Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
696/09.8TAGMR.G1
Relator: MARIA AUGUSTA
Descritores: JUÍZOS E IMPUTAÇÕES FEITAS A DIRIGENTE DESPORTIVO
REDUÇÃO DA DIGNIDADE PENAL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DA CRÍTICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Nas expressões sublinhadas no extracto da carta e com relevo, nos presentes autos, os arguidos formulam juízos de valor sobre a personalidade do assistente, acusando-o de ser uma «pessoa falsa», que falta à verdade e à palavra dada.
II) Tais acusações, porém, são imputadas ao assistente enquanto dirigente desportivo e não enquanto cidadão comum.
III) Não estamos, pois, no domínio das relações pessoais dos arguidos e do assistente mas antes no âmbito das suas emotivas «lutas» desportivas. Ora no domínio da «luta» desportiva há uma redução da dignidade penal e da carência da tutela penal da honra, havendo que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica, pois só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação, benéfica neste domínio.
IV) Daí que, os juízos e imputações feitas, embora exageradas, não excedem o que, em geral, se considera tolerável no contexto da luta e disputa desportiva, muito particularmente, no futebol.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:


Domingos F... apresentou queixa contra:
- Emílio S...;
- Paulo P...;
- João C...;
- Alberto O..., por factos que, em seu entender, um crime de difamação, p. e p. pelo artº180, nº1 e 183º, nº1, al.b), ambos do C.P..

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Encerrado o inquérito, o assistente deduziu acusação contra todos os arguidos, imputando, a cada um, a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artº180, nº1 e 183º, nº1, al.b), ambos do C.P., no que foi acompanhado pelo MºPº.
Remetidos os autos à distribuição, no despacho a que se refere o artº311º do C.P.P., o Sr. Juiz, por entender que os factos constantes da acusação não configuravam a prática de qualquer crime, rejeitou a acusação e ordenou o arquivamento dos autos.

Inconformado, o assistente veio interpor o presente recurso, concluindo a sua motivação com conclusões das quais se retira ser a questão a decidir a de saber se as expressões usadas na carta são ou não injuriosas.


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Admitido o recurso, a ele respondeu o MºPº, que conclui pela sua procedência e os arguidos que concluem pela sua improcedência.

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O Exmo Procurador Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no qual conclui que o recurso não merece provimento.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir:
Matéria de facto indiciada e com interesse para a decisão:
1. O assistente é vice-presidente do Clube Vitória de Guimarães;
2. Os 2º, 3º e 4º arguidos são também vice-presidentes do mesmo clube;
3. No dia 18/02/09, o Assistente, na sequência da sua demissão do cargo de Director do departamento de futebol daquele clube e na qualidade de vice-presidente da direcção, remeteu ao 1º arguido a carta cuja cópia consta de fls.9 a 15;
4. Em 25/02/09, todos os arguidos redigiram, subscreveram e enviaram ao Presidente da Mesa da Assembleia-geral, ao Presidente do Conselho Fiscal, ao Presidente do Conselho de Jurisdição e ao Presidente do Conselho Vitoriano a carta cuja cópia consta de fls.16 a 30;
5. Dessa carta consta o seguinte:
Sob a al.j):
Hoje só lamentamos, e por isso fazemos meã culpa, termos tolerado tantos caprichos de uma pessoa que não mereceu, não merece, nem dignificou as funções para as quais foi eleito, mostrando ser uma pessoa falsa, faltando à verdade para assim ofender a dignidade, o bom nome e a honra daqueles que apesar de tudo sempre o respeitaram.
E sob a al.l):
A pressa que o Sr. Manuel A... refere nesta alínea explica-se facilmente: quando damos a palavra a alguém, temos o dever de a cumprir, mas isso é algo que pelos vistos o Sr, Manuel A... não compreende, talvez porque nunca soube o que é a vida de um empresário, seja em qualquer actividade que seja, de ter um bom nome no mercado e fazer com que o mesmo seja estimado e respeitado.
E no que a esta alínea diz respeito, mais uma vez o Sr. Manuel A..., infelizmente, demonstra ter uma memória selectiva, é que ficou combinado que assim que o Vitória recebesse do Inter de Milão o pagamento da transferência do jogador Pele, seria paga a comissão à Gestifute e a Direcção cumpriu com a palavra dada, o que se lamenta é que o Sr. Manuel A... não estime pessoalmente a sua – vide factura da empresa Gestifute.


A questão a decidir resume-se, como se disse, a saber se as expressões sublinhadas, usadas na carta, cujo teor parcial se reproduziu, são ou não ofensivas da honra e consideração do assistente.
Em causa está o conflito entre dois direitos constitucionalmente protegidos – o direito ao bom-nome e reputação e o direito à livre expressão – que começaremos por determinar.

Comecemos pelo conceito de direito ao bom-nome e reputação:
A todos os cidadãos é reconhecido o direito ao bom-nome e reputação (artº26º da CRP), o qual consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra e consideração social mediante imputação feita por outrem”, direito esse que constitui um limite para outros direitos J. Gomes Canotilho e Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa Anotada- 3ª Ed., pág.180. .
Beleza dos Santos Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria – RLJ nº3512, pág.167/168. define honra como aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e consideração como “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público. E prossegue: A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo.
Contudo, o conceito de ofensa não é nem pode ser um conceito puramente subjectivo, isto é, não basta que alguém se considere injuriado para que a ofensa exista. Determinar se uma expressão é ou não injuriosa é uma questão que tem que ser aferida em função do contexto em que foi proferida bem como do meio social a que pertencem os interveniente(s) (ofendido(s) e arguido(s)), a relação existente entre estes, os valores do meio social em que ambos se inserem, etc..
Daí que este último autor, citando Jannitti Piromallo Obra citada, pág.167., escreve: os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objectivamente merecedores de tutela. E prossegue, concluindo: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais.
Para José Faria Costa Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo I, pág.630., o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidade bem diversa, no momento em que apreciamos o significado, o que não quer dizer, prossegue o mesmo autor, que não haja palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração.

Analisemos, agora, o direito à liberdade de expressão:
Ao lado do direito ao bom-nome e reputação a Constituição da República Portuguesa consagra o direito à liberdade de expressão (artº37º) ou seja, o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento.
Este direito não pode ser sujeito a «impedimentos», conforme consta do nº1, parte final do artº37 da CRP. Mas esta expressão “não pode querer dizer sem limites (...) porque há limites ao direito”, designadamente, outros direitos fundamentais como, por exemplo, aquele primeiro.
Ora, o direito à liberdade de expressão é um direito com grande amplitude que não se satisfaz apenas com a liberdade de emitir juízos favoráveis (elogios, louvores, etc.) mas também, e principalmente, juízos desfavoráveis, ou seja, juízos de valor negativos (p.ex. críticas). Porém, se bem que a opinião e crítica têm que ser livres, essa liberdade tem que ter como limites o respeito devido à honra e dignidade das pessoas.

Ambos os direitos em análise, como direitos fundamentais que são, têm, em princípio, igual valor. Daí que a colisão entre eles deva resolver-se, não sacrificando um, mas antes tentando a sua harmonização ou concordância prática Gomes Canotilho – Dirito Constitucional e Teoria da Constituição – 4ª Ed., pág.1188., harmonização essa que deve ser feita em face das circunstâncias concretas.

Postas estas considerações, vejamos o caso concreto:
Nas expressões sublinhadas no extracto da carta e com relevo, os arguidos formulam juízos de valor sobre a personalidade do assistente, acusando-o de ser uma «pessoa falsa», que falta à verdade e à palavra dada.
Tais acusações, porém, são imputadas ao assistente enquanto dirigente desportivo e não enquanto cidadão comum. Não estamos, pois, no domínio das relações pessoais dos arguidos e do assistente mas antes no âmbito das suas emotivas «lutas» desportivas.
Ora, é, actualmente, pacífico que nas pessoas que são protagonistas do palco da vida política, cultural e desportiva, a tutela dos bens jurídicos pessoais é mais reduzida e fragmentada do que no caso do cidadão comum. Ou seja, no caso, o dirigente desportivo, como “figura pública” que é, tem de suportar uma exposição à discussão e à crítica pública maior do que o normal cidadão, o que conduz a uma redução da tutela penal da honra.
Daí que os tribunais não devam intervir por forma a coarctar a vivacidade e acutilância nas «guerras» do desporto, mesmo quando deva considerar-se que o tipo de linguagem utilizada desmerece da elevação que deveria caracterizar esse debate, em que o aproveitamento de deficiências ou erros do adversário representam ganhos para as aspirações e objectivos de quem os denuncia, com o duplo objectivo de minimizar a influência e o valor do adversário e ganhar para si imagem e vantagem a nível desportivo.
Note-se que o controlo dos dirigentes desportivos, particularmente por parte dos seus adversários, mas também dos adeptos em geral, é o fundamento irrenunciável da vida desportiva em liberdade.
Neste campo, como noutros acima referidos, há que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica - só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação que conduza as pessoas à auto-censura, o que seria particularmente perigoso para um regime democrático.


Tudo se conjuga, pois, para que no domínio da «luta» desportiva haja uma redução da dignidade penal e da carência da tutela penal da honra, havendo que assegurar uma verdadeira dimensão da liberdade de expressão e da crítica, pois só assim se pode afastar uma atmosfera de intimidação, benéfica neste domínio.
Na carta em apreço nos autos há frases que, isoladas do seu contexto, têm índole objectivamente ofensiva para o homem comum. Porém, na luta desportiva já assim não é, tanto mais que, como bem se refere no despacho recorrido, na carta subscrita pelo ora recorrente, junta de fls.9 a 15, o tipo de linguagem e as expressões utilizadas é muito semelhante, designadamente, nas «questões) colocadas, imputando aos recorridos, entre outras coisas «falta de transparência e lealdade institucional».
Assim, os juízos e imputações feitas, embora exageradas, não excedem o que, em geral, se considera tolerável no contexto da luta e disputa desportiva, muito particularmente, no futebol.


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DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Fixa-se em 6 Ucs a taxa de justiça devida pelo recorrente.

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Guimarães, 20/09/2010