CP, o legislador utilizou apenas o conceito indeterminado de "considerável valor", cabendo ao aplicador do direito integrá-lo casuisticamente.
 Não obstante o respeito devido à interpretação de que "considerável valor" é igual a "valor elevado" não pode igualmente com a mesma concordar-se, pois seria totalmente irrazoável que o legislador, para aludir a um valor superior a 50 unidades de conta, fosse utilizar outro conceito diverso da terminologia do seu próprio "dicionário".
Pelo contrário: das definições legais do art. 202.° se retira o inequívoco sentido de que a utilização de um conceito diferente (considerável valor) tem como clara intenção referir uma realidade patrimonial diferente das aí contempladas (valor diminuto, elevado ou consideravelmente elevado).
"Considerável valor" será, pois, quanto a nós, um valor a aferir caso-a-caso, mas que não se quedará nem pouco acima do diminuto nem tem que ser equiparado ao elevado, devendo situar-se entre um e outro, mas mais próximo deste último pela tal pretendida relevância penal.
Dito de outro modo: "Considerável valor" terá de ser um valor importante ou relevante para um homem médio.

Faz-se aqui um parêntesis para assinalar que, numa pesquisa por legislação diversa, já que o sistema legal deve ser entendido como um todo, apenas encontrámos, com interesse, referência concretizada a “valor considerável” (o que ora nos trás em apreço é, recorde-se, "considerável valor", não sendo porventura a ordem dos factores arbitrária) no Estatuto da Ordem dos Notários, aprovado pela Lei n.º 155/2015, de 15 de setembro, em cujo art. 71.º, n.º 3, alínea f), se considera ser aquele “que exceda o valor de metade da alçada dos tribunais da Relação”, ou seja o que exceda 15.000,00 € (quinze mil euros) [cfr. art. 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013)].
Porém, consideramos não ser de atender a este valor. Por duas ordens de razão.
Por um lado, porquanto tal norma do Estatuto da Ordem dos Notários (epigrafada de “Graduação”) se reporta aos critérios de determinação da medida das sanções a aplicar àqueles profissionais, aí se estabelecendo que, a par de se dever “atender aos antecedentes profissionais e disciplinares do arguido, ao grau de culpa, à gravidade e às consequências da infração e à situação económica do arguido” se tem também de levar em consideração “todas as demais circunstâncias agravantes ou atenuantes” contando-se entre aquelas “a produção de prejuízos de valor considerável”. Ou seja, terá de haver um efetivo e relevante prejuízo/dano com expressão pecuniária tal que justifique a agravação da sanção de quem (notário) “deve, no exercício das suas funções e fora dele, considerar-se um servidor da justiça e do direito, mostrando-se digno da honra e das responsabilidades inerentes” e “está obrigado a pugnar pela boa aplicação do direito, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento do exercício da profissão” tendo por missão/competência, entre outras, “redigir instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-os do seu valor e alcance” atuando “com lealdade e integridade para com os clientes, os outros notários, os órgãos da Ordem e quaisquer entidades públicas e privadas e exercer todas as demais competências que lhe sejam atribuídas por lei.” ou seja, de quem tem especiais e relevantes “deveres para com a comunidade (cfr. art.s 77.º e 78.º do Estatuto em questão).
Por outro lado, a entender-se "considerável valor” o que excedesse 15.000,00 € estar-se-ia a ir muito além – no triplo mais exatamente – aquilo que para efeitos penais estabeleceu o legislador para “valor elevado” e que é “aquele que exceder 50 unidades de conta” (=5.100,00€), o que não faria qualquer sentido.
Feito este parêntesis, prossigamos.

De qualquer dos modos, a acusação é omissa quanto ao valor patrimonial dos bens existentes no café “S…” em apreço nos autos, nem o mesmo nunca nos mesmos é referido, acrescendo não ser possível in casu chegar àquele valor por apelo às regras da experiência comum, pois os estabelecimentos do tipo café não seguem um padrão único. Dos históricos e elegantes “Majestic Café” no Porto e “Café Nicola” em Lisboa para dar apenas dois exemplos em que até será facto público e notório que os seus recheios e decoração s(er)ão de "considerável valor” até situações em que o estabelecimento designado de Café não terá mais do que uma meia dúzia de mesas e cadeiras de plástico, um velho frigorífico para refrescar umas cervejas e uma pequena máquina de tirar bicas ou cimbalinos, cuja soma atingirá um valor patrimonial pouco significativo (leia-se não considerável), tudo é possível, cabendo, como se disse, à acusação concretizá-lo, o que, repete-se, não foi feito nos presentes autos.
Perante tal desconhecimento, não olvidando que “o crime de ameaça é um crime de mera ação e de perigo, bastando para a sua existência que a ameaça seja adequada a provocar medo ou a prejudicar a liberdade de alguém, não sendo necessário a efetividade de resultado”[4] e apesar do arguido, como provado, ter dito que voltaria ali e partiria “o café todo” (expressão que anunciava mal futuro, dependente da vontade do arguido[5] e revestindo potencialidade intimidatória necessária para integrar o crime de ameaça, como a decisão recorrida não deixou, e bem, de reconhecer), nunca o tipo do crime de ameaça, previsto e punido. pelo art. 153.º, n.º 1 do Cód. Penal, se poderá mostrar preenchido pela conduta do arguido, pelo que bem andou a decisão recorrida ao reconhecê-lo e, nessa conformidade, ao absolvê-lo da sua imputada prática.

Finalmente, apreciemos do pedido de indemnização civil.
A este propósito expendeu-se na decisão revidenda:
“No âmbito dos presentes autos, foi deduzido pedido de indemnização cível, pelo demandante MM, em decorrência da factualidade imputada ao arguido nas peças acusatórias, tendo este peticionado a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, decorrentes do receio e temor de que padeceu em resultado da ameaça que lhe foi dirigida, e no pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, em resultado do desgosto, tristeza, humilhação e perturbação de que padeceu, em resultado das injúrias que lhe foram verbalizadas.
Como se constata pela leitura dos factos atrás dados como assentes, não foi feita prova de o arguido ter incorrido na prática do crime de ameaça que lhe vem imputado na peça acusatória, pelo que, neste particular, não há qualquer indemnização a arbitrar ao demandante.
E, como se constata pela leitura dos factos atrás dados como assentes, não foi feita prova de que, em resultado das expressões injuriosas que lhe foram endereçadas, o demandante se tivesse sentido envergonhado, vexado ou ofendido na sua honra e consideração ou que tivesse sofrido qualquer outro dano de natureza não patrimonial.
Assim sendo, não se mostrando preenchidos os requisitos previstos no art. 496.º do Cód. Civil, o pedido cível formulado terá de improceder." (fim de transcrição).

Como se viu, resulta dos autos e disso também dá conta a decisão recorrida, foi deduzido pedido de indemnização cível, pelo demandante MM, em decorrência da factualidade imputada ao arguido nas peças acusatórias, tendo este peticionado a condenação do arguido, entre outras quantias, ao pagamento de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, decorrentes do receio e temor de que padeceu em resultado da ameaça que lhe foi dirigida, tendo sido dado como provado que:
“14. Assim, no dia 19 de Março de 2016, pelas 11H00, o arguido dirigiu-se ao café “S…”, interpelou o ofendido MM e proferiu a seguinte expressão: “Se eu souber que foste tu que os furaste os pneus, venho aqui e parto o café todo”.
(…)
16. O arguido, ao dirigir-se a MM e dizer-lhe que lhe rebentava o café todo se voltassem a furar-lhe os pneus, fê-lo de forma adequada a provocar medo e inquietação no visado.
17. O arguido actuou com o propósito concretizado de dirigir ao ofendido palavras e comportamentos em que prometia atentar contra o património deste bem como da sua família, bem sabendo que as palavras proferidas eram susceptíveis de perturbar a liberdade de determinação do ofendido.
18. O arguido agiu, assim, de modo deliberado, voluntário, livre e consciente, bem sabendo que os seus actos, a que é feita referência em 10., eram proibidos e punidos por lei e, não obstante ter capacidade de determinação em sentido diverso, não se inibiu de os realizar.
19. Em resultado dos factos a que é feita menção em 14., o demandante MM sentiu-se muito inquieto e receoso.
20. A partir daquela data a sua atenção redobrou-se face à possibilidade do demandado, que reside perto do café, regressar ao estabelecimento, que é propriedade da sua filha, e onde o demandante a costuma ajudar durante o período nocturno.
21. Em resultado da ansiedade que a expressão proferida pelo demandado causou ao demandante, aquele, ocasionalmente, durante a madrugada, levantava-se da sua cama e deslocava-se ao café “S…”, para verificar que o estabelecimento não sofreu qualquer dano.
22. A expressão proferida pelo demandado, a que é feita referência em 14., foi escutada pelos clientes do café.
23. Que pretendem estar no café a conviver sossegadamente e não num estabelecimento com potenciais focos de conflito e perturbadores.” (fim de transcrição).

Vejamos, então.
No que respeita ao montante da indemnização, importar reter que, de acordo com o disposto no art. 129.º do CP, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
O art. 483.º do Código Civil (doravante CC), preceitua que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Na fixação da indemnização deverá observar-se o disposto nos arts. 562.º, 563.º, 564.º e 566.º, todos do CC.
Os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, deverão ser atendidos na fixação da indemnização – art. 496.º do CC.
Como tem sido defendido pela jurisprudência e doutrina dominantes a indemnização por tais danos não visa repor a situação anterior à lesão, mas compensar de alguma forma o dano sofrido.
O critério que preside na fixação de tais danos é o da equidade – art. 496.º, n.º 3, do CC.
Não será de olvidar, como dissemos supra, que, encontrando-nos perante uma relação no âmbito da responsabilidade extracontratual ou aquiliana[6], constante do art. 483º e ss. do Código Civil vários pressupostos terão de ser levados em conta[7]:
                   - a violação de um direito ou interesse alheio;
                   - ilicitude;
                   - veículo de imputação do facto ao agente;
                   - dano;
                   - nexo de causalidade entre facto e dano.

Também o Prof. Almeida Costa[8] avança que:
“Decorre do art. 483º que são elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual:
                   - o facto;
                   - a ilicitude;
                   - a imputação do facto ao lesante;
                   - o dano;
                   - nexo de causalidade entre facto e dano”.

Ainda o Prof. Mota Pinto[9] considera que:
“Além da existência de um dano e de uma ligação causal entre o factor gerador da responsabilidade e o prejuízo devem verificar-se outros pressupostos para o surgimento da responsabilidade civil. Necessário se torna, em princípio, que o facto seja ilícito e culposo”.

Da análise de toda a doutrina supra referida, podemos constatar que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual são:
a) A ocorrência de um facto voluntário, ou seja, de uma acção humana controlável e querida pelo seu autor;
b) A ilicitude de tal facto, que se reconduz à reprovação da conduta do agente no plano geral e abstracto da lei, facto esse violador de um interesse ou direito de outrem e violador da lei que protege esse direito;
c) A culpa, isto é, o nexo de imputação do facto ao agente em termos de, sendo ele imputável, poder e dever ter agido, no caso concreto, de modo diferente e não reprovável;
d) O dano, ou seja, a lesão de um interesse de outrem, tutelado juridicamente;
e) O nexo de causalidade entre o facto e o dano em termos de aquele facto, que actuou como condição do dano, não poder deixar de ser considerado, em concreto, como causa adequada do mesmo dano.

Ora, no caso concreto, fácil se torna constatar que a apurada conduta do arguido PP não integra todos estes cumulativos pressupostos, logo e antes de mais porquanto tendo sido absolvido da prática do crime de ameaça não se verifica a necessária ilicitude, não tendo, portanto, PP o dever de indemnizar o demandante MM nos termos dos artigos 129.º do CP e 483º do CC.
É certo que, como provado, tendo o demandado PP, livre, voluntariamente e sem qualquer causa de justificação, interpelado MM no dia 19 de Março de 2016, pelas 11 horas, no interior do café “S…”, e proferido a seguinte expressão: “Se eu souber que foste tu que os furaste os pneus, venho aqui e parto o café todo”, que o intimidou, originando-lhe perturbação psicológica (“sentiu-se muito inquieto e receoso”, passou a redobrar de cuidados nas suas deslocações ao café e “em resultado da ansiedade que a expressão proferida pelo demandado causou ao demandante, aquele, ocasionalmente, durante a madrugada, levantava-se da sua cama e deslocava-se ao café “S…”, para verificar que o estabelecimento não sofreu qualquer dano”), a situação foi violadora de direitos de personalidade, parecendo injusto o não ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelo assistente.
Contudo, importa reter que não estamos no âmbito de uma ação cível deduzida em separado mas no de um pedido de indemnização civil decorrente de crime – o de ameaça, que se não provou ter ocorrido – e formulado no respeito ao princípio de adesão (cfr. artigos 71.º e 72.º do CPP).
Pelo exposto, não nos merece censura a decisão recorrida quando a este propósito afirmou “não foi feita prova de o arguido ter incorrido na prática do crime de ameaça que lhe vem imputado na peça acusatória, pelo que, neste particular, não há qualquer indemnização a arbitrar ao demandante. (…). Assim sendo, não se mostrando preenchidos os requisitos previstos no art. 496.º do Cód. Civil, o pedido cível formulado terá de improceder”
Destarte, igualmente improcede nestoutro segmento o recurso do assistente-demandante MM.


III – Decisão

Tudo visto e ponderado, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em negar provimento quer ao recurso interposto pelo arguido PP quer ao recurso interposto pelo assistente MM, em conformidade com o que decidem confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes arguido PP e assistente MM, fixando-se a taxa de justiça, a pagar por cada um deles, no mínimo.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por trinta e seis páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)
Lisboa, 11 de abril de 2019


(Calheiros da Gama)

(Antero Luís)

[1] Cf. Ac. do STJ de 22-05-1996, Proc. n.º 306/96, in www.dgsi.pt.
[2] Cf. o comentário do Senhor Conselheiro Pereira Madeira no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 1358-1359. E, no mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, 2000, págs. 340-341.
[3] Cf. Acs. do STJ de 06-10-1999 e de 13-10-1999, in Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2.ª Ed., pág. 1058.
[4] In Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8 de abril de 2013, proferido no processo n.º 944.12.7PBBRG.G1 e consultável na JusNet.
[5] Cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 343.
[6] Assim apelidada, entre outros, pelo Prof. Menezes Cordeiro in Lições policopiadas da F.D.L., 1998.
[7] Vide Prof. Antunes Varela in Obrigações, pg. 356.
[8] In Obrigações, 4ª edição, pg. 364. Já Almeida Costa in CJ, 1985, 2ª, pg. 19, tinha feito transparecer que o dever de indemnizar, tanto no campo da responsabilidade contratual como no da extracontratual, só existe quando cumulativamente, se verifiquem os seguintes requisitos: a) a ilicitude do facto danoso; b) a culpa, sob a forma de dolo ou negligência do autor do facto; c) um nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos pelo lesado.
[9] In Teoria Geral, 3ª edição, pág. 115.