Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
263/15.7GAVVD.G1
Relator: PAULA ROBERTO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
OMISSÃO DE FACTOS
ABUSO DE CONFIANÇA
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IPROCEDENTE
Sumário: I) É nulo nos termos do artº 283º, nº 3, alínea b) com referência ao nº 2 do artº 287º, do CPP o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente que não contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena.
II) Tal nulidade é de conhecimento oficioso e determina a inadmissibilidade legal da instrução, com a consequente rejeição do RAI.
Decisão Texto Integral: Acordam Relatora – Paula Maria Roberto
Adjunto – Fernando Pina, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
A assistente E. C. participou criminalmente contra:
E. R.
imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, b) e 202.º, b), ambos do CP.
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O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por ter concluído pela inexistência, por ora, de indícios suficientes que lhe permitissem imputar a prática do citado crime de abuso de confiança agravado.
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A assistente, discordando deste despacho, requereu a abertura de instrução com vista à pronúncia da arguida pelo crime supra enunciado de abuso de confiança agravado.
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Foi, então proferido o despacho recorrido de fls. 203 e segs. que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por não conter os elementos objetivos do ilícito típico do crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, do CP, por legalmente inadmissível dada a falta de objeto.
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A assistente, notificada desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:
“A. O M.º Juiz do Tribunal a quo proferiu despacho em que decidiu “rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente E. C. por ser legalmente inadmissível dada a falta de objeto”.
B. Entendeu o mesmo Tribunal que o requerimento não descreve os elementos objetivo e subjetivo do ilicito típico pelo qual a assistente pretende a pronúncia da arguida/denunciada.
C. A Recorrente discorda do douto despacho recorrido, desde logo, porque não podia o M.º Juiz a quo pronunciar-se sobre a nulidade do requerimento de abertura de instrução (doravante designado abreviadamente por RAI) uma vez que, tal nulidade dependente de arguição, a existir efetivamente, no que não se concede, não foi arguida.
D. O RAI apresentado pela assistente não está ferido de nulidade e obedece a todos os requisitos previstos nos arts. 287º e 283º do CPP.
E. Ainda que se entendesse, o que apenas por mera hipótese de raciocinio se concebe, que o RAI de fls… junto aos autos está ferido de nulidade, por “não descrever os elementos objetivo e subjetivo do ilicito típico” tal nulidade não é uma nulidade insanável estando a mesma dependente de arguição. Arguição, essa, que não existiu.
F. Preceitua o art.º 119.º do CPP, que elenca as nulidades insanáveis, não se refere à nulidade do requerimento de abertura de instrução estipulando o art.º 120.º, n.º 1 daquele código que “qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados”.
G. Pelo que, estava vedado ao Mº Juiz a quo declarar a nulidade do RAI.
H. Nulidade essa que, não existe, sendo certo que o RAI junto aos autos não enferma de qualquer nulidade.
I. Na verdade, o mesmo contém todos os elementos a que se refere o art.º 287.º, n.º 2 do CPP, contendo, nomeadamente, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação, a narração dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena, quer quanto aos elementos objetivos quer quanto aos elementos subjetivos do tipo de crime e a indicação das disposições legais aplicáveis.
J. Bem como, a indicação dos atos de instrução que a requerente pretendeu que fossem levados a cabo, juntando, inclusive 15 documentos comprovativos dos negócios concretizados pela arguida.
K. O RAI apresentado pela recorrente e que aqui se dá por integralmente reproduzido, contém a factualidade concreta necessária para poder permitir ao Juiz de instrução fundamentar uma decisão de pronúncia.
L. A recorrente identifica a arguida e a relação profissional que existia entre ambas, ou seja, a arguida E. R.era a “única gerente da sociedade” que fora constituida por ambas, denominada por C…, Lda.
M. Identifica a sua conduta, ou seja, alega todos os factos que eram do seu conhecimento relativos momento temporal, ao local e circunstâncias em que a arguida se apropriou indevidamente das quantias e bens móveis: “a arguida foi surpreendida na sede da empresa”; “ficava incomodadda e fechava a porta do escritório”; “em inicios de junho de 2015 (…) onde a ofendida confrontou a arguida com a ausência de receitas, provenientes das comissões dos negócios conscretizados através da sociedade de ambas”; “não estou para trabalhar para a sociedade”; “consultada a conta da sociedade a mesma não continha nenhum depósito relativo a essas comissões”; “começaram a desaparecer capas de documentos da sociedade, das angariações, dos clientes, bem como, dos negócios concretizados”; “desapareceu um computador da empresa que ambas teriam comprado ao anterior inquilino juntamente com todo o mobiliário, pelo preço de 4.000€“; dias depois da reunião acima referida a ofendida foi impedida pela arguida de ter acesso às instalações da sociedade, que mudou a fechaduras alterou o código de alarme, alterou os códigos bancários e ainda o seu acesso ao telemóvel”.
N. A assistente referiu ainda no RAI, o processo crime no qual participou a conduta da arguida referente à mudança das fechaduras e alteração de todos os códigos e acessos, nomeadamente, bancários aos quais deixou de ter acesso, identificando que era uma conta bancária no BPI, S.A.
O. No entanto, a recorrente sendo apenas sócia e não dispondo dos códigos necessários para aceder à conta bancária da sociedade, nunca poderia juntar qualquer extrato bancário comprovativo da ausência do depósito das comissões, ao contrário do M. Juiz de Instrução que o podia ordenar.
P. Mesmo assim, a recorrente não deixou de juntar 15 documentos em sede de instrução, que comprovam os negócios concretizados com a mediação da sociedade de ambas, que é uma sociedade imobiliária, aos quais é devida uma comissão pela mediação, que é um facto público e notório, de conhecimento geral de toda a sociedade
Q. Acresce quanto à conduta da arguida, que a assistente descobriu e mencionou no RAI uma sociedade criada pela arguida, designada por P… LDA., NIPC …, reveladora da atividade paraleda desempenhada pela arguida e para onde a arguida transferia os proveitos/comissões obtidas através da sociedade de ambas
R. Ainda quanto à conduta, referiu que desapareceu um computador da sociedade imputando-o, naturalmente, à arguida, pois era a única pessoa a ter acesso às instalações da sociedade, devido à mudança das fechaduras e porque ocorreu dias depois da reunião realizada na sociedade em inicios de junho.
S. Identificando assim a autoria dos factos que invocou, bem como, os elementos de facto que em concreto permitem concluir pela existência do crime de abuso de confiança praticado pela arguida contra a assistente e em seu prejuízo.
T. Assim como, alega que a arguida agiu voluntária, livre e consciente bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, não se coibindo, contudo, de assim atuar.
U. Identifica as normas incriminadoras de tal conduta – art. 205º n.º1 e nº4 do CP.
V. Relata de forma detalhada os motivos da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento e pelo qual entende ter havido insuficiência no inquérito ao não ter promovido qualquer ato investigatório para além da audição das declarações da ofendida e apreciação de parte dos depoimentos das testemunhas.
W. Requereu diligências de prova a realizar em sede de instrução, como sendo a audição de testemunhas (presenciais) não ouvidas em desde de inquérito.
X. E ainda, juntou como prova documental que conseguiu entretanto reunir, para apreciação em sede de instrução, 15 documentos comprovativos dos negócios concretizados e alguns deles faturados, tais como: diversas escrituras de compra e venda, faturas, troca de emails, contratos de arrendamento, entre outros, todos eles com identificação dos intervenientes, locais, datas e valores dos negócios.
Y. Pelo que, a assistente facilmente apurou o valor concretizado de 62.000,00€.
Z. A ora recorrente carreou assim para a instrução todos os elementos necessários para que fosse possível ao Juiz de instrução proferir despacho de pronúncia (ou, em abstrato, de não pronúncia, no que não se concede).
AA. Tendo concluído pedindo a sua constituição como assistente, a abertura da instrução e a pronúncia da arguida pela prática do crime de pronuncia agravado.
BB. No RAI de fls. a recorrente alegou nos artigos daquele articulado e que aqui se dão por reproduzidos, todos os factos necessários para que possa dar-se como preenchidos todos os elementos típicos do ilícito penal em causa.
CC. Pelo que, entende a recorrente que o RAI junto aos autos não enferma de nulidade.
DD. Estando alegados factos integradores do crime imputado à arguida e indicado os factos relativos aos tipos subjetivo e objetivo do ilícito criminal.
EE. Deste modo, deve o despacho recorrido ser revogado e substituido por outro que declare aberta a instrução e ordene a realização das diligências de prova requeridas.
Nestes termos, nos melhores de direito aplicáveis e nos que doutamente forem supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências, porque assim se fará Justiça!”
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O Ministério Público apresentou resposta a este recurso concluindo que:
1. O artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal prevê que o requerimento (de abertura da instrução) não esta sujeito a formalidades especiais; porém, impõe que o mesmo contenha as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação. Mais acrescenta a norma em causa que tal peça deve conter os factos que se espera provar, sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artº 283º alíneas b) e c).
2. Reportando-nos a esta última norma, concluímos que o requerimento em causa deve assim ser idêntico a uma acusação: nos termos da referida alínea b) – e sob pena de nulidade deve o mesmo conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança incluindo se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção; isto é: deve tal requerimento conter a narração exata de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.
3. Na mesma sequência, no seu nº 3 estão previstas as situações em que o requerimento pode ser rejeitado: quando é extemporâneo, quando dirigido a juiz incompetente ou por inadmissibilidade legal.
4. No requerimento de instrução em apreço, o assistente não narra quaisquer factos que preencham os elementos objectivos de qualquer crime e, designadamente, do crime de abuso de confiança.
5. Não constando tais factos no RAI e devendo o M.º JIC no despacho de pronúncia descrever os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º, n.º1, do Código de Processo Penal), a instrução é inexequível, por falta de objecto e, por conseguinte, somos reconduzidos a uma inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287º, n.º3, do Código de Processo Penal, cuja consequência é a rejeição do requerimento para abertura de instrução.
6. Pelo que entendemos que o despacho proferido pela M.ª JIC não é merecedor de censura, devendo ser rejeitado o recurso e confirmada a decisão recorrida.
Nestes termos, os Venerandos Desembargadores da Relação do Guimarães, farão, como sempre, Justiça.”
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A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o douto parecer de fls. 239 e segs., no sentido de que deve ser negado provimento recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P..
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação
A constante do relatório que antecede.
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b) - Discussão
De acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do plenário das secções do STJ de 19/10/1995 (DR série I-A de 28/1271995) e conforme resulta do n.º 1, do artigo 412.º, do CPP, bem como, entre outros, do acórdão do STJ de 27/05/2010, disponível em www.dgsi.pt, o âmbito do recurso é delimitado pelas suas conclusões, com exceção das questões de conhecimento oficioso (artigo 410.º, do CPP).
Cumpre, então, apreciar as questões suscitadas pela assistente recorrente, quais sejam:
1ª – Se o tribunal a quo não podia pronunciar-se sobre a nulidade do RAI porque depende de arguição.
2ª – Se o RAI contém todos os elementos a que aludem os artigos 287.º e 283.º, ambos do CPP.
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1ª questão
Se o tribunal a quo não podia pronunciar-se sobre a nulidade do RAI porque depende de arguição e
2ª questão
Se o RAI contém todos os elementos a que aludem os artigos 287.º e 283.º, ambos do CPP.
Como já referimos, a recorrente alega que ainda que se entendesse que o RAI está ferido de nulidade por não descrever os elementos objetivo e subjetivo do ilícito típico, tal nulidade não é insanável, estando dependente de arguição que não existiu, pelo que, estava vedado ao juiz declarar a mesma.
Mais alega que o RAI não está ferido de nulidade pois obedece a todos os requisitos previstos nos artigos 287.º e 283.º, do CPP (identifica a arguida, a sua conduta, as normas incriminadoras e os motivos da sua discordância com o despacho de arquivamento).
Apreciando:
Consta do despacho recorrido o seguinte:
E. C. veio a fls 156 e ss requerer a abertura de Instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento proferido nos autos.
No entanto, não concretiza no seu requerimento os factos que permitiriam aferir da verificação dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico pelos quais à arguida E. R. imputa o crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205º, nº1 e 4 CP, nomeadamente, e no caso que aqui interessa, não imputa à arguida factos concretos que terá praticado e que integrem a prática do crime. Por exemplo, diz que desapareceu da empresa um computador, mas não afirma que foi a arguida que o levou. Alega que a conta bancária da sociedade não continha nenhum depósito relativo às comissões de negócios realizados pela arguida, mas não concretiza quais, nem que valores estariam em falta- artigo 16º do requerimento. Não menciona valores, senão de forma lateral quando censura o Ministério Público por ter manifestado “dúvidas quanto à circunstância da arguida se apropriar de pelo menos 62.000,00. Mas não afirma que a arguida se apropriou de € 62.000,00 pertencentes à sociedade!
E, certamente por lapso, menciona que incorreu “ o condutor do veículo” na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança agravado.
Ora, a instrução é legalmente inadmissível quando lhe falte objeto. O objeto da instrução, como explica Rui C.astro, em Instrução, Quid Iuris, sociedade editora, Lisboa, 2011, página 94, “prende- se assim com as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação e, no caso de ser requerida pelo assistente, com a referida narração dos factos e com as disposições legais aplicáveis. Se o requerimento não contiver tais elementos de fundamentação, para além de ser nulo, nos termos do disposto no artigo 283º, nº3 CPP, fica a instrução sem objecto. Não sendo a fase da instrução um novo inquérito, é essencial que contenha um objecto delimitado, em relação ao que consta da acusação ou do despacho de arquivamento”.
Há que considerar também que o artigo 287º, nº2 CPP dispõe que o requerimento de abertura de instrução tem de conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de acusar ou não acusar, os atos de instrução, os meios de prova e os factos que se espera provar, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 283º, nº3, alíneas b) e c) CPP. Esta última alínea remete expressamente para a indicação das disposições legais aplicáveis. O que nem sequer consta do requerimento de abertura de instrução.
A jurisprudência é unânime em considerar que deve ser rejeitado, sem despacho que permita o aperfeiçoamento, o requerimento do assistente para abertura da instrução que não descreve os elementos objetivo e subjetivo do ilícito típico pelo qual o assistente pretende a pronúncia do arguido/ denunciado.
Assim sendo, por não conter os elementos objetivos do ilícito típico do crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205º, nº1 e 4 CP, decido rejeitar o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente E. C. por legalmente inadmissível dada a falta de objeto- artigo 287º, nº3 CPP.” – fim de citação.
Vejamos:
Conforme resulta do n.º 2, do artigo 287.º, do CPP, o RAI não está sujeito a formalidades especiais mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, bem como, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através dos mesmos, espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3, do artigo 283.º.
Assim sendo, dúvidas não existem de que o RAI do assistente deve conter a narração dos factos e a indicação das disposições legais aplicáveis, à semelhança do que ocorre com a acusação, pois é o mesmo que fixa o objeto da instrução, sob pena de nulidade (artigo 283.º, n.º 3, b) e c), do CPP).
Acresce que, conforme resulta do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12/05/2005, DR I-A de 04/11/2005, <<não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido>>.
O Tribunal Constitucional também se pronunciou sobre esta temática, no sentido de que o artigo 287.º não é inconstitucional quando interpretado no sentido de que não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do RAI apresentado pelo assistente que não contenha uma descrição dos factos imputados ao arguido (Acórdãos n.º s358/2004, 389/2005, 636/2011 e 175/2013).
Regressando ao RAI apresentado pela assistente ora recorrente constatamos que do mesmo consta o seguinte:
- Que a assistente começou a desconfiar da forma de trabalhar da arguida.
- Ao ponto de marcar uma reunião em inícios de junho de 2015 entre ambas e a contabilista da sociedade, na qual confrontou a arguida com a ausência de receitas provenientes das comissões devidas pelos negócios concretizados através da sociedade de ambas.
- Deixou de ter dúvidas de que a arguida teria feito suas as comissões que eram devidas à sociedade de ambas.
- Começaram a desaparecer capas de documentos da sociedade, das angariações, dos clientes, bem como dos negócios concretizados.
- Consultada a conta bancária da sociedade a mesma não continha nenhum depósito relativo a essas comissões.
- Desapareceu um computador da empresa que ambas teriam comprado ao inquilino pelo preço de € 4.000,00.
- Dias depois da referida reunião foi impedida pela arguida de ter acesso às instalações da sociedade.
- Em dezembro de 2015 a arguida constituiu outra empresa, o que revela que teria uma atividade paralela para onde transferia os proveitos obtidos através da sociedade de ambas.
A assistente não descreve quaisquer outros factos e alega, ainda, que o MP esteve mal quando refere no seu despacho que todos os comportamentos descritos e traduzidos em factos manifestam dúvidas quanto à circunstância de a arguida se apropriar de, pelo menos, € 62.000,00.
Por outro lado, <<quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido (…)>> - artigo 205.º, n.º1, do CP.
Significa isto que para que esteja preenchido este tipo legal de crime é necessário que uma pessoa, a quem uma coisa alheia foi entregue por título não translativo da propriedade, passe a dispor dela animo domini.
Ora, basta ler o RAI apresentado pela assistente para facilmente se concluir que o mesmo não contém a narração de factos imputados à arguida.
Na verdade, a assistente limita-se a alegar o supra descrito sem imputar factos concretos à arguida (e delimitados no tempo e no espaço), sendo que, relativamente às comissões apenas refere que a arguida “teria feito suas as comissões que eram devidas à sociedade de ambas” mas nem descreve os respetivos negócios que terão dado origem às mesmas nem os seus valores. Alega que procurou reunir documentação de negócios efetuados que agora conseguiu juntar em 15 documentos, no entanto, se de tais documentos resultam aqueles, então a assistente devia tê-los descrito no seu requerimento pois, como já referimos, é este que vai fixar o objeto da instrução e não é ao tribunal que compete fazê-lo.
Mais alega que desapareceu um computador, no entanto, como se refere na decisão recorrida, nem sequer imputa esse desaparecimento à arguida.
E, por fim, faz alusão à quantia de € 62.000,00 em discordância com o despacho do MP mas nem sequer refere que a arguida se apropriou desta quantia!
Em suma, a assistente ora recorrente apresentou um RAI que não obedece aos requisitos supra mencionados, ou seja, não contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena e, consequentemente, é nulo, impondo-se a sua rejeição por inadmissibilidade legal, nulidade esta de conhecimento oficioso.
Na verdade, “(…) se, pela simples análise do requerimento para abertura de instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia.
VIII – No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral. Acórdão do STJ de 12/03/2009, disponível em www.dgsi.pt.
E, como se refere no acórdão desta Relação de 17/05/2004, disponível em www.dgsi.pt:
“I – É legalmente inadmissível a instrução quando seja requerida pelo assistente e este não descreva, como acontece no presente caso, os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido, sendo a inadmissibilidade legal da instrução uma das causas de rejeição do requerimento do assistente para abertura da instrução, nos termos do nº 3 do já citado artigo 287º.
II – Quer isto dizer que a nulidade prevista neste artigo 283º, nº 3, alínea b), com referência ao nº 2 do artigo 287º, tendo como consequência a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, é de conhecimento oficioso.
III – Com efeito, se as causas de rejeição desse requerimento são de conhecimento oficioso e tal nulidade é uma delas, não se pode chegar a outra conclusão (cf. Ainda o acórdão da Relação do Porto de 23 de maio de 2001).
IV – Se a lei processual penal diz qual é a consequência da falta de narração dos factos no requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, torna-se evidente que não há aqui lugar para a figura do convite ao requerente para apresentar novo requerimento com os factos em falta.”
Pelo exposto, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente é nulo por força do disposto no n.º 3, do artigo 283,º, b) do CPP, ex vi do n.º 2, do artigo 287.º, do mesmo Código, nulidade esta que, ao contrário do alegado pela recorrente, como já referimos, é de conhecimento oficioso e determina a inadmissibilidade legal da instrução, com a consequente rejeição do mesmo, tal como consta da decisão recorrida Neste sentido o acórdão da RP de 29/01/2014, disponível em www.dgsi.pt. .
No mesmo sentido ora sufragado, cfr. os acórdãos desta Relação de 27/06/2016; da RP de 06/06/2012 e da RL de 25/10/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
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Improcedem, assim, as conclusões da recorrente, impondo-se a manutenção da decisão recorrida em conformidade.
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III – DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, em conferência, na improcedência do recurso, em manter a decisão recorrida.
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Custas a cargo da recorrente com taxa de justiça que se fixa em 5 UC.
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* Guimarães, 2017/02/06

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(Paula Maria Roberto)

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