Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4372/09.3TTLSB-A.L1-4
Relator: DURO MATEUS CARDOSO
Descritores: EXECUÇÃO DE SENTENÇA
LIQUIDAÇÃO
DEDUÇÕES
NEGÓCIO POR CONTA PRÓPRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I -“Se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas”, estendendo-se as dificuldades de delimitação também no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
II- Ter “lucro” significa, correntemente, ter um provento económico em determinada actividade depois de deduzidos os custos e os encargos com essa mesma actividade, representando que houve um acrescento patrimonial.
III- No caso de trabalho independente explorando o trabalhador um estabelecimento por conta própria, tudo o que ele recebe da sua actividade só significará um acréscimo patrimonial se deduzidas as despesas de funcionamento ele tiver um resultado líquido positivo ou lucro.
IV- Só na medida desse lucro é que as deduções do art. 437º-2 do CT/2003 ou do art. 390º-2-a) do CT/2009 podem ter lugar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I- AAA, deduziu no Juízo do Trabalho de Lisboa o presente incidente de liquidação de sentença, CONTRA,
BBB, SA
 II- PEDIU que se liquide o valor global de € 52.573,30 (cinquenta e dois mil quinhentos e setenta e três euros e trinta cêntimos), a título de vencimentos não pagos durante o período compreendido entre a data do seu despedimento em Abril de 2009 e o do trânsito em julgado da decisão condenatória, em Setembro de 2013, ao qual capital se acrescentarão em sede de execução os juros de mora contados desde a data da citação da ré para a acção declarativa em Dezembro de 2009 e até integral pagamento, sendo os valores vencidos na data no montante de € 16.507,92 (dezasseis mil, quinhentos e sete euros e noventa e dois cêntimos).
III- ALEGOU, em síntese, que:
- No âmbito da acção principal as requeridas foram condenadas a pagar ao autor a título de retribuição variável uma quantia correspondente as retribuições devidas a título de comissão pelo negócio de exportação, quantia essa acrescida de juros à taxa legal actual de 4% ao ano até integral pagamento, tendo sido condenadas nesses termos em montante a liquidar em incidente de liquidação;
- À data da readmissão da requerente, em Outubro de 2013, foi-lhe entregue por parte da entidade patronal um documento discriminativo do que teria recebido caso tivesse estado ao serviço da entidade patronal entre Abril de 2009 e Setembro de 2013, data do trânsito da sentença;
- Em Janeiro de 2009 auferia € 490,00 de remuneração base, acrescida de subsídio de turno no valor de € 344,07, subsídio de transporte de € 28,10 e subsídio de alimentação de € 3,10 por cada dia útil de trabalho;
- Entre Janeiro de 2010 e Setembro de 2013, a remuneração mensal era de € 836,13 mensais;
- Não recebeu durante o período de despedimento qualquer subsídio de desemprego nem prestou trabalho para outra entidade patronal.
IV- A ré foi notificada e deduziu OPOSIÇÃO dizendo, em resumo, que:
- Face dos rendimentos auferidos pela autora em trabalho independente e quantias auferidas quer do Instituto da Segurança Social e montantes pagos pela requerida, que têm de ser deduzidos, nada é devido à autora.
V- Foi produzida prova documental e pericial e, a final, veio a ser proferida sentença em que se julgou nos seguintes termos:
“4- Decisão
1. Decido liquidar a sentença proferida no âmbito destes autos, transitada em julgado, nos seguintes termos:
a. Fixa-se o valor devido à autora em 45.693,70 (quarenta e cinco mil, seiscentos e noventa e três euros e setenta cêntimos), a título de retribuições intercalares, incluindo subsídios de férias e de Natal, devidas desde 25.10.2009 a 30.09.2013, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento, computados os vencidos em 23.12.2018 em € 16.554,89 (dezasseis mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e nove cêntimos)”.
Desta sentença, a ré recorreu (fols. 221 a 230 v.), apresentando as seguintes conclusões:
1. A Sentença deu como provado que “Entre Abril de 2009 e Setembro de 2013, a requerente não teve lucro na actividade da exploração do café.”, o que, no entanto, deverá julgado não escrito ou, no mínimo, não provado;
2. Desde logo, porque isso consubstancia uma proposição vaga, genérica, conclusiva e não concretizada;
3. Por outro lado, trata-se de matéria que é irrelevante, pois que, provada ou não provada a inexistência de “lucro”, o resultado do julgamento deveria ser sempre o mesmo;
4. Além disso, o Tribunal podia e devia ter considerado os Documentos n.os 2 a 11 do requerimento de 11 de abril de 2018, ref.ª 18604649 do processo eletrónico), que, em conjugação com as normas legais contabilísticas aplicáveis, infirmam o resultado do relatório pericial;
5. Entre o mais, o relatório pericial considerou duplicadamente os valores dos alegados custos da Requerente com aquisições de produtos;
6. No caso dos autos, resulta demonstrado que, no período a que respeita a presente liquidação, a Requerente auferiu rendimentos do trabalho independente, decorrentes da exploração de café, no montante global de € 87.969,98, e que declarou à Segurança Social os valores brutos da prestação de serviços de atividades hoteleiras, restauração e bebidas;
7. A Requerente não logrou fazer a contraprova da existência de nexo entre aqueles rendimentos e o facto de ter ficado dispensada de trabalhar em virtude do despedimento;
8. Porém, o Tribunal recorrido considera que a suposta inexistência de lucro equivale a uma inexistência de rendimentos a deduzir nos salários intercalares, para efeitos n.º 2 do artigo 437.º do Código do Trabalho de 2003;
9. E nem sequer descontou os rendimentos relevantes para determinação da taxa de IRS e das contribuições para a Segurança Social que foram pagas pela Requerente;
10. Ora, para os efeitos do referido n.º 2 do artigo 437.º do Código do Trabalho de 2003, a dedução dos rendimentos obtidos, em atividades iniciadas posteriormente ao despedimento, abarca os rendimentos ilíquidos, tal como constam das declarações de rendimentos;
11. Nada obstando a que sejam dedutíveis todos os rendimentos do trabalhador obtido depois do despedimento, mesmo os auferidos em trabalho não subordinado;
12. A norma legal em causa não se reporta ao lucro nem sequer ao rendimento tributável;
13. Assim, devem ser deduzidos, nas retribuições intercalares apuradas pelo Tribunal a quo, os rendimentos do trabalho independente obtidos pela Requerente, nos períodos relevantes para efeitos de liquidação de Sentença, e que perfazem o montante global de € 87.969,98;
14. Entre outras disposições, a Sentença viola, por errada interpretação e aplicação, o n.º 2 do artigo 437.º do Código do Trabalho de 2003, assim como os artigos 389.º do Código Civil e os artigos 410.º, 489.º e 607.º do CPC.
Termos em que, e nos melhores de direito doutamente supridos por V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, deve a decisão recorrida ser substituída por outra que deduza nas retribuições intercalares as quantias auferidas pela Requerente a título de rendimentos do trabalho independente, estas últimas no montante global de € 87.969,98 (oitenta e sete mil novecentos e sessenta e nove euros e noventa e oito cêntimos), e que, desta forma, fixe que a Requerida nada deve à Requerente. V. Exas., como sempre, farão JUSTIÇA!
A exequente contra alegou (fols. 233 v. a 236), defendo a manutenção da decisão recorrida.
Correram os Vistos legais tendo a Digna Procuradora-Geral Adjunta do Ministério Público emitido Parecer (fols. 243), no sentido da improcedência do recurso.
III- Os factos dados como provados em 1ª instância, são os seguintes:
1- Por Acórdão do Tribunal da Relação, de 05 de Junho de 2013, foi decidido o seguinte: “2. Condena-se a Recorrida a reintegrar a Recorrente, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade.
3. Condena-se a Recorrida a pagar à Recorrente as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado deste acórdão, em quantia a liquidar posteriormente, descontando-se todas as quantias a que se refere o art. 437º n.º 2, 3 e 4 do CT/2003.
4. Condena-se a Recorrida a pagar à Recorrente juros de mora, à taxa legal desde a data da citação, até integral pagamento. (…).
2- Em Janeiro de 2009, a trabalhadora auferia a remuneração mensal de € 490,00.
3- A remuneração base é acrescida de subsídio de turno no valor de € 344,07, subsídio de transporte de € 28,10 e subsídio de alimentação por cada dia útil de trabalho no valor de € 3,10.
4- O vencimento referente ao ano de 2009 é de € 490,00.
5- O vencimento base nos anos de 2010 a 2013 é de € 499,80.
6- O subsídio de turno nos anos de 2009 a 2013 é de € 336,33.
7- A requerente foi reintegrada no local de trabalho com efeitos a Outubro de 2013.
8- Em 2009, a requerente declarou para efeitos de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares a quantia de € 20.671,81, a título de rendimentos de trabalho independente.
9- Em 2009, a requerente declarou ainda a quantia de € 4.293,68 referente a trabalho dependente, liquidados pela requerida referente aos meses de Janeiro a Abril desse mesmo ano.
10- Em 2010, a requerente declarou para efeitos de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares de € 18.390,74, a título de rendimentos do trabalho independente.
11- Em 2011, a requerente declarou para efeitos de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares a quantia de € 24.260,38, a título de rendimentos do trabalho independente.
12- Em 2012, a requerente declarou para efeitos de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares a quantia de € 14.502,25 a título de rendimentos do trabalho independente.
13- Em 2013, a requerente declarou para efeitos de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares a quantia de € 10.144,80, a título de rendimentos do trabalho independente.
14- Em 2013 a requerente auferiu da requerida a quantia de € 1.937,49.
15- Em 2013 a quantia de € 1937,49 foi paga entre os meses de Outubro e Dezembro desse mesmo ano.
16- Na sua actividade comercial, na exploração do café, a requerente declarou à Segurança Social os valores brutos da prestação de serviços de actividades hoteleiras, restauração e bebidas.
17- Entre Abril de 2009 e Setembro de 2013, a requerente não teve lucro na actividade da exploração do café.
IV- Nos termos dos arts. 635º-4, 637º-2, 639º-1-2, 608º-2 e 663º-2, todos do CPC/2013, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação; os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas pelas partes, salvo se importar conhecê-las oficiosamente.
Atento o teor das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, as questões que fundamentalmente se colocam no presente recurso são as seguintes:
A 1ª, se a matéria de facto dada como provada pode ser alterada nos termos pretendidos pela ré.
A 2ª, se ao crédito da exequente podem ser deduzidas as quantias por si recebidas, relativas a rendimentos do trabalho independente, decorrentes da exploração de café, no montante global de € 87.969,98.
V- Decidindo.
Quanto à 1ª questão.
Sobre a impugnação da decisão da matéria de facto dispõe o art.º 640º do CPC/2013, aqui aplicável, no seu n º1: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;          
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
nº 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
A reapreciação da matéria de facto será feita, consequentemente, em relação aos segmentos das alegações (por referência às respectivas conclusões que mencionem a intenção de reapreciação de pontos concretos da matéria de facto) que respeitem o estatuído no art. 640º do CPC/2013.
Facto provado nº 17.
17- Entre Abril de 2009 e Setembro de 2013, a requerente não teve lucro na actividade da exploração do café.
Pretende a apelante que se dê por não escrito ou por não provado porque a palavra “lucro” é indeterminada, conclusiva e pode integrar um conceito jurídico.
Acrescenta que tal “facto” é irrelevante porque em lado algum está disposto que só poderão ser deduzidos os lucros resultantes de determinada actividade.
Por fim entende que as conclusões do relatório pericial enferma de vício de análise.
Escreveu-se a propósito no Ac. desta Relação de Lisboa de 22/1/2003, Apelação nº 8271/03, publicado na Col. 2003, T. 1, pag. 79 a 87 (Relatora, Desemb. Maria José Mouro) o que, com a devida vénia, agora se transcreve: A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.
Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 206-207 referia: «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.”
Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.
Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.
As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei.
Nem «os juízos valorativos de facto, nem as questões de direito, devem ser incluídos no questionário, porque o questionário é uma peça essencialmente virada para a prova testemunhal... e a testemunha deve ser chamada a depor, não sobre as suas apreciações mas sobre as suas percepções.
Se, porém, algum dos juízos de valor sobre os factos (ou seja, sobre a matéria de facto), for indevidamente incluído no questionário, a resposta do colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no nº 4 do art. 646 do Cod. Proc. Civil, visto não se tratar de verdadeira questão de direito».
Assim, entendeu-se no acórdão do STJ de 3 de Maio de 2000, publicado no BMJ nº 497, pag. 315: 
“São factos «os juízos que contenham a subsunção a um conceito geralmente conhecido que seja de uso corrente na linguagem comum, sendo, ainda, factos “as relações jurídicas que sejam elementos da própria hipótese de facto da norma...”.
Os juízos de valor continuam, pois, a ser matéria de facto, quando baseados em critérios do homem comum ou mesmo técnico especializado, (não ligado ao mundo do direito)...».
‘E no acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 8-11-95, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano III, tomo 3, pag. 293 foi entendido que como critério geral de distinção «pode dizer-se que é questão de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, bem como o estado, a qualidade ou a situação real das pessoas ou das coisas»”.
A propósito, diz-nos ainda o Prof. Anselmo de Castro[1] que são “factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais como os simplesmente hipotéticos”, mas são de “equiparar aos factos, os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido; por outras palavras, os que, contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como “pagar”, “emprestar”, “vender”, “arrendar”, “dar em penhor”, etc.”
Como se escreveu no Ac. da Rel. de Évora de 6/6/95, Col. 1995, T. 3, pag. 319, a propósito do termo «despedimento», "com o rodar do tempo, conceitos houve que sendo inicialmente de puro direito acabaram na língua do povo, com compreensão normal e instantânea do seu conteúdo." Trata-se de "...matéria de facto, visto que se trata de uma palavra de uso popular, não sendo necessário qualquer estudo prévio para se saber o seu alcance". E, no mesmo sentido, a propósito do termo "trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização" veja-se o Ac. da Rel. de Lisboa, BMJ-442º, pag. 248; a propósito dos termos "autoridade" e "direcção", veja-se o Ac. da Rel. de Évora de 4/7/85, Col. 1985, T. 4, pag. 315; a propósito do termo "rescindir", o Ac. da Rel. de Coimbra de 15/3/84, BMJ-335º, pag. 350; a propósito do termo "faltas injustificadas" e faltar "injustificadamente", o Ac. da Rel. de Lisboa de 17/5/95, Col. 1995, T. 3, pag. 183 (v. também Ac. da Rel. de Évora de 18/4/96, BMJ-456º, pag. 521 e Ac. da Rel. de Lisboa de 4/7/00, Col. 2000, T. 4, pag. 73); e a propósito de “pessoa conflituosa e provocadora” veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 13/10/2004.
Ora o termo "lucro”, constante do facto nº 17, é também de uso corrente na linguagem comum, de uso popular, integrando um conceito de facto pois traduz o sentido vugar de uma situação de facto, acessível ao comum dos cidadãos, com significado preciso e unívoco, não dependendo da interpretação e/ou aplicação de qualquer norma jurídica.
Ter “lucro” significa, correntemente, ter um provento económico em determinada actividade depois de deduzidos os custos e os encargos com essa mesma actividade. Significa que houve um acrescento patrimonial.
Tal como ter “prejuízo” significa exactamente o contrário.
Como se escreve ainda no citado Ac. da Rel. de Lisboa de 22/1/2003, “Se falarmos de uma cadeira também estaremos a representar um conceito (onde deixará de ser uma cadeira e passará a ser um banco?), referindo-nos embora a qualquer coisa de concreto e palpável.”
Não existe, pois, fundamento para que o facto provado nº 17 seja, por esse motivo, considerado como não escrito ou não provado.
No que toca à irrelevância do facto provado nº 17 tal é matéria a ponderar no âmbito da análise da 2ª questão enunciada neste recurso.
Quanto ao erro na apreciação dos meios de prova relativamente ao relatório pericial, a apelante aponta diversas falhas no relatório pericial de fols. 191 a 200, como a duplicação dos valores dos alegados custos da exequente com aquisição de produtos e a conclusão de que a certidão das finanças demonstra que a exequente não teve lucro, concluindo que o relatório pericial enferma de fragoroso vício de análise.
Decorre dos autos (fols. 203 e 204) que os mandatários das partes foram oportunamente notificados do teor do relatório pericial e, a executada, ora apelante, nenhuma reclamação ou pedido de esclarecimento do mesmo oportunamente apresentou nos termos do art. 485º do CPC/2013, para que a Snrª Perita pudesse esclarecer as questões somente agora suscitadas.
Ou seja, as deficiências ao relatório que pela primeira vez suscita em sede de recurso nunca foram apontadas em 1ª instância pelo que no âmbito deste recurso estamos perante a colocação de questões novas que não puderam ser esclarecidas pela Snrª Perita.
Como explica Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., LEX, 1997, a pag. 395, "No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas".
Portanto, como o Tribunal de 1ª instância proferiu a sua decisão considerando um relatório pericial relativamente ao qual a executada não encontrou nem apontou qualquer deficiência, pelo que e consequentemente, em princípio, não poderia esta Relação estar agora a sindicar a decisão recorrida em função de deficiências que a mesma só agora aponta ao relatório, o que inviabilizou os oportunos e então possíveis esclarecimentos da Snrª Perita que o Tribunal de 1ª instância poderia ter tido em conta, não havendo assim, em rigor, “reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento”.
Porém, tendo também em conta que a força probatória das respostas dos peritos é livremente fixada pelo tribunal (art. 389º do CC e 489º do CPC), não obstante, atentemos então nas objecções ao relatório pericial apresentadas pela apelante.
Quanto à duplicação dos valores dos alegados custos da exequente com aquisição de produtos.
Diz a apelante que as contas 31 do balancete de fols. 83 a 87 e 200 dizem respeito a inventários de existências, não reflectindo um custo/despesa dos exercícios e podem referir-se a produtos que não foram vendidos num determinado exercício e reportados na contabilidade do exercício seguinte. Acrescenta que os custos da mercadoria adquirida vem antes reflectidos nas contas 61 dos balancetes como “custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas”.
Não deixa de ser singular a apelante entender que a mercadoria adquirida corresponde à mercadoria vendida e às matérias consumidas, mas o que é certo é que a apelante não apresenta nenhuma justificação, nem prova, para o seu entendimento que leva a essa singularidade bem com à outra segundo a qual o que consta nos balancetes como compras são, afinal, inventários de existências, de tudo resultando, na sua perspectiva, numa duplicação de valores referentes a custos.
Coisa diversa, e aqui sem qualquer relevância pois esquece a substância, é a eventual discrepância entre os nºs de contas constantes nos balancetes e os nºs de contas constantes da Portaria n.º 1011/2009 de 9 de Setembro.
Ora não existindo nos autos, nem a apelante indicou, quaisquer provas que sustentem a sua construção, não há motivo para discordar do relatório pericial junto aos autos, neste particular.
No que concerne às certidões das Finanças, discorda a apelante que a mesma reflicta também que a exequente não teve lucro porque só não houve pagamento de IRS na medida em que se mostram incluídas despesas do agregado familiar com saúde, educação e rendas, com abate à colecta.
Ora dos docs. juntos a fols. 78 e 108 a 110 (rendimentos de 2009) se bem que não se evidencia a consideração de despesas do agregado familiar com saúde, educação e rendas, verifica-se que se trata de uma declaração fiscal conjunta que abrange outra pessoa para além da autora, pelo que não é possível, só com base em tais documentos, afirmar-se que a autora, entre Abril e Dezembro de 2009, não teve lucro, ou mesmo se o teve na actividade que desenvolveu.
Também dos docs. juntos a fols. 46 a 48 e 79 (rendimentos de 2010) se bem que não se evidencia a consideração de despesas do agregado familiar com saúde, educação e rendas, verifica-se que se trata de uma declaração fiscal conjunta que abrange outra pessoa para além da autora, pelo que não é possível, só com base em tais documentos, afirmar-se que a autora, nesse ano, não teve lucro, ou mesmo se o teve na actividade que desenvolveu.
Quanto aos docs. juntos a fols. 49 a  51, 80 e 111 a 114 (rendimentos de 2011) se bem que não se evidencia a consideração de despesas do agregado familiar com saúde, educação e rendas, verifica-se que se trata de uma declaração fiscal conjunta que abrange outra pessoa para além da autora, pelo que não é possível, só com base em tais documentos, afirmar-se que a autora, nesse ano, não teve lucro, ou mesmo se o teve na actividade que desenvolveu.
No que toca aos docs. juntos a fols. 52 a  54, 81 e 115 a 118 (rendimentos de 2012) igualmente não se evidencia a consideração de despesas do agregado familiar com saúde, educação e rendas, não sendo possível, só com base em tais documentos, afirmar-se que a autora, nesse ano, não teve lucro, ou mesmo se o teve na actividade que desenvolveu.
Relativamente aos docs. juntos a fols. 55 a  58, 82 e 119 a 122 (rendimentos de 2013) também não se evidencia a consideração de despesas do agregado familiar com saúde, educação e rendas, não sendo possível, só com base em tais documentos, afirmar-se que a autora, até Setembro de 2013, não teve lucro, ou mesmo se o teve na actividade que desenvolveu.
Porém, conjugando os rendimentos declarados pela autora nos referidos documentos, com os balancetes de fols. 83 a 87, 162 v. a 165 v. e 200, bem como com os docs. de fols. 198 e 199, conforme considerado no relatório pericial, não merece censura o facto provado em 1ª instância com o nº 17.
Do exposto fica indeferida a pretensão de dar como “não escrito “ou “não provado” do facto provado nº 17.
Quanto à 2ª questão.
Pretende a apelante que ao crédito da exequente se deduzam as quantias por si recebidas, relativas a rendimentos do trabalho independente, decorrentes da exploração de café, no montante global de € 87.969,98.
A sentença recorrida, estribando-se no facto provado nº 17, ou seja, no facto da inexistência de lucro na exploração de um café por parte da exequente no período em causa, entendeu não haver lugar a quaisquer deduções a título de importâncias obtidas.
A previsão legal para as deduções em causa nos autos resulta do art. 437º-2 do CT/2003, aqui aplicável, e agora também previsto em termos semelhantes no art. 390º-2-a) do CT/2009.
Defende a apelante que as quantias a deduzir recebidas pela trabalhadora abrangem trabalho subordinado e/ou independente e referem-se a rendimentos líquidos pelo que não tem qualquer interesse ou repercussão se a exequente obteve lucro ou prejuízo na actividade que desenvolveu.
Não acompanhamos esta perspectiva.
Não oferece controvérsia se as quantias obtidas pela trabalhadora após o despedimento, e que podem ser descontadas, decorreram de actividade desenvolvida debaixo de um contrato de trabalho subordinado ou devido a mera prestação de serviços ou ainda a outra forma de trabalho independente.
Mas não é tudo igual.
O que está aqui em causa é um ganho patrimonial que resultou directamente do facto de o trabalhador, libertado da prestação de trabalho para a sua entidade empregadora, por força do despedimento, ter podido desenvolver outras actividades.
Como explica Pedro Furtado Martins[2], as deduções destas quantias obtidas após o despedimento têm a ver com “uma concretização, ainda que com algumas especialidades, do princípio geral do direito comum dos contratos, consagrado no artigo 795º, 2, do CC. Tornando-se a prestação impossível por causa imputável ao credor, o devedor liberta-se dessa prestação, mas é justo que «se não liberte o responsável pela impossibilidade do dever de fazer a contraprestação». Por outro lado, será também justo que se o devedor conseguir algum benefício «por aplicar de outro modo o seu trabalho […] deva deduzir-se isto da prestação a que tem direito». Existindo uma relação causal entre a exoneração do devedor de prestar o trabalho, decorrente da recusa da entidade empregadora em recebê-lo, e a obtenção de outros proventos, tornada possível em consequência daquela exoneração, justifica-se a dedução”.
 Se o trabalhador despedido for trabalhar subordinadamente para outra entidade ou se for prestar serviços para terceiros de forma independente não se colocam quaisquer problemas. Aqui o que recebem, os montantes ilíquidos antes de impostos e contribuições para a Segurança Social, são de considerar para as deduções previstas no art. 437º-2 do CT/2003, e no art. 390º-2-a) do CT/2009, como se entendeu no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de STJ de 6/6/2004, P. nº 04S919, disponível em dgsi.pt/jstj, aliás citado pela apelante).
Mas será que na situação dos autos, trabalho independente mas na exploração de um estabelecimento de café por conta própria (v. facto provado nº 16 e 17) a solução é a mesma, com a dedução pura e simples de tudo o que a trabalhadora tenha arrecadado/cobrado aos clientes nessa actividade ?
Entendemos que não.
Enquanto que numa vulgar prestação de serviços a terceiro o prestador normalmente já adequa o valor da avença ou do preço dos serviços que vai receber aos gastos e encargos que previsivelmente vai ter por causa dessa actividade e, consequentemente, abstraindo agora as obrigações fiscais e de segurança social, as deduções nos termos do art. 437º-2 do CT/2003 ou do art. 390º-2-a) do CT/2009 representam já o acréscimo patrimonial efectivo, ou lucro, que o trabalhador teve com a sua actividade independente, já no caso de trabalho independente explorando o trabalhador um estabelecimento por conta própria, é manifesto que tudo o que ele recebe da sua actividade só significará um acréscimo patrimonial se (abstraindo aqui também as obrigações fiscais e de segurança social) deduzidas as despesas de funcionamento ele tiver um resultado líquido positivo ou lucro.
E só na medida desse lucro é que aquelas deduções podem ser efectuadas.
É essa a ratio dos preceitos dos CT/2003 e CT/2009, havendo dedução “se o devedor conseguir algum benefício”, como nos ensina Pedro Furtado Martins, acima transcrito.
Se o trabalhador explora o seu estabelecimento de café e arrecada ou cobra aos clientes 100 mas teve custos de exploração de 150, naturalmente que não teve nenhum benefício, não teve nenhum acréscimo patrimonial, não teve nenhum lucro, bem pelo contrário.
Como se escreve no Ac. da Rel. de Lisboa de 26-09-2018, P. nº. 167/12.5TTLSB.2.L1-4 (Rel. Desemb. Albertina Pereira), disponível em www.dgsi.pt/jtrl, “A razão de ser de tais descontos é evitar a duplicação de rendimentos”.
Ora se houve prejuízo, ou pelo menos não houve lucros, não há rendimentos para duplicar.
Aliás, no domínio da semelhante legislação anterior ao CT/2003, já o STJ no seu Ac. de 23/1/2002, P. 01S2071, (Rel. Cons. Emérico Soares) disponível em www.dgsi.pt/jstj, entendia que “a dedução só deverá ter em conta as quantias pela trabalhadora recebidas em actividade laboral após o despedimento, que representem para esta um efectivo ganho patrimonial”.
Assim, tendo em conta que ficou provado que a exequente, entre Abril de 2009 e Setembro de 2013 não teve lucro na actividade de exploração do café (facto provado nº 17) não tem que ser deduzida qualquer quantia auferida pela exequente durante aquele período, como bem se decidiu em 1ª instância.
A apelação tem assim de improceder.
VI- Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas em 1ª instância, como ali fixado.
Custas em 2ª instância a cargo da apelante.

Lisboa, 11 de Julho de 2019
DURO MATEUS CARDOSO
ALBERTINA PEREIRA
LEOPOLODO SOARES

[1] Direito Processual Civil, Vol. III, pags. 268-269.
[2] Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 4ª edição, 2017, a pag. 493