Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1824/07-2
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: I – A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial depende da verificação simultânea, quer dos requisitos civis previstos no artigo 1417º do Código Civil, quer dos requisitos administrativos fixados no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
II – Ambos os requisitos constituem verdadeiras e próprias condições da acção.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - AA... e mulher BB..., instauraram acção de divisão de coisa comum contra CC... e mulher DD..., alegando que são comproprietários, na proporção de metade cada um, do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, anexos e logradouro, sito em F..., freguesia de Lanheses, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...., e descrito e inscrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial.

Aos autores não convém nem interessa permanecer na indivisão , mas a divisão deste não é minimamente aconselhável.
A construção confronta pelo nascente com a rua Dr. GG... e entre aquela e a dita rua não se interpõe qualquer parcela de terreno.
O acesso ao prédio, ou seja, ao logradouro e à habitação é feita lateralmente. Do lado direito há um acesso exclusivamente pedonal, e do lado esquerdo dispõe de acesso pedonal e de veículos automóveis.
A largura desses acessos não podiam ser alargados, o que significa que em hipotética divisão do prédio os dois acessos teriam que ser comuns.
No rés do-chão o requerido instalou um consultório onde exerce a sua profissão de médico dentista, sendo que a entrada para este está localizada junto às escadas de acesso ao 1º andar.
No caso não é possível que cada fracção tenha o seu logradouro próprio.
Acresce que os réus construíram uma piscina no logradouro do prédio em local que dificulta a divisão igualitária do prédio.

Citados os requeridos, estes contestaram, impugnaram a versão dos requerentes, alegando que em 1986, foram feitas obras para eliminar as escadas interiores de acesso aos vários andares.
Obras que foram licenciadas.
Na sequência dessas obras o prédio passou a reunir todos os requisitos exigíveis para a sua constituição em regime de propriedade horizontal .
Alegam ainda que a constituição da propriedade horizontal pode ter lugar por decisão judicial, de acordo com o disposto no artigo 1417º, n.ºs 1 e 2 e desde que se verifiquem os requisitos a que alude o artigo 1415, ambos do Código Civil.

Foi ordenada perícia colegial, e realizada a mesma foi proferida a seguinte sentença::
“ Termos em que acolhendo as conclusões do relatório subscrito pelos Srs. peritos indicados pelo tribunal e pelos réus, nos termos disposto no artigo 1054º, n.ºs 1 e 3do Código de Processo Civil,
Declaro divisível em substância o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial.
Declaro fixados os quinhões nos termos descritos no relatório pericial maioritário, descrito a fls. 106 como fracções A e B por referência às plantas juntas a fls. 107 e 108 dos autos.
Notifique.
Após trânsito, conclua com vista a designar-se data para a realização da conferência de interessados”.

Inconformados os autores interpuseram recurso de apelação, cujas alegações de fls. 162 a 173, terminam com as seguintes conclusões:

O recurso da decisão que declarou divisível o imóvel e fixou os quinhões é uma decisão que julgou o mérito da causa e por isso, da mesma cabe recurso de apelação.
A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial depende da verificação simultânea quer dos requisitos civis previstos no artigo 1417º do Código Civil, quer dos requisitos administrativos fixados no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
Uns e outros constituem, não meros pressupostos processuais, mas sim verdadeiros e próprias condições de procedência da acção.
O Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação é muito claro relativamente à exigência da certificação pela Câmara Municipal competente de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em propriedade horizontal.
Não é assim, possível conceber a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial sem a observância de todos os requisitos legais, incluindo os de natureza administrativa.
Impunha-se que tivesse sido demonstrado a verificação em concreto dos requisitos de natureza administrativa.
Tal não sucedeu, sendo que no caso sub judice se impunha tal demonstração, tendo em conta as pertinentes objecções que o perito nomeado pelos recorrentes colocou à afectação do imóvel em propriedade horizontal.
Acresce ainda que, segundo o relatório maioritário, o imóvel no estado em que se encontra teria de ser submetido a obras para que pudesse ser afecto ao regime de propriedade horizontal, obras essas, que naturalmente carecem de autorização – licenciamento – por parte da Câmara Municipal.
Os artigos 62º a 66º do DL 559/99 evidenciam inequivocamente que a certificação pela Câmara Municipal competente, dos requisitos legais para afectação do imóvel ao regime de propriedade horizontal, é um elemento que não pode deixar de estar à disposição no momento em que, por via de uma sentença a proferir na acção de divisão de coisa comum.
Sendo que a falta de certificação constitui nulidade do título constitutivo, de acordo com o n.º 3 do artigo 1418º do Código Civil.
As normas referidas são de interesse e ordem pública e, por isso mesmo insupríveis.
Não existindo nos autos tal certificação nunca o tribunal poderia declarar o imóvel dividido em duas fracções, como aconteceu no caso presente.
A sentença que declarou divisível em substância o imóvel e declarou fixados os quinhões, violou o disposto nos artigos 1415º, 1416, n.º 1, 1418º, do Código Civil e ainda o disposto nos artigos 62º a 66º, do Decreto-Lei n.º 559/99, com a alteração do Decreto-Lei n.º 177/01 de 4/6.

Não foram apresentadas contra-alegações a este recurso.

Colhidos os visto, cumpre decidir

II – Nos termos do artigo 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do artigo 660º do mesmo código.
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A questão a decidir é a de saber se, no caso poderia ser declarado que o prédio era divisível.
Quanto ao tipo de recurso e seu efeito, já foi decidido oportunamente que o mesmo é de apelação.

Conforme resulta dos autos, os autores instauraram uma acção de divisão de coisa comum, para a adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, por a considerarem indivisível.

Os réus foram citados e, na sua contestação alegaram, que o prédio era divisível.
Foi então ordenada uma perícia e proferida a sentença descrita, e fixados desde logo os quinhões.
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Como dispõem o n.ºs 2 e 3 do artigo 1053º do Código de Processo Civil, se houver contestação, e as questões suscitadas pelo pedido de divisão puderem ser sumariamente decididas, o juiz produzidas as provas, profere logo decisão , aplicando-se o disposto no artigo 304º.
Se verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida mandará seguir os termos subsequentes à contestação, do processo comum, adequados ao valor da causa.
Posteriormente, se o juiz entender que nada obsta à divisão em substância da coisa comum, as partes indicarão os respectivos peritos, sendo a perícia destinada à formação dos quinhões, e efectuado este o juiz decide, aplicando-se o disposto no artigo 304º - n.º 3 do artigo 1054º do Código de Processo Civil.

Assim, na presente acção, tendo logo sido suscitada a questão da indivisibilidade, pelos autores, o Mmº Juiz, certamente porque entendeu poder decidir sumariamente, ordenou a realização da perícia e proferiu a decisão acima transcrita, entendendo ser de sufragar, o relatório maioritário.
Conforme resulta do disposto no artigo 304º do Código de Processo Civil, “finda a produção da prova, o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados observando, com as devidas adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 653º.
Como é bom de ver, a sentença proferida, não só não especifica os fundamentos de facto, como também não especifica os fundamentos de direito que justifiquem a decisão.
A mesma limita-se a aderir ao relatório maioritário e a declarar divisível o prédio.
E por isso a sentença é nula de acordo com o disposto no artigo 668º alínea b) do Código de Processo Civil.
O facto de a decisão ser sumária, e ao abrigo do citado artigo 304º não significa que não tenha que ser fundamentada.

No entanto, e ao abrigo do disposto 715º, n.º 1 do Código de Processo Civil, importa conhecer do objecto da apelação.
Dispõe o artigo 1412º do Código Civil que, que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.
A divisão pode ser amigável ou nos termos da lei do processo (artigo 1413º do citado código).

O conceito de divisibilidade que consta do artigo 209º do Código Civil, é um conceito jurídico e não um conceito físico-material.
Para que se possa concluir, de um ponto de vista jurídico, pela divisibilidade de uma coisa corpórea torna-se necessário que : não se altere a sua substância ; que não haja diminuição do seu valor, e que não seja prejudicado o uso da coisa (neste sentido, Acs. do STJ de 12/12/89, BMJ 392, pág. 458, e de 14/10/04, CJ Acs do STJ , Ano XII, t. 3, pág. 58 e da Relação de Coimbra de 7/3/95, CJ, Ano XVI, t. 2, pág. 8)
Se falta qualquer um destes requisitos, a coisa é indivisível.
Tem ainda que se atender ao que o prédio é e não ao que poderá vir a ser.

Dispõe o artigo 1417º do Código Civil que a propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.
Mas, para a propriedade horizontal se constitua por decisão judicial, é necessário que se verifiquem os requisitos exigidos pelo artigo 1415º do citado código.
E nessa conformidade, só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio, ou para a via pública.
A falta de requisitos legais importa a nulidade do título.
Ora, para que na acção se pudesse decidir pela divisibilidade, teria que constar dos autos, a aprovação da Câmara Municipal de Viana do Castelo.
Com efeito, e como alegam os recorrentes o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei 559/99 de 16 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 177/01, de 4 de Junho – artigos 62º a 66º - é expresso relativamente à exigência de certificação pela Câmara Municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em propriedade horizontal.

O tribunal não pode decidir pela constituição da propriedade horizontal, sem a observância dos requisitos legais.
E nessa conformidade, tendo os réus alegado que o prédio é divisível, através da constituição da propriedade horizontal, deveriam ter desde logo comprovado tal facto nos autos.
Mas os recorridos limitaram-se a alegar que o tribunal se assim o entendesse, solicitasse à Câmara a vistoria.
Não fizeram prova, como lhes competia de que pediram à Câmara tal certificação, e que o prédio reunia as condições previstas e exigidas administrativamente.
Ora, não é o tribunal que se o entender tem de requerer à Câmara a vistoria, são os réus que têm de alegar e provar que o prédio reúne todas os requisitos administrativos e jurídicos para se proceder à constituição da propriedade horizontal, e decidir pela sua divisibilidade.

E assim sendo, para além dos outros requisitos de divisibilidade, que não foram apreciados, nomeadamente, que só é possível a divisão eliminando a piscina, e realizando outras obras, dir-se-á que não consta dos autos que estão preenchidos os requisitos que possibilitam a constituição da propriedade horizontal, pelo que se tem de concluir pela indivisibilidade do prédio.
Como se refere no acórdão do STJ de 29/11/06, publicado na CJ , Acs do STJ, Ano XIV, t. 3, pág. 140, “a existência da certificação teria que ser invocada em tempo útil, pela parte interessada como facto condicionante da procedência daquele, senão mesmo , mais precisamente como facto constitutivo do direito alegado e integrado na causa de pedir (arts. 342º, n.º 1do CC, e 264º n.º 1 do CPC); não o tendo sido, não se tornou, logicamente, um facto de que ao julgador fosse lícito conhecer e tomar em consideração na sentença por sua iniciativa, já que o princípio do inquisitório não vigora entre nós relativamente aos factos da causa que não sejam meramente instrumentais (arts. 264º, n.º 2 e 664º)”.

E assim, não tendo os réus demonstrado que, no caso, estão verificados os requisitos administrativos, para que seja constituída a propriedade horizontal, terá que se concluir pela indivisibilidade legal do prédio.

Concluindo-se pela indivisibilidade do prédio, a acção terá que prosseguir , para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 1056º do Código de Processo Civil.
E nesta medida, todo o processado subsequente à sentença recorrida deve ser anulado, convocando-se nova conferência, ficando também prejudicados os recursos de agravo interpostos após a sentença.
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III - Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida nos seguintes termos:
Julga-se a acção procedente e, em consequência declara-se indivisível o prédio objecto dos autos.
Anula-se todo o processado subsequente à sentença .
Custas da apelação pelos recorridos.

Guimarães, 22/11/07