Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3396/17.1T8PDL-B.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO DE COMÉRCIO
JUÍZO CENTRAL CÍVEL
JUÍZO LOCAL CÍVEL
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. No caso de inexistência de juízo de comércio todas as acções elencadas no art.º 128º da LOSJ, independentemente da sua forma (comum ou especial) e do seu valor, passam a ser da competência do juízo central cível.
II. Consequentemente o nº 2 do art.º 117º da LOSJ deve ser lido como segue:
2. Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, compete, também, aos juízos centrais cíveis:
i) Preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade ou anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras;
j) Os incidentes e apensos dos processos referidos nas alíneas anteriores;
ii) Julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais;
iii) A execução das decisões.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

A Credora/Requerente requereu, em 13JAN2017, a insolvência da Devedora, tendo o respectivo processo, sob o nº …/…, corrido no juízo central cível e criminal de Ponta Delgada, e aí sido indeferido o pedido de declaração de insolvência por ocorrência da excepção dilatória de incompetência do tribunal, decisão essa que foi confirmada por acórdão da Relação de 26OUT2017.
A Credora/Requerente intentou, em 22DEZ2017, pedido de declaração de insolvência da Devedora, que deu origem ao presente processo, a correr termos no Juízo Local Cível de Ponta Delgada, alegando ser credora da Devedora pelo montante de 56.066,61, que a mesma Devedora tem elevadas dívidas para com terceiros, tem o seu estabelecimento encerrado, encontrando-se o sócio gerente preso, tem imóvel sujeito a venda executiva, tem vendido ao desbarato os bens que se encontravam no seu estabelecimento, estando impossibilitada de cumprir com a generalidade das suas obrigações.
Ofereceu como valor da causa 105.000 €.
Em 27DEZ2017 foi remetida carta registada com aviso de recepção para citação da Devedora, dirigida à morada da sede constante do RNPC, a qual veio devolvida com a menção de ‘não reclamado’.
Em 18JAN2018 foi remetida nova carta registada com aviso de recepção para citação da devedora, agora nos termos do art.º 246º, nº 4, do CPC, tendo o AR sido devolvido sem assinatura ou qualquer outra menção.
A Credora/Requerente, em 02MAR2018, veio informar que o sócio gerente da Devedora se encontrava detido no EP de Vale dos Judeus.
Entendendoo ter sido regularmente efectuada a citação e não ter sido deduzida oportuna oposição o MMº juiz a quo proferiu, em 22MAR2018 14:20, sentença decretando a insolvência da Devedora.
A sentença foi notificada à Devedora por carta dirigida à sua sede, registada em 23MAR2018, tendo vindo devolvida com a indicação ‘mudou-se’. E foi notificada ao gerente da Devedora por carta dirigida ao EP de Alcoentre, registada em 23MAR2018, a qual foi entregue ao seu destinatário em 02ABR2018.
Por requerimento de 04ABR2018 a Devedora veio arguir a nulidade de falta de citação.
A tal arguição respondeu a Credora/Requerente reconhecendo a verificação de tal nulidade.
Por despacho de 10ABR2018 foi indeferida a arguição de nulidade, decisão essa que foi comunicada aos mandatários da Devedora e da Credora através do CITIUS por notificação elaborada em 12ABR2018.
Em 13ABR2018 a Devedora apresentou alegações de recurso concluindo, em síntese, pela falta de citação, pela incompetência em razão da matéria e do território, e pela sua solvência.
Instada a esclarecer se pretendia recorrer da sentença ou do despacho que indeferiu a arguição de nulidade veio dizer que “pretende recorrer do despacho de nulidade e ainda da sentença que decretou a insolvência”.
Não houve contra-alegação.

II – Questões a Resolver

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da falta de citação;
- da competência em razão da matéria;
- da competência em razão do território;
- da solvência.

III – Fundamentos de Facto

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão e ainda, porque não impugnada nem se vislumbrando fundamento para a alterar, a fixada em 1ª instância (fls. 2 a 5 do ficheiro pdf que contém a sentença inserida sob a Ref.ª 46239975 de 22MAR2018 no processo principal electrónico[1] e fls.62v a 64 do processo físico do apenso deste recurso), para a qual se remete nos termos do artº 663º, nº 6, do CPC.

IV – Fundamentos de Direito[2]

A Devedora/Insolvente veio, na sua primeira intervenção processual, arguir a falta de citação “nos termos dos artigos, 188 n.º 1 al. e), 191 e 246” do CPC, por nunca ter recebido ou ter tido conhecimento de qualquer das cartas para citação enviadas dado o seu gerente se encontrar preso e o estabelecimento encerrado.
Tal arguição foi indeferida com o fundamento de que havia sido enviada para a sede da Devedora constante do RNPC segunda carta para citação contendo, além do mais, a advertência legalmente prescrita, a qual havia sido depositada no receptáculo, conforme o estabelecido no art.º 246º, nº 4, do CPC.
Essa argumentação afigura-se-nos insuficiente para fundamentar a decisão de indeferimento da nulidade.
Desde logo porquanto o facto de a citação ter sido efectuada de acordo com as prescrições legais não significa desde logo (e em particular nos casos de presunção ou ficção legal) que o destinatário tenha tido efectivo conhecimento do acto. Ou, dito de outro modo, a regularidade formal da citação não impede a demonstração de que o seu destinatário não teve, sem culpa, conhecimento do acto, caso em que, não obstante aquela regularidade formal, haverá falta de citação (art.º 188º, nº 1, al. e), do CPC).
Mas não é necessário abordar a situação dos autos por esse prisma uma vez que desde logo se constata que a citação efectuada não está conforme com as disposições legais.
Segundo o nº 4 do art.º 246º do CPC não tendo havido sucesso na entrega da carta para citação enviar-se-á, salvo no caso de recusa expressa de recebimento ou assinatura, nova carta, com observância do disposto no nº 5 do art.º 229º. Essa disposição dispõe que essa carta é deixada no seu destino “devendo o distribuidor do serviço postal certificar a data e o local exacto onde depositou o expediente” ou, não sendo possível o depósito da carta na caixa do correio do citando, “o distribuidor deixa um aviso nos termos do nº 5 do art.º 228º”.
Ora não há nos autos evidência de ter ocorrido qualquer dessas circunstâncias. Com efeito, do aviso de recepção junto aos autos (Ref.ª 2425523 de 23JAN2018 do processo principal electrónico) referente ao registo RE330004715PT (que é o registo da segunda carta para citação – Ref.ª 45885053 de 18JAN2018 do processo principal electrónico) não consta qualquer menção ou assinatura da recepção da carta, como não consta qualquer menção do depósito da mesma ou de ter sido deixado aviso para o seu levantamento na estação de correio.
Daí que se tenha de concluir pela inobservância das formalidades previstas na lei, o que é causa de nulidade da citação.
Nulidade essa que se entende ter sido regularmente arguida (para além de ter invocado o art.º 191º do CPC, a alegação de não ter de todo recebido a carta contém em si a arguição de não terem sido cumpridas as formalidades donde decorre a presunção do recebimento; por outro lado não tendo ocorrido, ainda que presumidamente, entrega da carta não se pode considerar ter sido assinalado prazo de contestação pelo que a nulidade pode ser invocada até à primeira intervenção no processo).

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Não obstante a verificação da nulidade da citação subsiste, ainda, como relevante a questão da competência (material e territorial) do tribunal (tendo em conta que a falta de citação importa necessariamente a anulação da audiência – art.º 97º, nº 2, do CPC – e que a posição anteriormente tomada no processo …/… relativamente à competência material não tem valor fora daquele processo – art.º 100º do CPC).
A Lei de Organização do Sistema Judicial (LOSJ), na sua versão actual (decorrente, no que para o caso releva, da Lei 40-A/2016, 22DEZ, que entrou em vigor a 01JAN2017,ou seja, anteriormente à propositura da insolvência), estabelece, nos seus artigos 79º a 81º, que os tribunais judiciais de 1ª instância são, em regra, os tribunais de comarca que se desdobram em juízos de competência especializada, de competência genérica e de proximidade (anteriormente em instâncias centrais e instâncias locais). Os juízos de competência especializada podem ser, de forma exclusiva ou mista, de competência central cível, local cível, central criminal, local criminal, local de pequena criminalidade, instrução criminal, família e menores, trabalho, comércio e execução (anteriormente as instâncias centrais eram integradas por secções especializadas, de forma exclusiva ou mista, em cível, crime, instrução criminal, família e menores, trabalho comércio e execução e as instâncias locais por secções de competência genérica podendo desdobrar-se em secções cíveis, criminais ou de pequena criminalidade).
A mesma lei, nos seus artigos 117º a 129º dispõe sobre a competência e funcionamento dos juízos centrais, juízos de instrução criminal, juízos de família e menores, juízos do trabalho, juízos de comércio e juízos de execução (anteriormente, instâncias centrais) determinando, no que no caso releva:

Artigo 117º
Competência

1. Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00;
b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50.000,00, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2. Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a esses juízos.
3. São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique uma alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.
Artigo 128º
Competência

1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade ou anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2. Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3. A competência a que se refere o nº 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

No caso de inexistência de juízo de comércio[3] (ou, pela similitude da situação, de o mesmo não ter competência territorial[4]) a aplicação do disposto no nº 2 do art.º 117º deu origem a três correntes interpretativas:

A – Todas as acções elencadas no art.º 128º, independentemente da sua forma (comum ou especial) e do seu valor, passam a ser da competência do juízo central cível

Esta posição é perfilhada nos acórdãos da Relação de Lisboa de 26MAR2015 (Proc. 702-14.4T8PDL.L1-8) e 16JUN2015 (Proc. 457/15.5T8PDL.L1, não publicado) e por Salazar Casanova, Notas Breves Sobre a Lei de Organização do Sistema Judiciário, ROA, Ano 73, n.ºs II/III, pg. 468.

Argumenta-se, fundamentalmente, com o teor literal do nº 2 do art.º 117º, confirmado pela divulgada ‘ratio legis’, e pela negação de relevância interpretativa à norma transitória do nº 1 do art.º 104 do RLOSJ.

B - Todas as acções de valor superior a 50.000,00 euros, sejam elas de processo comum ou especial, das elencadas no art.º 128º, passam a ser da competência do juízo central cível

Esta posição é perfilhada na decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 01DEZ2014 (Proc. 70/14.4T8PDL.L1-1), nos acórdãos da Relação de Lisboa de 30JUN2015 (Proc. 431/15.1T8PDL.L1-7) e 02JUN2016 (Proc. 2210/15.7T8PDL.L1-2) e por Salvador da Costa / Rita Costa, Lei de Organização do Sistema Judiciário, Almedina, 2014, 2ª ed., pg. 182[5].

Argumenta-se que não fazendo o art.º 128º qualquer distinção entre as acções aí referidas em função do tipo ou forma de processo não há razão para relevar essa circunstância aquando da aplicação da remissão para o nº 1 do art.º 117º. Deverá, no entanto, atender-se ao critério do valor que surge como critério uniforme para todas as situações de determinação de competência, sob pena, aliás, de esvaziar de conteúdo o nº 2 do art.º 117º. Por outro lado mal se compreenderia que tendo as acções elencadas no art.º 128º sido elevadas á categoria de ‘instância central’, reconhecendo-se o seu maior grau de dificuldade técnica e a presumível melhor preparação e amadurecimento dos juízes da instância central, viessem a ser, no caso de inexistência de juízo de comércio, desgraduadas para ‘instância local’.

C - Só as acções declarativas cíveis de processo comum e valor superior a 50.000,00 euros das elencadas no art.º 128º passam a ser da competência do juízo central cível.

Esta posição é perfilhada pelos acórdãos da Relação de Lisboa de 19MAR2015 (Proc. 1016-14.5T8PDL.L1-6), 22JUN2017 (Proc. 548/17.8T8PDL.L1-2), 23OUT2018 (Proc. 291/18.0T8AGH.L1-7) e 282/18.1T8RGR-A.L1-2) e por António Vieira Cura, Curso de Organização Judiciária, Coimbra Editora, 2ª ed. revista e actualizada, pg. 213 e 222, e Bruno Bom Ferreira, Insolvências – Central ou Local – Eis a Questão…, JULGAROnline, OUT2015.

Argumenta-se que a remissão do nº 2 do art.º 117º é para a totalidade do nº 1, aplicando-se por inteiro às acções enunciadas no art.º 128º os critérios enunciados naquele – critério material e da espécie e critério do valor. Em consequência, do elenco do art.º 128º só caberiam na competência do juízo central cível as acções cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00 euros.

A interpretação do disposto no nº 2 do art.º 117º haverá de ser efectuada segundo os cânones estabelecidos no art.º 9º do CCiv: indagar do sentido e alcance da lei reconstituindo o pensamento legislativo em função das circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições do tempo da sua aplicação, no respeito da correspondência com a letra da lei e presumindo a sensatez do legislador, bem como perspectivando a unidade do sistema.

Por apelo à presumida sensatez do legislador haverá desde logo de considerar que se o mesmo sentiu a necessidade de emitir uma norma específica para regular a situação de inexistência de juízo de comércio foi porque intentou estabelecer coisa diferente daquilo que já resultava da aplicação da lei sem aquela norma específica (no caso, a divisão de competência em matéria cível entre a instância central e a instância local resultante do nº 1 do art.º 117º e do nº 1 do art.º 130º [“Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respectiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”]).
Entendemos, por isso, ser de afastar a interpretação acima referida em terceiro lugar por redundar numa interpretação ab-rogante do nº 2 do art.º 117º, reduzindo-o a uma mera tautologia da regulamentação já constante do nº1 do mesmo preceito.

Uma das linhas mestras da reforma judiciária levada a cabo pela LOSJ, como foi amplamente anunciado[6], foi o ‘alargamento substancial da especialização da oferta judicial’, promovendo a especialização dos tribunais.
Na base de tal objectivo encontra-se o entendimento de que existem causas que se revestem (ou em razão do valor dos interesses em jogo ou em razão da matéria) de maior complexidade que se justifica sejam julgadas por juízes mais especializados e/ou com maior experiência e maturidade; e nessa conformidade essas causas são atribuídas a tribunais com juízes especializados e com maior experiência profissional (tribunais de grande instância, de instância central ou de competência territorial alargada).
Concretizando essa ideia o legislador elencou, no art.º 128º, um conjunto de causas que, em face da matéria e independentemente do tipo de procedimento ou forma de processo, considerou revestirem de maior complexidade justificando-se fossem julgadas por juízes especializados ou com maior experiência e maturidade, para o efeito atribuindo essas causas a juízos de competência especializada – os juízos de comércio.
Sendo essa a intencionalidade legislativa surgiria como anacrónico aceitar que tendo as acções elencadas no art.º 128º sido elevadas á categoria de ‘instância central’, reconhecendo-se o seu maior grau de dificuldade técnica e a presumível melhor preparação e amadurecimento dos juízes daquele tipo de tribunal, viessem a ser, no caso de inexistência de juízo de comércio, desgraduadas para ‘instância local’; pelo contrário o que se afigura mais acertado é atribuir as acções que seriam da competência do juízo de comércio ao tribunal composto por juízes com maior experiência e amadurecimento – o juízo central cível.
É certo que a atribuição de causas a tribunais de competência específica não impede que no território onde não exista esse tipo de tribunais as mesmas causas sejam atribuídas aos tribunais de competência genérica; essa é, aliás a regra geral, pelo que sempre se poderá afirmar que a atribuição das causas do comércio a juízos locais não é motivo de qualquer estranheza, mas antes a aplicação da regra geral.
Mas nesse contexto a previsão de uma norma específica para atribuição de competência no caso de inexistência de juízo de comércio (sendo que se omitiu regular idêntica situação relativamente a outros juízos de competência especializada, designadamente os juízos de família e menores) inculca a intenção de se querer afastar da regra geral.
O que se nos afigura um argumento a favor da primeira das interpretações acima referidas.

Por outro lado a expressão verbal utilizada – “é extensivo às acções que caibam a esses juízos” – expressa claramente duas intencionalidades. Por um lado, a inexistência de qualquer distinção (designadamente em função da forma de processo ou do seu valor) entre as acções referidas; o que se visa é a totalidade do elenco do art.º 128º. Por outro lado, a utilização do termo ‘extensivo’ implica uma intencionalidade, não de mera remissão para as regras de atribuição do número anterior (em particular a da al. a) desse número), para o que se afigura mais adequado uma expressão do tipo ‘ é aplicável’, mas antes de acréscimo, de alargamento; o que se visa é um alargamento, um acréscimo, uma extensão da competência atribuída ao juízo central cível, na esteira do permitido pela al. d) do nº 1 do art.º 117º.
O que em nosso modo de ver pende igualmente a favor da primeira das interpretações acima referidas.

Por último não se tem por fundada a necessidade de uniformidade da regra de atribuição de competência no caso de inexistência de juízos especializados, generalizando a utilização do critério do valor. Tal situação não é imposta pela necessidade de unidade do sistema, pois que esta unidade não impede a existência de diferenciadas soluções. Em concreto, não é incompatível com a unidade do sistema a existência de regra própria para a atribuição de competência no caso de inexistência do juízo de comércio e a existência de uma outra regra para a atribuição de competência no caso de inexistência dos outros tipos de juízo especializado. E como já acima se referiu, a introdução pelo legislador da norma específica do nº 2 do art.º 117º exprime a intencionalidade de afastar o caso da inexistência do juízo de comércio do caso da inexistência dos demais tribunais especializados.
O que também reverte em favor da primeira das apontadas interpretações.

Pelo exposto, e em conclusão, adoptamos a primeira das interpretações referidas: no caso de inexistência de juízo de comércio todas as acções elencadas no art.º 128º, independentemente da sua forma (comum ou especial) e do seu valor, passam a ser da competência do juízo central cível.
Consequentemente o nº 2 do art.º 117º deve ser lido como segue:

2. Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, compete, também, aos juízos centrais cíveis:
i) Preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade ou anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras;
j) Os incidentes e apensos dos processos referidos nas alíneas anteriores;
ii) Julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais;
iii) A execução das decisões.

Em suma, com a prescrição constante do nº 2 do art.º 117º o legislador tomou nas suas mãos a decisão que, para os restantes casos que competência especializada que não o comércio, deixou para consideração do Executivo. Com efeito, o nº 4 do art.º 81º prevê a possibilidade da existência de juízos de competência especializada mista (“Sempre que o volume processual o justifique podem ser criados, por decreto-lei, juízos de competência especializada mista”). No caso dos juízos de comércio o legislador entendeu exercer directamente (não remetendo tal tarefa para o Executivo) a consideração dessa possibilidade e decretou (com a introdução do nº 2 do art.º 117º) que no caso de inexistência de juízos de comércio os juízos centrais cíveis assumiam a natureza de juízos de competência especializada mista  cível e comércio.

Em face do que se afigura procedente a arguição da incompetência em razão da matéria do Juízo Local Cível de Ponta Delgada para conhecer da presente insolvência, incompetência essa que constitui excepção dilatória (art.º 577º, al. a) do CPC), determinante de absolvição da instância (art.º 278º, nº 1, al. a), do CPC), e que prejudica o decretamento da apontada nulidade da citação.

V – Decisão

Termos em que, na procedência da apelação, se declara a incompetência em razão da matéria do Juízo Local Cível de Ponta Delgada para conhecer do presente processo de insolvência, absolvendo-se da respectiva instância.

Sem custas (uma vez que a Apelada não deu causa, não aderiu, nem acompanhou a decisão recorrida, quer quanto à citação quer quanto à competência).

Lisboa, 12FEV2019

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga

[1] - Sendo que o CITIUS não permite uma referenciação concreta, individualizada, directa, imediata e expedita de uma parte do processo na sua versão electrónica (vg. determinada parte de uma decisão judicial ou um concreto documento), como ocorre na sua versão física com a indicação da respectiva folha.
[2] - Salvo outra indicação, toda a jurisprudência dos tribunais nacionais referida, pode ser consultada em www.dgsi.pt.
[3] - o que, actualmente, ocorre nas comarcas dos Açores, Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre, Viana do Castelo e Vila Real.
[4] - o que, actualmente, ocorre na comarca da Madeira onde o juízo de comércio do Funchal não tem competência territorial no Município de Porto Santo.
[5] - Mas que actualmente na sua edição mais recente (2017), agora em co-autoria com Luís Lameiras, a pg. 188, defende que inexistindo juízo de comércio o processo de insolvência, independentemente do valor, é da competência do juízo local.
[6] - veja-se a esse propósito a exposição de motivos da Proposta de Lei 114/XII.