Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5998/16.4T8FNC.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
IDENTIDADE DE SUJEITOS
PARTILHA DA HERANÇA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa; a função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado; a função negativa é exercida através da excepção dilatória do caso julgado.
II. O caso julgado não tem por que valer apenas como excepção impeditiva da apreciação da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado); vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior.
III. O STJ tem seguido uma linha de limitação na dispensa da tríplice identidade, no sentido da não admissibilidade da invocação da autoridade do caso julgado no caso de inexistência de identidade de sujeitos.
IV. Se, em princípio, a autoridade do caso julgado depende da identidade de sujeitos – sob pena de violação do princípio do contraditório -, situações haverá em que tal identidade poderá ser dispensada, mormente quando na primeira acção se tenha apreciado concretamente determinada questão, aí fundamental e, na segunda acção essa questão não constitua o thema decidendum.
V. A sentença homologatória de partilhas, na expressão de Lopes Cardoso, in "Partilhas Judiciais", II, 3ª ed., pág 495, limita-se a "chancelar", "autenticar" uma dada partilha, mediante a qual se atribui aos respectivos interessados o direito de propriedade sobre certos e determinados bens; tal decisão só surtirá, contudo, eficácia de caso julgado no tocante às questões que, "ex professo", hajam sido discutidas e dirimidas no correspondente processo de inventário (ob. cit., 506/547).
VI. Não se aceita que, escudando-se por detrás de uma sentença homologatória de partilha, proferida num processo de inventário em que não se apreciou a questão expressamente, mas antes se aceitou como pacífica a relação do bem imóvel como integrante da herança a partilhar, os interessados intervenientes nesse inventário lograssem obter protecção da autoridade de caso julgado, contra terceiro, que não interveio naquele mesmo inventário e que, além disso, goza da presunção emergente do registo, excluindo, apenas por essa razão, essa mesma presunção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
      
I. Relatório
A e B
demandam, em acção declarativa com forma de processo comum,
C (previamente falecida), D (previamente falecido), F, G (previamente falecida), H, I (previamente falecido), J, L (previamente falecido), M, N, O, P e Q bem como, fruto das habilitações de herdeiros determinadas na pendência dos autos, R, S, T, U, V, X, Z, AA,
Peticionando
Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e declarar-se:
a) os autores como donos e legítimos proprietários de 1/3 (um terço) do prédio identificado no artigo 1º da presente petição inicial;
b) Os autores como titulares do direito ao quinhão hereditário originário da herança de BB, no mesmo prédio, em comum e sem determinação de parte ou direito com os restantes herdeiros;
E
c) Condenar-se os réus a reconhecerem os direitos dos autores mencionados nas alíneas anteriores;
E decretar-se:
d) O cancelamento das inscrições prediais constantes das Apresentações 5 de 25/7/1995 e 15 de 24/2/1997, existentes sobre o prédio identificado no artigo 1º da presente petição inicial por serem nulas;
e) O registo sobre o mesmo prédio das inscrições prediais em conformidade com o constante das alíneas a) e b), a favor dos autores;
f) A inscrição no competente Serviço de Finanças, a favor dos autores, dos direitos constantes nas alíneas a) e b).
Citados, os réus M, N e O contestaram em conjunto, propugnando pela improcedência da demanda e impugnando motivadamente parte da factualidade vertida na petição inicial bem como excepcionando a incompetência em razão da matéria, a ausência de legitimidade activa e passiva, a prescrição e o que denominaram como  excepção peremptória do direito de propriedade dos réus.
Mais deduziram pedido reconvencional, peticionando o reconhecimento como únicos e legítimos proprietários da plena propriedade do prédio em questão.
Os autores, por iniciativa própria, responderam às excepções deduzidas, propugnando pela respectiva improcedência.
A 6 de Março de 2019, procedeu-se à realização de audiência prévia, tendo as Exma. Juiz a quo proferido as seguintes decisões (citando-se apenas o segmento decisório):
Tudo ponderado, consideramos não se mostrar preenchido requisito substantivo essencial legalmente estabelecido para o efeito, razão pela qual não se admite a Reconvenção apresentada, absolvendo-se os Autores da instância reconvencional.
(…)
 Assim sendo, por uma questão de celeridade e de aproveitamento dos actos já praticados, admite-se aos autos o articulado de réplica apresentado, sendo o mesmo igualmente considerado como o exercício de contraditório previsto pelo artigo 3º, n.º4, do Código de Processo Civil.
(…)
Em face do exposto, ponderadas as normas legais supra referidas e cotejando-as com os pedidos deduzidos pelos Autores, concluímos que o presente Tribunal se revela o competente para deles conhecer.
(…)
Concluímos, assim, que as partes são legítimas e se mostram regularmente representadas.
(…)
Tudo ponderado, concluímos mostrar-se verificada excepção dilatória inominada – de violação de autoridade de caso julgado -, que impede a apreciação dos autos relativamente aos Réus e que revela ser de conhecimento oficioso (cfr. artigo 576º, n.º2 e 578º, ambos do Código Processo Civil.).
Em consequência, abstém-se este Tribunal de conhecer os pedidos deduzidos pelos Autores, absolvendo os Réus da instância, nos termos do disposto pelos artigos 576º, n.º2, 578º e 278º, n.º1, alínea e), todos do Código de Processo Civil.
Custas, nesta parte, pelos Autores, nos termos do preceituado pelo artigo 527º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
                                       *
Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1./Os aqui AA./Recorrentes não foram intervenientes ou interessados nos autos do processo de inventário nº151/1999 que correu no Tribunal Judicial do Funchal.
2./O processo de inventário não é um processo de partes – autores e réus – mas antes um processo de interessados. A excepção de caso julgado e por consequência a autoridade de caso julgado, vincula partes e não interessados.
3./A sentença homologatória da partilha, processo no qual os AA/Recorrentes não foram intervenientes ou interessados limitou-se a adjudicar prédios aos ali interessados nada mais decidindo, isto é limitou-se a “chancelar”, “autenticar” a partilha mediante a qual se atribuiu aos ali interessados o direito de propriedade sobre o prédio relacionado.
4./Como esta sentença só tem eficácia de caso julgado quanto às questões expressamente discutidas e dirimidas no processo de inventário não estamos perante uma decisão no inventário que tenha resolvido a mesma questão concreta que se discute nesta acção, de molde a que exista uma situação de incompatibilidade ou contradição prática. Por outro lado,
5./O referido processo de inventário foi tramitado segundo as normas do Código de Processo Civil em vigor à data. Ora, as regras processuais de inventário que foram aplicadas “in casu”, contém um regime especial de anulação da partilha perante a preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros (artigos 1388.º e 1389.º do Código de Processo Civil) criando um regime incidental célere e expedito, do qual resulta a não rigidez da sentença homologatória da partilha em termos de caso julgado material, em regra só abalável por via da revisão.
6./A fragilidade do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha foi reiterada posteriormente quer no Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 29/2009, -art.s 65º e 66º - quer depois no mais recente Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 -art.s 72º e 73º- onde se manteve aquele regime especial de anulação da partilha .
7./De onde se conclui que a sentença homologatória proferida no processo de inventário não tem a força de caso julgado e por consequência a autoridade de caso julgado que lhe é assacada pelo despacho saneador recorrido. Por outro lado,
8./A sentença homologatória da partilha, acolheu o acordo dos interessados, adjudicando-lhes os quinhões fixados em sede de conferência de interessados.
9./Esta sentença homologatória de partilha, no caso, mais não é que uma sentença homologatória de transacção uma vez que tem natureza mista ou complexa porquanto envolve um acto judicial e assenta, também, na vontade das partes/Interessados.
10./ Uma sentença homologatória de transacção, embora considerada como sentença de mérito, não conhece da substância da causa e a sua função é apenas a de fiscalizar a regularidade e validade do acto - cfr. artigo 290 nº 3 do CPC (art. 300.º, nº 3, do antigo CPC). Nessa medida, limita-se a apreciar e validade e regularidade do negócio celebrado pelas partes; confirmando os termos e efeitos do acordo, absolvendo ou condenando nos termos que resultam da transacção.
11./Assim, tratando-se ao fim e ao cabo a sentença homologatória de partilha no caso concreto de uma sentença homologatória de transacção a autoridade do caso julgado mostra-se expressamente afastada pelo artigo 291º nº 2 do CPC (art.301.º, nº 2, do antigo CPC), que preceitua que o trânsito em julgado da sentença que homologa a transacção não obsta a que se intente acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação da transacção.
12./Verifica-se assim que não obstante existir sentença com força de caso julgado quanto à idoneidade (validade e regularidade) de uma transacção para produzir os efeitos negociais e processuais que lhe são inerentes, a lei permite que essa questão seja reapreciada em nova acção onde possa ser proferida uma nova sentença que, contrariando a primeira, venha declarar no sentido da invalidade ou da falta de regularidade da transacção de forma a que a mesma não possa produzir os efeitos negociais que dela decorriam (onde também poderão ser declarados os efeitos decorrentes da nulidade ou anulabilidade da sentença).
13./ Em suma porque não ocorre distinção na respectiva natureza, há que considerar aplicável à sentença homologatória da partilha o regime da sentença homologatória da transacção, e logo, também por esta razão, aquela sentença não goza de autoridade de caso julgado, permitindo a lei que as questões nelas discutidas sejam reapreciadas em nova acção onde possa ser proferida uma nova sentença contrariando a primeira. Acresce ainda que,
14./O caso julgado (nas suas duas vertentes, positiva e negativa) apenas vincula as partes na acção, não podendo, também em regra, afectar terceiros. Esta regra constitui um reflexo do princípio do contraditório (art. 3º, n.º 1 do CPC), no sentido de que, quem não pôde defender os seus interesses num processo pendente, por nele não ser parte ou interveniente processual não pode ser afectado (beneficiado e, por maioria de razão, prejudicado) pela decisão que nele foi proferida.
15./No caso dos autos, a pugnar-se pela procedência da autoridade de caso julgado decorrente do sentenciado no processo de inventário acima referido, lograriam os aqui RR/Recorridos (sem contraditório dos Recorrentes), por via reflexa ou indirecta, impor aos AA/Recorrentes o seu pretenso direito de propriedade sobre o prédio, o que se afigura uma interpretação demasiado excessiva do caso julgado e dos seus reflexos externos.
16./A autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte no processo, do ponto de vista da sua qualidade jurídica como é definida pelo artigo 581.º, n.º 2 do CPC, e não a um terceiro à causa, sob pena de violação do princípio da proibição de indefesa, previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição e no artigo 3.º do Código de Processo Civil.
17./Os AA/Recorrentes relativamente ao processo de inventário são “terceiros juridicamente interessados” pois em relação a eles a sentença transitada em julgado causa prejuízo jurídico, inviabilizando a existência ou reduzido o conteúdo do seu direito.
18./Os AA/Recorrentes enquanto sujeitos duma relação jurídica independente e incompatível com a dos interessados no processo de inventário, no qual não foram partes, nunca podem ser atingidos pela sentença homologatória de partilha e, consequentemente, não lhes é oponível a respetiva autoridade caso julgado.
19./De onde se conclui que, não tendo os AA/Recorrentes sido partes ou interessados no processo de inventário, a sentença nele proferida não tem a autoridade de caso julgado relativamente às questões discutidas nos presentes autos.
20./O Despacho saneador recorrido violou por isso o disposto nos art.s 3º, 580º, 581º, 619º, 620º e 621º do CPC e 20º nº 4 da CRP.
21./Revogando-se o despacho saneador recorrido e proferindo-se Acórdão que acolha as conclusões precedentes, julgue a excepção inominada de autoridade de caso julgado improcedente por não provada e ordene o prosseguimento dos autos,
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A alegação dos recorrentes não mereceu qualquer resposta.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objecto e delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- Autoridade de caso julgado da sentença homologatória de partilhas.
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III. Os factos
Da 1ª instância receberam-se, como provados, os seguintes factos:
A. O prédio misto, sito …, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos …e na matriz predial rústica sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o número …, da freguesia do Monte (antes descrito sob o número …, do Livro n.º …), foi registado, pela Ap. 5 de 1995/07/25, por aquisição por sucessão legítima, sendo sujeito passivo CC, a favor de C, D, E, F, G, H, I e DD;
B. Pela Ap. 15 de 1997/02/24, foi averbada a transmissão de posição de DD a favor de A, casada com B;
C. EE e FF tiveram três filhos: GG, C e BB;
D. EE faleceu em 21 de Março de 1945, no estado de casado com FF;
E. FFfaleceu, no estado de viúva de EE, a 12 de Outubro de 1991;
F. BB faleceu a 10 de Outubro de 1970, no estado de solteiro e sem descendentes;
G. GG faleceu a 22 de Agosto de 1994, no estado de casado com DD, sem descendentes;
H. Por escritura pública celebrada em 16 de Dezembro de 1996, DD declarou vender a A (casada com B), que declarou comprar, o direito à meação e o quinhão hereditário que lhe ficou a pertencer na herança aberta por óbito de seu marido GG;
I. C, faleceu em 16 de Maio de 2006, no estado de viúva de CC, tendo deixado a suceder-lhe seus filhos, de nome: D, E, F, G, H, I;
(…)
O. Sob o número 151/1999 correram no Tribunal Judicial do Funchal, uns autos de inventário instaurados por morte de C e CC;
P. Nos autos de inventário referido em O. foi apresentada relação de bens, constante de uma única verba, descrita da seguinte forma: Prédio Misto, localizado à …, sendo a parte urbana composta por duas casas, uma térrea e outra de dois pavimentos, inscrito na matriz, a parte rústica sob o artigo … da secção “AB” e a parte urbana sob os artigos …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número …;
Q. Em conferência de interessados, ocorrida em 16 de Junho de 2011, foi deliberado adjudicar a verba referida em P. a todos os interessados, em comum e na proporção dos seus respectivos quinhões;
R. A 06 de Fevereiro de 2014 foi proferida sentença homologatória da partilha, adjudicando aos interessados os quinhões fixados em sede de conferência de interessados.
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IV. O Direito
A verificação da excepção de caso julgado pressupõe a repetição da causa, sendo que esta se verifica quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (arts. 580º e 581º, ambos do Cód. Proc. Civil).
Existe identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas; identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
A identidade jurídica das partes não tem a ver com a posição processual  que aquelas ocupem, mas sim com a que ocupam na relação substantiva.
O pedido é o efeito jurídico pretendido pelo autor, sendo que, nos termos legais estabelecidos no n.º 3 do art. 581º do citado Código «há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico». Contudo, para que se conclua pela identidade não é exigível uma rigorosa identidade formal nas duas acções, bastando uma coincidência entre o objectivo de uma e outra acção (Calvão da Silva em “Estudos de Direito Civil e Processo Civil, Almedina, 1996, pp. 234 apud CJ/STJ, Tomo I, 2001, pp.169).
Assim, podemos afirmar que existe identidade de pedidos quando nas duas acções ambos são qualitativamente iguais, ainda que quantitativamente diferentes (neste sentido ver Ac. STJ de 20.06.1984 em BMJ n.º 338, pp. 347).
A identidade exigida é uma identidade relativa, abrangendo “não só o efeito preciso obtido no primeiro processo como qualquer que nesse processo houvesse estado implicitamente mas necessariamente em causa” (Castro Mendes, Direito Processual Civil, pp. 350 apud José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pp. 322)”.
A causa de pedir é o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo, o facto ou conjunto de factos concretos articulados pelo autor e dos quais dimanarão o efeito ou efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, pretende ver juridicamente reconhecidos (art. 581º, nº4 do Código citado).
Ao autor não basta formular o pedido, devendo este ser fundamentado de facto e de direito, sendo que há identidade entre a causa de pedir quando o pedido procede do mesmo facto jurídico.
“Trata-se do facto jurídico concreto ou especifico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão; mas isso, que se destina, além do mais, a impedir que seja o demandado compelido a defender-se de toda e qualquer possível causa de pedir, só tendo de se defender da concretamente invocada pelo autor não obsta, ao que parece, a que, a causa jurídica invocada seja objecto de conversão, desde que, com isso, se não agrave ilegitimamente a situação do demandado” (Vaz Serra, RLJ, 109º, pp. 313).
A causa de pedir, são os factos a que se reconhecerá força jurídica suficiente para produzirem a consequência jurídica pretendida pelo autor: a todo o direito corresponde uma acção sendo que esta se sustenta com factos.
Importa sublinhar - a este respeito - que o direito processual civil português adopta a “teoria da consubstanciação” (por oposição à teoria da individualização) sendo que, aquela, exige sempre a indicação do título - facto jurídico - em que se baseia o direito do autor.
“O caso julgado forma-se directamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu, através da reconvenção). A ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado.” (Antunes Varela em Manual do Processo Civil, 2ª Ed. Revista e Actualizada, 1985, Coimbra Editora, pp. 712). 
O autor há-de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma, que constituem a causa de pedir que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, pp. 223).
Segundo Mariana França Gouveia, A causa de pedir na acção declarativa, a noção operativa de causa de pedir para efeitos de caso julgado é definida através do conjunto de factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto dos factos reconhecidos como provados na sentença transitada (pg. 487).
Assim, só haverá excepção de caso julgado quando na segunda acção não são alegados factos principais diferentes dos alegados na primeira. Se, na segunda acção, se alegarem factos supervenientes instrumentais, a sua diferença não implica dualidade de causa de pedir. Como refere Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 325, A sentença, julgando improcedente a acção, preclude incontestavelmente ao autor a possibilidade de, em novo processo, invocar outros factos instrumentais, ou outras razões, argumentos, de direito não produzidos nem considerados oficiosamente no processo anterior.
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Invoca-se, na sentença sob recurso, a figura da autoridade de caso julgado.
O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa; a função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado; a função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado.
A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a excepção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.
Como referem Manuel Andrade (v. Noções Elementares de Processo Civil, p. 320, 321), Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 384) e Miguel Teixeira de Sousa (v. O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 171 e sgts), o caso julgado não tem por que valer apenas como excepção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior.
Como ensina Manuel Andrade (obra citada, pg. 306), o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»)..
O caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, pois como estatui o artº 621º do Cód. Proc. Civil, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».
Trata-se de um corolário do conhecido princípio dos praxistas enunciado na fórmula latina «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat».
Como se refere no Ac. do STJ de 21/3/2013 (Álvaro Rodrigues), disponível em www.dgsi.pt, mesmo para quem entenda que relativamente à autoridade do caso julgado não é exigível a coexistência da tríplice identidade, como parece ser o caso da maioria jurisprudencial, será sempre em função do teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado e, consequentemente, a autoridade deste.
Ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.
A autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.
E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado corretamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça. (v. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 93.
Diz-se no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/05/2010 (Sousa Grandão), www.dgsi.pt), a análise do caso julgado pode ser perspetivada através de duas vertentes, que em nada se confundem: uma delas reporta-se à exceção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; a outra vertente reporta-se à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão”.
Segundo Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, páginas 60 e 61 “enquanto que a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a exceção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”.
A fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais encontra-se traçada no Ac. da Relação de Coimbra de 28/09/2010 (Jorge Arcanjo), disponível na citada base de dados:
A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido.
A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 581º, do CPC”.
Contudo, será de sublinhar que  o STJ tem seguido uma linha de limitação na dispensa da tríplice identidade, no sentido da não admissibilidade da invocação da autoridade do caso julgado no caso de inexistência de identidade de sujeitos - vide, neste sentido, os acórdãos de 18/06/2014 e de 11/10/12 (Abrantes Geraldes) bem como de 28/6/2018 (Acácio das Neves), ambos in www.dgsi.pt).
Considerou-se ali que a autoridade do caso julgado “não pode servir para desvirtuar a figura do caso julgado, Ou seja, o objetivo de evitar toda e qualquer contradição lógica entre duas sentenças judiciais, ainda que proferidas em processos diferentes, não pode justificar que, contra as mais elementares regras processuais, se façam repercutir numa ação que corre entre determinados sujeitos os efeitos decorrentes de uma sentença proferida noutro processo que correu entre outros sujeitos.”
E mais se considerou:
“Sem pretender esgotar os argumentos impeditivos de uma solução tão estranha como a acolhida no acórdão recorrido, basta anotar que, a ser aceite, tal representaria, além do mais, uma flagrante violação do princípio do contraditório que, tal como Castro Mendes ensinava em Direito Processual Civil, II vol., pág. 781, determina, além do mais, que “o caso julgado não pode prejudicar terceiros que não intervieram no processo”.
Numa tal regra pode encontrar-se espaço para algumas exceções. Porém, estas deverão ser sustentadas em regras de valor semelhante, como ocorre com os arts. 622º e 623º do NCPC sobre a eficácia externa do caso julgado em determinadas ações ou ainda com o art. 19º da Lei nº 83/95, de 31-8 (Acão popular), segundo o qual as sentenças proferidas em ações cíveis, “salvo quando julgadas improcedentes por insuficiência de provas, ou quando o julgador decidir por forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto, têm eficácia geral, não abrangendo, contudo, os titulares de direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se autoexcluírem da representação””.
Temos para nós que se deverá efectuar um equilíbrio:
Se, em princípio, a autoridade do caso julgado depende da identidade de sujeitos – sob pena de violação do princípio do contraditório -, situações haverá em que tal identidade poderá ser dispensada, mormente quando na primeira acção se tenha apreciado concretamente determinada questão, aí fundamental e, na segunda acção essa questão não constitua o thema decidendum.
Em analogia com o regime de apreciação das questões prejudiciais, previsto no art. 92º do Cód. Proc. Civil.
Por exemplo, a natureza de herdeiro de determinado de cujus e quantificação da sua quota, reconhecida em processo de inventário, não poderá ser discutida em acção subsequente, entre esse herdeiro reconhecido e terceiro não interveniente naquele inventário.
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Feita esta breve incursão pela noção de caso julgado, vejamos se a relação entre a sentença homologatória da partilha efectuada no autos de inventário e a presente lide, preenche os pressupostos da excepção ou mesmo se deverá ser respeita a autoridade de caso julgado.
E a resposta, de imediato, será que não preenche, desde logo no que tange à  identidade das partes.
Para tanto, revisitemos rapidamente os laços familiares fundamentais para o caso.
C. EE e FF tiveram três filhos: GG, C e BB;
D. EE faleceu em 21 de Março de 1945, no estado de casado com FF;
E.  FF faleceu, no estado de viúva de EE, a 12 de Outubro de 1991;
F. BB faleceu a 10 de Outubro de 1970, no estado de solteiro e sem descendentes;
G. GG faleceu a 22 de Agosto de 1994, no estado de casado com DD, sem descendentes;
E por aqui nos bastamos, pois chegámos ao cerne da questão.
Dos autos resulta claro que DD era cunhada de C e de CC, de nenhum ponto resultando que fosse sua herdeira.
Ora, o inventário que correu termos sob o nº 151/1999 destinava-se a proceder à partilha de bens constante da herança aberta por óbito dos referidos C e CC, sendo que a cunhada de ambos, DD nenhuma intervenção teve nessa partilha, como melhor resulta expresso da acta de conferência de interessados, realizada em 16/6/2011 e do despacho de forma à partilha, datado de 30/1/2012, juntos aos autos.
Os interessados nesse inventário foram apenas os filhos sobrevivos desses dois inventariados e os netos, filhos da descendência não sobreviva aos mesmos C e CC.
Sendo que a mesma DD tinha a seu favor, em conjunto com os herdeiros de CC, a inscrição da propriedade incidente sobre o prédio em questão, mediante ap. nº 5 de 1995/07/25.
O problema terá surgido com a partilha homologada naqueles autos de inventário, que aceitou como boa a relação do bem imóvel em causa nos autos, enquanto integrante na totalidade da herança aberta por óbito de C, desconsiderando o que já constava no registo predial: a aquisição do bem também por parte de DD.
DD que não foi chamada ao inventário – nem haveria razões para isso.
Daí, porventura, a ausência de registo daquela partilha homologada, na medida em que não se mostra cumprido o necessário trato sucessivo com a ap. nº 5 de 1995/07/25.
Não será esta a sede para desenvolver a questão, bastando agora sublinhar a ausência da DD dos termos do processo de inventário nº 151/1999.
Ora, os autores fundam a sua posição na outorga de escritura pública em 16/12/1996, mediante a qual a referida DD declarou vender à autora, mediante o preço de trezentos mil escudos, que já recebeu, o direito à meação e o quinhão hereditário que lhe ficou a pertencer na herança aberta por óbito de seu marido (…).
Escritura pública que foi levada ao registo mediante ap. nº 15 de 1997/02/24, na ficha do imóvel em questão e, também esta, desconsiderada na referida partilha em sede de inventário.
Do que se retira, com a clareza do relâmpago, que, desde logo, não se verifica o necessário pressuposto da excepção de caso julgado, no que à identidade dos sujeitos concerne.
No que concerne à autoridade do caso julgado, não se vê motivo para, no caso, desconsiderar a necessidade de identidade dos sujeitos.
A sentença homologatória da partilha não se pronunciou sobre o direito de propriedade relativo ao bem imóvel em causa, antes aceitou como bom o pressuposto de que tal bem integrava a herança aberta por óbito de C e CC e procedendo à respectiva partilha, de acordo com os quinhões hereditários de cada um dos herdeiros destes de cujus.
Sendo que esse pressuposto de integração total na herança apenas tem como fonte a circunstância de os interessados nesse inventário terem acordado nesse sentido, num processo esse em que, repete-se, não interveio a autora nem a sua antecessora na posição jurídica, a DD.
Se quisermos ir mais além, ainda se aceitaria como autoridade do caso julgado, emergente da sentença homologatória da partilha, a qualidade de herdeiro dos interessados, relativamente às heranças em causa e o respectivo quinhão hereditário.
Nunca a adjudicação concreta do bem a um ou mais interessados, no pressuposto – não apreciado nessa sentença – de que esse bem integra efectivamente as mesmas heranças.
A sentença homologatória de partilhas, na expressão de Lopes Cardoso, in "Partilhas Judiciais", II, 3ª ed., pág 495, limita-se a "chancelar", "autenticar" uma dada partilha, mediante a qual se atribui aos respectivos interessados o direito de propriedade sobre certos e determinados bens; tal decisão só surtirá, contudo, eficácia de caso julgado no tocante às questões que, "ex professo", hajam sido discutidas e dirimidas no correspondente processo de inventário (ob. cit., 506/547).
Esta questão, qual seja, o direito da DD relativamente ao bem imóvel em discussão, não foi analisada no processo de inventário ou, pelo menos, não resulta tal análise da alegação dos réus e da documentação junta, quando cabia a estes o respectivo ónus de alegação e prova (art. 342º, nº2 do Cód. Civil).
Não se aceita que, escudando-se por detrás de uma sentença homologatória de partilha, proferida num processo de inventário em que não se apreciou a questão expressamente, mas antes se aceitou como pacífica a relação do bem imóvel como integrante da herança a partilhar, os interessados intervenientes nesse inventário lograssem obter protecção da autoridade de caso julgado, contra terceiro, que não interveio naquele mesmo inventário e que, além disso, goza da presunção emergente do registo, excluindo, apenas por essa razão, a presunção da existência do direito deste terceiro.
Por fim, nenhum efeito registal se poderá invocar, pela simples razão de que a partilha homologada não foi levada ao registo predial, como supra se expôs.
Daí a procedência da apelação.
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V. Decisão                                 
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) julgar procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, em
b) revogar o despacho recorrido, decidindo-se, em sua substituição, como não verificada a violação de autoridade de caso julgado.
Custas pelos apelados.
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Lisboa, 11 de Julho de 2019
Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas