Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2690/07-2
Relator: ANSELMO LOPES
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – A situação de, durante alguns anos, um menor ser vítima presencial da agressividade do pai para com a mãe, mas provando-se, também, que o arguido, para além disso, sempre quis privilegiar o tratamento desse filho, diminuído fisicamente, retira a característica de maus tratos à conduta respectiva, tanto mais que era ir-se demasiado longe, para uma dimensão típica quase indeterminada (e perigosa), julgar-se verificado o crime quando os filhos são apenas testemunhas presenciais dos maus tratos: são vítimas psicológicas da violência familiar como tantas outras (milhões delas), mas não são o seu alvo directo.
II – Assim, e nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/95, de 07-06-95 (DR I Série A, de 06-07-95), pode o Tribunal superior, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo Tribunal recorrido, excluindo essa conduta como crime.
III – Apesar de se reputar o crime de maus tratos como um dos crimes mais hediondos, quer pelas suas vulgares motivações, quer pelos seus destrutivos efeitos - - é um acto selvagem e cruel, tornando-se bárbaro, reles e odioso quando a agressão é praticada em alguém que, por mero comportamento instintivo ou programa social, está ligado ao agressor por laços (ditos) familiares ou de subordinação protectora -, as circunstâncias concretas de cada caso podem abonar juízo de prognose sobre a suficiência da ameaça da pena, suspendendo-a na sua execução, sendo de superar as influências de um certo e actual fundamentalismo que corre nesta matéria, como que uma “tolerância zero” para a violência familiar.
IV – Tal é o caso, pois
Decisão Texto Integral: Após audiência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto –Pº nº 287/05.2GACBC

ARGUIDO/RECORRENTE
José

RECORRIDO
O Ministério Público.

OBJECTO DO RECURSO
No processo supra referido, ao recorrente foi imputada a prática de factos susceptíveis de integrarem a prática, como autor material e em concurso real, de quatro crimes de maus tratos, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, a), n.º 2 e n.º 6, do Código Penal.
Vieram a ser aplicadas as seguintes penas parcelares:
.- 2 anos de prisão pelos crimes de maus tratos cometidos nas pessoas do JM e do RM;
.- 2 anos e 3 meses, pelo crime de maus tratos cometido na pessoa de Maria; e
.- 1 ano e 4 meses pelo crime de maus tratos cometido na pessoa do AF.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão, pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de quatro crimes de maus tratos, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, a), e 2, do Código Penal.

Foi ainda imposta a pena acessória de afastamento da residência dos ofendidos, pelo período de dois anos, nos termos do art.º 152.º, n.º 6, do Código Penal.

*
Foi ainda o arguido condenado a pagar à demandante Maria a quantia de € 2.500,00 a título dos danos não patrimoniais.

Desta decisão vem interposto o presente recurso, entendendo o recorrente que a pena é excessiva, sendo certo que o seu comportamento radica na ingestão de bebidas alcoólicas e que a prisão não é o meio idóneo para a sua ressocialização.
Nestes termos, diz que, sendo justa e suficiente para atingir os fins da norma incriminadora e para efeitos de exigências de prevenção uma pena de prisão não superior a 2 anos e que a mesma deverá ser suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, com a pena acessória de afastamento da habitação da esposa já aplicada.

MATÉRIA DE FACTO
1. O arguido e Maria contraíram casamento civil em 16 de Novembro de 1985.
2. São filhos do casal RM, JM e AF.
3. O menor AF tem necessidades motoras especiais, deslocando-se em cadeira de rodas e necessitando do auxílio de terceiros para tratar da sua higiene e alimentação.
4. A casa de morada de família situa-se em Lugar X.
5. Atendendo às barreiras de mobilidade e arquitectónicas, e às insuficientes condições de conforto e habitabilidade que a originária casa de morada de família apresentava, os progenitores do arguido doaram ao casal o prédio urbano acima mencionado.
6. Tal prédio, por intervenção da Segurança Social, beneficiou de obras de adaptação às especiais necessidades motoras de AF.
7. O arguido não tem trabalho certo e, actualmente, vive da ajuda dos seus pais, em casa destes.
8. Padece de alcoolismo, tendo tentado, pelo menos, três tratamentos, sem êxito.
9. Foi acompanhado em consulta de psiquiatria desde 1999 até 2002, tendo faltado à última consulta agendada para 12 de Novembro de 2002.
10. Esteve internado no departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S. Marcos durante o mês de Maio de 2002.
11. O arguido habitualmente iniciava os consumos de bebidas alcoólicas – normalmente vinho e cerveja – logo pela manhã, estando aparentemente abstinente actualmente.
12. Os factos que a seguir se descrevem aconteciam normalmente quando o arguido se encontrava alcoolizado.
13. Sobretudo a partir de 1990, o arguido começou a agredir física e psicologicamente a sua mulher Maria, sendo que tais agressões se foram agravando com o avançar dos anos.
14. Ao longo do tempo decorrido desde então, e sempre no interior da residência – embora em datas não concretamente apuradas, sendo certo que nos últimos anos tais ocorrências eram diárias – o arguido dirigia-se à sua mulher Maria, chamando-lhe ”puta”, “vaca” e “vaca taurina”; por vezes, tais expressões eram gritadas quando chegava, de madrugada, estando Maria a dormir, junto do seu filho AF; desferia-lhe estalos na cara; puxava-lhe o cabelo; atirava-lhe e/ou desferia contra o seu corpo os objectos que tivesse à mão no momento.
15. Nestas alturas, Maria refugiava-se, fechando-se num dos quartos da casa, e o arguido atirava contra as portas ferros, cabos de vassouras e facas, sendo que, como consequência directa e necessária de tais factos, duas das portas da casa de morada de família ficaram completamente esburacadas e destruídas, facto que deixou os filhos do casal e Maria profundamente desgostosos, já que a casa beneficiara de obras recentes para adaptação às necessidades motoras de AF.
16. Estes episódios de violência, geralmente só cessavam quando o arguido adormecia ou por intervenção do pai deste, que ali era chamado.
17. Como consequência directa e necessária de tais factos, por várias vezes – embora em número e datas não concretamente apurados – resultaram para Maria hematomas no pescoço, braços e cara, dos quais nunca recebeu tratamento hospitalar.
18. Como consequência directa e necessária de tais factos, Maria – embora em datas não concretamente apuradas – ausentou-se da casa de morada de família por períodos não superiores a três dias, alturas em que permanecia na casa de sua irmã, desabitada por esta se encontrar emigrada em Espanha.
19. Na noite de 26 de Julho de 2005, o casal encontrava-se na cozinha da casa de morada de família, sendo que, a certa altura, e sem nada que o fizesse prever, o arguido muniu-se de um prato que ali se encontrava, que arremessou contra Maria, que só não foi atingida porque se desviou.
20. Acto contínuo, e enfurecido por não ter atingido sua mulher, o arguido desferiu um pontapé na coxa direita desta, e deu-lhe murros em várias partes do corpo.
21. Tendo o seu filho RM chegado em auxílio de Maria, o arguido muniu-se de uma faca e dirigiu-lhes a seguinte expressão: “ides dar a cona e o cu seus filhos da puta”.
22. Neste dia o arguido não aparentava estar alcoolizado.
23. Maria, JM e AF refugiaram-se na casa da irmã de Maria, na qual têm permanecido desde então.
24. Esta casa é pequena, não dispõe de casa de banho, e não está adaptada às especiais necessidades de mobilidade de AF, já que tem escadas e o seu confinamento não permite que a cadeira de rodas dê a volta no seu interior.
25. Os factos supra descritos ocorriam habitualmente durante as refeições, ao almoço e/ou ao jantar, altura em que a família se encontrava toda reunida, pelo que os três filhos do casal eram espectadores da actuação do pai em relação à mãe.
26. Normalmente, esses factos somente cessavam quando o arguido se deitava e adormecia.
27. RM desde criança presenciou a violência que o seu pai dirigia a sua mãe, exercida nos termos acima descritos, em consequência do que, temendo pela sua integridade física, por muitas vezes – embora em datas não concretamente apuradas – teve de fugir de casa, assim como o seu irmão JM, pernoitando em casa de vizinhos e em palheiros.
28. Tais factos, em certos períodos, ocorriam “dia-sim, dia-não”.
29. O arguido frequentemente entrava em casa embriagado, e já de madrugada, gritando “filha da puta, vaca e taurina”, acordava todos os elementos da família, não permitindo o descanso nocturno desta.
30. Como consequência directa e necessária de tais factos, e porque sendo padeiro, iniciava a sua actividade laboral às 5h45m – facto que o arguido bem conhecia – RM teve, em meados do ano de 2003, de abandonar a casa de morada de família.
31. JM frequentemente intercedia pela sua mãe quando os episódios de violência aconteciam, em resultado do que acabava, também ele, por ser física e psicologicamente agredido pelo arguido.
32. JM, nessas e noutras vezes, era fisicamente agredido por seu pai, que lhe batia em várias partes do corpo com um pau ou com um cinto e respectiva fivela, em diversas datas não concretamente apuradas, sobretudo quando aquele regressava da escola.
33. Nestas alturas, o arguido dirigia-se a JM chamando-lhe “filho da puta”, “cabrão” e “cão”.
34. As situações de agressão prolongavam-se por cerca de dez minutos, e para fazer com que as mesmas cessassem, JM teve por várias vezes – em datas não concretamente apuradas – de fugir de casa, durante a madrugada, trajando somente roupa interior, dormindo em palheiros, sendo que, numa dessas vezes, se deslocou a pé, para Cabeceiras de Basto, para casa do seu irmão RM.
35. Em dia e ano não concretamente apurados, passando já da meia-noite, o arguido, tendo chegado a casa alcoolizado, dirigiu-se ao quarto de AF, que aí dormia com Maria, em quem bateu, na presença daquele menor.
36. Acordando com o choro de sua mãe, o filho do casal, JM -, levantou-se e dirigiu-se ao referido quarto, com a intenção de fazer cessar aquelas agressões e de socorrer a sua mãe.
37. Todavia, o arguido desferiu vários murros no corpo de JM, que o fizeram cair, sendo que entretanto, e permanecendo no chão, foi continuamente pontapeado pelo arguido.
38. Em dia e ano não concretamente apurados, cerca das 20h30m, o arguido dirigiu-se a JM, que chegava a casa, e chamou-lhe nomes ofensivos da sua honra e consideração, entre os quais os acima apontados, desferiu-lhe várias bofetadas na cara, após o que tirou o cinto das calças que desferiu contra várias partes do corpo de JM.
39. Como consequência directa e necessária destes factos, JM ficou com o corpo marcado com hematomas, não tendo recebido tratamento hospitalar.
40. JM cresceu infeliz e rodeado por um clima de terror, gerado pelo comportamento do arguido, sendo que a factualidade descrita não lhe permitia a obtenção de resultados escolares positivos, e lhe determinou o abandono da escolaridade ao completar o 6.º ano do 2.º ciclo.
41. O arguido também impunha na casa e aos seus filhos regras, tais como proibi-los de comer um pão quando regressavam da escola.
42. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de agredir fisicamente a sua mulher e os seus filhos, e de os maltratar psiquicamente, com o fim de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência física e psíquica, como fez.
43. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
44. O arguido não tem antecedentes criminais.
Mais se provou:
45. De todas as vezes que foi agredida, a ofendida sentiu dores físicas, não só no memento da agressão mas também nos dias seguintes.
46. Sentia-se profundamente triste, nervosa, ofendida, humilhada e envergonhada, por ter sido agredida e maltratada.
47. Sentiu medo, perturbação e inquietação e receou pela sua integridade física e pela dos seus filhos então todos menores.
48. Sentiu e sente ainda actualmente grande desgosto, tristeza e sofrimento moral, que a afectou, vivendo em permanente estado de angústia e ansiedade.
49. A ofendida sofreu várias depressões por causa dos maus tratos.
50. Desde que abandonou a casa de morada de família, tem dificuldades económicas em sustentar a sua família.

MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES
As conclusões do recurso são assim sumariadas:
1. Todas as testemunhas de defesa inquiridas, L, A, AS e M, foram unânimes em afirmar que:
- o arguido se encontra separado da esposa desde 2005;
- que o arguido reside actualmente com os pais, na casa destes;
- que o arguido trabalha diariamente no campo, ou em qualquer outro trabalho que lhe seja solicitado;
- que o arguido actualmente não bebe, nunca mais tendo sido visto embriagado.
- que á uma pessoa educada e respeitadora para os outros.
2. O recorrente está pois socialmente inserido, tem hábitos de trabalho, bem como o apoio da família e é aceite na comunidade onde está inserido e goza de imagem positiva junto da mesma.
3. Atenta a matéria dada como provada e a matéria que o Meritíssimo Juiz "a quo" não valorou devidamente, a pena aplicada ao Arguido, ora Recorrente, mostra-se bastante elevada;
4. O douto Tribunal "a quo" não atendeu a todas as circunstâncias que depunham a favor do Arguido, e enumeradas nas várias alíneas do n° 2 do artigo 71 do Código Penal; I) Nomeadamente, não atendeu às condições pessoais do Arguido (pessoa bastante humilde e de baixa condição social e cultural), à sua situação económico (vive do seu trabalho diário, e com os seus pais);
5. A pena de prisão efectiva aplicada ao Arguido é excessiva e não serve as finalidades de prevenção, tendo ultrapassado a medida da culpa, bem como a tutela dos valores ofendidos pelo crime em causa;
6. A culpa do Arguido não pode ser considerada excessiva (o arguido padecia de alcoolismo, havendo um nexo de causalidade entre esta doença e os actos praticados pelo arguido) que se justifique a aplicação de uma pena privativa de liberdade, que não admita suspensão da sua execução, assim privando o Arguido de liberdade, com todas as consequências nefastas para si, que luta contra a doença que é o alcoolismo, encontrando-se actualmente abstémio, mas que sem ajuda dos familiares poderá recair.
7. A prevenção especial passa pela ressocialização do agente e esta só será conseguida no caso com a aplicação de uma pena não privativa da liberdade.
8. Na verdade são bem conhecidos os efeitos criminógenos e dessocializadores das penas de prisão, e o recorrente tem hábitos de trabalho, tem o apoio da família e está socialmente inserido, todas estas mais-valias no processo de (re)socialização podem-se perder na execução da penda de prisão, com as limitações laborais e com a mais que eventual erosão dos laços familiares e sociais do recorrente
9. O Tribunal "a quo" esqueceu o sentido pedagógico e ressocializador da pena;
10. A pena aplicada pelo Tribunal "a quo" é desadequada e gravosa para o Arguido (que se encontra integrado na sociedade), e por todos é tido como pessoa educada e trabalhadora.
11. A pena aplicada ao Arguido é excessiva, desproporcional e desadequada, sendo justa e suficiente para atingir os fins da norma incriminadora e para efeitos de exigências de prevenção - - a pena de prisão não superior a 2 anos, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, com a pena acessória de afastamento da habitação da esposa já aplicada;
12. A pena de prisão a aplicar ao Arguido, dentro daqueles limites, deverá ser suspensa, atendendo à sua personalidade, às suas condições de vida e à sua integração na comunidade em que vive.
13. A ameaça de prisão realizará de forma razoável e justa as finalidades de punição;
14. Acresce que não consta que o arguido tenha sido já condenado alguma vez em pena de prisão, valendo isto por dizer que, no caso concreto, a pena de prisão aplicada revela-se, também, excessiva no seu montante.
15. Embora seja caso de aplicação de pena de prisão, a personalidade do arguido manifestada, as condições da sua vida, e as circunstâncias do crime, a alcoolemia do arguido e a sua luta actual pela abstinência em relação ao álcool, fazem concluir que simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde que subordinada a dever ou regra de conduta considerada idónea, a garantir a reintegração do arguido, e serão bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
16. Assim, por tudo o exposto, entende-se por justo, condenar o arguido na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, com a pena acessória de afastamento da residência da esposa já aplicada, nos termos do artº 50º nºs 1, 2,5 e 6 do CP.
17. Assim não o entendendo, a douta Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 50°,70°,71° e 152°, todos do Código Penal;
Pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que condene o Arguido na referida pena de prisão não superior a 2 anos, suspensa na sua execução por 4 anos., e a pena acessória de afastamento da habitação da esposa já aplicada.

RESPOSTA
No Tribunal recorrido, a Digna Procuradora -Adjunta pugna pela defesa do julgado.

PARECER
Nesta instância, o Ilustre Procurador Geral-Adjunto corrobora a inexistência de pressupostos para a suspensão da execução da pena, salientando em especial o seguinte:
«Manifestando a nossa opinião, por forma breve e concisa, desde já se pode e deve afirmar à giza de contexto, que o arguido aceita pacificamente a opção concretizada na sentença pela pena de prisão. Ou seja, a opção pela pena detentiva recebe o acordo do arguido. Quem pugna aberta e claramente por uma pena de prisão de 2 anos, conforma-se com a opção concretizada pela pena detentiva.
A questão do quantum da pena colocada pelo arguido é, então, a primeira a decidir.
Justifica-se uma pena de 2 anos de prisão?
A resposta é negativa. O propósito do arguido é manifestamente ilegal. Vejamos.
As penas parcelares aplicadas ao arguido foram as seguintes:
a) 2 anos de prisão para cada um dos crimes onde são vítimas o JM e o RM e
b) 2 anos e 3 meses de prisão para o crime onde é vítima Maria.

O art. 77, nº2 do CPenal ao definir as regras da punição do concurso de crimes, aludindo à pena mínima, refere que ela é a “mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Ou seja e tomando o caso concreto, a pena mínima aplicável ao arguido recorrente nunca poderia ser a que é por ele pretendida em recurso – 2 anos de prisão -, mas sim a pena de 2 anos e 3 meses, a mais elevada das penas que integram o concurso. É este o mínimo legal da pena abstracta.
Portanto, é de todo impossível deferir a pretensão do arguido, neste particular. A pena encontrada apenas se afasta do seu mínimo em 7 meses, justificando-se isso, perfeitamente, em face da gravidade dos delitos por aquele praticada, do dolo, das consequências dos crimes, enfim, das circunstâncias previstas no art. 71 do CPenal e que, justamente, foram consideradas na sentença posta em crise.
Assim, neste ponto, ao arguido falece razão.

b)
Questão subsequente é apurar da legalidade da não suspensão da pena aplicada, da pena única aplicada.
Na sentença posta em crise pelo arguido, justificando a não suspensão da pena de prisão citada, levou-se em conta o seguinte:
“Ora, o arguido não mostrou qualquer atitude que permitisse concluir do seu propósito de reestruturar e redefinir o seu estilo de vida, antes resultando, da análise dos factos e na medida em que estes são reveladores da personalidade do arguido, que não há condições bastantes para o tribunal tecer um juízo prognose favorável, não havendo nada que leve a crer que a mera ameaça da pena satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” – vd. fls. 288 verso.
Conhece-se, integralmente, os pressupostos de aplicação do instituto da suspensão da pena.
Como se refere no acórdão do STJ de 24/10/2002, proc. 3398/2002, relator Conselheiro Simas Santos,
“3 - O tribunal afirma a prognose social favorável em que assenta o instituto da suspensão da execução da pena, se conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo, para tal, atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
4 - E só deve decretar a suspensão da execução quando concluir, face a esses elementos que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade. O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa”.

E consigna o mesmo Conselheiro no acórdão do mesmo Tribunal, de 24.05.2001, Proc. N.º 1092/01 - 5.ª Secção:
“IV - São os seguintes os elementos a atender nesse juízo de prognose:
- a personalidade do réu;
- as suas condições de vida;
- a conduta anterior e posterior ao facto punível; e
- as circunstâncias do facto punível.
V - Devem atender-se a todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do réu, atendendo somente às razões da prevenção especial. E sendo essa conclusão favorável, o tribunal decidirá se a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer as finalidades da punição, caso em que fixará o período de suspensão”.

Com estes pressupostos teórico-práticos, tomemos o caso concreto.
Será que há elementos probatórios justificativos da aplicação ao arguido do mencionado instituto jurídico?
Com a salvaguarda e respeito por opinião adversa, mormente a objectivada no recurso, cremos que a imagem global do caso, do caso concreto, não consente a esperança. A valia da argumentação apontada na sentença é, efectivamente, substancial. Do nosso ponto de vista, um elemento sobreleva: o arguido apenas beneficia duma circunstância diminuidora da sua responsabilidade penal: a ausência de antecedentes criminais. Nenhum outro elemento quer de natureza pessoal, quer social foi dado como provado que possa ser invocado em prol dum juízo favorável de adequação comportamental do arguido às normas penais. Nem uma confissão dos factos apurados, nem um rebuço de arrependimento. A comprovada personalidade violenta e egoística do arguido, as desumanas circunstâncias concretas dos crimes, a conduta daquele antes e depois do crime inculcam uma certeza relativamente à prevenção especial: para o arguido já não há lugar à esperança.

PODERES DE COGNIÇÃO
Sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no artº 410º, o objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, do qual serão as citações sem referência expressa.

FUNDAMENTAÇÃO
Tem que se notar, antes de mais, que a matéria de facto relativa aos menores AF e RM não preenche a previsão típica do crime imputado ou qualquer outro.
Com efeito, quanto ao AF apenas se provou o seguinte:
25. Os factos supra descritos ocorriam habitualmente durante as refeições, ao almoço e/ou ao jantar, altura em que a família se encontrava toda reunida, pelo que os três filhos do casal eram espectadores da actuação do pai em relação à mãe.
35. Em dia e ano não concretamente apurados, passando já da meia-noite, o arguido, tendo chegado a casa alcoolizado, dirigiu-se ao quarto de AF, que aí dormia com Maria, em quem bateu, na presença daquele menor.
Por seu lado, na motivação escreveu-se o seguinte:
Segundo relataram as testemunhas, de modo completamente coerente e crível, o único no agregado familiar em que o arguido nunca bateu foi ao filho mais novo, de seu nome AF, por este padecer de deficiência física motora, encontrando-se numa cadeira de rodas.
(…)
Mais relataram que o arguido, com frequência quase diária, batia na sua mulher, na presença dos seus filhos (mesmo de AF que, atemorizado e incapaz de se mover pelos seus próprios meios, apenas gritava e chorava)…
Depois, conclui-se que no presente caso, atentos os factos provados, não existe a mais pequena dúvida de que o arguido praticou os crimes de que vem acusado: de forma reiterada – quase diária e durante quase 16 anos, diga-se –, o arguido, geralmente alcoolizado (embora nem sempre), batia na sua mulher, na presença dos seus filhos, agredia igualmente os seus filhos, dando-lhes sovas, insultando-os a todos com palavras objectivamente injuriosas, impondo-lhes regras prejudiciais à sua saúde e ao seu desenvolvimento (impedindo-os de lanchar, por exemplo), não os deixando descansar, ameaçando-os e perseguindo-os, atirando-lhes com objectos, e genericamente aterrorizando-os a todos.
(…)
Mais adiante diz-se que é preciso salientar que o arguido demonstrou, segundo aquilo que ficou provado, bem saber diferenciar as situações, na medida em que no seu filho mais novo, deficiente físico, embora sujeitando-o a assistir a todos os demais factos, nunca o arguido bateu ou directamente insultou, ameaçou ou vilipendiou.
Ora, sendo isto assim, além de se notar até a existência de contradições entre a fundamentação e a decisão, é inconsequente que se julgue verificado o crime na pessoa do citado menor.
É certo que, durante alguns anos, o menor foi vítima presencial da agressividade do arguido, mas também o é que este, para além disso, sempre quis privilegiar o tratamento deste filho e isso retira a característica de maus tratos à conduta respectiva, tanto mais que era ir-se demasiado longe, para uma dimensão típica quase indeterminada (e perigosa), julgar-se verificado o crime quando os filhos são apenas testemunhas presenciais dos maus tratos: são vítimas psicológicas da violência familiar como tantas outras (milhões delas) - Sobre esta temática, o ora relator, num texto de uma comunicação na Universidade do Minho, escreveu o seguinte:
«A natureza é generosa nos instintos paternais que nos lega, mas, mesmo assim, o Homem tem comportamentos sociais tão indignos que o levam, até, ao desrespeito criminoso para com os seus membros mais puros, frágeis e inocentes, antecedendo-nos uma história tão cheia de horrores que nos deve envergonhar e fazer reflectir.
A etologia animal - também neste domínio - deveria servir-nos de paradigma e de objecto de reflexão, pois, como observa Carmona da Mota, “os animais não maltratam os filhos” e “quando os matam é por eutanásia piedosa”.
De nada tem valido ao Homem a sua condição de ser racional, chegando à necessidade de ter que ser a engenharia genética a intervir nas entranhas do corpo humano, na busca e modificação do gene da violência, como meio de programar aquilo que a razão não consegue atingir.
As causas deste aberrante comportamento humano são as mais variadas e, do ponto de vista das diversas ciências envolvidas, o assunto está já, a meu ver, devidamente estudado, cabendo agora tomarem-se sérias medidas de prevenção e reacção, tendo-se sempre presente que, mais que ideias, é preciso transmitir emoções, pois são elas - essencialmente elas - que fazem dar novos rumos às sociedades.
*
O molde que tradicionalmente nos é dado de maus tratos, nomeadamente através de relatos mórbidos pela comunicação social, leva-nos a confundi-los quase sempre, e apenas, com uma das suas variantes - os maus tratos físicos; os abusos sexuais, o abanão e a negligência física podem ser consideradas sub-espécies destes -, ficando sublineares outras formas, quiçá mais perversas, nas causas, nos meios e nas consequências, como sejam a negligência afectiva, os maus tratos psicológicos e as agressões pelos diversos meios audio-visuais (música, literatura, televisão, cinema, internet, jogos electrónicos, etc.).
Além destas, há uma forma de agressão que tem sido totalmente escamoteada e que, todavia, é a mais brutal delas todas: refiro-me à agressão política, activa e omissiva.
Esta forma de agressão tem como autores imediatos os Estados, que, hipocritamente, subscrevem tratados e convenções em nome das crianças, mas que, por razões puramente políticas - sobretudo de política económica -, assinam convenções e tratados que conduzem ao estado actual da humanidade.
E se os autores individuais de uma qualquer agressão podem ser perseguidos criminalmente (por um Estado, obviamente), os Estados ficam impunes, limpando as mãos a folhas constitucionais que garantem direitos às crianças e consolando as suas consciências com incipientes e ineficazes programas de acção social ou com hipócritas e mesquinhos donativos governamentais!
No preciso momento em que compunha este texto, chegou-me às mãos um impresso de uma organização humanitária, de onde registo o seguinte:
“Por dia, morrem 25 mil crianças vítimas da fome”;
4 milhões de crianças morrem no primeiro mês de vida por falta de alimentos”;
600 milhões de crianças não têm acesso aos cuidados primários de saúde”;
“Na última década do século XX, mais de 1 milhão de crianças ficaram órfãs ou foram separadas das suas famílias devido a conflitos armados...”.
Quem serão os responsáveis por esta situação catastrófica?
Perante estes números cruéis e pelas imagens que quase todos os dias nos entram pelos olhos dentro, impõe-se que cada um de nós repense o seu lugar na sociedade e deixe de ser cúmplice desta barbaridade. Um olhar de pena, uma emoção passageira ou uma esmola nada resolvem».
, mas não são o seu alvo directo.
*
Quanto ao filho RM, os factos comprovam, também, uma situação de sofrimento psíquico, que não de maus tratos na acepção típica.
São os seguintes os factos em causa:
Ao longo do tempo decorrido desde então, e sempre no interior da residência – embora em datas não concretamente apuradas, sendo certo que nos últimos anos tais ocorrências eram diárias – o arguido dirigia-se à sua mulher Maria A..., chamando-lhe ”puta”, “vaca” e “vaca taurina”; por vezes, tais expressões eram gritadas quando chegava, de madrugada, estando Maria a dormir, junto do seu filho AF; desferia-lhe estalos na cara; puxava-lhe o cabelo; atirava-lhe e/ ou desferia contra o seu corpo os objectos que tivesse à mão no momento.
Na noite de 26 de Julho de 2005 (…), tendo o seu filho RM chegado em auxílio de Maria, o arguido muniu-se de uma faca e dirigiu-lhes a seguinte expressão: “ides dar a cona e o cu seus filhos da puta”.
Os factos supra descritos ocorriam habitualmente durante as refeições, ao almoço e/ou ao jantar, altura em que a família se encontrava toda reunida, pelo que os três filhos do casal eram espectadores da actuação do pai em relação à mãe.
O RM desde criança presenciou a violência que o seu pai dirigia a sua mãe, exercida nos termos acima descritos, em consequência do que, temendo pela sua integridade física, por muitas vezes – embora em datas não concretamente apuradas – teve de fugir de casa, assim como o seu irmão JM, pernoitando em casa de vizinhos e em palheiros.
Como consequência directa e necessária de tais factos, e porque sendo padeiro, iniciava a sua actividade laboral às 5h45m – facto que o arguido bem conhecia – o RM teve, em meados do ano de 2003, de abandonar a casa de morada de família.
É evidente que o RM sofreu presencialmente, durante vários anos, os maus tratos sobre a mãe, mas a verdade é que, também ele, nunca foi agredido fisicamente e nem se provaram, quanto a ele, os gravíssimos efeitos que se provaram quanto ao JM e, além disso, tendo os maus tratos aumentado nos últimos tempos, já ele se encontraria ausente de casa, em autonomia de vida.
Assim, e nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/95, de 07-06-95 (DR I Série A, de 06-07-95), que estabelece que o Tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo Tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus, têm que se excluir os ditos crimes.
Na douta fundamentação deste AFJ, sublinhando-se agora, diz-se assim:
«…”compete aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos” e a verdade é que a posição assumida no acórdão fundamento é especialmente dirigida à defesa dos direitos dos arguidos e a função dos Tribunais é garantir a defesa de todos os interesses legítimos cuja tutela e protecção lhes seja suscitada, sejam quais forem os respectivos titulares.
(…)
É inaceitável que o julgador seja mero espectador em grande parte naqueles casos em que, não estando em debate uma qualificação jurídica errada dos factos ou até uma medida de uma pena indevida, ele se deva pronunciar tão só sobre as questões suscitadas no recurso e que não tenham a ver com tal circunstancialismo.
A solução em processo penal não pode - não deve - distanciar-se da que foi adoptada em processo civil, e que se encontra condensada no artº 664º do Código desta última forma de processo…
Nas duas formas de processo, pode dizer-se, como José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil, col. V, p. 92) que o citado artº define a relação entre a actividade do Juiz e a actividade das partes no tocante aos materiais do conhecimento; e define-a assim: “pelo que respeita ao direito, a acção do Juiz é livre; pelo que respeita aos factos, a sua acção está vinculada”.
Daí que, desde o direito romano, se mostrem consagradas - e respeitadas - as máximas jura novit curia e da mihi facta, dabo tibi ius.
(…)
Do mesmo modo, não se poderá ultrapassar a limitação do recurso nos casos em que é permitido - artigo 403º -, embora se tenha de aceitar que a parte não impugnada contém erros que são autênticas denegações de justiça.
E se o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo - artigo 8º, nº 2 do Código Civil -, tal não impede que o aplicador do direito não possa - nem deva - denunciar os defeitos da lei que conduzem ou podem conduzir a uma denegação da justiça que, como se disse, é função sua promover.
Vem a propósito reproduzir o pensamento do Prof. Beleza dos Santos, quando aquele extraordinário jurista considerou ser “injustificado e vexatório que se vinculasse o Tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo mesmo Juiz que pronunciou” e que seria “exorbitante e injustificado” que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar (ou, obviamente, de ser prejudicado) com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente.
(…)
A entender-se de outro modo, ficar-se-ia por entender por que é que o julgador pode conhecer oficiosamente do erro notório da prova e dela retirar as devidas consequências - cf. artigos 412º, nº 2, alínea c) e 426º do Código de Processo Penal - na escassa medida em que lhe é consentido intervir na matéria de facto, e já não poder tomar conhecimento da mesma espécie de factos para o efeito da qualificação jurídica da situação jurídica sub judice.
Propondo, pois, o extravasamento do âmbito da delimitação dos recursos, a doutrina deste aresto é de delicadíssima exegese, sendo contadas as circunstâncias em que tal pode acontecer, mas a regra de ouro é o respeito absoluto pela matéria de facto fixada, salvo, como é óbvio, o funcionamento do conhecimento oficioso nos termos do artº 410º, nº 2 e do artº 431º, o que não permite qualquer “interpretação” dos factos, diferente da feita na instância recorrida e não impugnada nos termos legais.
Essa regra, como se diz no citado aresto, é a do da mihi facta, dabo tibi ius, mas que tem que ser entendida em termos hábeis e consequentes, e não alargada de tal modo que conduza a decisões injustas por violação das regras processuais e, sobretudo, que fira de morte o princípio da segurança jurídica.
Se, por exemplo, o Tribunal da 1ª instância entendeu que certas expressões são injuriosas e condena o seu autor, o Tribunal de recurso não pode oficiosamente - isto é, se isso não constar da motivação e das conclusões - decidir o contrário, por na sua opinião as expressões não serem ofensivas, pois a verdade é que a decisão da 1ª instância, não impugnada nesse aspecto, não constitui um erro capital que cumpra ao Tribunal superior eliminar.
No caso destes autos, como se vê, respeitando-se a matéria de facto, seria injustiça manifesta manterem-se as condenações quanto aos factos relativos aos citados menores.
*
Abordando-se agora as medidas das penas, tem que se aceitar que a pena aplicada ao crime de que foi vítima a mulher é mais do que ajustada a todos os parâmetros que concorrem para a sua determinação.
De igual modo, também não merece censura a pena do crime contra o filho JM, pois a seguir à mãe, ele foi a maior vítima directa da conduta do arguido, devendo atender-se a que ele era muito mais indefeso que a mãe, que, apesar de tudo, tinha meios institucionais ao seu alcance.
Sobre este menor, importa reter os seguintes factos:
Ao longo do tempo decorrido desde então, e sempre no interior da residência – embora em datas não concretamente apuradas, sendo certo que nos últimos anos tais ocorrências eram diárias – o arguido dirigia-se à sua mulher Maria A..., chamando-lhe ”puta”, “vaca” e “vaca taurina”; por vezes, tais expressões eram gritadas quando chegava, de madrugada, estando Maria a dormir, junto do seu filho AF; desferia-lhe estalos na cara; puxava-lhe o cabelo; atirava-lhe e/ ou desferia contra o seu corpo os objectos que tivesse à mão no momento.
Na noite de 26 de Julho de 2005 (…), a Maria, o JM e o AF refugiaram-se na casa da irmã de Maria, na qual têm permanecido desde então.
Os factos supra descritos ocorriam habitualmente durante as refeições, ao almoço e/ ou ao jantar, altura em que a família se encontrava toda reunida, pelo que os três filhos do casal eram espectadores da actuação do pai em relação à mãe.
O JM frequentemente intercedia pela sua mãe quando os episódios de violência aconteciam, em resultado do que acabava, também ele, por ser física e psicologicamente agredido pelo arguido.
O JM, nessas e noutras vezes, era fisicamente agredido por seu pai, que lhe batia em várias partes do corpo com um pau ou com um cinto e respectiva fivela, em diversas datas não concretamente apuradas, sobretudo quando aquele regressava da escola.
Nestas alturas, o arguido dirigia-se a JM chamando-lhe “filho da puta”, “cabrão” e “cão”.
As situações de agressão prolongavam-se por cerca de dez minutos, e para fazer com que as mesmas cessassem, o JM teve por várias vezes – em datas não concretamente apuradas – de fugir de casa, durante a madrugada, trajando somente roupa interior, dormindo em palheiros, sendo que, numa dessas vezes, se deslocou a pé, para Cabeceiras de Basto, para casa do seu irmão RM.
Acordando com o choro de sua mãe, o filho do casal, JM -, levantou-se e dirigiu-se ao referido quarto, com a intenção de fazer cessar aquelas agressões e de socorrer a sua mãe.
Todavia, o arguido desferiu vários murros no corpo de JM, que o fizeram cair, sendo que entretanto, e permanecendo no chão, foi continuamente pontapeado pelo arguido.
Em dia e ano não concretamente apurados, cerca das 20h30m, o arguido dirigiu-se a JM, que chegava a casa, e chamou-lhe nomes ofensivos da sua honra e consideração, entre os quais os acima apontados, desferiu-lhe várias bofetadas na cara, após o que tirou o cinto das calças que desferiu contra várias partes do corpo de JM.
Como consequência directa e necessária destes factos, JM ficou com o corpo marcado com hematomas, não tendo recebido tratamento hospitalar.
JM cresceu infeliz e rodeado por um clima de terror, gerado pelo comportamento do arguido, sendo que a factualidade descrita não lhe permitia a obtenção de resultados escolares positivos, e lhe determinou o abandono da escolaridade ao completar o 6.º ano do 2.º ciclo.
Estes factos revelam bem, como se disse, que o JM foi verdadeiramente maltratado, de modo grave e reiterado, não se limitando a sofrer as consequências psíquicas da degradação do ambiente familiar provocada pelo pai, mas antes sendo sua vítima directa.
Assim, repete-se, deve manter-se a pena aplicada.
*
Em termos de cúmulo jurídico, e aceitando-se como boas as considerações feitas na decisão recorrida, deve a pena única ser reduzida para dois anos e oito meses de prisão.
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Vejamos agora a questão da reclamada suspensão da pena.
É o lugar e momento, agora, de se dizer que reputamos o crime de maus tratos como um dos crimes mais hediondos, quer pelas suas vulgares motivações, quer pelos seus destrutivos efeitos, ainda tão mal estudados e, geralmente, pouco percebidos nos actos judiciários, apesar da crueza dos relatos das vítimas.
A agressão para submissão é um acto bestial, repugnante e cobarde, que provoca nos agredidos um tumulto de sentimentos (quase) indescritíveis e que os reduz à mais ínfima condição.
Nem a mais eloquente narração, nem a mais sábia descrição psicológica, nem a mais hábil reconstituição cinematográfica, nem a mais profunda e talentosa análise desses eventos são capazes de transmitir a realidade da dor que sente quem é vítima de maus tratos, físicos ou psíquicos.
É preciso sofrer-se pessoalmente a crueldade das agressões maltratantes para se sentir a verdadeira dimensão da dor e o turbilhão de emoções consequentes a traumas deste tipo, que, seguramente, pode dizer-se, provocam um terramoto no corpo e no espírito, sobretudo pelo “estado” de aflição e desarmonia contrário ao que a relação e os laços existentes entre o agressor e a vítima devem potenciar. De facto, agredir alguém - seja em que circunstâncias for - é um acto selvagem e cruel, mas torna-se bárbaro, reles e odioso quando a agressão é praticada em alguém que, por mero comportamento instintivo ou programa social, está ligado ao agressor por laços (ditos) familiares ou de subordinação protectora.
No caso presente, o arguido foi reiteradamente desumano para com a sua família, em particular para com a sua mulher e o filho JM, fazendo-os viver aterrorizados durante vários anos.
Por isso, a sua conduta merece ser adequadamente punida.
Simplesmente, uma coisa é a punição e outra, diferente e complementar, é a reinserção social do agente dos crimes, finalidade última das penas - cf. artº 40º, nº 1 do Código Penal -, e esta pode ser alcançada sem a execução efectiva da pena se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
É assente, de facto, que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de natureza e finalidade reeducativa, a ser aplicada nos casos em que, do conjunto dos factos e circunstâncias, se ajuíza da suficiência da simples censura do facto e da ameaça da pena, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A Mmª Juíza optou nitidamente pela prisão efectiva do arguido, consignando que não se afigura adequado o recurso a qualquer medida criminal substitutiva, mormente a suspensão da execução da pena de prisão, pois o arguido não mostrou qualquer atitude que permitisse concluir do seu propósito de reestruturar e redefinir o seu estilo de vida, antes resultando, da análise dos factos e na medida em que estes são reveladores da personalidade do arguido, que não há condições bastantes para o tribunal tecer um juízo prognose favorável, não havendo nada que leve a crer que a mera ameaça da pena satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por seu lado, o arguido invoca, em suma, que embora seja caso de aplicação de pena de prisão, a personalidade do arguido manifestada, as condições da sua vida, e as circunstâncias do crime, a alcoolemia do arguido e a sua luta actual pela abstinência em relação ao álcool, fazem concluir que simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde que subordinada a dever ou regra de conduta considerada idónea, a garantir a reintegração do arguido, e serão bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Por muito esforço que se faça, é difícil superar as influências de um certo e actual fundamentalismo que corre nesta matéria, havendo até quem sugira uma actuação judicial de “tolerância zero”.
Ora, tendo-se presente a maioria dos estudos e diplomas sobre a questão da violência familiar, e apesar de repudiarmos o crime em causa como se evidenciou, não podemos “seleccionar” certos tipos de crimes como lhes sendo mais difícil a aplicação do instituto da suspensão da pena. O que importa, depois da pena aplicada, é que, atendendo à personalidade do arguido e ao conjunto de circunstâncias, seja possível acreditar-se em que se atingem as finalidades da punição sem submeter o agente ao seu cumprimento efectivo.
Em casos como o dos autos, justifica-se, quase sempre, que o Tribunal se apoie, pelo menos, em relatório social, pois só assim se compreenderão melhor as diversas vertentes da questão em julgamento, mormente das condições sócio-psicológicas das pessoas envolvidas.
Não tendo tal relatório sido solicitado, a simples remessa para os factos não consente a peremptoriedade da afirmação de que estes são reveladores da personalidade do arguido, que não há condições bastantes para o tribunal tecer um juízo prognose favorável, não havendo nada que leve a crer que a mera ameaça da pena satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Além dos factos típicos, com relevo para este efeito, provou-se que:
7. O arguido não tem trabalho certo e, actualmente, vive da ajuda dos seus pais, em casa destes.
8. Padece de alcoolismo, tendo tentado, pelo menos, três tratamentos, sem êxito.
9. Foi acompanhado em consulta de psiquiatria desde 1999 até 2002, tendo faltado à última consulta agendada para 12 de Novembro de 2002.
10. Esteve internado no departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S. Marcos durante o mês de Maio de 2002.
11. O arguido está aparentemente abstinente actualmente.
Ora, isto não permite a citada afirmação, podendo até concluir-se que poderá ser exactamente a ameaça da pena que convença o arguido levar a sério uma modificação da sua vida.
O principal problema do arguido era, ou é, o alcoolismo e as suas repercussões no seu comportamento, tornando-o agressivo para a família.
A Mmª Juíza imputa esse comportamento à vontade do próprio arguido, pois, reconhecendo que ele sofre de uma doença (1 em cada 10 portugueses com mais de 15 anos sofre de alcoolismo, que é a 4ª causa de morte) e os entende que não se pode ignorar que o arguido, não obstante todas as oportunidades que teve, nunca orientou a sua conduta no sentido de evitar que terceiros, ainda por cima seus filhos e sua mulher, suportassem as nefastas consequências dessa doença, que estava ao seu alcance remediar.
Ora, a questão não pode ser encarada deste modo tão simplista, sendo preciso ponderar as causas e os efeitos das situações de dependência e a sua influência na vontade - Theodore Zeldin, da Universidade de Oxford, na sua obra História da Vida Íntima faz uma revelação paradoxal e esclarecedora: no México dos aztecas, a maioria dos escravos oferecia-se para sê-lo, por causa da dependência do patolli, um jogo de dados que os tornava incapazes de se responsabilizarem pela própria vida, pelo que assinavam um contrato de escravidão e ofereciam a sua liberdade (que já consideravam perdida) a um amo que os alimentasse e mantivesse., em cujos domínios se situam precisamente as patologias que levam ao vício.
As tentativas de tratamento que o arguido fez, apesar de frustradas, não podem ser encaradas como reveladoras de uma personalidade deficiente, pois a deficiência da personalidade antecede ou é causa do vício. Essas tentativas devem é ser vistas, pelo menos, como expressão de desejos de cura, iguaizinhos aos que tantos dependentes têm e que, infelizmente, tão poucos conseguem.
Depois, há que se atender a que todos os especialistas nestas matérias postulam que a cura passa essencialmente pela eliminação das causas - Sobre este assunto, há publicados livros e artigos que dão para encher bibliotecas, mas, em geral, são unanimemente consideradas as seguintes causas: desgostos, tentações, infelicidade, contexto familiar, desejo de experimentar, busca de prazer e da felicidade imediatos, refúgio dos problemas, stresse, solidão, superprotecção, abandono familiar e falta de auto-estima.
E como consequências, são geralmente aceites as seguintes: agressividade, mentira, infelicidade, problemas financeiros, problemas de saúde, desespero, angústia, isolamento, suicídio e homicídio, violência, desemprego, pobreza, degradação pessoal e profissional, insucesso escolar, falta de amigos e ódio.
e, no caso, nada se sabe sobre esse aspecto.
Há, contudo, um dado relevantíssimo que não foi ponderado, e que revela bem que existirá uma causa condicionante do alcoolismo do arguido, pois o próprio filho RM afirmou em julgamento que “o meu pai, sem o álcool, era 100%”. Isto significa, para quem bem entender, que se o arguido vier a tratar-se do seu essencial problema, poderá até vir a recuperar a família.
Deve também aceitar-se como motivante da pena suspensa o facto de o arguido não ter quaisquer antecedentes criminais e bem assim o reforço que, de alguma forma, se extrai da filosofia que presidiu às alterações do Código Penal, que nesta matéria são bastante significativas.
Com efeito, na exposição de motivos das alterações do Código Penal diz-se o seguinte, agora sublinhado:
Ora, quanto a matérias penais, a Comissão recomenda que se altere o Código Penal, no sentido de reforçar a aplicação de penas não privativas da liberdade.
Actualmente, apesar de ser clara a prevalência de sanções que não conduzem à detenção, como sejam a multa, prisão suspensa simples e prisão substituída por multa, a verdade é que outras medidas alternativas à prisão - nomeadamente, a prisão suspensa com sujeição a deveres ou regras de conduta e a prestação do trabalho a favor da comunidade - tiveram, desde a sua criação, uma expressão residual.
Urge, assim, alterar esta realidade, espelhada nas estatísticas, de modo a concretizar, efectiva e progressivamente, o ideário da reinserção social e reduzir a sobrelotação que se verifica nos estabelecimentos prisionais portugueses.
Assim sendo, propõe-se, precisamente, um reforço das penas alternativas à pena de prisão, considerando-se que estas são especialmente aptas a prosseguir a reinserção do agente, devendo o recurso à pena de prisão, preventiva e efectiva, ser reservado à criminalidade especialmente grave. Considera-se que apenas deste modo o sistema sancionatório pode responder ao que normativamente dele se espera.
(…)
Altera-se a redacção dos artigos 44.º a 46.º, de modo a dar um sinal claro de que o legislador penal pretende uma utilização mais intensiva do trabalho a favor da comunidade e da suspensão sujeita ao cumprimento de deveres, à observância de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova, de modo a reafirmar a importância das penas não privativas da liberdade.
(…)
c) Por outro lado, propõem-se alterações ao regime da suspensão da execução da pena de prisão. Este regime, demonstram as estatísticas, é bastante aplicado, mas apenas nos casos de suspensão simples. Pelo contrário, na modalidade de sujeição a deveres, a regras de conduta ou a regime de prova, a suspensão tem sido muito pouco utilizada. Ora, considera-se que se deve incentivar a utilização da suspensão sujeita a condições.
E, de facto, é esta sujeição que permite facilitar a efectiva reintegração do arguido na sociedade, aperfeiçoando o seu sentido de responsabilidade social.
Nesta medida, o novo regime dá sinais claros no sentido de uma utilização mais intensiva da suspensão sujeita a condições, pelo seu efeito muito eficaz do ponto de vista da reinserção social dos condenados.
Ora, tudo isto ponderado, entende-se ser de se dar uma oportunidade ao arguido, suspendendo-se a pena pelo período legal.
Nestas situações, é costume subordinar-se a suspensão da pena a condições ligadas às determinantes da prática dos crimes, assim se procurando buscar a desejada reinserção.
Simplesmente, também nos diz a experiência que é extremamente problemática a imposição de condições nestas circunstâncias, nomeadamente pela difusão do entendimento dos factos que preenchem ou não o cumprimento das obrigações ou regras de conduta e também por se estar a lidar com dependências que, pelas mais variadas razões, podem levar facilmente a recidivas.
Deve lembrar-se, no caso dos autos, que o arguido já está separado da mulher e dos filhos há cerca de dois anos e meio e que, por isso, não havendo muito que acautelar, deverá ficar apenas no domínio do arguido a opção por condutas conformes ao direito, tendo em vista arredar o cumprimento da pena e, por outro lado, deverá também ser ele próprio, se assim o entender e as circunstâncias o propiciarem, a afastar-se do vício que o consome e, como tantas vezes acontece, a recuperar a própria família.
Por estas mesmas razões, e atento o tempo de separação já decorrido, não se justifica a manutenção da pena acessória.

ACÓRDÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em se julgar procedente o recurso, condenando-se o arguido na pena única de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Sem custas.
*
Guimarães, 18 de Fevereiro de 2008