Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3705 13.2TBGMR-A.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO
INDEFERIMENTO LIMINAR
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: A norma do artº 185º CIRE permite, a contrario, a interpretação de que, nas demais ações, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação da insolvência, ainda que decidida nos termos do Art.º 188.º n.ºs 4 e 5 do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

RELATÓRIO

M… e M… foram declarados insolventes, a seu pedido, tendo também requerido a exoneração do passivo restante.

Sobre o requerido pedido de exoneração foi proferido despacho que o indeferiu liminarmente, por se ter dada como verificada a situação a previsão do art.º 238.º n.º 1 al. e) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Inconformados, os insolventes apelaram de tal decisão, apresentando alegações de onde se extraem as seguintes conclusões:

(…)

A credora A…, LDA contra alegou, pugnando pela confirmação da decisão apelada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

OBJECTO DO RECURSO

Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações a questão a decidir é a de saber se, no caso dos autos, deve ser indeferido a exoneração do passivo restante requerido pelos insolventes/ apelantes, por se verificar a previsão do art.º 238.º n.º 1 al e) do CIRE.

Os factos que fundamentaram a decisão recorrida são os seguintes:

1- Por sentença datada de 15.11.2013, a fls. 101ss, já transitada em julgado foi decretada

a insolvência de M… e de M…, na sequência de apresentação à insolvência efectuada por estes devedores em 08.11.2013;

2- A insolvente-mulher nasceu em 28.07.1970 e o insolvente-marido em 19.12.1966, sendo casados entre si desde 28.07.1990 segundo o regime de comunhão de adquiridos (cfr. CAN a fls. 22 e 24 e CAC a fls. 20);

3- Os insolventes nunca beneficiaram da exoneração do passivo restante (cfr. CAN a fls. 22 e 24);

3- Aos insolventes não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. CRC a fls. 87 e 88);

4- Aos insolventes apenas é conhecida a propriedade de um veículo automóvel, com cerca de 13 anos de idade, do mobiliário que compõe o recheio da sua habitação e de uma quota numa sociedade comercial declarada insolvente, com um valor estimado global inferior a €5.000 (cfr. relatório a fls. 240ss);

5- A insolvente-mulher foi desde a sua constituição, em 02.05.2006, até à presente data sócia e gerente da D…, Lda. declarada insolvente em 25.10.2013 (cfr. certidão a fls. 375ss), auferindo um salário mensal de €672,15 (cfr. relatório a fls. 240 e ss);

6- O insolvente-marido é funcionário da P…, auferindo um vencimento ilíquido mensal de €570 a que acresce um subsídio de turno no valor de €28,95/mês e subsídio de alimentação de €50,40 mensais (doc. a fls. 239);

7- Os insolventes residem em casa cedida gratuitamente pelos familiares da insolvente mulher (relatório a fls. 240ss);

8- Os insolventes têm dois filhos maiores, estudantes universitários na cidade do Porto;

9- Pela Exma. Sra. AI foram reconhecidos créditos no valor global de €327.315,37 (cfr. fls.

307), sendo que (pastas contendo as reclamações de créditos):

§ €104,700 foram reclamados pela A…, Lda. e encontram-se titulados por documento de reconhecimento de dívida datado de 23.07.2013 assumindo-se os insolventes como fiadores do devedor principal (D…);

§ €33.564,44 foram reclamados pelo Banco…, SA e encontram-se titulado por 6 livranças, todas subscritas pela D… em 26.08.2013 (e avalizadas pelos insolventes) e vencidas em 01.10.2013 e igual dia dos meses subsequentes;

§ €4.160,34 foram reclamados pelo B… com fundamento em saldo devedor de conta corrente titulada pela D…, garantida por livrança avalizada pelos insolventes;

§ €181.763,08 foram reclamados pela C… com fundamento em: Dois saldos devedores de cartão de crédito;

os Contratos de apoio ao financiamento da D… celebrados em 18.10.2011 com a sociedade e nas quais os insolventes assumiram a posição de garantes, tendo, na execução desse contrato, sido solicitados financiamentos em 11.09.2012, 03.01.2013, 05.02.2013 e 14.02.2013 e vencidos, respectivamente, em 04.01.2013, 05.04.2013, 06.05.2013 e 10.06.2013;

o Contrato de mútuo celebrado em 31.08.1999 com A… e P… e afiançado pelos insolventes; o Contrato de mútuo celebrado em 01.06.2005 com C… e afiançado pelos insolventes; § €3.126,99 pela N… com fundamento em contrato de garantia autónoma à 1.ª solicitação celebrado em 10.08.2010 com a D… e avalizado pelo insolvente-mulher.

DECIDINDO

Como já se referiu, o indeferimento liminar dos pedidos de exoneração do passivo restante formulados pelos insolventes, apenas se fundou na verificação da previsão da alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.

De acordo com o disposto do n.º 1 do art.º 238, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido quando se verificarem alguns dos casos previstos nesta norma.

Efectivamente, conforme dispõe o art.º 237º alínea a) do CIRE, a concessão efectiva da exoneração pressupõe, para além do mais, que não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, nos termos do disposto no art.º 238º do mesmo Código.

Tem entendido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que as situações elencadas na dita norma constituem factos impeditivos do direito do insolvente a obter o benefício da exoneração do passivo restante, pelo que, de acordo com o art.º 342.º n.º 2 do Código Civil, é sobre os credores do insolvente e o administrador da insolvência, que impende o ónus de alegação e prova desses factos. Por outro lado, compete aos insolventes alegarem todos os factos que constituem matéria de excepção

O preceito fundamentador da decisão ora em causa, determina que, “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido, se: “Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art.º 186.

Sucede que, os insolventes não impugnaram os factos dados como provados fixados na decisão, alegando no recurso outros factos que, no seu entender, poderiam ser considerados matéria de excepção. Contudo, mais uma vez, não impugnaram a decisão de facto, pois que não pedem que este tribunal adicione os concretos pontos de facto que alegam, nem referem os respectivos concretos meios de prova existentes nos autos de insolvência nos termos do art.ºs 662.º e 640.º do NCPC.

Assim sendo este tribunal apenas pode considerar os factos dados como provados pelo tribunal a quo.

Ora, analisados os factos assentes particularmente os que estão elencados sob os números 4 a 9, concluímos ser acertada a decisão no sentido da verificação da previsão do art.º 238.º n.º 1 al. e), a saber, a existência de culpa dos devedores na agravação da sua situação de insolvência.

Como se escreve na decisão em crise:

“Como já acima se fez referência, o passivo dos insolventes resulta maioritariamente da circunstância de terem garantido dívidas da D… . A D… foi declarada insolvente em Outubro de 2013 (cerca de 3 semanas antes da declaração de insolvência dos requerentes), sinal inequívoco que a empresa já estaria há algum tempo a atravessar uma difícil situação e estaria sem conseguir honrar os compromissos assumidos.

Aliás, se atentarmos nas datas de vencimento dos apoios ao financiamento concedidos pela CGD constatamos que desde Janeiro de 2013 que esses apoios não eram restituídos, ao contrário do que fora contratualizado – sinal inequívoco de que a D… já atravessava dificuldades na liquidação das suas dívidas.

Mais, em 01.07.2013 a D… tinha uma dívida acumulada de €100.000 para com a A…, Lda., que não conseguia liquidar.

Não obstante, os insolventes ainda afiançaram, em 23.07.2013, a dívida da D… e em 26.08.2013 as livranças subscritas pela sociedade comercial, não podendo deixar de saber (até porque a insolvente mulher era sócia-gerente da empresa) que esta já não conseguiria honrar tai compromissos (tanto assim é que foi declarada insolvente volvidos 3 meses) e que como tal seria responsabilizados pelas dívidas em causa. Ou seja, os insolventes contraíram créditos, não obstante as dificuldades financeiras já instaladas, que os impossibilitavam de cumprir as obrigações assumidas, situação subsumível ao art .º186.º/2/al. g) CIRE.”.

Nestes termos entendemos que efectivamente se configura a previsão do art.º 238.º n.º 1 al e) segunda parte.

Referem também os insolventes nas suas alegações que a sua insolvência foi declarada como fortuita, pelo que, há que ter em conta os efeitos de tal declaração.

Efectivamente, posteriormente á decisão de indeferimento da pedida exoneração do passivo restante, a Mm.ª Juiz a quo determinou a notificação da Ex.ª Administradora da insolvência, em face da qualificação da conduta dos devedores subsumível à alínea g) do art.º 186.º n.º 2, (fundamento de qualificação da insolvência como culposa), para se pronunciar sobre a qualificação da presente insolvência. Sucede que, ainda assim, posteriormente, quer a AI quer o Ministério Público deram parecer no sentido ser qualificada como fortuita. Nestes termos, ao abrigo do art.º 188.º n.º 4 do CIRE, declarou-se a insolvência como fortuita por despacho já transitado de 21/02/2014, conforme certificação nestes autos.

De acordo com o disposto no art.º 185.º do CIRE, “A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o n.º 2 do art.º 82.º.”

Esta norma permite, “a contrario”, a interpretação de que, nas demais acções, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação da insolvência.

No caso, o Mm.º Juiz da primeira instância optou por proferir decisão de acordo com os ditos pareceres concordantes do Administrador da Insolvência e do Ministério Público, nos termos do disposto no art.º 188.º n.ºs 4 e 5 qualificando a insolvência como fortuita. Antes da alteração deste art.º pela Lei 16/2012 de 20 de Abril, o juiz estava vinculado a seguir o parecer concordante do Administrador da Insolvência e do Ministério Público se no sentido da qualificação como fortuita.

Contudo podia entender-se que, se os pareceres do AI e do MP ignorarem a evidência de qualquer fundamento contido no art.º no n.º 2 do art.º 186, deveria o Juiz declarar a sua ilegalidade, desconsiderando as posições do MP e do AI, mandar seguir os termos do n.º 5 e ss do art.º 188.º (cf Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Carvalho Fernandes e João Labareda, 2008 pag. 619.

Ora, actualmente, a redacção de 2012, dada ao art.º 188.º permite ao juiz não exercer a faculdade que lhe confere o n.º 5 do dito art.º (ou seja, decidir pelo parecer do AI e do MP, favorável á qualificação como fortuita).

A dita norma do art.º 185.º visa evitar a existência de decisões que mutuamente se implicam pois que, o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, com o fundamento da al. e) do nº1 do artº 238º CIRE, traduz uma insolvência culposa ou seja, existe autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência, que a decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo deve respeitar.

Sobre tal questão tem vindo a decidir-se que a qualificação da insolvência como fortuita vincula a decisão do pedido de exoneração mesmo quando a decisão foi tomada nos termos do art.º 188.º n.º 4 (na readação anterior), caso em que, de facto, não se conhecia de mérito, argumentando-se que, mesmo quando a atribuição da qualificação pelo juiz é vinculativa, tal decisão prevalece como caso julgado (cf. Acórdãos da Relação do Porto de: 28-01-2014, 4/03/2013, 3/12/2012 e da relação de Coimbra de: 24/4/2012 e de 29/2/2012 publicados em www. dgsi.pt).

Por outro lado, há quem entenda que a vinculação da decisão da qualificação da insolvência em relação á decisão da exoneração só tem lugar quando no incidente de qualificação verdadeiramente se decida de mérito e não apenas por vinculação imposta pela lei (cf. acórdão da relação de Évora de 11/04/2013, publicado no mesmo sítio.).

Em nosso entender a alteração do art,.º 188.º n.ºs 4 a 6, reforça a primeira posição.

No caso concreto, o que sucedeu foi que, quando se decidiu pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, nenhuma decisão tinha sido proferida sobre a qualificação da insolvência, que só posteriormente foi proferida, ou seja, inexistia qualquer decisão anterior transitada com força de caso julgado.

Não obstante, neste momento a decisão recorrida ainda não transitou em julgado e a decisão da qualificação da presente insolvência como fortuita, ao contrário, já transitou em julgado.

Assim sendo esta decisão da qualificação da insolvência relativamente á decisão do pedido de exoneração faz caso julgado, que foi violado pela decisão do indeferimento da exoneração do passivo restante.

Ou seja, as duas decisões são contraditórias, pois que, o fundamento do indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante radica na previsão da al.e) do nº1 do artº 238º CIRE, traduzindo uma insolvência culposa.

Assim, como se refere no citado Acórdão da Relação do Porto de 28/01/2014 não parece razoável que se possam produzir decisões contraditórias no processo, ou seja, existe autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência no indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, à luz da norma do artº 238º nº1 al.e) CIRE.

Deve pois proceder a apelação, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente da exoneração.

Em conclusão:

A norma do artº 185º CIRE permite, a contrario, a interpretação de que, nas demais acções, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação da insolvência, ainda que decidida nos termos do Art.º 188.º n.ºs 4 e 5 do CIRE.

DECISÃO:

Por tudo o exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante.

Custas pela apelada.

Guimarães, 3 de julho de 2014

Isabel Rocha

Moisés Silva

Jorge Teixeira