Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
897/08-1
Relator: RICARDO SILVA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PESSOALIDADE DA RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I. O n.º 2 do art.º 171.º do Código da Estrada, quando estabelece que o processo correrá contra o titular do documento de identificação do veículo se o agente da autoridade não puder identificar o autor da infracção, ressalvada a situação de esse titular vir, no prazo que a lei assinala para tal fim, indicar outra pessoa como a que, realmente, tenha cometido a infracção, não pretende mais do que consagrar um pressuposto processual de legitimidade passiva, baseada na presunção natural de que se o mesmo titular não indica quem conduzia o veículo aquando da prática da contra-ordenação, é porque era ele mesmo a conduzi-lo, que é a situação mais comum.
II. Partir-se daí para se derrogar o princípio da pessoalidade das penas é que já parece ilegítimo.
III. Ao dar-se como provado que quem conduzia o automóvel não era o arguido mas outra pessoa, que a sentença não identifica, esta inviabiliza a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma sanção acessória de inibição de conduzir, uma vez que isso corresponderia a responsabilizar objectivamente o arguido pela conduta de outrem, nexo de imputação esse que a lei não contempla nem permite.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães,
I.

1. Por despacho decisório final, proferido no processo de recurso de contra­-ordenação n.º1209/07.1TBTBVCT, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, datado de 2008/02/12 e notificado ao arguido em 2008/02/14, foi decidido, “no não provimento do recurso”, além do mais, ora sem relevo, o seguinte:
A) Não atender à questão prévia suscitada pelo arguido, assim se indeferindo a mesma (…).
B) Condenar o arguido, com os demais sinais dos autos, pela autoria do ilícito de mera ordenação social previsto art. 69.º, n.°1, al.a) do Dec. Regulamentar n.°22A198, de 1Out, na coima de €74,82 e na sanção acessória de inibição de condução pelo período de 60 dias, sanção acessória de inibição a qual, por inviabilidade legal, se não suspende na execução.
2. Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido .
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:

Terminou pelo pedido de revogação da sentença recorrida e da sua absolvição.

3. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, no sentido de lhe ser negado provimento.
4. Admitido o recurso, nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º417.º, n.º2, do C. P. P., o recorrente não respondeu.
6. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência para julgamento. Dos trabalhos da conferência procede o presente acórdão.

II.


1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º412.º, n.º1, do CPP, definem o seu objecto, as questões postas no recurso são as seguintes:
– Se, por estar provado que o arguido não praticou a contra-ordenação de que foi acusado, deve ele ser absolvido; e subsidiariamente,
– Se deve decretar-se a isenção da inibição de condução do arguido ou a sua suspensão;
– Se deve reduzir-se para metade a sanção de inibição visto já estar paga a coima.
2. É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:

« Factos provados
« Prov. A. Em 23DEZ2005, pelas 18.23h., o (a) arguido (a) permitiu a condução do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula … .JJ, na via pública - EN 308, Barroselas, Viana do Castelo -, a pessoa que não se apurou quem.
« Prov. — 3. Nesse local mostra-se instalado um sinal luminoso constituído por um sistema de três luzes circulares, não intermitentes, com as cores vermelha, amarela e verde.
« Prov. C. No momento em que o JJ chegou junto desse sinal luminoso o mesmo tinha acesa a luz circular vermelha.
« Prov. P. O (A) condutor (a) do JJ não deteve a marcha perante esse sinal, o qual estava em funcionamento.
« Prov. E. O (A) arguido (a) permitiu a essa pessoa que não se logrou apurar quem, que exercesse a condução do referido veículo automóvel em situação tal em que sabia, ou devia saber, como podia, que dada a situação estradal que se lhe apresentava deveria parar face ao sinal, e não obstante deixou que esta agisse na forma descrita quanto à sua conduta e sem os cuidados que lhe eram exigíveis para evitar tal facto.
« Prov. — F. O (A) arguido (a) permitiu que essa pessoa não identificada agisse de forma livre e consciente, sabendo que a lei punia a sua actuação.
« Prov. G, O (A) arguido (a) não tem antecedentes estradais:
« Prov, H. A decisão de fls, 11 proferida pelo GC de Viana do Castelo, sancionou o (a) arguido (a) com a coima de €74,82 e com a sanção acessória de inibição de condução, pelo período de 60 dias.
« TUDO O QUE EM CONTRÁRIO ESTEJA COM A MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA, PARA ALÉM DOS FACTOS CONCLUSIVOS INSTRUMENTAIS SEM INTERESSE E CONCEITOS DE DIREITO ALEGADOS, QUE, COMO TAL (TODOS) NÃO MPODEM SER CHAMADOS À COLAÇÃO NESTA SEDE.
« Factos [não] provados
« N.Prov. — A. Inexiste.
« TUDO O QUE EM CONTRÁRIO ESTEJA COM A MATÉRA DE FACTO DADA COMO PROVADA, PARA ALÉM DOS FACTOS CONCLUSIVOS INSTRUMENTAIS SEM INTERESSE E CONCEITOS DE DIREITO ALEGADOS, QUE, COMO TAL (TODOS) NÃO MPODEM SER CHAMADOS A COLAÇÃO NESTA SEDE.
« 1 Fundamentação
« O tribunal formou a sua convicção com base nos documentos junto aos autos a fls. 4 a 7, teor da decisão de fis. 11, documentos de fls. 19 a 21, 53, 58 e 62.
« Atendeu-se à validade do auto de notícia para efeitos do art. 170°, n.° 3 do CE.
« Face ao teor do art. 171.°, n.° 2 e 3 do CE, porque o (a) arguido (a) para tanto foi notificado e não fez uso dessa possibilidade em tempo útil, sendo que foi enviado ao titular do documento identificativo do veículo JJ o auto de contra-ordenação e foi-lhe dito que também o era para os termos do art. 171.° do CE, pelo que foi ao mesmo dito que não fosse possível identificar o autor dos factos o auto era enviado para os efeitos do n.° 2 do art. 171.° do CE.
« Cabia ao titular do documento identificativo do veículo JJ, no prazo de 15 dias do art. 175°, n.° 2 do CE, impugnar a autuação e se não tivesse sido o mesmo o autor dos factos, como invoca agora, cabia-lhe defender-se, nomeadamente por via do art. 171.°, n.° 3 e 4 do CE (utilização abusiva, nomeadamente, o que não fez).
« Não o tendo feito em tempo útil, não mais o pode fazer.
« Assim, a alegação de imputação dos factos a desconhecida pessoa, no presente momento processual, sempre se mostra inócua, dado que a responsabilidade opera no proprietário.

3. Dispõe o art.º171.º do Código da Estrada o seguinte:

« Artigo 171.º
« Identificação do arguido
« 1 - A identificação do arguido deve ser efectuada através da indicação de:
« a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa colectiva, denominação social;
« b) Residência ou, quando se trate de pessoa colectiva, sede;
« c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor ou, quando se trate de pessoa colectiva, do número de pessoa colectiva;
« d) Número do título de condução e respectivo serviço emissor;
« e) Identificação do representante legal, quando se trate de pessoa colectiva;
« f) Número e identificação do documento que titula o exercício da actividade, no âmbito da qual a infracção foi praticada.
« 2 - Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infracção, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.
« 3 - Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora.
« 4 - O processo referido no n.º 2 é arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo.
« 5 - Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa colectiva, deve esta ser notificada para proceder à identificação do condutor, no prazo de 15 dias úteis, sob pena de o processo correr contra ela, nos termos do n.º 2.
« 6 - O titular do documento de identificação do veículo, sempre que tal lhe seja solicitado, deve, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação do condutor, no momento da prática da infracção.
« 7 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado nos termos do n.º 2 do artigo 4.

4. A condenação do arguido recorrente funda-se – além de no facto, incontestado, de que alguém conduziu o automóvel 92-21-JJ, nos termos descritos nas alíneas a) a f) dos factos provados da sentença recorrida – no disposto no n.º2 do art.º171.º, do CE, supra transcrito.
Mas, entendemos que na sentença recorrida se interpretou essa disposição legal com um alcance que a lei, entendida como o sistema sancionatório e os princípios que o regem, não consente.
Assim, pensamos que o referido n.º2, quando estabelece que o processo correrá contra o titular do documento de identificação do veículo se o agente da autoridade não puder identificar o autor da infracção, ressalvada a situação de esse titular vir, no prazo que a lei assina para tal fim, indicar outra pessoa como a que, realmente, tenha cometido a infracção, não pretende mais do que consagrar um pressuposto processual de legitimidade passiva do titular inscrito do “veículo infractor, baseada na presunção natural de que se o mesmo titular não indica quem conduzia o veículo aquando da prática da contra-ordenação, é porque era ele mesmo a conduzi-lo, que é a situação mais comum.
Partir-se daí para se derrogar o princípio da pessoalidade das penas é que já nos parece ilegítimo.
Apesar de se aceitar que o direito contra-ordenacional e o direito penal constituem ramos de direito autónomos e que há entre eles uma diferente natureza, também é certo que, por ora, é no direito penal que o direito contra-ordenacional tem encontrado as bases de onde a sua própria autonomia se tem vindo e continuará a ir-se progressivamente afirmando.
É assim que os artigos 32.º e 41.º, ambos do Decreto­-Lei n.º433/82, de 27 de Outubro (DL 433/82), estabelecem, respectivamente, que o Código Penal e Código de Processo Penal são diplomas de aplicação subsidiária ao Regime Geral da Contra-Ordenações.
Pode, sem receio, afirmar-se que o direito de mera ordenação social é, como o direito penal, um direito do facto – do facto e do seu autor – assente, além do mais, nos princípios da tipicidade, da ilicitude e da culpa.
Só pode ser punido quem praticar uma facto legalmente tipificado, com dolo ou, nos caso especialmente previstos, com culpa.
A única excepção a este princípio de pessoalidade da inculpação radica na responsabilização das pessoas colectivas ou equiparadas, mas assim mesmo, tais pessoas só são responsabilizadas por acções de terceiros, quando estes integrem os seus órgãos ou agentes e ajam no exercício das respectivas funções; cfr. o art.º 7.º, n.º 2, do DL 433/82.
Manuel Simas Santos/Jorge Lopes de Sousa (() Cfr. Manuel Simas Santos/Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2.ª Edição, Visilis Editores, [Lisboa] 2003, p.107.), em nota ao art.º7.º do DL433/82, consignam, além do mais, o seguinte:

« 2 – A legislação penal portuguesa consagra o principio da individualidade da responsabilidade criminal (art. 11.° do Código Penal), o qual, aliado ao princípio da intransmissibilidade (art. 30.º, n.º 3 da Constituição e 127.° do Código Penal), conforma o princípio da pessoalidade das penas.
« Constitui tal princípio uma pura opção normativa, uma vez que se ressalva a hipó­tese de “salvo disposição em contrario”. Assim, apenas o homem singularmente consi­derado pode, em regra, ser sujeito activo de uma infracção criminal, sendo excepcional a responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
« As pessoas colectivas considerar-se-ão capazes de acção c culpa jurídico-penais através de uni processo de pensamento filosófico analógico, sendo o legislador que identifica casuisticamente, os casos em que essa responsabilidade deve ocorrer. (55)

« (55) FIGUEIREDO DIAS, Pressupostos da Punição, em Jornadas de Direito Criminal, página 51.

5. Ao dar como provado que quem conduzia o automóvel não era o arguido mas outra pessoa, que a sentença não identifica, esta inviabiliza a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma sanção acessória de inibição de conduzir, uma vez que isso corresponderia a responsabilizar objectivamente o arguido pela conduta de outrem, nexo de imputação esse do facto ao agente que a lei não contempla nem permite.
Em consequência e sem necessidade de mais profunda indagação, o recurso tem de proceder e o arguido ser absolvido


III:

Atento todo o exposto,
Acordamos em dar provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e absolver o arguido Luís .

Não há lugar a tributação.

Guimarães, 2009/04/27