Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
215/16.0T9MTJ.L1-9
Relator: FERNANDO ESTRELA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
CRIME DE DIFAMAÇÃO
CAUSA DE EXCLUSÃO DA PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - A decisão de pronúncia, tal como a de acusar, não podem ser proferidas de forma apressada ou precipitada. Com efeito, para a pronúncia, e não obstante não ser necessária a certeza da existência da infracção, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados, e posterior submissão dos arguidos a um julgamento;

II - Difamar mais não é que imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do artigo 180.º, do Código Penal, pois existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e de juízos, havendo que conciliar o direito à honra e à consideração, com o direito à crítica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, nem ilimitados;

III - A conduta típica do crime de difamação não é punível quando o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira, que foi o que sucedeu nos presentes autos, pois de facto  o conteúdo de uma carta que o assistente enviou à arguida AA, do Brasil, em 2009, é de molde a criar, em ambas as arguidas, a convicção séria para, de boa-fé, reputar de verdadeiras as afirmações que fizeram na contestação que apresentaram e à qual o assistente se reporta na acusação que deduziu. Daqui resulta que, mesmo sem necessidade de apurar se as expressões utilizadas pelas arguidas, são susceptíveis de integrar os tipos legais do crime por que o assistente as acusa, não é punível a conduta das mesmas, pois que se verifica a causa de exclusão da punibilidade, prevista na al. b) do n.° 2, do art.° 180°, do Código Penal e, não sendo a conduta típica do crime base, punível, não se aplicará o disposto no art.° 183° do Código Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - No proc.º comum n.º 215/16.0T9.MTJ da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal do Barreiro, por decisão instrutória de 20 de novembro de 2017, foi decidido:
- “por ilegitimidade do assistente, não admitir a acusação deduzida pelo assistente contra a arguida AA, onde lhe imputa a prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art.° 205°, n.° 4, al. a) do Código Penal.”
- ”não pronunciar as arguidas AA e BB pela prática do crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a) ambos do Código Penal, por que vêm acusadas, declarando extinto o presente procedimento criminal.”

II – Inconformado, o Assistente CC interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. O Assistente sentiu-se vexado, ofendido na sua honra, dignidade e no seu bom nome, com a alegação das Arguidas de que o dinheiro que emprestou à Arguida não era desinteressado e apresentou denúncia disso nos presentes autos.
2. Se a relação em causa se tratava de amizade ou de amor seria em termos latos sempre interessada - não foi isso que ofendeu o Assistente.
3. A conclusão de que se trataria de amor Ou amizade por parte do Assistente é inútil para a decisão recorrida.
4. O termo interessado denunciado não se refere a interessado em amor ou amizade, mas em interesse sexual - o que é ofensivo da honra, dignidade e bom nome de uma pessoa de bem e que efetivamente ofendeu o Assistente.
5. A decisão recorrida afirma a dado momento na sentença que não é de amizade, que o Assistente trata numa carta dirigida à Arguida AA. É de amor!
6. Foi precisamente por o Assistente se sentir vexado com semelhantes alegações das Arguidas que apresentou a denúncia das mesmas.
7. Note-se igualmente que nem o Assistente, nem as Arguidas se referem em algum momento dos autos a que a participação do Assistente, na relação com a Arguida AA seria de amor.
8. Apenas a decisão recorrida desvenda tal novidade do comportamento do Assistente, dum postal que a Arguida AA juntou com a contestação aos presentes autos.
9. Se se tratava de amor ou amizade, o interesse evidenciado pelo Assistente, na relação com as Arguidas tal seria questão do foro pessoal íntimo que a sentença não era convocada a explorar.
10. A conclusão de que o comportamento das Arguidas poderia constituir crime de burla simples é do próprio Ministério Público nos presentes autos no despacho de arquivamento de 23/5/2017.
11. As Arguidas, em especial a Arguida AA, aproveitando-se de ascendente que tomou sobre o Assistente pediu-lhe avultadas quantias de dinheiro que o Assistente mesmo não dispondo das mesmas diligenciou endividando-se por lhas prestar. As Arguidas simularam que devolveriam mas não devolveram as quantias obtidas do Assistente.
12. E é por demais aviltante que as Arguidas venham aos autos alegar que o Assistente emprestou "interessado" com o significado que foi dado pelas Arguidas no contexto da relação destas com o Assistente e que o tribunal a quo pareça as acompanhar em coro nessa aviltante difamação.
13. E o tribunal a quo sem qualquer cuidado e pudor pelo tema e pela sensibilidade já demonstrada pelo visado, o Assistente nos autos, bem como sem qualquer fundamento senão conclusões sem apoio expresso numa carta que o mesmo alegou estar excluída do seu contexto, compõe e expressa a conclusão que afirma na decisão recorrida.
14. Não se verifica das alegações e demais elementos que Assistente e Arguidas fizeram constar dos autos que alguma vez em troca dos valores que o Assistente emprestou à Arguida AA que a esta fosse exigido ou sequer esperado ou pretendido que lhe pagasse com qualquer ato ou satisfação de amor, ou sexual.
15. O que foi exigido e pretendido pelo Assistente em troca do dinheiro emprestado foi uma comum declaração de dívida.
16. Em nenhum momento o Assistente condicionou, a prestação de qualquer valor à Arguida, com a contraprestação de qualquer pretensão além da normal devolução integral e a dado momento da garantia disso por um documento assinado.
17. Os valores prestados pelo Assistente à Arguida AA resultaram determinantemente do ascendente que esta conseguiu sobre aquele.
18. É determinante na relação jurídica entre o Assistente e as Arguidas o valor que este prestou àquelas e o motivo porque o fez e estas ambas questões o Assistente apresentou ao tribunal a quo para que este decidisse se seriam ou não crime.
19. É falso que o Assistente tenha-se relacionado com a Arguida AA com intenção interessada.
20. Não há fundamento de verdade na alegação ofensiva denunciada.
21. A intenção interessada em causa não era em amor, ou amizade. Não foi esse o significado dado, nem o significado percebido pelo Assistente ou por quem objetivamente, no contexto da relação entre o Assistente e a Arguida AA, lesse a alegação em causa.
22. Bem como mais pediu ao tribunal a quo que apreciasse igualmente a ofensa ao seu bom nome, dignidade e honra que consta das alegações de defesa das Arguidas de que intenção do Assistente com a Arguida AA não era desinteressada.
23. O tribunal a quo na decisão recorrida toma posição sobre um aspeto que as Arguidas carrearam aos autos em sua defesa e que em si mesmo é efetivamente uma ofensa à dignidade, ao bom nome e honra do visado, o Assistente, e que em nada beneficiaria objetivamente a defesa das Arguidas sobre o crime de que eram acusadas, sendo desproporcionada a ofensa em face do bem visado.
24. A decisão recorrida deve ser anulada e substituída por outra que se limite a decidir se é ou não ofensivo da dignidade, Honra e bom nome do Assistente a alegação das Arguidas de que "claramente demonstrou que a sua intenção para com a mesma não era desinteressada".
25. Pelo exposto deve conceder-se provimento ao presente recurso, e em consequência deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida de forma objetiva e fundamentada, dentro dos limites do objeto dos autos.
Com o que se fará a costumada JUSTIÇA!

III – Em resposta, o Ministério Público na 1.ª instância veio formular parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.

IV – Transcreve-se a decisão recorrida.
DECISÃO INSTRUTÓRIA
Declaro encerrada a instrução.
1- A.Arguidas:
AA, …, empregada de balcão, nascida no dia …5,…;
BB, …, cabeleireira, nascida no dia …2,…,
1- B. Assistente
CC, electricista, nascido em …1,...;
2 - Decisão Comprovanda:
 Acusação particular deduzida pelo assistente e não acompanhada pelo Ministério Público que, por considerar a existência de indícios suficientes, imputa às arguidas a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, com publicidade e calúnia, p. e p.-pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código Penal e a arguida AA, ainda, de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art.° 205.º, n.º 4, al. a), também co Código Penal.
3 - Fundamentos da Abertura da Instrução:
Inconformadas, as arguidas requereram a abertura da fase de instrução, alegando, em síntese, que não tem o assistente legitimidade para deduzir acusação pela prática, pelas arguidas, do crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art.° 205.º, n.º 4, do Código Penal e que, tendo em conta a data dos factos alegados pelo assistente há muito que de correu o prazo legal para apresentação da respectiva queixa, tendo o mesmo caducado, quanto ao acusado crime de difamação, já que tais factos datam de 2009, altura em que o assistente deles tomou conhecimento, só tendo apresentado a presente queixa em 2016.
Tendo em conta a factualidade que alegam, entendem as arguidas dever ser proferido despacho que as não pronuncie pelos crimes por que vêm acusadas.
4 - Diligências Efectuadas:
Não foi requerida a produção de prova, nem tal se mostrou necessário para as finalidades da presente fase processual.
A seu tempo e com observância das legais formalidades, procedeu-se à realização do Debate Instrutório, de acordo com a respectiva ata, no decorrer da qual o assistente requereu a produção de prova que foi indeferida.
5 - Pressupostos Processuais:
O Tribunal é o competente.
Vem o assistente deduzir acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança, agravado, p. e p. pelo art.° 205°, n.° 4, al. a), do Código Penal.
De acordo com o disposto no n.° 3, do art.° 205° do Código Penal, o procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança tem natureza semipública.
Atendendo à natureza semipública do crime em causa é o Ministério Público que tem legitimidade para acusar pela sua prática e, quando o não faz, tem o assistente a possibilidade de, nos termos do disposto no art.° 2870 do CPP, requerer a abertura de instrução.
O Ministério Público determinou o arquivamento do procedimento quanto ao crime de abuso de confiança - cf. fls. 215 e 216 - pelo que ao assistente, no caso de discordar daquele arquivamento, não restaria que requerer a abertura de instrução.
Nos termos acima referidos, por ilegitimidade do assistente, não admito a acusação deduzida pelo assistente contra a arguida AA, onde lhe imputa a prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art.° 205°, n.° 4, al. a) do Código Penal.
(…)
6 - Discussão e Apreciação:
(…)
Do que atrás se expendeu não pode, porém, concluir-se que a decisão de pronúncia, tal como a de acusar, possam ser proferidas de forma apressada ou precipitada. Com efeito, para a pronúncia, e não obstante não ser necessária a certeza da existência da infracção, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, C.3., Tomo II, pág. 66). E como bem entendeu o já citado Acórdão da Relação de Lisboa, "(...) sujeitar alguém, seja quem for, a um julgamento, pode acarretar para além do natural incómodo, um vexame e até um estigma de ignomínia, porventura até injustificável, mas que será difícil de arredar da mente das outras pessoas".
Na mente do julgador "(...) deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional (...)" (cf. Acórdão da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J., Tomo IV, pág. 261).
Tecidas as considerações que se reputam úteis à decisão a proferir, importa, agora, e face às diligências efectuadas nas fases preliminares do presente processo, aquilatar da prolação de despacho pronunciando, ou não, as arguidas, pela prática dos factos que lhes são imputados, in casu, na acusação particular.
Tendo em conta o que acima se deixou dito, resta apreciar a prática, pelas arguidas AA e BB, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, com publicidade e calúnia, p. e p. pelos artigos 180°, n.° 1 e 183.º, n.° 1, als. a) e b), ambos do Código Penal.
Analisemos, pois, o ilícito em causa nos presentes autos: o crime de difamação.
O art.° 25°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), integrado no Capítulo I do Título II da Parte I, capítulo esse referente aos direitos, liberdades e garantias pessoais, diz que a integridade moral das pessoas é inviolável.
Por seu lado, o art.° 26°, n.º 1 do diploma fundamental, acrescenta que a todos são reconhecidos os direitos (...) ao bom nome, à reputação e à imagem (...).
Os direitos acabados de referir são os chamados direitos de personalidade. Tal designação (que, note-se, não é pacífica) deriva da circunstância de os mesmos serem essenciais à própria noção de personalidade, de que constituem o conteúdo mínimo (cf. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, pág. 155). Tais direitos incidem sobre bens fundamentais da personalidade, como a vida, a honra e o nome, e respeitam também à própria personalidade jurídica do homem, não podendo deixar de ser reconhecidos pelo Estado.
Diz-se, a propósito, no art.° 6.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem que "todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica".
Estes direitos são classificados como direitos absolutos, querendo-se significar com tal designação que eles se integram naquela categoria de direitos em que do lado passivo se encontra o chamado dever geral de respeito. São também classificados como direitos não patrimoniais, o que significa que são direitos não susceptíveis de avaliação em dinheiro.
Porém, o carácter não patrimonial dos direitos de personalidade não exclui que a sua violação possa envolver uma reparação de conteúdo patrimonial, do que é exemplo, aliás, o art.° 484.º do Código Civil.
Outra característica relevante dos direitos de personalidade, e que está na origem deste procedimento criminal, é serem objecto de protecção penal.
Com efeito, o Código Penal qualifica e pune como crimes as ofensas mais significativas aos direitos de personalidade: homicídio, ofensas corporais, calúnia, difamação e injúria.
E estabelece o art.° 180.º do Código Penal que, "Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.".
O crime de difamação, assim como o de injúria, são ilícitos que ofendem o mesmo bem jurídico e, nas palavras do Prof. ADRIANO DE CUPIS, "a característica distintiva destas duas infracções é constituída respectivamente pela presença e pela ausência da pessoa ofendida (Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8.5.1984 in CJ,1984,3,343): estando presente a pessoa, dá-se o crime de injúria (.4; no caso contrário verifica-se o de difamação, A difamação é punida mais gravemente que a injúria porque, se o lesado está ausente, não tem a possibilidade de reagir, defendendo-se," (Ver "Os Direitos da Personalidade",pág. 112, tradução portuguesa, Lisboa, 1961). Outra nota importante a reter aqui é que para a existência dos crimes de difamação e de injúrias não se torna necessário o dolo específico, isto é, a concreta intenção de atingir a honra ou a consideração do visado, entendidas como a merecida e fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver. A lei basta-se com a intenção da prática do facto, aquilo a que poderemos chamar o dolo genérico. Pese embora haja opiniões contrárias, a nossa jurisprudência é claramente majoritária no sentido apontado  (vd.v.g.BMJ,358,606;C.J,XIII,1,233;BMJ,374,218;BMJ,370,292;CJ,XV,4,171; BMJ,369,593).
Por fim, o crime de difamação (bem como o crime de injúrias) é um crime de perigo e não um crime de dano, pois que se consuma com a prática da conduta típica, independentemente de curar de saber se a honra e consideração do visado foram efectivamente atingidas (cf. Ac. TRC de 13.4.1994, in BMJ,436,453).
Vejamos:
Alega o arguido que em 19.10.2015, as arguidas deram entrada em tribunal de uma contestação onde utilizam várias expressões: "o assistente procurava a atenção da arguida AA com quem conversava; a arguida não via nisso segunda intenção uma vez que o assistente era pessoa de idade já muito avançada; a carta que o assistente enviou à arguida AA demonstra que a sua intenção não era desinteressada".
São estas as expressões que o assistente entende terem sido escritas pelas arguidas, em contestação a processo crime, e que são "falsas e despudoradas" (cf. art.° 16.º, al. a), b) e c), da acusação particular.
De toda a acusação, não resulta que o assistente conteste que:
- procurasse a atenção arguida AA;
- conversasse com a arguida AA;
- fosse pessoa de idade muito avançada;
- tivesse enviado uma carta à arguida AA.
 O que o assistente contesta, isso sim, é a intenção que a arguida AA atribui ao facto de o assistente procurar a sua atenção, conversar consigo e ter-lhe enviado uma carta e um postal do Brasil.
O assistente alega que a arguida, na peça processual que entregou no tribunal, alegou que o assistente o fez, não com a amizade por que sempre pautou a sua convivência com a arguida, mas com a intenção de obter, dela, algo mais do que aquela amizade e é essa intenção velada que o ofendeu na sua honra e consideração.
O próprio assistente, juntou aos autos cópia da carta que, desde o Brasil, enviou à arguida AA (cf. tis. 191 a 198).
Nessa missiva, escreveu o arguido:
São lugares de forte impacto romântico para andar por lá sem essa companhia mais íntima. Seria um passeio ainda muito melhor....É uma coisa para ver com o coração, e eu deixei o meu todo aberto, tão aberto que te via a ti também nos meus pensamentos. Desculpa pela franqueza e ousadia. ... Tu também trazes o universo inteiro no teu olhar. Não te admires que faças chover dentro de mim esse amor que parece um rio transbordante. É outra forma de "cataratas" que me inundam o coração sem poder desaguar. Um dia escrevi que o amor é uma fonte que nasce dentro de nós, como tu és o horizonte para onde ele corre veloz. ... Ser total não é ser doido, nem cair no ridículo por ter tanto amor. Por sorte tenho-te a ti como amiga especial a quem me oferece dizer todas estas coisas, sentidas de verdade.... És uma mulher, lembra-te disso, e eu um homem. Encara a s coisas como se fosses tu a encarnação do princípio feminino do universo e eu o masculino. ... não há nada que se possa substituir à alegria de sentir amar e ser amado. A natureza da vida nos oferece essa liberdade, deixa que te toque no coração, não lhe coloques barreiras da mente.... a tua energia, beleza e sensibilidade colocam-te numa posição acima da mera possessividade do amor físico. Não precisas limitar-te ao grau de um viver meramente sensual e material. Se é de Deus que tens esse privilégio de beleza e amor, não o prendas na mão por uma só pessoa que nem sabe retribuir nem completar essa energia. Não te condenes por abrir o coração. ... a verdade não se ensina a quem não abrir o coração para a sentir. Apenas isso. Se o teu marido vive ainda nessa fase do dito "amor" possessivo, confundindo o instinto de reprodução com algo mais sublime, então, não te prendas tu também nessa vivência primária....Mas, ao termos o privilégio de ter alguém que nos abre essa via da fonte dentro de nós, não devemos alhear-nos. É isso que eu fiz ao olhar para ti. Senti que algo desse teu olhar me levava a um lugar melhor dentro de mim. O amor transcendente é um facto. Ele existe mesmo, só precisamos estar atentos, deixar acontecer naturalmente. Eu não criei isso com a mente. Não procurei sensualidade e prazeres sexuais. Mas se isso viesse em acréscimo, não ia impedi-lo, pois anseio por essa plenitude autêntica, com toda a ternura do mundo. ... aquilo que te ofereci por simples prazer de oferecer, sem esperar retribuição material, foi um facto verdadeiro e puro do coração. ... a tua presença despertou-me a alma e o corpo de forma total.... obrigado pelo teu carinho, AA. Desculpa toda a confusão que possa ter originado dizer-te coisas que devia ser o teu marido a dizê-las. Se ele as sente nele, nunca as poderá dizer. E, se não te abrires a senti-las em ti, mesmo que através de mim, podes nunca mais ter a alegria de saber ligar-te a essa fonte inesgotável de amor e alegria de viver. Foi isso o que te quis oferecer. Ama por amor, como eu faço, deixa a vida acontecer, e não te condenes por desejar ser feliz. ..."
O assistente alega, no seu artigo 7° da acusação particular, que é (ou era) ingénuo, uma pessoa de idade avançada e que denota falta de sabedoria e de experiência de vida em assuntos de cariz emocional.
Mais alega o arguido, no art.° 10.º da acusação particular, que tem todo o respeito pela arguida AA e, no art.° 11°, que o que escreveu no postal é "de uma inocência tão pura" e que a arguida tentou desviar "o verdadeiro problema para «um caso romântico», prejudicando o assistente", alegando, ainda, que "o assistente nunca esteve interessado em ninguém, muito menos em alguém como a arguida AA. "
De todo o conteúdo da carta que o assistente escreveu à arguida AA resulta, precisamente, o contrário do que o assistente alega, não é de amizade, que o assistente trata naquela carta. É de amor!
Não são expressões simples, desinteressadas, respeitosas ou inocentes São expressões que deviam ser ditas pelo marido da arguida AA, como o próprio assistente escreve naquela carta!
Não é a arguida AA que tenta desviar nada para um "caso romântico". É o assistente que assume a relação com a arguida AA como um caso de amor!
De acordo com o disposto no art.° 180, n.° 2, al. b), a conduta típica do crime de difamação não é punível quando o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
Pelo menos, o conteúdo da carta que o assistente enviou à arguida AA, do Brasil, em 2009, é de molde a criar, em ambas as arguidas, a convicção séria para, de boa-fé, reputar de verdadeiras as afirmações que fizeram na contestação que apresentaram e à qual o assistente se reporta na acusação que deduziu.
Daqui resulta que, mesmo sem necessidade de apurar se as expressões utilizadas pelas arguidas, são susceptíveis de integrar os tipos legais do crime por que o assistente as acusa, não é punível a conduta das mesmas, pois que se verifica a causa de exclusão da punibilidade, prevista na al. b) do n.° 2, do art.° 180°, do Código Penal e, não sendo a conduta típica do crime base, punível, não se aplicará o disposto no art.° 183° do Código Penal.
Assim, tendo em consideração a prova que foi produzida, estamos em crer que da mesma não resultam quaisquer factos que permitam antever que, às arguidas, em julgamento, seja aplicada alguma pena ou sanção penal.
Em síntese, dir-se-á que, dos elementos constantes dos autos, resultam afastados os fundamentos que estão na génese da acusação particular deduzida pelo assistente. Vale tudo isto por dizer que não existem indícios que permitam imputar às arguidas os factos descritos na acusação particular os quais, sendo submetidos a julgamento, conduziriam a uma mais provável absolvição das arguidas, do que a sua condenação. O exposto, impõe, naturalmente, se profira despacho de não pronúncia.
7 - Decisão:
Face ao exposto decide-se:
Não pronunciar as arguidas AA e BB pela prática do crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vêm acusadas, declarando extinto o presente procedimento criminal.
(…)

IV - A Exma Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto.

V - Cumpre decidir.
1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ ( Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
2. O recurso será julgado em conferência, atento o disposto no art.º 419.º n.º 3 alínea b) do C.P.Penal.
3. O Assistente veio recorrer, pedindo a pronúncia das arguidas pelo crime de difamação p. e p. pelo art.ºs 180.°º 1, artigo 183.º/1/a), e arguida AA pelo crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art.° 205°, n.° 4, al. a) do Código Penal.
4. Estatui o artigo 308.º do C.P.Penal sobre a decisão final a proferir após o encerramento da instrução. Essa decisão final pode ser de dois tipos:
a) despacho de pronúncia - se recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os   pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (n.° 1, 1.ª  parte).
O despacho deverá conter os elementos constantes do n.° 3 do art.° 283.° relativos à acusação.
A noção de indícios suficientes é-nos dada pelo n.° 2 do art.° 283.° citado.
b) despacho de não pronúncia - se os elementos recolhidos não constituírem indícios suficientes que justifiquem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (n.° 1, 2.ª  parte).
O despacho de não pronúncia dos autos relativamente às arguidas e acima transcrito, em que o Juiz decide que os elementos recolhidos não constituem indícios suficientes que justifiquem a aplicação de uma pena ou medida de segurança, foi proferido nos termos do disposto no art.º 308.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.Penal.
Verifica-se que, na forma, o despacho recorrido não contém qualquer irregularidade – encontra-se claro e conciso, fundamentado, aplicando correctamente o facto à lei, e o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica, não merecendo qualquer dúvida de interpretação, não sendo, em consequência, merecedor, nesta parte, de crítica (vd. art.º 97.º n.º 5 do C.P.Penal).
Como aponta Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, Ed Univ. Católica, pag.268, a fundamentação “é um raciocínio argumentativo que possa ser entendido e reproduzido (nachvollziehbar) pelos destinatários da decisão”.
5. Decidindo.
Do crime de abuso de confiança imputado à arguida AA
“O ora assistente deduz acusação particular contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205º nº 1 e 4 al. a) do C. Penal.
Alega o assistente que, no ano de 2009, emprestou dinheiro à arguida AA, no montante de 2600 euros, que esta nunca lhe devolveu, apropriando-se do mesmo contra a vontade do assistente.
Face ao valor do montante em causa (2600 euros), não opera a agravação constante da al. a) do nº4 do citado art. 205º do C. Penal, a qual apenas é aplicável quando a coisa tem valor elevado, isto é, aquele que excede 50 unidades de conta (5100 euros).
A factualidade denunciada e imputada na acusação particular consubstancia, antes, a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo nº1 do art. 205º do C. Penal, o qual reveste natureza semi-pública, nos termos do disposto no nº3 do citado preceito legal.
Dependendo o procedimento criminal da apresentação de queixa do ofendido/assistente, este tinha o prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos factos e do seu autor para exercer tal direito.
Tendo a factualidade em causa ocorrido em 2009, altura em que o assistente teve conhecimento da mesma e do seu autor, teremos necessariamente de concluir que, à data da apresentação da presente queixa (26 de Fevereiro de 2016), há muito que tal direito havia caducado pelo decurso do prazo de seis meses consignado no nº1 do art. 115º do C. Penal; razão pela qual o Ministério Público determinou, nessa parte, o arquivamento do inquérito, nos termos do nº1 do art. 277º do C. P. Penal, por inadmissibilidade legal do procedimento criminal.
Por outro lado, face à natureza semi-pública de tal tipo de ilícito criminal, carecia o assistente de legitimidade para vir deduzir acusação particular por tal ilícito, nos termos do disposto nos art. 50º nº 1 e 285º nº1 do C. P. Penal.
Pelo exposto, mais não restaria ao Sr. Juiz de Instrução Criminal do que não admitir a acusação particular deduzida pelo assistente contra a arguida AA, por falta de legitimidade quanto ao crime de abuso de confiança, que reveste natureza semi-pública.” (da resposta do M.P).
Assim e correctamente decidiu o tribunal recorrido em não pronunciar a arguida AA pela prática do crime de abuso de confiança, em face da ilegitimidade do assistente para deduzir acusação particular pelo mesmo, para além do respectivo direito de queixa ter sido exercido após o decurso de seis meses consignado no art. 115º nº1 do C. Penal; pelo que será negado provimento ao recurso interposto pelo assistente nesta parte e confirmado o despacho recorrido.
Relativamente ao crime de difamação
Conforme dispõe o n° 1 do art.° 286° do Código de Processo Penal "a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento". Tal como resulta do preceito legal transcrito, a instrução não consubstancia um novo inquérito, mas apenas um momento processual de comprovação que termina com um despacho judicial pronunciando, ou não, o arguido pelos factos que lhe são imputados (cfr. Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 9.ª Edição, 1998, pág. 538, Manuel L. Maia Gonçalves).
Dispõe o art.° 308 n.º 1 do Código de Processo Penal que "se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".
A instrução visa, assim, apurar se dos elementos constantes dos autos, designadamente os resultantes das diligências probatórias efectuadas, resultam ou não indícios suficientes de o arguido ter praticado factos susceptíveis de o fazerem incorrer em responsabilidade criminal.
Consideram-se suficientes os indícios, e por expressa remissão do n° 2 do art° 308° para o n° 2 do art.° 283° - respeitante ao despacho de acusação —, ambos do Código de Processo Penal, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força daqueles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, na esteira, aliás, do que, na falta de norma expressa no domínio de vigência do Código de Processo Penal de 1929, já vinha sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência.
 Luís Osório (citado no Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Abril de 1998, C.J., Tomo II, pág. 162) refere, no seu Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. IV, pág. 441, que "devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado".
  E o Prof. Figueiredo Dias, citado no referido Acórdão, escreve: "tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do Juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação".
 "Indiciação suficiente é a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder" (Acórdão do S.T.J. de 10 de Dezembro de 1992, Proc.° n° 427.747, citado no Acórdão da Relação do Porto de 12 de Fevereiro de 1997, C.J., Tomo I, pág. 263).
Indícios, e seguindo de perto a definição proposta pelo Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 182 e ss.), são meios de prova, enquanto causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais do crime.
Nas fases preliminares do processo penal, "maxime", na fase da instrução, não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos; pretende-se, tão-só, recolher indícios, sinais, que um crime foi, ou não, cometido por um determinado arguido.
As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão-só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento (cfr. Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 182, Germano Marques da Silva).
Do que atrás se expendeu não pode, porém, concluir-se que a decisão de pronúncia, tal como a de acusar, possam ser proferidas de forma apressada ou precipitada. Com efeito, para a pronúncia, e não obstante não ser necessária a certeza da existência da infracção, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, C.J., Tomo II, pág. 66). E como bem entendeu o já citado Acórdão da Relação de Lisboa, "(…) sujeitar alguém, seja quem for, a um julgamento, pode acarretar para além do natural incómodo, um vexame e até um estigma de ignomínia, porventura até injustificável, mas que será difícil de arredar da mente das outras pessoas".
Na mente do julgador "(…) deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional (...)" (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J., Tomo IV, pág. 261).
"Para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, lógicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado" (cfr. Ac. do STJ de 1/3/61, Bol. 105, 439).
Não podemos olvidar que estamos no âmbito da livre apreciação da prova e o Tribunal é soberano neste aspecto.
A prova é apreciada de harmonia com as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente, tendo como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio.
É o tribunal que faz a análise das provas produzidas e delas extrai livremente as suas conclusões segundo as regras da experiência.
É ao tribunal que julga que compete livremente apreciar se um só depoimento, ou documento é decisivo para formar a sua convicção, tanto mais que "testium fides diligenter examinanda est" (cfr. Vaz Serra, in Excertos da Exposição de Motivos, com referência ao artigo 396.º, do C. Civil).  
 Relativamente ao disposto no art.º 127.º do C.P.Penal, esta norma dá ao Juiz a liberdade de julgar segundo a sua livre convicção- passe a redundância - que enquanto tal não pode ser sindicada. De resto, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.
Na formação da convicção do julgador não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação do julgador ´elementos intraduzíveis e subtis´ que vão agitando o espírito de quem julga” (vd. Castro Mendes in Direito Processual Civil, 1980, Vol. III, pag 211).
O que é necessário é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto”.
“Do crime de difamação imputado às arguidas AA e BB
Estabelece o art. 180º nº 1 do C. Penal que «quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias».
Com tal incriminação, a lei penal visa tutelar o bem jurídico honra (essência da personalidade humana, referindo-se propriamente à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter), bem como a consideração (património do bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros).
Protege-se, em termos penais, por um lado, a honra, entendida como a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa possui; o que diz respeito ao património pessoal e interno de cada um. E, por outro lado, a consideração, ou seja, o merecimento que o indivíduo tem no meio social, tal como a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva; o que corresponde à forma como a sociedade vê cada cidadão – a opinião pública.
Com esta incriminação protege-se penalmente não só a própria dignidade pessoal mas também o sentimento daquilo que «os outros pensam e vêem em si, independentemente de corresponder à verdade, dando, assim, cumprimento ao estipulado na nossa Lei Fundamental que tutela autonomamente a inviolabilidade da integridade moral das pessoas e a sua consideração social, mediante o reconhecimento a todos do direito ao bom nome e reputação» (António de Oliveira Mendes in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 20 e segs.).
Por outro lado, como refere Augusto Dias Silva, in Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e injúrias, AAFDL,1989, pág.17, o conteúdo deste direito é «constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros», sendo certo que «sem a observância social desta condição não é possível a pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém».
Face a tais considerações, cumpre, agora, analisar se as expressões utilizadas pelas arguidas numa contestação em processo judicial, de que o assistente procurava a atenção da arguida AA com quem conversava; a arguida não via nisso segunda intenção uma vez que o assistente era pessoa de idade já muito avançada, a carta que o assistente enviou à arguida AA demonstra que a sua intenção não era desinteressada, constituem uma ofensa à honra e consideração daquele.
Ora, tais expressões utilizadas numa peça processual não consubstanciam qualquer difamação, na justa medida em que não têm qualquer conteúdo desvalorativo ético-social e não imputam qualquer facto desonroso e indigno ao assistente, afectando ou ofendendo a honra e consideração deste, nem tal era a intenção das arguidas.
Pela análise dos factos imputados às arguidas e respectiva interpretação que o Tribunal «a quo» lhes deu e pautando-se o Direito Penal por um princípio de intervenção mínima, segundo o qual há uma linha delimitadora dos comportamentos ilícitos, até à qual não há responsabilidade jurídico-penal, entendemos não se encontrarem preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de difamação; pelo que é inaplicável o disposto no art. 180º nº 2 als. a ) e b) do C. Penal.
Por outro lado, também é inegável que os factos ou juízos imputados têm que ser valorados à luz do meio social e cultural em que os visados se inserem, de harmonia com a mentalidade e concepções morais aí dominantes, pelo que só com todos estes dados se pode avaliar o carácter ofensivo do comportamento e o seu grau.
Por fim, e conforme refere o Conselheiro O. Mendes in «O Direito à Honra e a sua Tutela Penal», pág.37 e seg., difamar ou injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa facto ou factos ofensivos da sua honra e consideração, dependendo a tutela penal da intensidade da ofensa ou perigo de ofensa, porque «nem todo o facto que perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos art. 180º e 181º», devendo excluir-se dessa tutela os comportamentos que fiquem aquém da antijuridicidade. Mas também conclui que a «gravidade» da ofensa ou do perigo de ofensa não é elemento constitutivo dos crimes de difamação e de injúria.
Devendo haver normas de conduta com regras que estabelecem a obrigação e o dever de cada um se comportar perante os demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, «esse mínimo de respeito não se confunde com educação e cortesia. Assim, os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito». Concluindo que, o direito penal, «neste particular, não deve, nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências».” (da resposta do M.P.)
Como consta do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Fevereiro de 2001, in www.dgsi.pt., “(...) nem todos os factos que envergonham, perturbam ou humilham, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão do preceito em referência, tudo dependendo da intensidade ou do perigo da ofensa (ver Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e sua Tutela Penal”, pág. 37). Como referia o Prof. Beleza dos Santos (“Algumas Considerações sobre os Crimes de Difamação e Injúria”, na RLJ, anos 92.° e 95.°, pp. 165 ss.), aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de bem de certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar a uma sanção reprovadora, como é a pena.”
Difamar mais não é que imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do artigo 180.º, do Código Penal, pois existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e de juízos, havendo que conciliar o direito à honra e à consideração, com o direito à crítica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, nem ilimitados.
Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua optimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível (neste sentido, crf., o Ac., do TRC nº 1772/15.3T9LRA.C1, de 28.06.2017).
E, como tem sido referido em vários acórdãos da Relação de Coimbra, e da Relação do Porto (cfr., o Ac. nº 995/14.7TAMTS.P1) é próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu estatuto ontológico, as desavenças, diferentes opiniões, e choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades.
O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” (neste sentido cfr. o Ac., de 12.06.2002, Recurso 332/02, de que foi Relator o Sr. Desembargador. Dr. Manuel Braz).
Não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira.
Apenas há um limite: - não pode ser atingida a honra do visado - um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - (Cfr. Comentário Conimbricence, Tomo I, pág. 607).
 Também o ensinamento do Prof. Faria Costa nos diz, que “o facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos, que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana, que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal.
Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social, e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal - (cfr., págs. 104-105, “Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004, e o Ac., do TRC, in proc.º nº 96/15.0T9SCD.C1, de 24.05.2017).”
E como expôs a decisão recorrida:
De todo o conteúdo da carta que o assistente escreveu à arguida AA resulta, precisamente, o contrário do que o assistente alega, não é de amizade, que o assistente trata naquela carta. É de amor!
Não são expressões simples, desinteressadas, respeitosas ou inocentes São expressões que deviam ser ditas pelo marido da arguida AA, como o próprio assistente escreve naquela carta!
Não é a arguida AA que tenta desviar nada para um "caso romântico". É o assistente que assume a relação com a arguida AA como um caso de amor!
De acordo com o disposto no art.° 180, n.° 2, al. b), a conduta típica do crime de difamação não é punível quando o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
Pelo menos, o conteúdo da carta que o assistente enviou à arguida AA, do Brasil, em 2009, é de molde a criar, em ambas as arguidas, a convicção séria para, de boa-fé, reputar de verdadeiras as afirmações que fizeram na contestação que apresentaram e à qual o assistente se reporta na acusação que deduziu.
Daqui resulta que, mesmo sem necessidade de apurar se as expressões utilizadas pelas arguidas, são susceptíveis de integrar os tipos legais do crime por que o assistente as acusa, não é punível a conduta das mesmas, pois que se verifica a causa de exclusão da punibilidade, prevista na al. b) do n.° 2, do art.° 180°, do Código Penal e, não sendo a conduta típica do crime base, punível, não se aplicará o disposto no art.° 183° do Código Penal.
Assim, tendo em consideração a prova que foi produzida, estamos em crer que da mesma não resultam quaisquer factos que permitam antever que, às arguidas, em julgamento, seja aplicada alguma pena ou sanção penal.
Em síntese, dir-se-á que, dos elementos constantes dos autos, resultam afastados os fundamentos que estão na génese da acusação particular deduzida pelo assistente. Vale tudo isto por dizer que não existem indícios que permitam imputar às arguidas os factos descritos na acusação particular os quais, sendo submetidos a julgamento, conduziriam a uma mais provável absolvição das arguidas, do que a sua condenação. O exposto, impõe, naturalmente, se profira despacho de não pronúncia.
Concluindo, em face da prova carreada para o processo, não existe em nosso entender qualquer probabilidade de as arguidas serem condenadas pela prática do crime que lhes é imputado pelo assistente, pelo que se impõe confirmar o despacho de não pronúncia.
No presente caso, estando nós em concordância com a análise que é feita, na decisão recorrida, quer da prova constante dos autos quer do seu enquadramento jurídico, entendemos não merecer tal decisão qualquer censura, devendo ela ser confirmada.
Conforme entendimento generalizado dos tribunais superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, “um acórdão da Relação que confirma um despacho de não pronúncia da 1ª instância é um acórdão absolutório” (Ac. do STJ de 8-07-03, proferido no Proc. nº 2304/03 - 5ª Secção), para os efeitos do disposto na al. d), do nº 1, do artº 400º, do CPP.
Nessa conformidade, remetendo-se, quanto ao mais, para os respectivos fundamentos, nos termos do artº 425º, nº 5, do CPP, é de confirmar aquela decisão de não pronúncia, declarando-se improcedente o presente recurso.

VII - Termos em que, negando provimento ao recurso interposto pelo Assistente, se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo assistente, sendo de 3UC a taxa de justiça.
 (Acórdão elaborado e revisto pelo relator - vd. art.º 94 º n.º 2 do C.P.Penal)

Lisboa, 11 de abril de 2019

Fernando Estrela

Guilherme Castanheira