Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
424/04-2
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
FALTA
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/05/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1- A acção de simples apreciação tem por fundamento uma conflitualidade que gere incerteza no conteúdo do direito ou no seu exercício. E esta terá de ser avaliada no plano objectivo e não meramente subjectivo.
2- Para reatamento do trato sucessivo, através duma decisão, o legislador, com a publicação do decreto-lei 273/01 de 13 de Outubro que revogou o decreto-lei 284/84 de 22 de Agosto, e alterou alguns artigos do Código de Registo Predial, delegou nos conservadores do Registo Predial as competências que anteriormente estavam conferidas aos tribunais.
3- Não compete aos cidadãos escolherem os meios que entendam, para realizarem os seus direitos. Antes cabe ao legislador, dentro duma política própria, criar os mecanismos processuais próprios e adequados à realização dos interesses dos cidadãos.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães


Os autores, "A" e "B", residentes no Lugar da ..., Felgueiras, intentaram a presente acção declarativa de simples apreciação, sujeita à forma do processo comum ordinário, contra os réus "C" e "D", residentes no Lugar da ..., Felgueiras, pedindo que se declare que são proprietários do prédio urbano destinado a habitação, composto de casa de rés-do-chão e andar, com a área coberta de 112 m2 e de logradouros a nascente, a poente e a sul com a área de 100 m2, sito no Lugar da ..., Felgueiras, a confrontar do norte e poente com os réus, do sul com outro prédio urbano dos autores e do nascente com caminho de servidão, inscrito na matriz urbana sob o artigo 825.
Invocaram, para o efeito, que por contrato verbal de compra e venda celebrado no ano de 1981 compraram aos réus um tracto de terreno com a área de 212m2 destacado do prédio rústico denominado ..., sito no Lugar da ..., Felgueiras; alguns meses após a compra os autores começaram a construir sobre aquele tracto de terreno um edifício de rés-do-chão e andar que ficou concluído em meados do ano de 1986, tendo o restante terreno ficado ao serviço do edifício servindo de logradouro; desde a data da compra têm aproveitado os frutos e utilidades do terreno, nele fazendo obras de modificação, conservação, habitando-o e deixando que a família o habite, inscrevendo-o na matriz e pagando as suas contribuições, sem violência, com exclusão de outras pessoas, com o ânimo de proprietário, praticando tais actos ininterruptamente, sem oposição e à vista de todas as pessoas em geral; os réus nunca negaram o seu direito, mas carecem de recorrer ao tribunal para o verem declarado com vista ao seu registo na competente conservatória.

Citados, por carta registada com aviso de recepção, os réus não contestaram.

O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não existe qualquer nulidade que cumpra conhecer.
As partes são dotadas de personalidade e de capacidade judiciárias.
Oportunamente foi proferida decisão que absolveu os autores da instância, pelo facto de não terem interesse em agir.

Inconformados com o decidido, interpuseram o respectivo recurso de agravo, formulando as seguintes conclusões:

1.ª – Os factos constantes da petição, com relevo para o facto vertido no seu artigo 15.º, mostram claramente que os Autores têm interesse processual em agir, ou seja em recorrer ao tribunal, para obterem uma sentença judicial que reconheça e declare o seu invocado direito de propriedade, adquirido mediante usucapião.
2.ª – Na verdade, pela natureza da mesma usucapião, os Autores não dispõem de qualquer título formal de aquisição do seu direito, nem podem obrigar os Réus a contribuir voluntariamente para a formação de outro título sucedâneo, por não existir lei substantiva nesse sentido.
3.ª – Aliás, mesmo que os Autores procurassem obter outro título, designadamente a justificação notarial do seu direito, tal título estaria sempre sujeito às contingências da vontade ou dos caprichos dos Réus que o podiam impugnar nos termos do artigo 101.º do Código do Notariado, sendo um título desprovido da consistência e da força definitiva de uma sentença.
4.ª – Ao decidir que os Autores não mostram interesse processual em agir, o despacho recorrido violou os princípios gerais de acesso ao direito e aos tribunais plasmado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República, desenvolvido no artigo 2.º e no artigo 26.º do Código de Processo Civil, interpretados à luz do artigo 449.º-1, c) e do artigo 662.º, entre outros, do mesmo código.
5.ª – Mesmo que assim não se entendesse, em aplicação do princípio do inquisitório previsto no artigo 265.º, do princípio da adequação formal previsto no artigo 265.º-A e especialmente do princípio da cooperação previsto no artigo 266.º, todos do Código de Processo Civil, com referência às alíneas a) e b) do n.º 1 e aos n.ºs 2 e 3 do artigo 508.º do mesmo código, impunha-se que o Juiz convidasse os Autores a suprir a eventual insuficiência na exposição da matéria de facto alegada, no que respeita ao interesse processual em agir, fixando-lhes prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
6.ª – Não o tendo feito, o despacho recorrido violou também aqueles princípios e aquelas disposições legais acima concretizadas.


Não Houve contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Ao abrigo do disposto no artigo 713 n.º 6 do CPC. damos como assente a matéria fáctica constante da decisão impugnada.

Das conclusões ressaltam as seguintes questões:

1 – Os AA. têm interesse processual em agir na acção declarativa de apreciação positiva, com vista a obterem uma decisão judicial que reconheça e declare o direito de propriedade adquirido por usucapião.

2 – O juiz era obrigado a convidar os AA. a corrigirem a petição inicial por falta de alegação da conflitualidade que levou à decisão de absolvição da instância, de acordo com o princípio da cooperação – artigo 266 e 508 do CPC.

Iremos decidir cada uma das questões pela ordem enunciada.

1 – A acção de simples apreciação tem por fundamento uma conflitualidade, que gere incerteza no conteúdo do direito ou no seu exercício. E esta terá de ser analisada no plano objectivo e não meramente subjectivo.

O juiz recorrido decidiu que não existia conflitualidade entre as partes, pelo que considerou que os AA. não tinham interesse em agir e absolveu-os da instância.

E, a nosso ver, decidiu bem.

E isto, porque o que os AA. pretendem é uma sentença que declare e reconheça que adquiriram uma parcela de terreno, a destacar dum prédio rústico, descrito e inscrito na conservatória de registo predial competente, em nome dos RR., com vista a procederem à sua descrição e inscrição no registo, em seu nome.

Para tal, necessitarão duma decisão, para reatarem o trato sucessivo. Porém, para obterem esse título, o legislador colocou meios processuais próprios ao dispor dos cidadãos, com a eficácia duma sentença, mas em que se exige um processualismo menos solene.

Após 22 de Agosto de 1984, consagrou, no decreto-lei 284/84, a acção de justificação judicial, que tinha essa finalidade.

Acontece que, com o decreto-lei 273/01 de 13 de Outubro, e numa “estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam um verdadeiro litígio”, foi transferido para os conservadores do registo predial, o conhecimento desta matéria.

Assim, nos termos do artigo 8º n.º 2 do referido diploma, foi revogado expressamente o decreto-lei 284/84 de 22 de Agosto, e foi alterado o Código de Registo Predial, consagrado no decreto-lei 553/99 de 11 de Dezembro, de molde a que os conservadores do registo predial assumissem as competências, nesta matéria, que, anteriormente, estavam conferidas aos tribunais.

Daí que houvesse uma adaptação do Código de Registo Predial, mais concretamente a redacção dos artigos 116, 118, 120 a 131 e o aditamento dos artigos 117-A a 117-P e 132-A a 132-D.

Assim, face a esta nova legislação, quem tem competência para conhecer da matéria que os autores pretendem, são os conservadores do registo predial e não os juizes, através dos tribunais.

E não compete aos cidadãos escolherem os meios que entendam, para realizarem os seus direitos. Antes, cabe ao legislador, dentro duma política legislativa própria, criar os mecanismos processuais próprios e adequados à realização dos interesses dos cidadãos.

Neste caso, existe um processo próprio, que não pode ser substituído por um mais solene e que atinge os mesmos objectivos, com menos custos.

Daí que os autores não tenham interesse em agir na acção que interpuseram no tribunal, porque não existe um verdadeiro conflito entre as partes, e o objectivo a atingir traduz-se na obtenção duma sentença para formalizar um direito real adquirido por usucapião, que pretendem inscrever no registo, em seu nome.

2 – Fica prejudicado o conhecimento desta questão, face ao decidido em 1. Porém, mesmo assim, o julgador não tinha que convidar os autores a corrigirem a petição inicial, no sentido de ser alegada a conflitualidade, uma vez que são os próprios autores que afirmam, no artigo 15 da petição inicial, que a mesma não existe, ao referirem que os RR. nunca negaram o seu direito.

Em face desta afirmação, o julgador nunca poderia mandar corrigir uma petição, nos termos pretendidos pelos autores, porque seria um contra senso. Seria dizer o dito pelo não dito.

Assim, improcedem as conclusões de recurso.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juizes da Relação em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo dos agravantes.