Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3056/10.4TBBCL.G1
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ASSISTENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: I- No âmbito do regime geral do processo contra-ordenacional, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 433/82, não é admissível a constituição de assistente.
II- Ao contrário do que sucede no domínio relativo às contra-ordenações laborais, onde se admite a constituição de assistente por parte das associações sindicais, o que igualmente revela que o legislador não o admite no respectivo regime geral, inexiste norma especial que contemple tal faculdade no que respeita a contra-ordenações atentatórias do princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou ética.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: ---
I.
RELATÓRIO. ---
Com data de 25.06.2009, o Movimento SOS Racismo apresentou participação à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, dando conta, em síntese, que a Escola EB1 de Lagoa Negra criou uma turma especial composta exclusivamente por alunos de etnia cigana, com aulas leccionadas em local separado daquele onde são leccionadas as aulas às restantes turmas da escola, e pedindo que aquela Comissão emita parecer sobre a aludida participação e promova a instauração do competente processo contra-ordenacional Cf. volume I, fls. 9 a 13. ---. ---
Autuada tal participação como processo de contra-ordenação e instruído este pela Inspecção-Geral da Educação, em 28.06.2010, a Exm.ª Sr.ª Alta Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural decidiu arquivar os autos. ---
Notificado daquela decisão, o Movimento SOS Racismo veio impugnar judicialmente a mesma, tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Judicial de Barcelos, onde foram distribuídos ao 2.º Juízo Criminal, o qual, em decisão de 21.12.2010, decidiu indeferir a constituição como assistente do Movimento SOS Racismo e rejeitar o recurso de impugnação interposto por aquele Movimento relativamente à apontada decisão da Exm.ª Sr.ª Alta Comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural Cf. volume II, fls. 286 a 288. ---. ---
Do recurso para a Relação. ---
Notificado daquela decisão em 07.01.2011, o Movimento SOS Racismo veio interpor recurso para este Tribunal, em 17.01.2011, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos: (transcrição) ---
«1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls... que indeferiu a constituição de assistente do Recorrente nos autos e, simultaneamente, rejeitou o recurso de impugnação, por este interposto, da decisão de arquivamento proferida pelo Alto Comissariado Para a Imigração e Diálogo Intercultural, IP, datada de 28/06/2010.
2. Atenta a decisão proferida, o Tribunal Recorrido decidiu rejeitar o recurso de impugnação, por falta de legitimidade do Recorrente.
3. Deste modo, entendeu o Tribunal Recorrido que a figura processual de “assistente” não é admissível, nem tem cabimento no RGCO e que, uma vez proferida decisão administrativa ao abrigo deste RGCO, a mesma apenas seria recorrível por parte do “arguido” ou da pessoa contra a qual fosse dirigida e, tratando-se de decisão final, contanto que fosse condenatória (desde que não se tratasse de sanção de mera admoestação), nos termos do disposto nos art. 55.º, n.° 1 e 59°,n.° 1 e 2 do RCGO.
4. Porém, tendo em consideração a natureza e objectivos prosseguidos pelo Recorrente, tal decisão é inconstitucional e ilegal.
5. A decisão proferida não respeita a Directiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de Junho de 2000, publicada no JOCE de 19 de Julho de 2000, em especial, o disposto no seu art. 7º, n.° 2.
6. O objectivo da Directiva é claro e preciso - os Estados Membros devem conferir às associações e organizações que prossigam os interesses determinados na mesma, legitimidade para intervir em processos judiciais e/ou administrativos em que estejam em causa violações ao princípio da igualdade de tratamento das pessoas, com base em distinções de origem racial ou étnica.
7. No que respeita à matéria constante do art. 7.º, n.° 2, o Estado Português não transpôs devidamente a Directiva, não tendo criado até à presente data quaisquer instrumentos que reconheçam legitimidade processual e procedimental a associações e organizações com objectivos e fins idênticos ao Recorrente, nomeadamente no âmbito do regime geral das contra-ordenações.
8. Contudo, em 1996 já havia sido aprovado um regime específico para a constituição como assistente em processo penal, no caso de crimes de índole racista ou xenófoba, por parte das comunidades de imigrantes e demais associações de defesa dos interesses em causa (Lei n.° 20/96, de 6 de Julho).
9. Atento este quadro normativo, seriam admissíveis duas interpretações: ou o Legislador Nacional entendeu que a matéria constante do art.° 7º, n.° 2 da Directiva 2000/43/CE já tinha sido devidamente integrada no ordenamento jurídico português, por aplicação e interpretação extensiva da Lei n.° 20/96, de 26 de Junho; ou a Directiva, neste particular, não foi transposta para o direito interno.
10. Contudo, em ambos os casos, o Tribunal Recorrido deveria ter admitido o recurso de impugnação em causa nos presentes autos.
11. Considerando a primeira hipótese de interpretação, a Lei n.° 20/96 teria plena aplicação no âmbito do processo contra-ordenacional, quer na sua fase administrativa, quer na sua fase de impugnação judicial, atento o disposto no art. 41°, n.° 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações.
12. Esta seria a interpretação válida do RGCO à luz da Directiva 2000/43/CE, em conformidade com o disposto no art. 8° da CRP.
13. E deste modo, interpretando o n.° 1 do art. 41° do RGCO e a Lei 20/96 em conformidade com a Directiva 2000/43/CE, ao Recorrente deveria ter sido reconhecida legitimidade para intervir nos presentes autos, como assistente, e admitido o seu recurso.
14. E a idêntica conclusão se chegaria na segunda hipótese de interpretação acima identificada: mesmo aceitando como certa a interpretação do Tribunal Recorrido, segundo a qual o RGCO não admite a figura processual de “assistente”, o recurso interposto pelo Recorrente deveria ser sempre admitido, face ao disposto no art. 7°, n.° 2 da Directiva 2000/43/CE e em obediência aos art. 8°, n.° 1 e n.° 4 da CRP e art. 288° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
15. As Directivas são actos juridicamente vinculativos da União Europeia que, essencialmente, impõem aos Estados Membros a realização de certos objectivos, deixando espaço para a escolha dos meios e formas da respectiva implementação, nos termos do art. 288°, parágrafo 3° do TFUE
16. É que as normas de direito comunitário, a partir do momento em que entram legitimamente em vigor na ordem jurídica comunitária, inserem-se, de pleno direito, na ordem jurídica portuguesa - é o que resulta do art. 8°, n.° 1 e 4 da CRP, em sintonia, aliás, com o que tem sido afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
17. Entre tais normas contam-se, evidentemente, as Directivas, que assim vigoram no nosso ordenamento jurídico interno, a partir do momento em que entram em vigor na ordem jurídica comunitária, mesmo que as medidas impostas não sejam, ou tenham sido adoptadas pelos Estados Membros.
18. Deste modo, a vigência de uma Directiva no ordenamento jurídico interno não está dependente da sua transposição, podendo os particulares invocar as suas disposições materiais perante o Estado-Membro faltoso.
19. Se o Estado Português estava obrigado a cumprir os objectivos da directiva 2000/43/CE, criando medidas que permitissem a intervenção efectiva do Recorrente neste tipo de processos de contra-ordenação, e se não o fez, coloca-se numa situação de incumprimento, da qual não se pode prevalecer perante o Recorrido: a Directiva, ainda que não tenha sido observada e integralmente transposta pelo Estado Português, deve ser por este respeitada!
20. Como tem vindo a ser decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, caso um Estado membro não tenha tomado as medidas de execução necessárias ou tenha adoptado medidas não conformes com uma directiva, os particulares podem invocar contra o Estado, e em juízo, as disposições materiais constantes dessa directiva.
21. Pelo exposto, ao rejeitar o recurso de impugnação a que se reportam os presentes autos, a decisão do Tribunal Recorrido é inconstitucional e ilegal, por violação do disposto nos art. 8°, n.° 1 e n.° 4 da CRP, art. 288° do TFUE, art. 70, n.° 2 da Directiva 2000/43/CE, art. 41° do RGCO e na Lei n.° 20/96, devendo, por isso, ser revogada.
Nestes termos e nos melhores de direito, (…) deve o presente recurso ser admitido e, em consequência, ser considerado procedente, por provado, revogando-se a Sentença Recorrida, como é de Lei e de Justiça!» Cf. volume II, fls. 292 a 307, 312 e 313. ---. ---
Notificado do indicado recurso, o Ministério Público sustentou a manutenção da decisão recorrida Cf. volume II, fls. 309 a 311. ---. ---
Neste Tribunal, na intervenção aludida no artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público pronunciou-se pela negação de provimento do recurso Cf. volume II, fls. 321 a 326. ---. ---
Devidamente notificado daquele parecer, o recorrente nada disse. ---
Proferido despacho liminar, colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre ora apreciar e decidir. ---
II.
OBJECTO DO RECURSO.
Atentas as indicadas conclusões apresentadas, sendo que são tais conclusões que este Tribunal deve considerar no presente recurso, definindo aquelas o objecto deste, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, cumpre no presente acórdão apreciar e decidir da legitimidade do recorrente. ---
III.
FUNDAMENTAÇÃO. ---
Em causa está a interposição de recurso no âmbito de um processo de contra-ordenação. ---
Concretamente, o participante da alegada contra-ordenação impugna judicialmente a decisão da autoridade administrativa que determinou o arquivamento do respectivo processo por inverificada a alegada contra-ordenação participada. ---
Para fundamentar a sua legitimidade, o recorrente sustenta o seu direito de se constituir assistente nos autos, invocando para tal, em síntese, a Lei n.º 20/96, de 26 de Junho, a Directiva 2000/43/CE, e o Regime Geral das Contra-Ordenações, adiante designada por RGCO, anexo ao Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro Sucessivamente alterado pela Declaração de 06.01.1983, Decreto-Lei n.º 356/89, de 17.10, Declaração de 31.10.1989, Decreto-Lei n.º 244/95, de 14.09, Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17.12, e Lei n.º 109/2001, de 24.12. ----. ---
Uma vez que aquela Directiva foi «parcialmente» transposta pela Lei n.º 18/2004, de 11 de Maio, releva na situação vertente apreciar da legitimidade do recorrente igualmente nos termos de tal diploma. ---
Assim. ---
1. Da Lei n.º 20/06, de 26 de Junho. ---
No seu artigo único, dispõe-se aí que «1 - No caso de crimes cuja motivação resulte de atitude discriminatória em razão de raça ou de nacionalidade, designadamente nos crimes previstos nos artigos 132.º, n.º 2, alínea d), 146.º, 239.º e 240.º do Código Penal, podem constituir-se assistentes em processo penal as associações de comunidades de imigrantes, anti-racistas ou defensoras dos direitos humanos, salvo expressa oposição do ofendido, quer este requeira ou não a sua constituição como assistente. 2 - A constituição de assistente nos termos do n.º 1 não está sujeita ao pagamento de qualquer taxa de justiça». ---
Da simples leitura da apontada Lei n.º 20/96 decorre a sua aplicabilidade tão-só a «crimes» e no âmbito do «processo penal». ---
Dada a diversa natureza do crime e da contra-ordenação, assim como as diferenças entre o processo penal e o processo contra-ordenacional, sendo que em 1996 o legislador bem conhecia tais dissemelhanças, a apontada alusão da Lei n.º 20/96 aos «crimes» e «ao processo penal» outro desiderato não representa que a circunscrição a tais âmbitos da constituição de assistente. ---
Fosse outro o seu propósito e o legislador ter-se-ia exprimido de forma diversa. ---
Tem-se, pois, por infundada in casu a fundamentação da legitimidade da recorrente na Lei n.º 20/96. ---
2. Da Directiva 2000/43/CE. ---
Tal Directiva Publicada no Jornal Oficial n.º L 180 de 19.07.2000 p. 0022 – 0026. --- tem por escopo a consagração do princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou ética. ---
Como se refere no seu artigo 1.º, ela «tem por objectivo estabelecer um quadro jurídico para o combate à discriminação baseada em motivos de origem racial ou étnica, com vista a pôr em prática nos Estados-Membros o princípio da igualdade de tratamento». ---
Dada a sua própria natureza, tal diploma comunitário não é, em princípio, de aplicação directa nos estados membros; pressupõe, em princípio, a sua transposição, para o direito interno. ---
«A directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios» Artigo 288.º do actual Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o qual corresponde ao ex-artigo 249.º do Tratado da Comunidade Europeia. ---. ---
As directivas têm, pois, como destinatários imediatos (directos) apenas os Estados-Membros. ---
Elas necessitam «de um acto nacional de incorporação para poder – se for caso disso – gerar direitos e obrigações na esfera dos particulares», salientando-se, no entanto, «que a vigência interna de uma directiva, ainda que limitada, não está totalmente dependente da sua transposição (…), podendo os cidadãos e empresas invocar certos direitos e obrigações delas emanadas, mesmo na falta de um tal acto, ainda que apenas contra o Estado», termos em que «se a directiva não transposta (ou incorrectamente transposta) reunir as condições de que depende o efeito directo de qualquer norma comunitária (incondicionalidade e precisão), o particular poderá invocá-la jurisdicionalmente contra o Estado membro inadimplente, obtendo o benefício da sua aplicação e a desaplicação das normas nacionais que a este se oponham» Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário, 2007, páginas 278 a 281. --- - o chamado efeito directo vertical das directivas. ---
Em causa está o artigo 7.º, n.º 2, da referida Directiva. ---
Segundo tal norma, «os Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para que as associações, organizações e outras entidades legais que, de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva legislação nacional, possuam um interesse legítimo em assegurar o cumprimento do disposto na presente directiva, possam intervir em processos judiciais e/ou administrativos previstos para impor o cumprimento das obrigações impostas pela presente directiva, em nome ou em apoio da parte requerente e com a aprovação desta». ---
Não se exige, pois, a participação das indicadas «associações, organizações e outras entidades» em «processos judiciais», já que ela pode circunscrever-se tão-só a processos «administrativos», pelo que, sem mais, desde logo, a Directiva em apreço não seria bastante para fundamentar a legitimidade da recorrente nos presentes autos, de natureza judicial, a admitir-se o seu efeito directo vertical. –
Dito de outro modo, verificada que foi a participação do recorrente perante a competente autoridade administrativa mostra-se salvaguardado o referido artigo 7.º, n.º 2, da Directiva, pelo que carece de qualquer fundamento a invocação daquela Directiva para justificar a legitimidade da recorrente no recurso em causa. ---
De todo o modo, não estando em causa uma intervenção «em nome ou em apoio da parte requerente e com a aprovação desta», sempre o recorrente careceria de legitimidade para o recurso interposto: uma vez que as «associações, organizações e entidades» devem intervir «em nome ou em apoio da parte requerente e com aprovação desta», a falta deste pressuposto processual in casu obstaria sempre à admissibilidade do recurso em apreço por parte da recorrente, por falta de poderes para tal desta. –--
Uma vez que a apontada Directiva 2000/43/CE mostra-se absolutamente salvaguardada e, de todo o modo, respeitado o «direito internacional» nos termos constitucionalmente atendidos, inexiste a alegada violação do artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, bem como do artigo 8.º, n.º 1 e 4, Com a epigrafe de “direito internacional”, o artigo 8.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, na redacção da Lei n.º 1/2004, de 24 de Julho, dispõe, respectivamente, que «as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português», «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático». --- da Constituição da República Portuguesa. ---
Com efeito, aquele n.º 4 «não declara que as normas da “Constituição” europeia e o Direito adoptado pelas instituição da União prevaleçam sobre as normas de Direito interno. O que estabelece é – depois de, no primeiro segmento, repetir o que já resulta dos n.ºs 2 e 3 – que as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna nos termos definidos pelo Direito da União.
Devolve-se, pois, aparentemente, para o Direito da União (que, por o artigo 7.º, n.º 6, falar em “convencionar”, só pode ser o Direito primário) uma decisão que deveria pertencer à Constituição. Afigura-se, no entanto, de encarar uma interpretação conforme com o princípio da independência nacional, o primeiro dos limites materiais de revisão constitucional, de modo a garantir a soberania constituinte do Estado português; o contrário equivaleria à degradação do seu estatuto jurídico, aproximando-o do de um Estado federado.
Isso, porque se trata, quanto ao Direito derivado, de normas emanadas no exercício das competências da União – que são competências de atribuição e a interpretar à luz do princípio da subsidiariedade. E porque se prescreve o respeito dos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, os princípios em que assenta a República e que são princípios constitucionais portugueses (artigo 2.º e Jurisprudência do Tribunal Constitucional» Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa, Tomo I, edição de 2005, página 93. ---. ---
Mostra-se, pois, infundada a invocação no caso sub judice da Directiva 2000/43/CE. ---
3. Da Lei n.º 18/2004, de 11 de Maio. ---
Conforme resulta do respectivo artigo 1.º, tal diploma legal «transpõe, parcialmente, para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2000/43/CE». ---
Releva in casu o seu artigo 5.º. ---
Sob a epigrafe «Tutela de direitos», dispõe-se aí que «as associações que, de acordo com o respectivo estatuto, tenham por fim a defesa da não discriminação baseada em motivos de origem racial ou étnica têm legitimidade para intervir, em representação ou em apoio do interessado e com a aprovação deste, nos respectivos processos jurisdicionais». ---
Tal norma transpõe para a ordem interna o apontado artigo 7.º, n.º 2, da Directiva 2000/43/CE. ---
Como ela, faz depender a «legitimidade» das apontadas «associações» em processos jurisdicionais da sua intervenção «em representação ou em apoio da parte requerente e com a aprovação desta». ---
Ora, na situação vertente não pode assacar-se à recorrente uma tal intervenção, pelo que com fundamento na Lei n.º 18/2004 sempre seria inadmissível o recurso em apreço por falta de legitimidade do recorrente. ---
4. Do Regime Geral de Contra-Ordenações. ---
Segundo o referido artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, na redacção do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, «sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal». ---
Ou seja, o acervo de normas relativas ao processo penal constitui direito subsidiário do processo contra-ordenacional, o que significa que é aplicável a este nas suas omissões e caso não se descortine nele ratio que obste à sua aplicação. ---
Ora, no processo penal o assistente figura como um sujeito processual. ---
Com efeito, a par de outros sujeitos processuais, os artigos 68.º a 70.º do Código de Processo Penal, sucessivamente, indicam as pessoas e entidades que podem aí constituírem-se assistentes, a posição processual e atribuições destes, assim como a sua representação judiciária, sendo que amiúde, ao longo do aludido Código de Processo Penal, encontramos diversas normas quanto ao assistente. ---
Debalde se encontra qualquer referência ao assistente no RGCO. ---
Embora aquele diploma legal se refira ao Tribunal, ao Ministério Público, ao Arguido, ao Defensor, à Autoridade Administrativa, às Testemunhas, aos Peritos, nada refere quanto ao Assistente. ---
Tal emudecimento exprime o propósito de obstar à intervenção do assistente no processo contra-ordenacional, o que bem se compreende atentos os interesses públicos subjacentes a este e a natureza diversa própria do interesse do assistente No sentido da ilegitimidade da constituição de assistente no processo de contra-ordenações vejam-se Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, edição de 2008, página de 206, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 1, Janeiro – Março de 2002, página 114 a 116, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.11.1997 e 20.05.1998, in CJ, tomo V, páginas 134 a 136, e tomo III, páginas 146 e 147, respectivamente, e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01.10.2007, Processo n.º 1224/07-2. ---. ---
Tal propósito resulta muito nítido quando no artigo 59.º, n.ºs 1 e 2, do RGCO se refere como recorrível a «decisão administrativa que aplica uma coima» e se confere legitimidade para tal tão-só ao «arguido» e «seu defensor». ---
Fosse outro o desiderato do legislador e por certo também mencionaria aí a recorribilidade da decisão administrativa que determina o arquivamento do processo de contra-ordenação e a legitimidade para tal do seu participante, como assistente ou não. ---
O disposto no artigo 73.º, n.ºs 1 e 2, do RGCO Na redacção do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17.12, dispõe aí que «1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias; c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público; d) A impugnação judicial for rejeitada; e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal. 2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência». --- conduz-nos no mesmo sentido.
Também aí o participante, assistente ou não, é omitido pelo legislador, num claro propósito de afastar a sua legitimidade no recurso para a Relação. ---
A recorribilidade para a Relação é apenas conferida ao arguido e ao Ministério Público, verificados os demais pressupostos aí consagrados Cf. os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 659/2006, de 28.11, 95/08, de 14.02, e 632/09, de 03.12, todos in www.tribunalconstitucional.pt. --. ---
Em todo o caso a recorribilidade da impugnação judicial rejeitada depende da qualidade de arguido do recorrente, atento o disposto no referido artigo 59.º, n.º 2. ---
Ao contrário do domínio relativo às contra-ordenações laborais Segundo o artigo 23.º da Lei n.º 107/2009, de 14.09, tal como já sucedia com os seus antecessores, o artigo 26.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais, anexo à Lei n.º 116/99, de 04.08., e o artigo 640.º do Código do Trabalho, anexo à Lei n.º 99/2003, de 27.08, «1 - Nos processos instaurados no âmbito da presente secção, podem constituir-se assistentes as associações sindicais representativas dos trabalhadores relativamente aos quais se verifique a contra-ordenação. 2 - À constituição de assistente são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições do Código de Processo Penal. 3 - Pela constituição de assistente não são devidas quaisquer taxas». ---, onde se admite a constituição de assistente por parte das associações sindicais, o que igualmente revela que o legislador não o admite no respectivo regime geral, inexiste norma especial que contemple tal faculdade no que respeita a contra-ordenações atentatórias do princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou ética. ---
Como refere Sónia Veloso Lima, «aquando da elaboração da lei em 1982, a figura do Assistente já era conhecida e reconhecida pelo que, se o legislador não a previu no regime das contra ordenações é porque não quis que a mesma tivesse lugar neste processo» O assistente no processo Contra-ordenacional, in http://www.pnetjuris.pt/cronica.asp?id=106. ---. ---
Em suma, «o regime geral do processo contra-ordenacional definido na lei quadro desta matéria - o Decreto-Lei nº 433/82 - não prevê o instituto da assistência no domínio deste processo, devendo entender-se o silêncio da lei sobre tal figura como uma clara opção do legislador e não já a tradução de uma mera lacuna a preencher por via do recurso à analogia; é que, na linha lógica de desenvolvimento dos princípios caracterizadores deste regime processual, semelhante sistema parece impor-se por mais adequado à natureza jurídica do ilícito contra-ordenacional e do respectivo processo» Cf. Acórdão do Tribunal n.º 344/93, de 12 de Maio de 1993, in www.tribunalconstitucional.pt. Sublinhado nosso. --- . ---
Também com fundamento no Decreto-Lei nº 433/82 carece, pois, de legitimidade o recorrente para interpor o presente recurso. ---
IV.
DECISÃO. ---
Pelo exposto, rejeita-se o presente recurso. ---
Sem custas, por o recorrente estar delas isento – cf. artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais. ---
Nos termos do artigo 420.º, n.º 3, suportará, contudo, o recorrente a importância de 3 UC. ---
Notifique. ---
Guimarães, 3 de Maio de 2011