Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
856/04-2
Relator: ROSA TCHING
Descritores: FORÇA PROBATÓRIA
DOCUMENTO PARTICULAR
TERCEIROS
CONDENAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1º- Nos termos do disposto no art. 376º, n.º1 e 2 do C. Civil, o documento particular tem força probatória plena apenas inter-partes: só pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário contra o declarante.

2º- Relativamente a terceiros, o documento particular vale apenas como elemento de prova a ser apreciado livremente pelo tribunal.

3º-Um dos princípios fundamentais do nosso processo civil é o do contraditório, segundo o qual o tribunal não pode decidir da questão da litigância de má fé sem ter sido dada à parte em causa a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão- cfr. art. 3º, n.º1 e 3º do C. P. Civil e Acórdão do Tribunal Constitucional de 12.5.1998.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


O autor "A" instaurou a presente acção declarativa de condenação, com forma de processo sumário, contra os réus "B" e mulher, pedindo que seja declarada a nulidade do contrato de mútuo, por via do qual emprestou aos réus a quantia de Esc:2.000.000$00, e que estes sejam condenados a restituírem-lhe tal quantia.
Alegou, para tanto e em síntese, a nulidade do dito contrato, por falta de forma e a não restituição da quantia mutuada.

Citados, os réus contestaram alegando que procederam à restituição da mencionada quantia em 8 de Novembro de 2002, à esposa do autor, Maria L....
Concluíram pela improcedência da acção.

Na sua resposta, a autora sustentou que o documento de quitação junto aos autos constituí um negócio simulado, com o objectivo de prejudicar terceiros, concluindo como na P.I..

Foi dispensada a elaboração da selecção da matéria de facto assente e da base instrutória, nos termos do disposto no art. 787, n.º2 do C. P. Civil.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal, decidindo-se a matéria de facto controvertida pela forma constante do despacho de fls. 117 e 118, que não mereceu qualquer censura.

A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- Declarou o contrato de mútuo gratuito, ajustado verbalmente entre A. e Réus nulo, por carecido de forma.
- Condenou solidariamente os Réus a restituirem ao A. a quantia de 9 975,96 (Esc. 2 000 000$00), acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
- Condenou solidariamente os réus como litigantes de má fé, numa multa de 20 Ucs.
- Condenou os réus no pagamento das custas.

Não se conformando com a decisão, dela, atempadamente apelaram os réus, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – A produção da prova na audiência de julgamento, incidiu sobre a matéria de facto invocada pelo A. e pelos RR., nos respectivos articulados, sendo certo que o A. está casado no regime de comunhão de adquiridos com Maria L..., desde 6 de Agosto de 1976, como resulta não só do teor desses articulados, como também do assento de casamento, junto, por fotocópia, a estas alegações.
2ª – Em Outubro de 1997 o A. e sua mulher, Maria L..., emprestaram aos RR., (a R. mulher é irmã da mulher do A.) a importância de Esc. 2.000.000$00, presentemente, € 9.975,96.
3ª – Devido à ocorrência de desinteligências graves, na relação conjugal, entre o A. e sua mulher, Maria L..., esta em 7 de Setembro de 2002, deixou de viver com o A., em Guimarães, e foi habitar para casa da sua irmã e cunhado, os ora RR., sita na comarca de Sintra, levando consigo os dois filhos menores do casal.
4ª – No dia 8 de Novembro de 2002, os RR. restituíram à mulher do A., a quantia de € 9.975,96, que esta e seu marido, ora A., haviam emprestado àqueles, em Outubro de 1997, sendo certo que a mulher do A. lhes deu a respectiva quitação constante do documento junto à contestação sob a designação de documento nº 1.
5ª - Da prova constante dos autos e daquela que foi produzida na audiência de julgamento, a Mª Juiz a quo deu como provado que:
1. Em Outubro de 1997, por declaração verbal, o A. após solicitação dos RR., emprestou-lhes o montante de € 9.9975,96 (Esc. 2.000.000$00), para fazer face a dificuldades financeiras de uma empresa de que eram titulares, com a obrigação de ser a mesma paga até Abril do ano seguinte;
2. Os RR. não liquidaram ao A. a quantia mutuada, na data do seu vencimento, nem posteriormente.
6ª - Salvo o devido respeito, a Mª Juiz a quo não apreciou correctamente a prova produzida na audiência de julgamento, sobre a matéria de facto, designadamente, quando a mesma deu como provado que “os RR. não liquidaram ao A. a quantia mutuada, na data do seu vencimento, nem posteriormente”. Na verdade,
7ª - Com a contestação, os RR. juntaram aos autos, sob a designação de documento nº 1, a declaração assinada pela mulher do A., Maria L..., na qual afirma ter recebido dos RR. a quantia de € 9.975,96, sendo certo que esse documento faz prova plena do seu conteúdo, nos termos do disposto no artº 376º nº 1 do Código Civil, já que não foi arguida nem provada a sua falsidade. Por sua vez,
8ª - Na audiência de julgamento, foi confirmado o conteúdo desse documento quer através do depoimento de parte do R. marido, como pelo depoimento da mulher do A., Maria L..., como se pode verificar pela audição da gravação da cassete nº 1, face A e parte da face B.
9ª - A Mª Juiz a quo não apreciou correctamente os factos que lhe foram apresentados pelas partes, não os ponderou com bom senso para que fosse alcançada a justiça material, como se estabelece no artº 1º e no artº 3º nº 3 da Constituição da República Portuguesa. Do mesmo modo o legislador ordinário pretende conseguir o mesmo objectivo, quando afirma, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95 de 12/12. “Ter-se-à de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo e não com um estereotipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja prosseguida a justiça, a final, os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
10ª - A Mª Juiz a quo ao dar como provado que “os RR. não liquidaram ao A. a quantia mutuada, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente” não teve em conta a prova que efectivamente foi produzida na audiência de julgamento nem o conteúdo da declaração assinada pela mulher do A. na qual esta refere que recebeu a quantia mutuada.
Pelo contrário, na fundamentação da matéria de facto a Mª Juiz a quo revela uma apreciação parcelar da prova produzida, esquecendo que o A. está casado no regime de comunhão de adquiridos com Maria L..., pessoa esta que declara ter recebido efectivamente tal quantia.
11ª - Face à incorrecta apreciação da prova produzida sobre a matéria de facto, na audiência de julgamento, o Tribunal da Relação, nos termos do disposto no artº 712º nº 1 al. a) do C.P.C., pode alterar a decisão do Tribunal de 1ª Instância uma vez que:
1. Dos autos consta a declaração de quitação assinada pela mulher do A., em como esta recebeu a quantia mutuada de € 9.975,96, documento esse que faz prova plena, já que não foi arguida nem provada a sua falsidade;
2. A prova produzida na audiência de julgamento foi gravada e dessa gravação (cassete 1, face A e princípio da face B) consta claramente, através do depoimento de parte do R. marido que a quantia em causa foi entregue à mulher do A., no dia 8 de Novembro de 2002, declaração essa que foi corroborada e confirmada pela mulher do A. no depoimento que prestou na audiência de julgamento;
3. A Mª Juiz a quo ao dar como provado que os RR. não liquidaram ao A. a quantia mutuada na data do seu vencimento nem posteriormente, apreciou incorrectamente a prova produzida sobre esse ponto e referida nos nºs 1 e 2 desta conclusão.
12ª - Do mesmo modo, a Mª Juiz a quo, ao condenar os RR. como litigantes de má-fé, na sentença recorrida não teve em consideração nem apresentou factos que denunciem que os RR., no decurso deste processo, actuaram com dolo, culpa ou negligência grave. Os RR., no decurso destes autos, outra coisa não fizeram que não fosse demonstrar que os factos por si alegados eram verdadeiros, razão pela qual não existe fundamento para serem condenados como litigantes de má-fé.

A final, pedem seja alterado o nº 2 dos factos dados como provados, dando-se como provado que os RR. liquidaram à mulher do A., Maria L..., em 8 de Novembro de 2002, a quantia de € 9.975,96 que ela e seu marido, ora A., haviam emprestado aos RR. e, revogando desta forma a sentença recorrida, se absolva os réus do pedido bem como do pagamento da multa de vinte unidades de conta, como litigantes de má-fé.

O autor contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Os factos dados como provados na 1ª instância são os seguintes:
1º- Em Outubro de 1997, por declaração verbal, o autor após solicitação dos réus, emprestou-lhes o montante de 9 975,96 Euros ( Esc. 2 000 000$00), para fazer face a dificuldades financeiras de uma empresa de que eram titulares, com a obrigação de ser a mesma paga até Abril do ano seguinte.

2º- Os réus não liquidaram ao autor a quantia mutuada na data do seu vencimento, nem posteriormente.


FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.

Assim, as questões a decidir traduzem-se em saber se:

1º- há lugar á alteração da decisão da matéria de facto;

2º- existe fundamento legal para condenação dos réus no pedido;

3ª- existe fundamento legal para condenação dos réus como litigantes de má fé.


1.Quanto à primeira das supra enunciadas questões, sustentam os réus/apelantes que foram incorrectamente julgados os factos dados como provados sob o n.º2 e supra transcritos a itálico, defendendo que os mesmos devem ser dados como não provados.
Isto porque, por um lado, do depoimento de parte do R. marido resulta que a quantia em causa foi entregue à mulher do A., no dia 8 de Novembro de 2002, declaração essa que foi corroborada e confirmada pelo depoimento da mulher do A.
E, por outro lado, porque dos autos consta a declaração de quitação assinada pela mulher do A., em como esta recebeu a quantia mutuada de € 9.975,96, documento esse que faz prova plena, já que não foi arguida nem provada a sua falsidade.

No caso sub judice houve gravação dos depoimentos prestados em audiência, o recorrente indicou os pontos de facto impugnados bem como os depoimentos em que se funda.
Por isso, nos termos do art. 712º, n.º1 e 690º-A, n.º1 e 2º do C. P. Civil, na redacção introduzida pelo DL n.º183/2000, de 10/8, é possível a alteração da matéria de facto.

Todavia, cumpre referir que o sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos é insuficiente para fixar todos os elementos susceptíveis de condicionar ou de influenciar a convicção do juiz perante quem são prestados.
Como alerta Antunes Varela In, RLJ, Ano 129º, pág. 295. ”É sabido que, frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”
No mesmo sentido, salienta António Abrantes Geraldes In, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 3ª ed. pág. 273. que “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”.
A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal, como decorre do disposto nos artigos 396º e 655º, do C. P. Civil.
Todavia, como já dizia Alberto dos Reis In, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 569., “ (...) prova livre (...),quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”.
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas afirmativas à matéria de facto, consagrado no artigo 653º, n.º2 do C. P. Civil, o qual, após a redacção introduzida pelo DL n.º39/95, passou a ser também obrigatório quanto aos factos não provados.
Segundo Teixeira de Sousa In, “Estudos”, pág. 348. ”o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.
Por isso, esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância, sem esquecer, porém, as limitações acima referidas Na verdade, como muito a propósito se salienta no Acórdão da Relação de Lisboa, de 27.3.2001, “a utilização da gravação dos depoimentos em audiência não modela de forma diversa o princípio da prova livre ínsito no art. 655º do C. P. Civil, nem dispensa as operações de carácter racional ou psicológico que geram a convicção do julgador nem substituem esta convicção por uma fita gravada”, sendo ainda certo, tal como se refere no Acórdão da mesma Relação que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”..

No presente processo, a Exmª juíza a quo fundamentou as respostas dadas aos factos alegados por ambas as partes, do seguinte modo:
“O facto dito em l) resultou do acordo das partes, uma vez que não foi objecto de impugnação especificada.
O facto dito em 2) resultou da análise critica da prova testemunhal e documental produzida.
O depoente "B" declarou que procedeu ao pagamento da quantia mutuada à esposa do autor, Maria L..., de quem é cunhado, no dia 8 de Novembro de 2002, de manhã, tanto mais que à tarde viajou.
Nesta parte, como é evidente, por não se traduzir em declaração confessória, tal depoimento não pode ser valorado.
No entanto, declarou ainda que, quando procedeu à restituição da quantia mutuada, já esta se encontrava separada de facto do marido, facto que não ignorava.
Já a testemunha Maria L... declarou que se separou de facto do seu marido em 7 de Novembro de 2002, foi viver para casa dos réus, de quem é irmã e cunhada, juntamente com dois dos seus filhos, onde esteve durante 7 meses.
Segundo a testemunha, a restituição da quantia mutuada teria tido lugar no dia 8 de Novembro, à noite, sendo que no dia seguinte o cunhado viajou.
Encontra-se junto aos autos o doc. l junto com a contestação, que corporiza uma declaração de recebimento da quantia mutuada, subscrita pela esposa do autor, Maria L..., datada de 8 de Novembro de 2002.
Em suma, face à confusão quanto à parte do dia em que a pretensa restituição teve lugar e às circunstâncias que rodearam a mesma, o Tribunal não se convenceu da sua ocorrência.
Na verdade, crê o Tribunal que se trata de um acordo entre a mulher do autor e os réus, entre os quais existem estreitos laços familiares e de afinidade, como contrapartida do alojamento que aqueles lhe cederam pelo período de 7 meses.
De resto, ainda que assim não fosse, sempre o pagamento teria sido mal efectuado, pois que os réus não ignoravam que a referida Maria L... estava separada de facto do marido, aquando da pretensa restituição.
Convenceu-se, assim, o Tribunal que a quantia mutuada não foi ainda restituída, razão pela qual deu como provado o ponto 2 e não provada a matéria da contestação”.


Vê-se, deste despacho, que a Mmª Juíza “a quo” explicou de forma racional e lógica as razões pelas quais deu como provados os factos supra descritos e considerou como não provada matéria da contestação, indicando a razão de ciência de cada uma das testemunhas bem como os motivos pelos quais os depoimentos das testemunhas oferecidas pelos réus não lhe mereceram credibilidade.
E, em nosso entender, a prova produzida em audiência de julgamento (por nós ouvida) legitima a convicção formada pelo Tribunal a quo sobre tal matéria.
No fundo, está essencialmente em causa a maior ou menor credibilidade a dar ao depoimento da testemunha arrolada pelos réus, Maria L..., mulher do autor e do qual se encontrava, na altura, separada, tendo assinado o doc. l junto com a contestação, que corporiza uma declaração de recebimento da quantia mutuada, datada de 8 de Novembro de 2002.
Todavia, a este respeito cumpre referir que o Tribunal da Relação nenhuma sindicância pode exercer sobre o Tribunal a quo.
A Relação não pode censurar a forma como este tribunal fez uso da prerrogativa legal da livre apreciação da prova.
E isto porque a possibilidade de modificação da matéria de facto, por parte do Tribunal da Relação, visa apenas a correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento.
Doutro modo, o recurso em matéria de facto resultaria numa repetição ainda que parcial do julgamento, o que não é consentido por lei.

Resta-nos, por isso, rebater o segundo argumento avançado pelos réus/apelantes no sentido de que a declaração de quitação assinada pela mulher do A., em como esta recebeu a quantia mutuada de € 9.975,96, faz prova plena, já que não foi arguida nem provada a sua falsidade.

O documento junto a fls. 14 dos autos pelos réus, intitula-se “Declaração”; nele figura como emitente, Maria L..., tem o seguinte teor: ”Maria L..., casada no regime de comunhão de adquiridos com "A" declara ter recebido, nesta data, de "B" e mulher, ..., a quantia de € 9.975,96 (nove mil, novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos) correspondentes a um empréstimo de dinheiro, em Outubro de 1997, de Esc: 2000.000$00 ”; está datado de 8 de Novembro de 2002 e assinado por Maria L....

Trata-se, pois, de um documento particular, cuja força probatória resulta do disposto no art. 376º do C. Civil, o qual estabelece que:
“1. Documento particular cuja autoria seja reconhecida (...) faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
(...)”.

Daqui resulta, como bem sublinha Antunes Varela e outros In, “Manual de Processo Civil”, pág. 507., que tal prova plena só diz respeito aos factos que forem desfavoráveis ao declarante, pois que, quanto aos restantes, o documento é livremente apreciado pelo julgador.
E se a declaração é indivisível, nos termos da confissão Ou seja, a parte que se quiser aproveitar dos factos favoráveis terá de aceitar também a parte desfavorável ou de provar que essa não corresponde à verdade., isto não pode ter outro significado que não seja o de o documento particular apenas ter eficácia plena inter-partes: só pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário contra o declarante.
Daí se concluir que o citado art. 376º regula apenas e tão só a força probatória de documento particular entre declarante e declaratário.
No caso dos autos, o documento em causa (declaração junta a fls. 14) não é dirigido ao autor, que nele não é declaratário, mas antes um terceiro.
Por isso, em relação ao autor, esse mesmo documento vale apenas como elemento de prova a ser apreciado livremente pelo Tribunal.
Assim sendo e porque há que ter em atenção, por um lado, que o julgamento deve guiar-se por padrões de probabilidade e nunca de certezas absolutas e que foi a Mmª juíza a quo quem teve oportunidade de apreciar os depoimentos de todas as referidas testemunhas, com recurso aos instrumentos que lhe foram proporcionados pelos princípios da imediação e da oralidade. E, por outro, que nos presentes autos inexiste qualquer elemento objectivo que permita pôr em causa a convicção por ela adquirida., impõe-se concluir não haver fundamento para este Tribunal alterar a respostas dada sob o nº 2.


II- E, assente que a factualidade a ter em conta para efeitos de decisão de mérito, é a supra descrita nos nºs. 1º e 2, outra decisão se não concebe a não ser aquela que foi tomada pelo Tribunal recorrido e para cujos fundamentos de direito se remete, nos termos do art. 713º, n.º5 do C. P. Civil.


III- Por último, importa apreciar a questão da litigância de má fé.

A condenação por litigância de má fé é uma sanção estabelecida para a violação dos deveres de verdade, lealdade e probidade consagrados no art. 264º, n.º2 do C. Processo Civil.
De acordo com o estatuído no n.º 2 do art. 456º do C. Processo Civil, na redacção dada pelo Dec.- Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “ Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa,
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

À luz do regime legal pré-vigente, vinha sendo entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência, que não bastava a culpa, ainda que grave, exigindo-se antes uma actuação dolosa ou maliciosa Cfr. Manuel de Andrade, in, Noções Elementares de Processo Civil, ed. 1979, pág. 356 ..
Porém, actualmente e tal como refere António Santos Abrantes Geraldes In, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3ª ed., pág 341. ”... o legislador deixou ainda clara a desnecessidade quanto à prova da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objectivos ilegítimos (actuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade .....”
No caso em apreço, a douta decisão recorrida entendendo que “os réus deduziram oposição cuja falta de fundamento não deviam ignorar, alegando um facto impeditivo do direito do autor, que sabiam não ter fundamento, omitiram factos relevantes para a decisão da causa, designadamente os vínculos familiares e de afinidade que ligavam a mulher do autor aos réus e a circunstância daquela ter fixado residência em casa destes, quando abandonou o lar conjugal, no dia anterior ao da subscrição do documento de quitação junto aos autos “, considerou verificados os pressupostos das alíneas a) e b) do art. 456º/1 e 2 do C.P.C.
E, atento o valor da acção e o título de imputação subjectiva em causa ( dolo), condenou os réus solidariamente numa multa de 20 Ucs.
Porém, e não obstante entender-se estar verificado o fundamento aludido no citado art. 456º, n.º 2, al. a) e b), julgamos que os réus não podem ser alvo de qualquer condenação a esse título.
E isto porque a Mmª Juíza a quo, antes de proferir aquela condenação não deu aos réus a possibilidade de se pronunciar sobre tal matéria, conforme o disposto no art. 3º, n.º3 do C. P. Civil, sendo ainda certo que, de harmonia com a doutrina do Acórdão do Tribunal Constitucional , de 12.5.1998, publicado no D.R., II-Série, de 16.7.1998, págs. 9886 e segs O qual, não obstante se reportar ao art. 456º na redacção anterior às alterações introduzidas em 1995/1996, mantém a sua actualidade., a parte só pode ser condenada como litigante de má fé depois de ser, previamente, ouvida a fim de se poder defender da acusação de má fé.

Procede, pois, nesta parte, a 12ª conclusão dos réus/apelantes ainda que com base em fundamento diverso do alegado.


CONCLUSÃO:

Do exposto pode extrair-se que:

1º- Nos termos do disposto no art. 376º, n.º1 e 2 do C. Civil, o documento particular tem força probatória plena apenas inter-partes: só pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário contra o declarante.

2º- Relativamente a terceiros, o documento particular vale apenas como elemento de prova a ser apreciado livremente pelo tribunal.

3º-Um dos princípios fundamentais do nosso processo civil é o do contraditório, segundo o qual o tribunal não pode decidir da questão da litigância de má fé sem ter sido dada à parte em causa a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão- cfr. art. 3º, n.º1 e 3º do C. P. Civil e Acórdão do Tribunal Constitucional de 12.5.1998.



DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, dar sem efeito a condenação da ré por litigância de má fé.
Em tudo o mais, mantém-se a decisão recorrida
As custas devidas pela presente apelação ficam a cargo dos réus/apelantes, na proporção de 3/4.