Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
120/17.2T9PTS.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: NULIDADE
GRAVAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I-Não tendo sido invocada pelo recorrente a deficiente gravação da prova, nomeadamente da ofendida, mas verificando-se a mesma, ainda que a lei não comine expressamente esta nulidade como insanável, nem por isso a mesma pode deixar de ser de conhecimento oficioso, porquanto está em causa o exercício da plena jurisdição por este tribunal de recurso, o que, manifestamente, deve ser equiparado à falta do número de juízes que devem constituir o tribunal ou à violação das regras legais relativas a respectiva composição;

II- Aqui não está em causa qualquer arguição da nulidade por parte dos sujeitos processuais, mas, antes, a impossibilidade de o tribunal de recurso cumprir a sua função, isto é, apreciar a questão que lhe foi colocada sobre a matéria de facto, tal como resulta dos artigos 412°, 428° e 431°, todos do Código de Processo Penal;

III- Ora estando em causa o exercício das competências jurisdicionais/funcionais do próprio Tribunal, não pode o mesmo ficar limitado no exercício de tais competências constitucionais e legais, nem pode, por outro lado, o sujeito processual ser prejudicado por um erro que apenas ao Tribunal respeita. Esta mesma solução está consagrada expressamente no artigo 157º, nº 6 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo criminal por força já referido artigo 4º, ao estatuir que - "Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes";
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 92 Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Na Comarca da Madeira, Juízo Local de Ponta do Sol, por sentença de 27 de Junho de 2018, constante de fls. 74 a 80, foi o arguido,
AA, casado, agricultor, filho de BB e de CC, natural da freguesia do Monte, concelho do Funchal, onde nasceu em ………… 1964, e residente na …………….Concelho da Ponta do Sol,
Condenado, nos seguintes termos:
a) Condenar o arguido, AA, pela prática, em autoria material, de um crime de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154º, nº 1 e 155º, nº 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.
b) Suspender a execução de tal pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses.
***
Não se conformando, o arguido AA interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 86 a 89, com as seguintes conclusões: (transcrição)
1. O recorrente impugna a decisão proferida pelo tribunal a quo por não corresponder aos factos declarados em sede de julgamentos os constantes na decisão.
2. A ofendida durante a sua inquirição apenas referiu que o arguido terá dito na data dos factos: ""para fora...para fora". Vide sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, consignando-se que o seu início ocorreu na 3.° posição desde o n.° 00:00:01 e o seu termo pelas 00:12:23.
3. Nunca tendo dito que o arguido disse-lhe "olha que vais levar", conforme resulta da prova provada da decisão.
4. Pelo que existe erro na apreciação da prova.
5. Não estando conforme com a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
6. A douta sentença recorrida violou, assim, entre outros normativos, o disposto nos artigos 30°, n°1, 154°, n°1, 155°, n°1, alínea a), todos do Código Penal e 127°, do Código de Processo Penal.
7. Uma vez que a expressão verdadeiramente proferida pelo arguido a ofendida não preenche o tipo do crime de coação, previsto no art. 154° e 155.° do CP.
8. Nestes termos, deve o recurso interposto ser julgado procedente por provado e, consequentemente, a douta sentença recorrida ser substituída por outra que absolva o arguido do crime de ameaça agravada por que foi condenado.
TERMOS EM QUE E NOS MAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, O RECORRENTE SER ABSOLVIDO DO CRIME DE COAÇÃO AGRAVADA EM QUE FOI CONDENADO.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSARIA JUSTIÇA. (fim de transcrição)
***
A Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso nos termos constantes da motivação de fls. 100 a 112 dos autos, cujas conclusões aqui se dão por reproduzidas, manifestando-se pela improcedência.
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Neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta a fls. 131 emitiu o seu douto parecer concluindo pela anulação da decisão com repetição do depoimento da ofendida MM por o mesmo ser inaudível o acarreta a nulidade da decisão, nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal.
Cumprido o artigo 417º nº 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.
***
Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do
recurso.
Colhidos os vistos realizou-se a conferência.
Cumpre decidir.

II     Fundamentação
1. É pacífica a jurisprudência do STJ1 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.2
Da leitura dessas conclusões o recorrente coloca a este Tribunal, o erro de julgamento do ponto 9 dos factos provados na sentença, no que respeita à expressão "olha que vais levar" e ao gesto com a foice com base nas suas próprias declarações e nas declarações da ofendida e ainda o erro notório na apreciação da prova.
1Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº 06P2267.
2Acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
2. Decidindo
Para uma melhor do que está em causa e compreensão da questão colocada, vejamos quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e qual a fundamentação efectuada sobre essa factualidade assente.
2.1. O Tribunal a quo deu como provados, os seguintes factos: (transcrição)
1. O arguido AA e a ofendida MM, nascida no dia ………. 1946, são vizinhos, uma vez que ambos possuem terrenos no Sítio da Fonte da Ana, na freguesia e concelho da Ponta do Sol, sendo que o terreno pertencente ao arguido está onerado com uma servidão de água de rega a favor do terreno da ofendida.
2. De acordo com tal servidão, a ofendida poderá passar no terreno pertencente ao arguido para conduzir a água de rega, no dia de rega ou sempre que quiser regar.
3. Por causa dessa relação de vizinhança, o arguido sabia que a ofendida gozava de idade avançada e que, por isso, era pessoa particularmente frágil e menos capaz de se defender e de oferecer resistência a ataques físicos ou verbais ou a qualquer forma de intimidação.
4. No dia 31 de Julho de 2017, pelas 13.00 horas, a ofendida encontrava-se a regar o seu terreno, situado no local acima identificado.
5. Enquanto regava, a ofendida apercebeu-se que a água deixara de correr na levada aí existente, tendo aquela pensado que a mesma estivesse obstruída.
6. Nesse momento, a ofendida subiu a levada de água de rega para a desobstruir, tendo entrado num terreno pertencente ao arguido, que aí se encontrava.
7. Acto contínuo, o arguido dirigiu-se à ofendida, munido de uma foice, e disse-lhe em voz alta e com uma entoação agressiva, "vai para fora", "vai para fora", "hoje não é dia de regar aqui", "o dia de rega aqui é na quarta e no domingo".
F3 De seguida, o arguido aproximou-se ainda mais da ofendida, erguendo a mencionada foice.
9. Quando já estava junto da ofendida, o arguido disse-lhe, num tom sério e agressivo, "olha que vais levar", ao mesmo tempo que fazia um gesto com a foice de que se munira através do qual lhe deu a entender que iria desferir um golpe na vítima com tal objecto, caso aquela não abandonasse o local.
10. O comportamento do arguido, acima descrito, causou inquietação e receio à mesma de que o mesmo concretizasse o anúncio que efectuara, fazendo-a temer pela sua vida e integridade física e abalando as suas liberdades de decisão e de acção, bem como o seu sentimento de segurança.
11. Por causa daquele temor e abalo, a ofendida saiu imediatamente do terreno pertencente ao arguido.
12. O arguido decidiu actuar da forma acima descrita bem sabendo que, ao fazê-lo, estava a anunciar à ofendida que a mataria ou, pelo menos, a feriria de modo grave, e que tal comportamento era idóneo a causar-lhe o temor e o abalo descritos, desse modo constrangendo-a e determinando-a, contra a vontade dela, a sair do terreno de sua pertença, resultados que quis, com os quais se conformou e que alcançou.
13. O arguido decidiu actuar do modo descrito bem sabendo que anunciava à ofendida que, se ela não fizesse o que ele pretendia, cometeria um crime de homicídio ou de ofensa à integridade física qualificada, ciente de que tais crimes merecem forte reprovação ético-social.
14. O arguido decidiu actuar da forma descrita ciente de que agia contra uma pessoa de idade avançada, que conhecia por ser sua vizinha, e que por isso era particularmente frágil e menos capaz de se defender ou a oferecer resistência a ataque físico ou verbal ou a qualquer forma de intimidação.
15. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida, e, ainda, assim, não se coibiu de a adoptar.
16. O arguido não tem antecedentes criminais. (fim de transcrição)
2.2. Em sede de motivação da decisão da matéria de facto o tribunal considerou, o seguinte: (transcrição)
A convicção do tribunal, resultou de uma análise crítica e global da prova produzida, considerando-se as declarações do arguido, os depoimentos das testemunhas e os documentos juntos aos autos.
O arguido confirmou que, no dia e hora constantes da acusação, quando estava na sua fazenda, a ofendida apareceu, passando no meio da sua fazenda, o que não estava certo, uma vez que ela deve passar em caminho ao pé da levada, que até cimentou e melhorou, com a edificação de umas passadas. Como não era dia de regar, interpelou-a e disse-lhe que não podia estar ali ou por ali passar, por estar convencido que ela só poderia exercer o direito de passagem nos dias de rega. Porém, não a ameaçou. Depôs, com aparente sinceridade, sobre as suas condições pessoais e económicas.
A testemunha MM, disse ser vizinha do arguido e estar de relações cortadas com ele. Narrou os factos tal como constavam da acusação fazendo-o de modo espontâneo e convicto, por forma a merecer a credibilidade do tribunal.
As demais testemunhas de acusação, JJ e DD, respectivamente neto e filha da MM, afirmaram não ter estado presentes aquando dos factos, dizendo que estes lhes foram relatados pela avó e mãe (tal como constam da acusação) que tinha ficado assustada ("a tremer'; "muito assustada", "vinha a chorar", segundo o neto, que a viu imediatamente a seguir ao episódio, quando ela chegou a casa).
As testemunhas de defesa, PP (mulher do arguido), II (sua vizinha) e RR (sua cunhada), abonaram o carácter do arguido.
A convicção do tribunal fundou-se, ainda, na análise da transacção efectuada entre arguido e mulher e a Maria Lídia Pontes de Abreu, no âmbito da acção de processo comum n° 313/15.7T8PTS, de fls 41-2, bem como do certificado de registo criminal daquele. (fim de transcrição)
2.3 Vejamos se assiste razão ao recorrente.
O recorrente suscita no seu recurso, ainda que não mencione exactamente qual é o número dos factos provados, o erro de julgamento com referência à expressão, "olha que vais levar", e ao gesto com a foice, matéria que, na sua opinião, não resulta provada, e, ao mesmo tempo, o erro notório na apreciação da prova.
O recorrente para impugnar a matéria de facto em sede de erro de julgamento, tem de especificar os concretos pontos de facto que considera deficientemente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do artigo 412, n2s 1 e 3, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal e, em função da gravação da audiência, as especificações no caso da alíneas b) e c) do preceito, fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nos termos do nº4 do mesmo preceito.
No caso em apreço o recorrente limita o erro de julgamento ao depoimento da ofendida o qual identifica por referência ao respectivo registo áudio, transcrevendo apenas as expressões "para fora...para fora" e alegando que a mesma não proferiu a expressão "olha que vais levar".
Ainda que esta forma de impugnação não cumpra totalmente o ónus de impugnação especificada exigido pelo preceito legal, tendo em conta o princípio do máximo aproveitamento, aflorado no artigo 193º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal e também aflorado em matéria de nulidades no artigo 122º, nº 3 do mesmo código, sempre se considera cumprido o ónus, e, por isso, se conhece do alegado erro de julgamento.
Neste sentido, procedemos à audição do registo áudio referente ao depoimento da ofendida MM (Registo nº 20180613150117_1613837_2871398) o qual, como bem refere a Digna Procuradora Geral Adjunta no seu parecer, é quase totalmente imperceptível, não sendo possível aquilatar se a testemunha disse que o arguido proferiu ou não a expressão que consta do ponto 9 dos factos provados.
Perante esta dificuldade na audição do registo áudio solicitámos à informática deste Tribunal para tentar melhorar a gravação, retirada do Citius, tarefa que se revelou infrutífera.
Estamos assim em presença de uma deficiência parcial da gravação a qual se traduz, em termos práticos, numa ausência de documentação nessa parte, o que acarreta nulidade parcial do acto (artigo 363º do Código de Processo Penal).
Na interpretação do referido preceito legal, na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 5/2002, de 27 de Junho de 2002, fixou jurisprudência, nos seguintes termos: "A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123º, do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer."3
Em 2014, já com a actual redacção do artigo 363º do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça veio a fixar nova jurisprudência obrigatória, através do acórdão n° n.° 13/2014, de 3 de Julho de 2014, nos seguintes termos: "A nulidade prevista no artigo .363.° do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.° instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.° do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada."4
Como se pode ver deste último acórdão, o qual não pode deixar de ser entendido como revogando a jurisprudência do anterior, o Supremo Tribunal de Justiça considera que estamos em presença de uma nulidade sanável, a qual deve ser arguida no prazo de 10 dias a contar da sessão de audiência em que a mesma ocorreu, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, sob pena de se considerar sanada.
Em ambos os acórdãos de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o que estava em causa era a arguição da nulidade por um dos sujeitos processuais.
No caso dos autos o que está em causa não é qualquer arguição da nulidade por parte dos sujeitos processuais, mas, antes, a impossibilidade de o tribunal de recurso cumprir a sua função, isto é, apreciar a questão que lhe foi colocada sobre a matéria de facto, tal como resulta dos artigos 412°, 428° e 431°, todos do Código de Processo Penal.
Esta impossibilidade não pode estar limitada pela referida jurisprudência, porquanto a isso obstam, desde logo, os artigos 20° e 202° da Constituição da República Portuguesa e, de forma imperativa, o artigo 152° do Código de Processo Civil, aplicável ex vi, artigo 4° do Código de Processo Penal.
Sobre esta matéria e sem referência à referida jurisprudência obrigatória, este Tribunal da Relação, por acórdão de 19 de Junho de 2018, citado pela Digna Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, considerou que " (...) se trata de irregularidade susceptível de afectar o valor do acto e, por isso, reconduzível ao nº 2, do arte 123º, do CPP, visto que a sua verificação é decisivamente prejudicial para os direitos dos sujeitos processuais e tem influência no exame e decisão da causa.
- Com efeito, a deficiente gravação da prova constitui erro apenas imputável à actividade do tribunal, não sendo, por isso, defensável que as consequências de tal erro se possam transferir para os destinatários da decisão, mormente por inutilizar a apreciação do recurso quanto à matéria de facto."5
Tendemos a concordar com a solução encontrada no referido acórdão, no que respeita ao conhecimento oficioso da invalidade, mas já não no que respeita à consideração da mesma como uma mera irregularidade, atenta a classificação da referida invalidade como nulidade pelo artigo 363º, do Código de Processo Penal.
Na verdade, estando em causa o exercício das competências jurisdicionais/funcionais do próprio Tribunal, não pode o mesmo ficar limitado no exercício de tais competências constitucionais e legais, nem pode, por outro lado, o sujeito processual ser prejudicado por um erro que apenas ao Tribunal respeita. Esta mesma solução está consagrada expressamente no artigo 157º, nº 6 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo criminal por força já referido artigo 4º, ao estatuir que - "Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes".
Vinício Ribeiro em situações como a dos autos considera no comentário ao artigo 363º do Código de Processo Penal, na anterior redacção, a gravação deficiente " ineficaz para os fins a que se destina — nos quais hoje, é pacificamente incluído o de habilitar o tribunal de recurso a sindicar a matéria de facto provada — se deve ter tal gravação como inexistente. (...).6,7
Nas situações como a dos autos, quer a gravação seja considerada inexistente, por referência aos fins a que se destina, quer seja uma nulidade ou mesmo uma mera irregularidade do nº 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal, a mesma não pode deixar de ser considerada como afectando a validade do acto em que se verificou, tornando-o inválido e deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
O conhecimento oficioso da nulidade tem na base os mesmos pressupostos do nº2 do artigo 123º e da alínea a) do artigo 119º do Código de Processo Penal.
Ainda que a lei não comine expressamente esta nulidade como insanável, nem por isso a mesma pode deixar de ser de conhecimento oficioso, porquanto está em causa o exercício da plena jurisdição por este tribunal de recurso, o que, manifestamente, deve ser equiparado à falta do número de juízes que devem constituir o tribunal ou à violação das regras legais relativas a respectiva composição.
A nulidade parcial torna inválido o acto em que se verificou, o que no caso dos autos é apenas o depoimento da referida ofendida, devendo, por isso, ser repetido o referido depoimento inaudível, através da reabertura da audiência de discussão e julgamento, seguindo-se os demais termos até final com a prolação de nova sentença.
Poderia equacionar-se, numa leitura mais apressada, estarmos em presença de uma situação de reenvio para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal. Não é o caso. O reenvio para novo julgamento reporta-se às situações decorrentes dos vícios do artigo 410º, nº 2 e apenas tem lugar quando não for possível ao tribunal de recurso decidir a causa, mesmo com a renovação da prova (artigo 430º todos do Código de Processo Penal).
Em suma, estamos em presença de uma nulidade, de conhecimento oficioso, que determina a ineficácia/invalidade do acto em que foi cometida e, nessa medida, impõe a repetição da sessão de audiência para inquirição da ofendida MM, seguindo-se os demais termos até final (artigo 122º, nº 1 e 2º do Código de Processo Penal).
A repetição do acto deverá ser efectuada pelo mesmo Meritíssimo Juiz ou, não sendo possível, determina-se, desde já, a repetição do julgamento estendendo-se, neste caso, os efeitos da nulidade à totalidade da audiência de discussão e julgamento.
Assim, sem mais considerandos, por desnecessários, ainda que com diferentes fundamentos, procede o recurso, ficando, contudo, prejudicadas as questões de fundo constantes do mesmo.

III Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9º Secção Criminal da Relação de Lisboa em:
a) Declarar verificada a nulidade da deficiente gravação da audiência, no que respeita ao depoimento da ofendida Maria Lídia de Pontes de Abreu e determinar a ineficácia/invalidade do mesmo;
b) Determinar a repetição do acto inválido com reabertura da audiência de discussão e julgamento e repetição da inquirição da ofendida Maria Lídia de Pontes de Abreu, seguindo-se os demais termos até final;
c) A repetição do acto inválido deverá ser efectuada pelo mesmo Meritíssimo Juiz e, não sendo possível, determina-se desde já a repetição do julgamento na totalidade;
d) Ficam prejudicadas as questões suscitadas pelo recorrente no que respeita à decisão recorrida.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por doze páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro
signatário e integralmente revisto por si e pelo Exmo. Juiz Desembargador Adjunto — artigo 94.g, n.2 2 do
Código de Processo Penal).

Lisboa, 11 de Julho de 2019.

Antero Luís
João Abrunhosa

1Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº 06P2267.
2Acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
3 Publicado no Diário da República, 1@ Série, n2 163, de 17 de Julho de 2002
4 Publicado no Diário da República, 1.@ Série, n.° 183, de 23 de Setembro de 2014.
5 Processo n° 229/17.2PCLRS.L1-5, in www.dgsi.pt
6 Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 26 Edição, Coimbra Editora 2011, pág. 1029.
7Neste mesmo sentido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.10.2007, Proc.° n2 3986/07, in www.dgsi.pt