Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1708/05-2
Relator: MIGUEZ GARCIA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
ALTERAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – Em matéria de medidas de coacção vigora a regra rebus sic stantibus, só se mantendo a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que se amparam.
II – Daí que, logo que verificada a alteração desses pressupostos, a decisão seja modificável, mesmo que não tenha transitado em julgado, podendo ser proferida uma outra que se mostre ser a adequada, suficiente e necessária, podendo ser menos ou mais gravosa que a anterior.
III – Uma decisão que recusa a apreciação do pedido de substituição de uma medida coactiva baseada nas condições pessoais, sociais e profissionais do arguido, ainda não ponderadas para o efeito, viola o direito de audição do arguido.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães

M foi sujeito a prisão preventiva em 21 de Outubro de 2004 em processo que agora corre termos na comarca de Guimarães.
Em 15 de Julho de 2005, o interessado renovou pedido “já anteriormente formulado” para substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, nos termos do artigo 201º, nºs 1 e 2, do CPP e da Lei nº 122/99, de 20 de Agosto, tendo alegado factos e aspectos relacionados com a sua vida pessoal, social e profissional. Requereu ademais a inquirição de seis testemunhas.
O despacho judicial proferido na sequência de tal requerimento é do seguinte teor: “Dado não se terem alterado os pressupostos que determinaram a medida de coacção aplicada ao arguido, determino que a mesma se mantenha de harmonia com o disposto no artigo 213º do CPP.”
Nas “conclusões” do recurso que traz a esta Relação, diz Manuel da Costa Sousa que a decisão recorrida não decidiu e por consequência não fundamentou o pedido de substituição da medida aplicada, violando assim a correcta interpretação de basilares princípios constitucionais, como os da legalidade, da proporcionalidade, da adequação, da garantia do contraditório e da igualdade de armas, que regem as disposições legais sobre esta matéria, designadamente o artigo 97º, nºs 1, alínea b), e 4, do CPP, violando assim claramente as garantias de defesa do recorrente, o seu direito à presunção de inocência e ao acesso à justiça (artigos 20º, nº 1, 27º, nº 4, 28º, nº 1, e 32º, nºs 1, 2 e 5, da CRP). Por outro lado, o despacho recorrido podia e devia ter deferido o mesmo pedido formulado pelo recorrente, pelo que, ao não o fazer, violou, por errada interpretação e aplicação os artigos 193º, nºs 1 e 2, 204º, nº 1, 212º, nºs 1 e 3, e 213º, todos do CPP, sofrendo, por isso, de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da legalidade, da subsidiariedade e da presunção de inocência artigos 28º, nº 2, e 32º, nºs 1, 2 e 5, da CRP). Pretende que se substitua o despacho recorrido por decisão que defira o pedido de substituição da medida aplicada.
O MP respondeu, entendendo que o recurso não merece provimento.
Colhidos os “vistos” legais, cumpre apreciar e decidir.

A lei permite que em certas condições se imponham medidas restritivas ou limitativas da liberdade individual, mas acentuando exigências de legalidade / tipicidade e dos modos de intervenção na esfera da liberdade de quem é arguido no processo. O n.° 2 do artigo 18.° da CRP consigna, quanto aos direitos, liberdades e garantias, só poderem estes ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição, “devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A Constituição fundamenta a soberania do Estado na dignidade da pessoa humana e impõe o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais (artigos 1º e 2º). Daí a conclusão doutrinária (por ex., Frederico Isasca, “A prisão preventiva e restantes medidas de coacção”, in Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais, 2004, p. 101) de que a protecção dos direitos e garantias fundamentais só é pensável e exequível “à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição”; o que por sua vez conduz a uma outra conclusão: “o carácter manifestamente não absoluto dos próprios direitos e garantias fundamentais”.
As medidas de coacção admissíveis são as mencionadas nos artigos 196º e ss. do CPP, num crescendo de gravidade de que parecem rodear-se: termo de identidade e residência; caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções; proibição de permanência, de ausência e de contactos; obrigação de permanência na habitação; prisão preventiva. A taxatividade/tipicidade das medidas, obstando a aplicação de outras hipóteses não expressamente previstas, conforta-se com o princípio da legalidade, que se exprime no artigo 191º, nº 1, pela circunstância de a liberdade das pessoas só poder ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de natureza patrimonial previstas na lei.
Para impor a obrigação de permanência na habitação, menos gravosa certamente que a prisão preventiva, exige-se no artigo 201º, nº 1, a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos. É assim que o juiz pode impor ao arguido a obrigação de se não ausentar, ou de se não ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida. Para fiscalizar o cumprimento da medida, prevê-se a utilização de meios técnicos de controlo à distância, que acabou por se efectivar com a Lei nº 122/99, de 20 de Agosto, que, com as portarias nº 1462-B/01, de 28 de Dezembro, e nº 1136/2003, de 2 de Outubro, pela primeira vez pôs em prática a chamada vigilância electrónica.
Quanto aos requisitos gerais, aplicáveis a todas as medidas coactivas com a excepção do termo de identidade e residência do artigo 196º, considera-os o artigo 204º, sucessivamente: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.

Vê-se dos autos que no seu requerimento de 15 de Julho de 2005 o arguido Manuel da Costa Sousa, renovando pedido já anteriormente formulado, adiantou uma série de considerações relativamente às suas condições pessoais, sociais e profissionais, para que, ponderadas, se lhe aplicasse medida menos gravosa, referindo a de permanência na habitação com o auxílio de vigilância electrónica. Paralelamente, requereu a inquirição de testemunhas..
Foi na sequência disso proferido o despacho de que agora se recorre. Todavia, o despacho passa por alto as razões adiantadas pelo arguido, que não são minimamente apreciadas, e nenhuma referência adianta quanto à impetrada audição de testemunhas. A decisão limita-se a acentuar que não se alteraram os pressupostos que determinaram a medida de coacção inicialmente aplicada.

Tem-se vindo a entender nesta Relação (veja-se, por ex., o acórdão de 3 de Maio de 2004, no processo nº 800/04), que as decisões que aplicam medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, só se mantendo a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que se amparam. Daí que, logo que verificada a alteração desses pressupostos, a decisão seja modificável, mesmo que não tenha transitado em julgado, podendo ser proferida uma outra que se mostre ser a adequada, suficiente e necessária para satisfazer as exigências cautelares do caso, podendo ser menos ou mais gravosa do que a anteriormente decretada.
Em considerações dessa ordem se pode abonar o despacho recorrido. Não se tendo, como ai se diz expressamente, modificado os pressupostos anteriormente analisados, a fundamentação cabida haveria de bastar-se com a mera constatação dessa mesma realidade. Num tal contexto, havia sem dúvida razões válidas que apontam para a necessidade da prisão preventiva e para que se considere que outra qualquer medida agravaria os perigos já anteriormente assinalados.
Cremos no entanto que as questões pessoais, sociais e profissionais alegadas pelo arguido merecem ser ponderadas na sua significação concreta, acontecendo que o despacho recorrido não chegou a dar abertura à pretensão formulada, em evidente violação do disposto no artigo 213º, nº 1, do CPP, na medida em que não fez uma apreciação integral da situação do preso preventivo, de modo a incluir nela os factores que este tem por pertinentes à definição da sua situação processual. O direito de audição reconhecido ao arguido pelo artigo 61º, nº 1, alínea b), do CPP, aparece no artigo 213º, nº 3, limitado pela expressão “sempre que necessário” (sempre que necessário o juiz ouve o MP e o arguido), mas esta limitação compreende-se quando a iniciativa não for do próprio. Ignorando-se, como na realidade aconteceu, o pedido formulado pelo arguido ao juiz de instrução quando este deva tomar decisão que pessoalmente o afecte, é claro que se deixa sem conteúdo um dos direitos que compõem o estatuto de que o mesmo goza, contra o estatuído no artigo 32º, nº 1, da CRP.
Nesta perspectiva, o despacho recorrido afronta o direito de audição consignado nos artigos 61º, nº 1, alínea b), e 213º, nºs 1 e 3, do CPP, e garantido no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República. E porque viola esta mesma norma constitucional, não pode subsistir. Dada a correspondente invalidade, deverá ser substituído por outro que, analisando a valia das questões que em concreto emergem do requerimento de 15 de Julho de 2005 — após as diligências de prova que se entenda dever levar a efeito, eventualmente com a intervenção dos serviços de reinserção social (artigo 213º, nº 4, do CPP) e a audição de testemunhas — as confronte no plano das cautelas que até agora têm prevalecido na decisão de manter a prisão preventiva.

Logo por aqui se vê que das deficiências apontadas ao despacho recorrido deriva, no presente contexto, a necessidade de o substituir por outro, nos apontados limites, mas de modo nenhum a alteração da medida que no recurso se pretendia ver declarada nesta instância.

Nestes termos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso de Manuel da Costa Sousa, para que na 1ª instância se proceda nos termos indicados.

A cargo do recorrente fixa-se a taxa de justiça em 2 Ucs.

Guimarães,