Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
115/02.0TAFAF
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: CADÁVER
REMOÇÃO DE CADÁVER
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: O conceito de cadáver acolhido no tipo penal do artigo 254º do Código Penal, mormente na al. a) do seu nº1, abrange todos os despojos de uma pessoa falecida, mesmo que reduzidos ao esqueleto ou ossadas.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães


I. Relatório

[1] Por sentença proferida em 13/03/08 nos presentes autos com o NUIPC 115/02.0TAFAF, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, foi o arguido M.P. condenado pela prática de um crime p. e p. pelo artº 254º, nº1, al. a) do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), perfazendo a multa global de €800,00 (oitocentos euros). Mais foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante/assistente M. M. F. L. C. F. e condenado o arguido/demandado a pagar-lhe a compensação de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
[2] O arguido recorreu para esta Relação, vindo a ser decidido, por acórdão de 15/09/2008, declarar a nulidade da sentença recorrida e determinar a prolação de nova sentença que obedecesse completamente ao disposto no artº 374º, nº2, do Código de Processo Penal.
[3] Regressado o processo à 1ª instância, em 03/11/2009 foi proferida nova sentença, na qual voltou o arguido a ser condenado pela prática de um crime p. e p. pelo artº 254º, nº1, al. a) Pese embora se aluda na sentença à alínea b) do preceito, trata-se de lapso de escrita evidente. do Código Penal, mas agora em pena e em indemnização distinta, designadamente na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), perfazendo a multa global de €1.000,00 (mil euros), e na compensação de €2.000,00 (dois mil euros).
[4] Inconformado, veio o arguido recorrer para esta Relação, deixando a seguinte síntese conclusiva:

1°- O ora recorrente não se conforma com a douta sentença que o condenou, pela prática de um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p., pelo artigo 254º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 10,00 e no pagamento da quantia de €2.000,00, a título de indemnização civil, proferida após determinação deste Tribunal para que em nova sentença se sanasse o vício de falta de fundamentação.

2°- O Tribunal "a quo" incorreu num erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como provados os factos constantes dos pontos 1., 2., 3. e 5.

3°- Dentre toda a prova produzida em audiência de julgamento, o depoimento do executor material da limpeza ao jazigo, registado na fita magnética n.° 1, lado A, do n.° 201 ao n.° 417, é a chave mestra para se apreciar da prática ou não do ilícito penal:

4°- É o único que conhece as instruções dadas; e

5°- É o único que "conhece" a limpeza executada e o modus operandi.

6º- Testemunha que declarou que apenas lhe foi pedida a limpeza por quem era proprietário do jazigo e que exibiu a licença camarária para a mesma limpeza — o arguido — e que não disse para retirar quaisquer cadáveres ou ossadas e que, porventura, nem sabia da sua existência. Mais declarou que colocou o caixão com as ossadas intactas, junto ao jazigo.

7°- As declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha, entretanto, falecida, não podem, desde logo, ser valoradas, pois que a sua leitura não é permitida — artigo 125° C.P.P. conjugado com o n.º 4 do artigo 365° do mesmo diploma — uma vez que não foram prestadas perante juiz ou Ministério Público.

8°- Independentemente disso, a testemunha limitou-se a corroborar as declarações do colega que veio a retirá-las, em sede de audiência de julgamento, momento em que já sabia que lhe não seria assacada qualquer responsabilidade penal, o que, em momento anterior, ou seja, em fase de inquérito, temeria, pois que havia sido ele, ao lado do coveiro falecido, co-autor dos factos.

Assim, de toda a prova produzida

9°- Não resultou provado que o arguido tivesse dado "indicações (aos coveiros) para que procedessem à limpeza do jazigo, nomeadamente que retirassem do mesmo os cadáveres ou as partes deles que aí se encontrassem.

10°- Não resultou provado que os coveiros tivessem retirado as ossadas e as tivessem colocado num espaço, na terra; pelo contrário, resulta do depoimento do coveiro que as ossadas ficaram intactas, dentro do caixão, e junto ao jazigo.

11º- Não resultou provado que "O arguido sabia que na sepultura em questão se encontravam depositados cadáveres.".

12°- Aliás, não resultou provado que ali houvesse qualquer cadáver, mas tão só ossadas.

13°- Como não resultou provado que o arguido tivesse agido em desrespeito pelos sentimentos pelos defuntos.

14°- Uma vez mais, a fundamentação da sentença peca por vício de falta de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 3740, n.° 2 e 379°, n.° 1, al. a), ambos do C.P.P.

15°- O Tribunal "a quo" baseou-se apenas na dita "experiência comum", pois que manteve ipsis verbis a fundamentação no que respeita ao depoimento da ofendida M. F. e, relativamente ao depoimento do coveiro A. R., ficou-se por afirmar a calma e simplicidade do seu depoimento, não demonstrando de que forma o conteúdo dos mesmos depoimentos serviu para alicerçar a factualidade apurada e, concretamente, a factualidade ora posta em crise, pois como supra alegado, em nosso modesto entendimento, essa tarefa não é possível...

16°- No que toca ao aditamento acerca das declarações lidas, em audiência de julgamento, do coveiro, entretanto, falecido, dá-se aqui por reproduzido o supra alegado sob os pontos 7 e 8 das conclusões.

17°- Do supra exposto resulta que se mantém o vício, porquanto não é possível compreender o itinerário cognitivo do tribunal

18°- Ainda, é errada a subsunção dos factos à previsão do artigo 254°, n.° 1, al. a) do Código Penal.

19°- O arguido não subtraiu, destruiu ou ocultou cadáver ou parte dele ou cinzas de pessoa falecida, porquanto em momento posterior à ordem de limpeza do jazigo, os coveiros limitaram-se a manter as ossadas dentro do caixão, intactas, e junto ao jazigo, nunca as retirando da guarda de quem sobre elas tem direito e sabendo precisar o local exacto onde se encontram.

20º- Como, igualmente, o arguido não violou o respeito devido aos mortos - elemento constitutivo do tipo legal de crime -, conforme decorre do explanado acerca do ponto 5 dos Factos Provados; entendimento, aliás, sufragado pelo Tribunal da Relação do Porto, nos Acórdãos n.° JTRP00009699 e JTRP00031694, ambos em www.dgsi.pt.

21°- Donde se impõe a absolvição do arguido.

22º- Finalmente, o agravamento da medida da pena e do quantum indemnizatório é violador da lei processual e da Lei Fundamental.

23°- A razão de ser do princípio da reformatio in pejus, contido no artigo 409° do C.P.P., tem plena aplicação ao caso concreto, sob pena de que o exercício de um direito de defesa redunde em dano da própria defesa.

24°- Conforme foi decidido pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.° 236/2007, julgou-se " inconstitucional, por violação do artigo 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 409.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado na sequência de recurso unicamente interposto pelo arguido".

25°- O caso dos autos assume ainda maior gravidade por maior ser a violação, pois que o julgamento é um só — este Tribunal apenas determinou que o Tribunal "a quo" proferisse nova sentença, para sanação do vício de falta de fundamentação -, a matéria de facto está fixada, isto é, está assente, segundo o Tribunal "a quo", a ilicitude e a culpa e as respectivas medidas, como assim, não resulta dos autos a apreciação de uma eventual alteração (melhoramento) da situação económica e financeira do arguido.

26º- Em sede de fundamentação daquele Acórdão, entre várias outras citações, designadamente de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, pomos em relevo o estudo de Jorge Dias Duarte, "Proibição da reformatio in pejus, Consequências processuais": "a actual compreensão do processo penal como um processo equitativo, em que está constitucionalmente consagrada a estrutura acusatória do processo, com pleno relevo do princípio da acusação, implica o entendimento da proibição de reformatio não, apenas, como um princípio dos recursos, mas como um princípio de todo o processo; de tal compreensão resulta nítida a conclusão de que, interposto recurso apenas pelo arguido (ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido), tal recurso estabelece um limite à actividade jurisdicional do tribunal ad quem, que, assim, não poderá alterar a decisão em desfavor do arguido (repete-se, único) recorrente; tal limite será plenamente operante mesmo para os casos em que o arguido tenho suscitado uma questão que implique a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal, que não poderá(ão) condenar em pena mais grave do que aquele que é posta em causa no recurso, pois esta é, aliás, a única forma a obviar à possibilidade da reformatio indirecta, isto é, consiste na única forma de impedir que o tribunal do novo julgamento ou de reenvio tenho mais poderes que o tribunal de recurso não tinha".

27º - Pelo que, a não ser o arguido absolvido, o que não se concebe, sempre deverá a medida da culpa e o quantum indemnizatório ser mantido ou reduzido, relativamente à primeira das sentenças proferidas.

Termos em que, revogando a douta sentença e, consequentemente, absolvendo o arguido, fará este Venerando Tribunal, como sempre, Justiça

[5] O Ministério Público, através do Sr. Procurador-adjunto junto do Tribunal a quo, apresentou resposta, na qual, em síntese, considera a prova foi correctamente ponderada e que não foi infringida proibição da reformatio in pejus, porque permitida pelo artº 409º, nº2 do CPP a alteração da taxa diária de multa, pese embora injustificada no caso concreto. Termina pela revogação da decisão recorrida nessa parte.
[6] Por seu turno, a assistente respondeu, defendendo o acerto da decisão e a improcedência do recurso.
[7] Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
[8] Colhidos os vistos, procedeu-se a conferência.

II. Fundamentação

2.1. Delimitação do objecto do recurso

[9] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247. no sentido de que o âmbito do recurso delimita-se face às conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.. Tendo em atenção a concreta conformação das conclusões, as questões colocadas são as seguintes:
a) Nulidade da sentença, por falta de fundamentação;
b) Nulidade da sentença, por excesso de pronúncia;
c) Impugnação ampla da decisão em matéria de facto;
d) Verificação dos elementos essenciais do crime tipificado no artº 254º, nº1, al. a) do Código Penal.
[10] Importa aqui explicitar a razão que conduz a que nesse elenco não se inclua a redução da pena de multa para montante inferior ao que resultava da primeira sentença - €800,00 – e também do valor da indemnização, apesar dos termos da 27ª conclusão. Acontece que, percorrendo o corpo da motivação não se encontra qualquer argumento ou a menor referência nesse sentido, pelo que estamos perante preposição excessiva (não emana do texto que deve sintetizar) e em violação do disposto no nº2 do artº 412º do Código de Processo Penal, não podendo ser conhecida.

2.2. Da sentença recorrida (quanto aos factos)

[11] Os termos da sentença recorrida, no que tange aos seus fundamentos de facto, são os seguintes:

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. Em data que não se conseguiu apurar, mas que se situa no início do ano de 2002, o arguido procurou A. D. O. e A. F. R., coveiros no Cemitério Municipal de Fafe e, na qualidade de proprietário do jazigo com o número trinta e sete (37) situado no talhão "D" do referido Cemitério, deu-lhes indicações para que procedessem à limpeza do jazigo, nomeadamente que retirassem do mesmo os cadáveres ou as partes deles que aí se encontrassem.

2. Os dois referidos funcionários, na convicção de que a titularidade do direito de propriedade sobre a sepultura em questão dava ao arguido o direito de proceder à remoção dos cadáveres que se encontrassem depositados no mesmo e convencidos dessa mesma titularidade, procederam à limpeza da sepultura por dentro, tendo retirado as ossadas que aí se encontravam e colocado as mesmas num espaço, na terra, junto da aludida sepultura.

3. O arguido sabia que na sepultura em questão se encontravam depositados cadáveres.

4. O arguido bem sabia e não podia ignorar que não lhe era permitido por lei ordenar ou dar indicações para proceder à deslocação das ossadas que se encontravam depositadas na sepultura em questão, sem o prévio consentimento ou autorização dos familiares das pessoas que aí tinham sido sepultadas, ou então da própria Câmara Municipal de Fafe.

5. O arguido bem sabia e não podia ignorar que, ao actuar como actuou, violava o sentimento de piedade para com defuntos, por parte da colectividade.

6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. Em tal Jazigo estavam sepultados, desde os respectivos falecimentos, os avós da demandante, A. L. de C. S. e sua esposa E. da S. P. de C., falecidos a 14.05.35 e 23.04.69, respectivamente, bem como o seu pai, A. L.de C., filho daqueles, falecido a 08.07.84.

8. A demandante sentiu uma grande dor ao saber que as ossadas do pai e avós foram mexidas e removidas.

9. As respectivas ossadas ainda não lhe foram entregues.

10. O jazigo encontrava-se com os componentes de ferro enferrujados e os de pedra muito sujos, tendo o arguido, após a sua compra, solicitado à Câmara Municipal desta cidade a respectiva licença para proceder à sua limpeza, o que veio a fazer.

11. O arguido é primário, com bom comportamento anterior e posterior aos factos, pessoa com boa formação moral e considerada no seu meio.

Não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente constantes da contestação.

*

A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o tribunal formou sobre a mesma, em função da credibilidade das declarações e depoimentos prestados, nomeadamente do conhecimento dos factos demonstrados e da isenção manifestada, sendo fundamental as declarações da ofendida, M. M. F. L. C. S. F., referindo que, no dito jazigo, estavam os restos mortais dos seus avós e pai, não sabendo, agora, onde os mesmos se encontram; nos depoimentos de António Ferreira Ramos, coveiro do cemitério, à data dos factos, que procedeu à limpeza interior do jazigo a mando do arguido, de onde retirou ossadas, mencionando o estado exterior do mesmo, depoimento este que foi prestado de modo calmo e simples, não deixando dúvidas sobre a sinceridade do seu depoimento, o qual foi corroborado com a leitura das declarações do outro coveiro, entretanto falecido, A. D. O., efectuadas em 31.10.2002, afirmando ambos "foram contactados pelo senhor M. P. para procederam à limpeza de uma sepultura e que daí retirassem as ossadas que porventura aí existissem, sepultura sita no talhão "D", n° 37; de S. de F. A., pessoa que vendeu o jazigo ao arguido; de F. A. M., de D. F. e de A. da C. L., pessoas, sendo das relações do arguido, se referiram ao comportamento e personalidade do arguido; e ainda do RCR, junto aos autos.

Assim, pelo que se deixou dito e de acordo com as regras da experiência comum, dúvidas não temos que o arguido mandou os coveiros proceder à limpeza interior da sepultura em causa e ordenou que daí retirassem as ossadas que aí existissem, uma vez que, toda a pessoa normal, e o arguido é, tem conhecimento que numa sepultura tem no seu interior, muitas ou poucas ossadas de seres humanos.

Quanto aos não provados, resultaram da ausência de prova da veracidade dos mesmos, não abalando o juízo positivo formulado quanto aos factos imputados ao arguido.

2.3. Da nulidade, por falta de fundamentação

[12] A primeira questão a apreciar flui da 14ª conclusão, na qual o recorrente sustenta que a sentença volta a estar viciada por falta de fundamentação e pede que se declare a nulidade prevista nas disposições conjugadas nos artºs 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a) do Código de Processo Penal.
[13] O artº 374º, nº2, do CPP contempla as exigências de fundamentação da sentença penal, desenvolvendo o imperativo constitucional constante do artº 205º, nº1, da CRP Artº 205º da CRP: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.. Face a esse preceito, o acórdão comporta necessariamente, sob pena de nulidade, a enumeração dos factos provados e não provados, de forma a assegurar que o Tribunal ponderou todos os factos relevantes; a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos que conduziram à decisão, por referência às fontes de prova; e, finalmente, a explicitação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, ou seja, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou critérios lógicos, constituem o substrato lógico-racional que conduziu a que a convicção probatória se determinasse num dado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios probatórios» Ac. do STJ de 29-03-2006, relator Conselheiro Santos Monteiro, Pº 06P478, www.stj.pt., sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão não é ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras de experiência comum.
[14] Num Estado de Direito Democrático as decisões judiciais impõem-se pela razão que lhes subjaz, não pela autoridade de quem as profere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289., pelo que a fundamentação assegura, a um tempo, a independência e imparcialidade da decisão, porque assente exclusivamente no apuramento objectivo dos factos e na interpretação válida da norma de direito Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, BFDUC, 1979, vol L, págs. 31-32., e a sua legitimação externa, através da possibilidade que confere aos cidadãos de verificar os pressupostos e critérios valorativos que determinaram o juízo, situando-se então esse dever no cerne do «compromisso» democrático do órgão de soberania «tribunais» com o Povo, em nome do qual administra a Justiça Ac do STJ de 20/04/2006, relator Conselheiro Rodrigues da Costa, Proc. 06P363, www.dgsi.pt. Sobre a evolução e dimensão da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, destaquem-se os arestos do Tribunal Constitucional nº 680/98, 147/2000, 258/2001 e 61/2006.. Por outro lado, numa perspectiva intraprocessual, a exigência de fundamentação respeita ainda a finalidade de atingir o convencimento dos sujeitos processuais e, quando tal não acontece, a reapreciação da decisão no âmbito do sistema de recursos, permitindo ao tribunal superior conhecer o processo de formação do juízo lógico-racional contido na decisão recorrida para, sobre tais fundamentos, quando impugnados, formular o seu próprio juízo Essa tríplice função da obrigação de fundamentação encontra-se em muitas decisões do STJ, de que é exemplo o Ac. de 25/06/2009, Pº 537/03.0PBVRL, relator Conselheiro Oliveira Mendes, e em Paulo Saraggoça da Matta, A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, 221 e segs. Cfr., Igualmente a prelecção do Conselheiro Pires da Graça intitulada Aspectos metodológicos do discurso judiciário, acessível em www.stj.pt ..
[15] Recorde-se que a sentença recorrida deve obediência a aresto desta Relação que declarou a nulidade e determinou que sanasse vício de fundamentação relativamente ao exame crítico das provas. O cerne dessa decisão encontra-se na seguinte passagem, a fls. 373:

Na verdade, o tribunal a quo enuncia as provas mas não avança na sua problematização, isto é, não revela em que medida é que as concretas provas serviram para dar como provada a responsabilidade do arguido.

Porque é que das provas enunciadas na motivação se chega à demonstração de que o arguido/recorrente deu indicações aos coveiros «para que procedessem à limpeza do jazigo, nomeadamente que retirassem do mesmo os cadáveres ou as partes deles que aí se encontrassem», que «o arguido sabia que na sepultura em questão se encontravam depositados cadáveres» e que «o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei».

Em que medida é que as testemunhas M. M. (testemunha tida por fundamental no apuramento dos factos) e o coveiro A. R. confirmaram a factualidade supra referida, facticidade essa que é essencial para a atribuição da imputada responsabilidade criminal ao arguido?

[16] Ora, o processo de formação da convicção do Tribunal, e o exame crítico sobre as provas que incidiram sobre esses concretos aspectos, encontrou na sentença recorrida, externalização idónea a compreender o substracto lógico-racional da decisão recorrida. Embora em termos que bem poderiam ter sido menos enxutos, explicitou-se que o Tribunal ficou convencido de que o arguido sabia da presença de restos mortais no interior do jazigo que mandou limpar porquanto, de acordo com a experiência comum, essa determinação significa que havia «algo» a limpar, o que, referido a um espaço daquela natureza, só podia dizer respeito a ossadas de seres humanos.
[17] Aliás, percorrendo a motivação, verifica-se que o recorrente compreendeu isso mesmo quando refere que o tribunal se fundou na experiência comum e que se procedeu a «meros arranjos» que não demonstram os factos dados como provados, ou seja, o recorrente parte da falta de adesão ao raciocínio de valoração de prova expendido e revelado na sentença para considerar que esta não contém a devida fundamentação. Estamos, então, no plano da persuasão do juízo, e já não no da imperceptibilidade do mesmo.
[18] Inexiste, pelo exposto, o apontado vício.

2.4. Da nulidade, por excesso de pronúncia

[19] A segunda questão a conhecer emerge da circunstância de, confrontado com decisão desta Relação que determinava a prolação de nova sentença que expurgasse o vício de falta de fundamentação, o Tribunal a quo ter alterado a medida da pena, na vertente da taxa de diária da multa. Sustenta o arguido que desse modo foi violado o princípio de reformatio in pejus, acolhido no artº 409º do CPP, ao que contrapõe o Ministério Público com o disposto no nº2 do preceito.
[20] Com efeito, de acordo com o nº2 do artº 409º do CPP, a proibição de reformatio in pejus não se aplica à agravação da quantia fixada para cada dia de multa, se a situação económica e financeira tiver entretanto melhorado de forma sensível. Foi o que aconteceu, tendo o julgador fixado na segunda sentença taxa superior (€10,00) à estabelecida na primeira sentença (€8,00), sem avançar, para tanto, com a menor justificação, mormente no plano da situação económico-financeira do arguido.
[21] Cremos, porém, que o Tribunal a quo incorreu noutro vício, o qual determina a nulidade da segunda decisão, nessa parte. É que a sentença proferida em 13/03/08 não foi anulada in totum e subsiste válida nas partes não afectadas pela decisão desta Relação, na medida em que a sentença nula não se confunde com a sentença inexistente. Sobre esse problema, diz o Ac. do STJ de 14/05/2008 Proferido no Pº 08P1672, relator Conselheiro Raul Borges, www.dgsi.pt. :
«No nosso caso o acórdão condenatório está ferido de nulidade, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP, vício que se não confunde com o da inexistência jurídica.
Nesta estão em causa vícios do acto mais graves do que os que a lei prevê como constituindo nulidades. A função da inexistência - categoria que foge a toda a previsão normativa - é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado - a inexistência, ao contrário das nulidades, é insanável.
Tal categoria afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua sanação. Declarada a invalidade do acto é ordenada a sua repetição e aproveitados todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela, regressando o processo ao estádio em que o acto nulo foi praticado. (cfr. a propósito, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume II, 88). Para Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I volume, edição dos SSUL, 1972-1973, p. 285/9, a anulação de um acto supõe a sua existência jurídica; há que declarar a sua nulidade. O acto pode porém, não ter consistência jurídica, e enquanto inexistente não carece mesmo de ser objecto de anulação. (…) O acto nulo não produz quaisquer efeitos, mas, em si mesmo, não seria inidóneo para os produzir; inexistente é o acto que não só não produz quaisquer efeitos jurídicos, como em caso algum poderia produzir. O primeiro é inidóneo, em acto, para a produção de efeitos jurídicos; o segundo é inidóneo também em potência. Os actos nulos, ao contrário dos inexistentes, têm ainda idoneidade para originar caso julgado. (…) Um acto inexistente não é susceptível de produzir quaisquer efeitos, e é por isso que não carece de ser anulado, nem o acto se refaz ou a inexistência é absorvida pelo trânsito em julgado; o acto judicial inexistente não dá nunca lugar a caso julgado. Os actos inexistentes não carecem de ser anulados».

[22] Ora, o acórdão desta Tribunal da Relação foi claro na determinação de quanto à parte da sentença que deveria ser reformulada: a motivação da decisão de facto e, especificamente, o exame crítico da prova. Nada mais.
[23] Assim, ao modificar o antes decidido, o Tribunal a quo excedeu manifestamente os seus poderes de cognição, pronunciando-se novamente sobre questão em relação à qual já exercera validamento o seu poder jurisdicional, esgotando-o. Em consequência, verifica-se nesse ponto a nulidade prevista na parte final da al. c) do nº1 do artº 379º do CPP, com a consequência de invalidar aquele novo pronunciamento, sem impor a repetição da sentença. De acordo com o princípio de aproveitamento dos actos não afectados pela nulidade, consignado no artº 122º do CPP, prevalece a fixação do valor da taxa diária de multa em €8,00 (oito euros).

2.5. Da impugnação ampla da decisão em matéria de facto

[24] Passemos agora à impugnação alargada da decisão em matéria de facto, cumprindo explicitar o seu alcance, frequentemente incompreendido. Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº3 do mesmo código. Tem sido salientado a uma voz pelos Tribunais Superiores que o recurso em matéria de facto é de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder a efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, mormente por confronto desta com a documentação – registo áudio ou audiovisual - da prova produzida oralmente na audiência. Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente Ac. do S.T.J. de 17/05/2007, Pº 071397, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, dentre a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, acessível no mesmo sítio internet, os Acs. de 23/05/2007, Pº 07P1498, relator Conselheiro Henriques Gaspar, 14/03/2007, Pº 07P21, relator Conselheiro Santos Cabral, e de 15/03/2007, Pº 07P610, relator Conselheiro Pereira Madeira, entre muitos..
[25] Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à utilização do recurso apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei 48/2007, de 29/8, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos O que foi justificado na proposta de Lei nº 109X da seguinte forma: «No âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas da morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência de transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder à respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes»., impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 5 do artº 412º do CPP). Tal exigência justifica materialmente a extensão do prazo de recurso de 20 para 30 dias Sem elaborar sobre a necessidade para o exercício da defesa de tal prazo, não pode deixar de se confrontar o mesmo com o prazo concedido pelo legislador para a prolação de sentença nos casos de especial complexidade – 10 dias, nos termos do artº 373º do CPP – e para a elaboração de projecto de acórdão ou elaboração da decisão – 15 dias, nos termos dos artºs. 417º, nº9 e 425º, nº3, do CPP..
[26] Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza os pontos de facto que reputa de incorrectamente julgados: pretende a modificação da decisão de prova dos factos constantes dos pontos 1, 2, 3, e 5, passando todos para o elenco dos não provados. Encontra-se, então, respeitado o ónus imposto pela al. a) do nº3 do artº 412º do CPP.
[27] Verifica-se igualmente que o recorrente indica as provas que, no seu entender, impõem – esse é o critério legal – decisão diversa da recorrida, a saber, segmentos dos depoimentos de A. F. R. e M. J. G. C., que concretiza, e também as declarações produzidas em inquérito pela falecida testemunha A. O..
[28] Começando por estas últimas, evoca o recorrente o disposto no artº 356º, nº4, do CPP, para sustentar a ilegalidade da leitura em audiência das suas declarações em inquérito e, inerentemente, da valoração dessa prova na sentença, na medida em que não foram prestadas perante Juiz ou magistrado do Ministério Público. Porém, decorre da acta de 365, que a sua posição de não oposição relativamente a essa mesma leitura, requerida pela assistente, foi correctamente interpretada como de concordância, sem reacção da sua parte, o que significa que o acto encontra a cobertura do acordo entre todos os sujeitos processuais, nos termos permitidos pelo nº5, com referência à al. b), do mesmo artº 356º do CPP.
[29] Verifica-se, ainda, da mesma acta de fls. 365 que a leitura cingiu-se ao auto de fls. 48, onde se encontra exarado simplesmente «confirma na íntegra as anteriores declarações prestadas pelo seu colega A. F. que neste acto lhe foram lidas por as mesmas corresponderem à verdade». Ora, não tendo sido igualmente lidas em audiência as declarações prestadas em inquérito de A. F., constantes de fls. 49, a sua ponderação encontra-se proibida pelo disposto no artº 355º, nº1 do CPP, o que, por sua vez, deixa sem conteúdo a referida leitura. O que quer que tenha sido confirmado pela testemunha A. O., não pode ser conhecido.
[30] Dito isto, ouvidos os segmentos evidenciados pelo recorrente e contextualizados perante toda a prova gravada, cumpre concluir que não se impõe decisão diversa da recorrida, pois esta é inteiramente razoável.
[31] A linha argumentativa do recorrente centra-se na defesa de que não sabia que se encontravam ossadas no interior do jazigo quando deu indicação de limpeza do mesmo, conduta que aceita, e que esse desconhecimento ficou demonstrado pelo depoimento em audiência de A. F. R.. Todavia, não lhe assiste razão.
[32] Nota-se claramente na audição do registo gravado que essa testemunha usou de cautela, ciente da fronteira ténue para a sua responsabilização por conduta que sabia errada, cingindo-se ao que lhe foi dito e ao sentido que retirou das palavras do arguido. A valoração desse depoimento na sua integralidade conduz à conclusão de que não afiançou que o arguido tinha perfeito conhecimento do que se encontrava no interior do jazigo, nem o seu oposto, pese embora tenha sido sugestionado a fazê-lo. Com efeito, em flagrante desrespeito pelo disposto no artº 138º, nº2, do CPP, é o defensor do arguido, e não a testemunha, que avança, em jeito de conclusão: «... toma conhecimento depois de fazer essa limpeza ...», mas excedendo de forma gritante o que havia sido dito pela testemunha. Então, a afirmação do recorrente de que «a testemunha não hesitou em afirmar que o arguido não o mandou retirar cadáver nenhum ou ossadas e que só tomou conhecimento da existência dos caixões após lhe ter sido comunicado» não encontra correspondência com a realidade. Aliás, mais adiante, o próprio recorrente reconhece que o sentido geral das declarações de A. R. foi o de que o arguido sabia da existência de restos mortais dentro do jazigo, embora admita que não tivesse conhecimento de como estavam acondicionados, tanto assim que, de forma genérica e indistinta, os «mandou guardar».
[33] Ora, a probabilidade de se encontrarem despojos humanos, mesmo que reduzidos a ossadas, num jazigo antigo (mais de 60 anos) é muitíssimo elevada, o que faz esperar, segundo a experiência comum – construída a partir da observação de situações similares –, que quem despende dois milhões de escudos (cfr. escritura de fls. 15 a 17) pela titularidade desse espaço procure inteirar-se sobre o mesmo e avalie as respectivas contingências, mormente no plano administrativo, com referência aos corpos inumados no local. Note-se, nesta linha, que o arguido, construtor civil de profissão, soube dirigir à Câmara Municipal de Fafe o pedido de pintura das grades e limpeza da pedra, como resulta de fls. 267, depois de, como disse em audiência, ter tentado adquirir um jazigo naquele cemitério durante vinte anos, ao longo dos quais diligenciou várias vezes junto dessa mesma Câmara no sentido de apurar da existência de jazigos para venda. Por outro lado, a indicação de «limpeza», referida ao conteúdo de um jazigo de pedra, comporta claramente o sentido de remoção de tudo o que aí se encontrava contido, ou seja, de desocupação de quaisquer restos mortais remanescentes, e não propriamente a mera retirada de detritos. Foi esse o sentido que A. F. R. retirou das palavras do arguido, i.e. como ordem de desocupar o jazigo, proferida por quem acreditava estar munido de condição jurídica que lho permitia, e é esse, efectivamente, o sentido que qualquer destinatário normal retira da declaração, nas circunstâncias em que foi proferida.
[34] Nestes termos, a avaliação do depoimento de A. F. R. efectuada pelo Tribunal a quo, para mais enriquecida por elemento que só a imediação permite – as hesitações, os olhares, os gestos, os suores, as expressões faciais, em suma, toda a panóplia de particularidades que compõem a comunicação não-verbal, inapreciáveis a partir da simples audição de registo sonoro – mostra-se inteiramente razoável e suporta o facto dado como provado com o nº 1, mormente quanto ao conteúdo e propósito da ordem de «limpeza» do jazigo.
[35] No que tange ao facto com o nº2, a discordância do arguido cinge-se à indicação de que as ossadas foram colocadas na terra, junto à sepultura. Contrapõe o arguido que a testemunha disse que o que foi retirado encontra-se dentro de um caixão e que este foi colocado em local próprio, próximo do jazigo, e faz apelo, novamente, a segmento do depoimento de A. F. R., que transcreve. Porém, desse depoimento resulta exactamente o que foi dado como provado. A testemunha referiu que retirou ossadas contidas em caixão Observa-se que a testemunha tanto alude a um caixão como a vários caixões, chegando ao ponto de dizer eram necessários vários homens para os movimentar, pois eram «muito pesados». e que tudo colocado noutro espaço, a dez metros do jazigo, sem qualquer tipo de cerimónia, sinal ou registo. Sendo relevante para o caso o que aconteceu com os restos mortais humanos, e não propriamente com o caixão, fica claro que as ossadas de três pessoas foram deslocadas para fora do local de inumação e sumariamente enterradas num terreno da Câmara no mesmo cemitério, sem identificação e a aguardar destino incerto.
[36] Em relação ao ponto nº3 dos factos provados, a discordância do arguido decorre da indicação como provado de que sabia que na sepultura se encontravam cadáveres e refere que, na realidade, o jazigo não continha cadáveres mas sim ossadas. Vale para a impugnação deste ponto dos factos provados o que se escreveu supra, a propósito do ponto 1, pois a ordem comporta em si mesma, de acordo com a experiência comum, o conhecimento do seu objecto. Novamente, a referência da testemunha A. F. R. de que o arguido o mandou guardar o objecto da «limpeza» não deixa dúvidas quanto a esse conhecimento, em termos amplos, como foi dado como provado. Por outro lado, e como resulta claro do confronto com os pontos nºs 4 e 8 dos factos provados, a utilização neste ponto do substantivo comporta o seu sentido amplo, de despojos humanos, sem afectar a especificação de que foram «movidas e removidas» ossadas. Como se diz no Ac. do STJ de 21/03/2006 Proc. 03B2523, Relator Cons. Pires da Rosa, www.dgsi.pt. , o «cadáver» é - ainda - o corpo humano após a morte ... e as «ossadas» são - ainda - o que resta do corpo humano ...
[37] Finalmente, quanto ao ponto nº5 dos factos provados, considera-se no recurso que não ficou provado que o arguido soubesse que violava o sentimento de piedade para com os defuntos. Novamente sem razão. Basta a consideração de que aqueles despojos humanos foram sumariamente afastados do local onde estavam inumados, no âmbito de operação designada de «limpeza», para concluir que não houve a menor consideração de respeito ou de qualquer obrigação, mesmo que natural Sobre a natureza e esfera de protecção do culto devido aos mortos, cfr. o Ac. do STJ de 19-12-2006, Pº 06A4210, relator Cons. Sebastião Póvoas, www.dgsi.pt., para com o respectivo culto.
[38] A este propósito, o recorrente chama à colação o depoimento de M. J. C., sem que se compreenda em que medida o segmento seleccionado impõe decisão diversa da recorrida. Não estamos aqui perante situação em que para colocar um corpo em sepultura ou jazigo colectivo é necessário alterar o posicionamento de outros restos mortais, porque de algum modo necessário. Em todo esse quadro de circunstâncias, os despojos voltam ao local original, ao contrário do que aqui aconteceu.
[39] Falece, pelo exposto, fundamento à pretendida modificação da decisão em matéria de facto que, assim, se mostra definitivamente fixada.

2.6. Da verificação do crime p. e p. pelo artº 254º, nº1, al. a) do Código Penal

[40] A última questão colocada pelo arguido é referida ao juízo de subsunção jurídico-penal da conduta provada, com referência ao tipo penal de subtracção de cadáver constante da al. a) do nº1 do artº 254º do Código Penal. Considera o arguido que nunca retirou as ossadas da guarda de quem sobre elas tem direito e nega que tenha sido responsável pela subtracção, destruição ou ocultação de cadáver. É certo que não ficou provado que o arguido determinou a destruição ou ocultação dos restos mortais existentes no interior do jazigo. A sua conduta corresponde, porém, e inequivocamente, à autoria moral do acto de subtracção das ossadas.
[41] Como há muito sublinhou Beleza de Santos, o conceito jurídico-penal de subtracção envolve a assunção de poder fáctico sobre uma realidade material, substituindo e contrariando o domínio de outra pessoa Beleza dos Santos, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 58º, pág. 252.. Ao contrário do que pretende o recorrente, o tipo-de-ilícito não exige subtileza ou fraude, ocorrendo a subtracção no momento em que as ossadas foram retiradas do local de inumação por ordem do arguido e sem propósito de as fazer aí retornar, desprovido da necessária autorização para o efeito. A esta conclusão não obsta a possibilidade de restituição, nos mesmos termos em que acontece com outros crime que comportam no seu tipo objectivo o elemento subtracção, como por exemplo o crime de furto. Trata-se de conduta posterior à consumação, com relevo em sede de medida da pena, nos termos prescritos na al. e) do artº 71º do C.P..
[42] Por outro lado, a circunstância do arguido não ter sido o «executor material» dessa conduta, como sublinha, não afasta a sua responsabilidade, nos termos do conceito amplo de autor consignado no artº 26º do CP. Nos termos desse preceito, constitui-se autor quem executar o facto por intermédio de outrem, sendo as pessoas que desocuparam o jazigo meros instrumentos, inteiramente determinados pelo arguido e convencidos – sem mácula - de que este agia conforme ao direito. Estamos, aqui, perante um caso patente de autoria mediata, em que o homem-de-trás (o arguido) se serve dos homens-da-frente (os coveiros) para praticar o facto por intermédio destes, cuja vontade dominou inteiramente. Como salienta Figueiredo Dias, «na autoria mediada o homem-de-trás não pratica a mais das vezes (ou mesmo em princípio), de um ponto de vista fáctico, qualquer “acto de execução”, não intervém, em suma, na fase executiva» Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Ed., 2007, pág. 803..
[43] Mas, para além destes argumentos, evoca o recorrente ainda um outro, pese embora colocado no plano do recurso em matéria de facto, a saber o de que não se provou que no interior do jazigo existisse cadáver, mas sim ossadas, o que coloca o problema de determinar o conteúdo jurídico-penal do conceito de cadáver, atenta a conformação do tipo objectivo. A alínea a) do nº1 do artº 254º do Código Penal prevê como objecto do facto, em qualquer das modalidades típicas (subtracção, destruição ou ocultação), que se esteja perante cadáver, parte de cadáver ou cinzas.
[44] A noção de cadáver não é unívoca, pois comporta diversos sentidos. O conceito comporta um sentido comum, abrangente, em que estão compreendidos todos os despojos ou restos de um ser humano após a morte, e outro, mais restrito, em que apenas se considera como tal o corpo de uma pessoa falecida, ou seja, em que, no todo ou em parte, perdura a conformação morfológica em vida, por não ter sido inteiramente finalizado o processo de decomposição. Neste sentido, o esqueleto ou, noutra terminologia, as ossadas, constituem realidade autónoma do cadáver. É esse o sentido acolhido no regime legal da inumação e transladação de cadáveres, constante do DL n.º 411/98, de 30 de Dezembro Com as alterações operadas pela Lei n.º 30/2006, de 11/07, DL n.º 138/2000, de 13/07 e DL n.º 5/2000, de 29/01., mormente nas als. i) e j) do seu artº 2º, nas quais se define cadáver como «o corpo humano após a morte, até estarem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica» e ossadas como «o que resta do corpo humano uma vez terminado o processo de mineralização do esqueleto», com tradução em regime distinto.
[45] Partindo dessa noção estrita de cadáver, Damião da Cunha considera que também para efeitos do preenchimento do tipo penal do artº 254º «não pode ser considerado cadáver ou parte dele o esqueleto ou o que resta dele, no final do processo de decomposição, na medida em que falta o aspecto essencial da representação de um corpo» Damião da Cunha, Comentário Conimbricense, Tomo II, Coimbra Ed., 1999, pág. 655.. Esta posição mereceu a crítica de Paulo Albuquerque, que a considera «inaceitavelmente restritiva» Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, 2008, pág. 667.. Cremos que ser o entendimento mais acertado, à luz do bem jurídico protegido.
[46] Desde logo, não retiramos do regime do D.L. nº 411/98, de 30/12, argumento decisivo quanto à tutela jurídico-penal. A própria designação do diploma é feia por referência à noção ampla de cadáveres e as suas linhas orientadoras encontram-se nas exigências de ordenamento do território e política de solos, por um lado, e de política higieno-sanitária, por outro. No seu preâmbulo faz-se alusão aos «graves problemas que a saturação dos espaços dos cemitérios tem vindo a colocar às entidades responsáveis pela administração dos mesmos», como também às exigências de saúde pública na manipulação e transporte de restos mortais.
[47] Diferentemente, o bem jurídico protegido pelo nº1, al. a) do artº 254º do Código Penal encontra-se no respeito comunitário devido aos mortos, o que explica a sua natureza de crime público Como sublinhado por Figueiredo Dias na comissão que preparou a revisão do Código Penal operada em 1995. Cfr. Actas da Comissão de Revisão, 1993, Ministério da Justiça, Acta nº 26, pág. 295., e que não se contém na veneração de uma imagem morfológica carnal. Como sublinha Antolisei, citando Manzino e referindo-se aos artigos 410º a 413º do Código Penal italiano, inseridos em capítulo denominada: Dos crimes contra a piedade para com os defuntos Reati contro la pietà dei defunti., tutela-se um sentimento individual e colectivo, que se explica com o quasi-religioso respeito pelos defuntos, sentimento que é considerado com força ético-social, conservador e promotor de civilidade, e como tal percebido pelo Estado como um bem jurídico a proteger penalmente. Não se trata da noção comum de piedade, enquanto sentimento de compaixão ou de comiseração, mas sim da pietas latina, na qual se exprime o amor reverente devido às entidades que transcendem existência singular e merecedoras de respeito por parte de toda a sociedade. Entre essas entidades encontram-se, sem dúvida, os mortos, cujo culto atravessa praticamente todas as culturas e todas as épocas, em termos de constituir sentimento profundamente enraizado no espírito humano Antolisei, Manuale di Diritto Penale, Parte Specialle-II, Giuffrè, 12ª ed., 1995, pág. 206..
[48] Porque esse sentimento de respeito comunitário não desaparece quando se completa o processo de degradação do restante material biológico, ficando apenas o esqueleto, as ossadas, a Corte di Cassazione tem entendido, como nos dá notícia o mesmo autor, que a noção de cadáver no sentido jurídico-penal deve ser estendida ao esqueleto, uma vez finalizada a putrificação Op. cit., pág. 209, nota 33.
[49] Também assim entendemos, face ao ordenamento nacional. Aliás, de outro modo não se compreenderia a inclusão no tipo objectivo das cinzas de pessoa falecida, incluindo naturalmente o resultado da cremação de ossadas, o que fica ainda mais distante da imagem corpórea em vida do falecido que aquelas. A representação social no domínio do respeito devido aos mortos forma-se em torno da memória e do ideal de continuidade da família, qualquer que seja a forma do que restou da pessoa, e cristaliza-se num local de culto e veneração. Como brilhantemente se disse no supra referido Ac. do S.T.J. de 21/03/2003: «Na nossa cultura a memória tem um sítio. Aí, nesse espaço ou local concreto, onde estão os cadáveres ou as ossadas dos que nos são queridos, ou onde repousam as cinzas daqueles que amámos (ainda que esse local seja o mar ou uma roseira no jardim), aí fazemos o centro do culto dessa memória que é nossa e da personalidade moral de que a morte do corpo da pessoa amada nos fez, apesar de nós, depositários» Referido na nota 15.. Essa a razão por que se construiu na Índia o Taj Mahal e tantos outros mausoléus foram erigidos na História da Humanidade, acolhendo os vultos mais destacados, como, entre nós, os Mosteiros dos Jerónimos e da Batalha, ou o Panteão, ainda que, ao cabo e ao resto, reduzidos a ossadas.
[50] Assim, de acordo com critério teleológico, o conceito de cadáver acolhido no artº 254º do Código Penal, mormente na al. a) do seu nº1, inclui todos os despojos de uma pessoa falecida, mesmo que reduzidos ao esqueleto ou ossadas.
[51] Por fim, considera o recorrente que não faltou ao respeito devido aos mortos e aponta, em seu apoio, dois arestos da Relação do Porto. Ora, é manifesto que esses dois arestos ponderaram factos diversos dos destes autos e também outro tipo penal - profanação de cadáver – em que se exige a prática de «actos ofensivos do respeito devido aos mortos». No caso das condutas tipificadas na al. a) do nº1 do artº 254º do Código Penal, não se encontra tal requisito, pois as modalidades da conduta já contêm esse sentido lesivo do bem jurídico Acs. da Relação do Porto de 09/06/93, JTRP00009699, relator Des. Castro Ribeiro, www.dgsi.pt, disponível em texto integral na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVIII, Tomo III, pág. 253, e da mesma Relação de 31/10/2001, JTRP00031694, relator Manuel Braz, www.dgsi.pt. Com maior proximidade com a situação dos autos, ainda que noutro enquadramento normativo, encontra-se o Ac. da Relação do Porto de 6/05/92, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo III, pág. 314.

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[52] Pelo exposto, conclui-se pelo acerto da condenação do arguido pela prática de um crime p. e p. pelo artº 254º, nº1, al. a) do Código Penal.

2.7. Da condenação em indemnização civil

[53] Decorre das conclusões do recurso que o arguido pretende recorrer não só da vertente criminal, como também da vertente civil, relativa à sua condenação em €2.000,00 (dois mil euros) de indemnização à demandante, a título de danos não patrimoniais. Esse âmbito decorre claramente do disposto na 22ª conclusão, na qual alude ao agravamento do «quantum indemnizatório».
[54] As considerações supra relativamente à nulidade integrada pela reapreciação da pena, por excesso relativamente ao decidido pelo aresto desta Relação que anulara a sentença para fundamentação da decisão em matéria de facto, têm aqui aplicação. Novamente, o Tribunal a quo excedeu o seu poder jurisdicional e incorreu na nulidade prevista na parte final da al. c) do nº1 do artº 379º do CPP, com a consequência de invalidar aquele novo pronunciamento na parte em que excede a fixação da indemnização em €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
[55] No caso em apreço, tanto a dor moral sofrida pela demandada, como a privação do culto dos familiares falecidos, garantido por dever moral e social incidente sobre os concidadãos, ainda que apenas como obrigação natural, oferece significado conforme com a compensação fixada originalmente pela 1ª instância.
[56] Procede, então, o recurso na vertente da indemnização civil.

III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

A) Conceder provimento parcial ao recurso;
B) Condenar o arguido Manuel Pereira, pela prática de um crime de subtracção de cadáver, p. e p. pelo artº 254º, nº1, al. a) do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), perfazendo a multa global de €800,00 (oitocentos euros), e a pagar à demandante Maria Manuel Ferreira Leite Campos Sá Ferreira a compensação de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
C) Condenar o recorrente, pelo decaimento parcial no recurso, vertente criminal, na taxa de 6 (seis) Ucs (artºs. 513º, nº1 do CPP e 87º, nº1, al. b) do CCJ);
D) Notifique.




Guimarães, 08/03/2010