Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1811/08-1
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: ATENDIDA
Sumário:
Decisão Texto Integral: Reclamação -Processo n.º 1811/08-1.
Processo de Regulação do Poder Paternal n.º 830/06.0TMBRG/Tribunal de Família e Menores de Braga.



No processo de Regulação do Poder Paternal n.º 830/06.0TMBRG/Tribunal de Família e Menores de Braga foi homologada, por sentença datada de 06.12.2006, a transacção constante de fls. 28/29, dela se destacando que a guarda, a confiança e o poder paternal da menor D... ficam atribuídos à mãe Maria R... .
O pai Álvaro R... poderá visitar livremente a menor, mas sem prejuízo do respeito pelas actividades escolares, lúdicas e pela demais rotina atinente ao descanso e refeições e, de quinze em quinze dias, o pai terá a menor consigo desde as 18:00 horas de Sexta-feira até às 18:00 de Domingo.

Alegando que a mãe Maria R... havia falecido em 06.02.2008 e que o pai da menor, além de não pagar a pensão de alimentos a que se encontrava obrigado e se encontra ausente em parte que desconhece, Elsa R... , filha daquela Maria R... , em 31.03.2008 veio a juízo requerer que lhe fosse entregue a confiança da guarda da sua irmã menor, tudo porque o pai não revela qualquer interesse por aquela sua filha menor.

Apreciando este requerimento a Ex.ma Juíza proferiu despacho em que, com fundamento em que a morte da progenitora o poder paternal será exercido pelo progenitor (art.º 1904.º do C.Civil), julgou extinta a instância por impossibilidade legal superveniente da lide (art.º 287.º, al. e), do C.P.Civil).

Inconformada com esta decisão que, invoca, lhe é desfavorável, dela recorreu a requerente Elsa R... .

Contudo, por falta de legitimidade da recorrente (art.º 685.º do C.P.Civil), ou seja, porque não é requerente do processo nem tão-pouco consta da avoenga de fls. 6, o recurso interposto não foi admitido.

Contra esta resolução apresentou a recorrente Elsa R... a sua reclamação, argumentando assim:
1. Em conformidade com o disposto no art.º 680°-2 do Código de Processo Civil, têm legitimidade para interpor recurso, não só quem é parte na causa, mas, e a título excepcional, as pessoas directa ou efectivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam parte na causa. Ora,
2. A reclamante, além de parente da menor, em segundo grau da linha colateral, é quem detém a guarda de facto dessa menor e desde o falecimento da progenitora que exercia o poder paternal. Com efeito,
3. O progenitor sobrevivo, não obstante ter tido conhecimento do falecimento da sua ex-mulher, abandonou a menor, desconhecendo-se o seu actual paradeiro. Deste jeito,
4. Imediatamente após o falecimento da progenitora, a quem estava confiado o exercício do poder paternal, a reclamante manifestou interesse em intervir na causa, tendo junto procuração e requerido que a guarda lhe fosse provisoriamente confiada. Assim,
5. É a reclamante a pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão da Meritíssima Juiz a quo, na parte em que atribuiu o poder paternal ao cônjuge sobrevivo. Aliás,
6. Um dos principais requisitos para se aferir da legitimidade para recorrer de decisões judiciais consiste, precisamente, na afectação subjectiva da decisão proferida. Ora,
7. A Meritíssima juiz a quo, limitando-se a fazer uma interpretação restritiva dos art.°s 680.° e 689.° do CPC, deste modo denegando legitimidade para recorrer a quem não é parte no processo, tal interpretação é inconstitucional, por violação do art.º 69.º da CRP, uma vez que, tendo aguarda de facto da menor e sendo quem exerce na prática todos os poderes- deveres característicos do poder paternal, deve-lhe ser reconhecida a faculdade de recorrer de todas e quaisquer decisões que afectem a menor, com vista ao seu desenvolvimento integral e à protecção contra o abandono. -
Termina pedindo que se determine que o recurso seja admitido.

A Ex.ma Juíza manteve a decisão recorrida.

Cumpre decidir.

I. A noção de legitimidade das partes que nos é dada pelo disposto no n.º 1 e 2 do artigo 26.º do C.P.Civil (o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha) é a que resulta da posição do autor e do réu em relação ao objecto do pró cesso, devendo ser aferida dos termos em que o autor demanda ou alega e pede de útil para si e de prejuízo para o réu, segundo a configuração da petição. Ac. do STJ de 08.10.1991; BMJ; 410.º; 637

O conceito de legitimidade que nos dá o art.º 26.º do C.P.Civil (trata-se de um pressuposto processual - um dos elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida, isto é, duma das condições mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa Antunes Varela; Manual; pág.104.- que visa trazer ao processo as pessoas mais qualificadas para debater os interesses em litígio) não coincide com a concepção jurídica de legitimidade para o recurso que nos oferece o disposto no art.º 680.º do C.P.Civil, que dispõe:
1 - Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2 - Mas as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.

Assiste o direito de recorrer a quem, observando as regras tomadas como padrão da vida comummente observadas em sociedade, ficou negativamente afectada pela decisão decretada - o critério essencial para apurar a legitimidade para recorrer, no âmbito do n.º 2 do art.º 680.º do C.P.Civil, é o de saber se da decisão resulta para o recorrente «um prejuízo que directa e efectivamente se repercuta na sua esfera jurídica», pelo que o prejuízo tem de ser real e jurídico, não podendo ser meramente factual. Ac. TC de 26.06.1996; DR, II, de 05.03.1998, pág. 2847.
Quer isto dizer que, para aferir da legitimidade para recorrer, o que é preciso é saber se, analisando objectivamente a situação em que o despacho envolveu a pessoa por ele atingida, se conclui que não ficaram satisfeitos, na sua generalidade e na sua globalidade, os interesses que, criteriosamente, a parte deixou de obter, por terem decaído algumas das expectativas com as quais, razoavelmente, poderia contar; e este prejuízo tem de ser real e jurídico, não basta um prejuízo directo, dado haver casos em que o prejuízo proveniente da decisão, embora seja directo (no sentido de que não é simplesmente mediato ou reflexo) é, todavia, eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível, o qual não deve ser suficiente «para legitimar a posição do recorrente». Ac. do STJ de 07.12.1993; BMJ; 432.º; pág. 300.

II. Os processos de regulação do poder paternal são considerados de jurisdição voluntária (art. 150.º da O.T.M.) e, por isso, nas providências neles a tomar o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 1410.º do C.P.C.), podendo investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 1409.º, n.º 1, do C.P.C.).
Neste particular tipo de processo o juiz tem liberdade de manobra para escolher o meio que reputa como sendo o melhor para alcançar o fim que se propõe concretizar e que é a justa decisão do caso que é trazido a juízo em vez da obediência a regras normativas rígidas (como nos processos de jurisdição contenciosa: art. 659, n.º 2, in fine), vigora a liberdade de opção casuística pelas soluções de conveniência e de oportunidade mais adequadas a cada situação concreta (Prof. Antunes Varela; Manual; pág. 71).
Quer isto dizer que o julgador não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa. O juiz funciona como um árbitro, ao qual fosse conferido o poder de julgar ex aequo et bono (Prof. A. Reis; Processos Especiais; II; pág. 400).

III. Dispõe o art.º 1905.º do C.Civil:
1. Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, o destino do filho, os alimentos a este devidos e forma de os prestar serão regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação do tribunal; a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor, incluindo o interesse deste em manter com aquele progenitor a quem não seja confiado uma relação de grande proximidade.
2. Na falta de acordo, o tribunal decidirá de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com o progenitor a quem não seja confiado...

Em estreita ligação com este normativo legal dispõe o n.º 1 do art.º 180.º da O.T.M. (Dec.Lei n.º 314/78, de 27.10) que " na sentença, o exercício do poder paternal será regulado de harmonia com os interesses do menor".
O interesse do menor é o fim último que tem de atingir-se com a prolação da decisão que envolva do afastamento dele de um dos pais em virtude da separação conjugal e que determina, necessariamente, a exclusão de um dos progenitores do relacionamento pessoal, ininterrupto, com o filho menor. E é este, sem prejuízo de também se manter uma relação de grande proximidade com o outro procriador, o princípio que deverá o Julgador ter sempre presente, tanto na análise final da situação criada ao menor em consequência do afastamento dos pais, como na recolha processual dos elementos circunstanciais que possam influir nesse exame último.
Só excepcionalmente é que o menor deve ser retirado dos cuidados dos seus progenitores e no caso de esse afastamento se justificar, isto é, quando na companhia de seus pais o menor está potencialmente em perigo de ser afectado negativamente na sua formação educativa e ambiente sanitário, por não lhe estarem a ser ministrados os cuidados considerados e tidos como razoavelmente necessários.
O poder paternal é um poder-dever funcional que deve ser exercido altruisticamente no interesse do filho, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e salvaguarda dos seus interesses; o superior interesse do filho é a verdadeira razão de ser, o critério e o limite do poder paternal. Parecer da Procuradoria-Geral da República, de 16.01.1992; BMJ; 418.º; pág. 285.
Com vista à melhor solução de saber e ajuizar em que circunstâncias é que o menor fica melhor protegido no sentido do seu desenvolvimento físico-psíquico, não é possível generalizar princípios e observar conceitos rígidos na condução da sua educação, porquanto neste campo sempre estaríamos face a casos nunca iguais e onde não poderíamos concluir por um certo padrão-tipo: "o interesse do menor, dado o seu estreito contacto com a realidade, não é susceptível de uma definição em abstracto que valha para todos os casos. Este critério só adquire eficácia quando referido ao interesse de cada criança, pois há tantos interesses da criança como crianças". Maria Clara Sottomayor; Regulação do Poder Paternal nos Casos de Divórcio; pág. 32.

IV. Por força do estatuído no art.º 1094.º do C.Civil (viuvez), dissolvido o casamento por morte de um dos cônjuges, o poder paternal pertence ao sobrevivo.
Embora a lei não reconheça a outro familiar, designadamente aos seus irmãos, o direito à guarda do menor e só atribua este poder ao cônjuge sobrevivo, este princípio não pode ser erigido como máxima absoluta em todas as situações voltadas para o exercício do poder paternal, havendo de se apreciar as concretas e especificadas circunstâncias que sobrevieram ao menor em resultado da morte de sua mãe; e se, como dissemos atrás, o superior interesse do filho é a verdadeira razão de ser, o critério e o limite do poder paternal, não poderá pôr-se de parte a ideia de recusar a entrega do menor ao pai sobrevivo, se estivermos perante individualizadas razões que demonstrem a inconveniência de uma tal postura.

Os motivos avançados pela recorrente/reclamante - desconhecimento do paradeiro do pai e o seu desinteresse pela sua filha - que é parente da menor em 2.º grau da linha colateral e quem detém actualmente a guarda da menor, são ocorrências factuais que merecem ser devidamente ajuizadas.
Neste contexto, é pessoa directamente atingida no despacho em exame a irmã que, face ao invocado desinteresse do seu pai, pretende continuar com a custódia de sua irmã menor e lhe é denegada esta sua configurada legítima pretensão.
Cremos bem que aquele despacho interfere no posicionamento jurídico-positivo da recorrente.

Pelo exposto, atendendo-se a reclamação, determina-se que a Ex.ma Juíza admita o recurso interposto pela reclamante.

Sem custas.

Guimarães, 28 de Julho de 2008.

O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,