Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
871/11.5TBBCL.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
APREENSÃO DO SALÁRIO DO INSOLVENTE
CESSÃO ANTECIPADA DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

.Pode ser apreendida para a massa insolvente parte do rendimento dos insolventes, face ao que dispõe o artº 46ºdo CIRE, desde que incida sobre a parte dos seus rendimentos susceptível de apreensão, integrando os rendimentos apreendidos a massa insolvente e estando sujeitos a rateio.

. Mas ainda que se defenda que a apreensão de parte de vencimento nos mesmos moldes em que é ordenada a cessão e previamente ao seu início, configura uma cessação antecipada do rendimento, e como tal deverá ser considerada no cômputo total do prazo de 5 anos, não tendo sido interposto recurso do despacho que ordenou a apreensão e posterior cessão, a partir da data do encerramento, não pode posteriormente vir a considerar-se que a cessão teve início na data da prolação do referido despacho.

.O artº artigo 6º nº 6 do DL 79/2017 ao fixar o início da cessão, nos casos em que não tinha ainda sido proferido despacho de encerramento do processo de insolvência, na data da sua entrada em vigor, foi procurou garantir que todos cedam os seus rendimentos por cinco anos.
O artº 6º, nº 6 do DL 79/ 2017 não é uma norma interpretativa. Se o legislador tivesse querido que o nº 7 do artigo 233º (redacção do DL 79/2017) solucionasse a discussão que levara a jurisprudência a pronunciar-se, em face da alínea e) do nº 1 do artº 230º do CIRE, na redacção da Lei 16/2012 - saber se encerramento do processo só poderia ser ordenado em caso de inexistência de bens - não teria então determinado uma solução transitória contrária, no que se refere aos processos pendentes, a essa mesma solução.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

(…) e (…), casados entre si, vieram apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.

Foi proferida sentença decretando a insolvência dos requerentes, em 22 de março de 2011.

Na assembleia de credores realizada em 1 de Junho de 2011 foi proferido despacho, transcrevendo-se o segmento dispositivo (fls 124):

Por tudo o exposto decide-se:

.a) admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante;
.b) determinar que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível dos insolventes R. V. e C. D. fique cedido ao sr. Administrador destes autos (na qualidade de fiduciário);
.c) fixar o valor do rendimento disponível nas quantias percebidas pelos insolventes R. V. e C. D. que excedam o valor equivalente a dois salários mínimos, que actualmente corresponde a 970 euros, valor esse que será atualizado sempre que o seja aquele montante de referência;
d) determinar que durante o período de cessão – os referidos 5 anos após o encerramento do processo – os insolventes ficam obrigados a observar as imposições previstas no nº 4 do artº 239º do CIRE;
.e) determinar que até ao início do período de cessão, o sr. AI apreenda os vencimentos dos insolventes na parte que exceder 970,00 euros.” (fls 123).

Deste despacho não foi interposto recurso.

Em 22 de Abril de 2015 o sr. AI veio juntar aos autos, um auto de apreensão de valores (fls 160), onde fez constar que foi apreendido relativamente ao vencimento mensal do insolvente, entre outubro de 2011 e março de 2015, o valor de 1.603,34 e à insolvente, entre outubro de 2011 e agosto de 2014, a importância de 1.727,33, no total de 3.330,67, a qual foi incluída no total a ratear (fls 168 a 176).
Por despacho de 8.03.2018 foi declarado encerrado o processo de insolvência.
Por requerimento do sr. AI de 24 de Julho de 2018 veio este informar que os insolventes não estavam a efectuar a cessão de rendimentos, desde 1 de Julho de 2017, pelo que requeria a cessação antecipada da exoneração (fls 225).
Os insolventes vieram informar que desde Outubro de 2011 que tinham vindo a fazer entregas de rendimentos, pelo que, atento o decurso do prazo de quase 5 anos, seria expectável a concessão da exoneração. Os insolventes vieram pugnar pelo indeferimento do requerido pelo sr. AI, devendo fixar- se o início do período de cessão em 01.06.2011, data da realização da assembleia de credores e onde foi proferido o despacho transcrito, porquanto se assim não se entender estarão sujeitos às obrigações decorrentes da cessão por mais de 10 anos, o que viola o princípio da igualdade.
A fls 230-231 veio o sr. AI informar que os valores depositados pelos insolventes entre Junho de 2011 e Junho de 2017 foram-no no âmbito da apreensão dos seus vencimentos, sendo que só a partir de Julho de 2017 é que seriam cedidos rendimentos, nos termos do artº 239º, nº 2 do CIRE, não tendo sido cedidos quaisquer rendimentos.

Após foi proferido o seguinte despacho:

“Refª 7709795: a pretensão dos insolventes não tem, manifestamente, fundamento legal, demonstrando antes alguma confusão legislativa, com invocação de jurisprudência desactualizada, que urge esclarecer.
Nos termos do art. 239º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o período de cinco anos de cessão de rendimentos inicia-se a partir do encerramento do processo de insolvência, o que ocorreu por decisão proferida a 8/3/2018.
Contudo, porque, como vimos, o processo ainda não tinha sido encerrado em Julho de 2017, o período de cessão do rendimento disponível iniciou-se no dia 1 de Julho de 2017, por força do disposto no nº 6 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 79/2017.
Assim, a partir de 1 de Julho de 2017, os insolventes encontram-se obrigados a ceder o seu rendimento que excedesse 2 salários mínimos nacionais e a prestar todas as informações e demais obrigações que decorrem do período de cessão de rendimentos inserida no procedimento de exoneração do passivo restante.
Durante o período que decorreu entre Junho de 2011 e 1 de Julho de 2017, os insolventes não estavam abrangidos pelas obrigações decorrentes da exoneração do passivo restante, mas encontravam-se obrigados a cumprir a decisão proferida na Assembleia de Credores realizada a 1 de Junho de 2011, que era a seguinte: “Até que o período de cessão se inicie deverá o Sr. AI apreender os vencimentos dos insolventes na parte que exceder €: 970”.
Tal decisão não foi objecto de recurso e transitou em julgado, obrigando os devedores nos seus precisos termos.
É, assim, de indeferir a pretensão dos insolventes porque contrária à lei, devendo antes estes cumprir as obrigações que para si decorrem do procedimento de exoneração do passivo restante, previstas no art. 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Por tudo o exposto, concede-se aos insolventes o prazo de 10 (dez) dias a fim de juntarem aos autos os elementos solicitados pelo senhor Fiduciário, concretamente, comprovativo dos rendimentos auferidos mensalmente desde Julho de 2017 (inclusive) até à presente data e declaração anual de rendimentos (modelo 3 do IRS) relativo ao ano de 2017 e respectiva demonstração de liquidação, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.”

Os insolventes vieram interpor recurso desta decisão, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª- Entendem os recorrentes que não poderá fixar-se o inicio do período de cessão do rendimento disponível em 01/07/2018,
2ª- pois em 11/03/2011, (…) e (…) apresentaram-se à insolvência, tendo formulado pedido de exoneração do passivo restante.
3ª- e em 22/03/2011 foi proferida sentença que declarou a insolvência dos recorrentes.
4ª- e só em 08/03/2018, foi encerrado o processo de insolvência, apos a liquidação do activo dos insolventes.
5ª- porque os recorrentes, de imediato iniciaram a cessão dos seus rendimentos na parte disponível que excedia o valor de correspondente a dois salários mínimos, na sequência das comunicações do Exmo. Sr. Administrador de Insolvência e para uma conta bancária indicada por este, conforme consta dos autos.
6ª- e porque o fizeram ao longo de cerca de 6 anos, não é aceitável, a luz dos princípios e da economia do CIRE, que os insolventes cedem rendimento por um período de mais de 10 (dez) anos;
7ª- Em situações análogas à presente tem vindo a nossa jurisprudência a pronunciar-se no sentido de que “… é, pois, razoável, em casos como o em apreço, uma interpretação extensiva do disposto no art.º 239º nº 4º c) do CIRE, que permita considerar que o período de cessão (de 5 anos) e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho liminar do pedido de exoneração do passivo restante…”
8ª- A norma invocada no douto despacho recorrido - art. 6º nº 6 do Decreto Lei nº 79/2017 – não passa de uma norma interpretativa e que visa pôr fim a situações em que os insolventes seriam obrigados a ceder seus rendimentos por um período superior a cinco anos, pelo que, tal norma veio consagrar o entendimento plasmado na conclusão anterior;
. - Interpretação diversa e idêntica à do despacho ora recorrido produz tão intensa ofensa a valores fundamentais constitucionalmente protegidos, pela interpretação meramente literal das citadas normas, acolhendo um sentido restritivo que, no caso concreto, produza o efeito de se impor ao recorrentes a cedência dos seus rendimentos por um período superior a cinco anos (10 anos), e, em virtude disso, a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e legítimos interesses dos recorrentes, bem como o seu direito a receberem dos tribunais um tratamento similar ao de todos os seus concidadãos, é incompatível com o nº 1 do artigo 20º e com o nº 1 do artigo 13º, ambos da CRP.
10ª- Pelo que se invoca a inconstitucionalidade das referidas normas art. 6º nº 6 do Decreto Lei nº 79/2017 e 239º CIRE.

NESTES TERMOS,

e no mais de direito aplicáveis que Vªs. Exªs melhor e doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogar-se o douto despacho recorrido, em conformidade com o exposto, sendo proferida decisão que determine que todas as cedências de rendimento efectuadas pelos recorrentes a partir de Junho de 2011 sejam imputadas a titulo de cessão para efeitos de contagem do período (de cinco anos) de cessão para prolação de despacho final de exoneração do passivo restante.

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:

. se antes do encerramento do processo de insolvência, as entregas de rendimento efectuadas pelos Insolventes, na sequência de ter sido ordenada a sua apreensão, devem ser tidas em consideração para efeitos de contagem do período de cessão, podendo ser proferido despacho final de exoneração uma vez decorridos cinco anos sobre o início das entregas de rendimento; e,
. se o artº 6º nº 6 do DL e o artº 239º, nº 2 do CIRE interpretados no sentido de que o período de cessão se inicia a partir de 1 de Julho de 2017, nos casos em que à data da sua entrada em vigor ainda não tenha sido proferido despacho de encerramento é inconstitucional por violação do princípio da igualdade e do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva.

III – Fundamentação

A situação factual é a supra descrita.

Nos termos do disposto no art.º 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março e sucessivas alterações (diploma a que pertencem todos os preceitos legais que venham a ser mencionados), se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A exoneração do passivo restante foi introduzida no ordenamento jurídico pelo actual Código da Insolvência. No preâmbulo deste diploma o legislador referiu-se a esta medida nos seguintes termos: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante”.

Com esta medida veio permitir-se que o devedor se liberte definitivamente do passivo, estando o procedimento regulado nos artºs 235º a 248º.

Dispõe o nº 1 do artº 236º que o pedido de exoneração do passivo restante pode ser feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório do Administrador da Insolvência ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência. No caso de não sido do devedor a iniciativa do processo de insolvência, deve constar do acto de citação do devedor pessoa singular a indicação da possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante, nos termos previstos no nº 1 do artº 236º (nº 2 o artº 236º).
E estatui o art.º 237º alínea a) que a concessão efectiva da exoneração pressupõe, para além do mais, que não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido nos termos do disposto no art.º 238º do mesmo Código.

Era entendimento maioritário, até às alterações introduzidas pelo DL 79/2017, de 30/06, que no caso de existirem bens, o que implica a sua necessária liquidação, o encerramento do processo apenas tinha lugar após o rateio final - cf. artº 230º, nº 1, alínea a) -, pelo que, a alínea e) do artº 230º (introduzida pelo artº 2º da Lei 16/2012, de 20/04) (1) vinha sendo interpretada restritivamente, no sentido de se aplicar apenas quando inexistissem bens ou direitos a liquidar.

Actualmente, de acordo com a disciplina do nº 7 do artigo 233º, introduzida pelo DL 79/2017, a existência de bens e/ou direitos a liquidar não obsta à aplicação do disposto na alínea e) do nº 1 do artº 230º, determinando a declaração de encerramento do processo, unicamente, o início do período de cessão do rendimento disponível (ver a propósito, o Ac. do TRE de 22.02.2108, proc. nº 1170/15 e Ac. do TRG de10.07.2018, p. 4843/13.7TBBRG.E. G1), prosseguindo os autos para liquidação.

Esta solução do legislador já era adiantada por Alexandre Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2016, págs.599-600) quando afirmava a possibilidade de se entender como admissível (ainda que por interpretação restritiva, restrição teleológica ou qualquer outra via) um “encerramento pequenino”: um encerramento que não impede a liquidação; sendo certo que, de jure condendo, realçava ainda o mesmo autor a necessidade de o legislador tomar em atenção este tipo de casos, “sobretudo porque, prolongando-se a liquidação sem encerramento do processo de insolvência, também se atrasa o início do período da cessão”, quando é certo que “este, como decorre do art. 239º, 2, só se inicia com o encerramento do processo de insolvência.

O artº 6º, nº 6 do DL 79/2017 veio estabelecer um regime transitório para todos os processos de insolvência pendentes e nos quais não tivesse ainda sido declarado o encerramento do processo, antecipando para o dia 1 de Julho de 2017 o início de todos os períodos de cessão do rendimento disponível, no âmbito da exoneração do passivo restante (no mesmo sentido o Ac. deste TRG de 9/11/2017, proc. nº 2559/16, acessível em www.dgsi.pt e Ac. do TRL de 13/03/2013, proc. nº 259/14, acessível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=58&nid=5414).

Este regime transitório é aplicável ao caso dos autos, pois que à data da entrada em vigor do DL 79/2017, ainda não tinha sido declarado o encerramento do processo.
Os apelantes alegam que desde 2011 que têm vindo a depositar rendimentos do seu trabalho a favor da massa insolvente, pelo que a cessão se iniciou nessa data, pelo período de 5 anos.
No despacho proferido em 01.06.2011 foi ordenada a apreensão de parte do vencimento dos apelantes até ao encerramento e após este, a cessão do rendimento disponível.
Não se desconhece o recente entendimento do STJ de 16.10.2018, proferido no proc. 1948/11 (citados pelos apelantes), onde se defendeu que “apreensão de parte do rendimento de trabalho do insolvente ao abrigo do artigo 149.º, do CIRE, não pode ser dissociada da cessão do rendimento disponível a que se reporta o artigo 239.º, do CIRE, sempre que seja proferido despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante”.

No referido acórdão do STJ, entendeu-se, segundo interpretamos, que nas situações em que se verificou apreensão do salário do insolvente (para efeitos de integração na massa insolvente), tal apreensão não poderá ser dissociada e encarada enquanto realidade autónoma da cessão do rendimento disponível a que se reporta o artigo 239.º, do CIRE, sempre que seja proferido despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
A interpretação, particularmente no que toca ao artigo 239.º, não pode ser desagregada da sua articulação com os demais que regem o processo de insolvência.

Escreveu-se a propósito no referido Acórdão:

“A flexibilidade na articulação entre o despacho de encerramento do processo de insolvência e o despacho inicial de incidente de exoneração do passivo restante terá pois, a nosso ver, como consequência lógica e necessária o afastamento de um posicionamento rígido quanto à fixação do termo inicial do período de cessão.
Assim, cremos, que a contextualização do n. º2 do artigo 239.º do CIRE, terá de ser feita por referência ao artigo 230.º, n. º1, alínea e), do mesmo código, ou seja, os cinco anos de cessão subsequentes ao encerramento do processo de insolvência apenas nas situações em que o encerramento seja declarado no despacho inicial do incidente.
Note-se que esta interpretação restritiva é, a nosso ver, a que melhor se concilia com as situações de morosidade na tramitação do processo que não foram previstas pelo legislador porquanto visou imprimir ao processo de insolvência um cunho de celeridade e eficácia expressas desde logo na natureza urgente que lhe atribuiu (artigo 9.º, n.º 1, do CIRE).
Como se faz constar na decisão de 9.2.2018 deste Supremo Tribunal “Não se vislumbra substancial razão para, em função até da protecção do devedor insolvente a quem foi concedida a segunda oportunidade, não se admita que, declarada a insolvência, tendo sido concedida a exoneração do passivo restante, o prazo da cessão não comece de imediato: no caso, foi logo conhecido dos credores e do devedor, o rendimento isento de cessão”[8]. Defende tal decisão que este posicionamento é o que se mostra mais conforme ao princípio constitucional da igualdade e do tratamento equitativo das pretensões submetidas a juízo, assim como à filosofia que subjaz à figura da exoneração do passivo restante, e, no caso, atenua a circunstância, penosa para os Recorrentes, do atraso na decisão do Tribunal de 1ª Instância.
Cumpre sublinhar que a circunstância de a referida decisão se reportar a entregas espontâneas de montantes por parte dos devedores em data anterior ao despacho inicial de exoneração do passivo[9], de modo algum permite desaplicar, à situação sob apreciação, igual parâmetro de raciocínio.
Com efeito, no caso, as entregas feitas pelos Insolventes decorrem da apreensão de 1/3 do rendimento da Insolvente determinadas por despacho. Independentemente da questão de saber se é (ou não) possível a apreensão dos rendimentos auferidos pelos insolventes após a sua declaração de insolvência
[10] (ainda que se tenha por melhor entendimento aquele que considera que podem integrar a massa insolvente todos os bens penhoráveis do insolvente, incluindo os bens e direitos que adquira na pendência do processo, máxime o vencimento ou salário que aufira), não pode deixar de se considerar que após a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante verifica-se uma efectiva incompatibilidade entre as duas situações porquanto, ao invés do que acontece na apreensão, a figura da exoneração do passivo restante pressupõe o consentimento e iniciativa do devedor na afectação do seu rendimento disponível.
Por conseguinte, após a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, todas as entregas de parte do salário do insolvente só poderão ser entendidas no âmbito da cedência ao fiduciário”, imputando-se todas as entregas de salário feitas a partir de Março de 2012 (em 23/02/2012 foi proferido o despacho de admissão liminar da exoneração do passivo restante) e até, pelo menos Maio de 2017) a título de cessão a fiduciário para efeitos de contagem do período (de cinco anos) de cessão para efeitos de prolação do despacho final de exoneração do passivo restante.”

No Ac. do TRC de 18.10.2016, proc. 1769/11.2TJCBR-F.C1, de 18.10.2016, igualmente citado pelos apelantes, considerou-se que o início da cessão se deve ter por fixado em data anterior ao encerramento do processo, nos casos em que, embora ordenada a cessão apenas a partir da data do encerramento e esta não coincidiu com a data do despacho liminar, a cessão efectivamente se iniciou mais cedo, em momento anterior ao encerramento do processo de insolvência.

O caso dos autos é diferente do decidido no Ac. do TRC, uma vez que nestes autos foi ordenada a apreensão e no analisado no TRC não, tendo sido apenas determinada a cessão, esta acabou por se iniciar antes da data do encerramento do processo, pelo que as quantias entregues não poderiam deixar de ser consideradas.

Cremos que nada impede a apreensão para a massa insolvente de parte do rendimento dos insolventes, face ao que dispõe o artº 46ºdo CIRE, desde que incida sobre a parte dos seus rendimentos susceptível de apreensão, integrando os rendimentos apreendidos a massa insolvente e estando sujeitos a rateio.
Note-se que no caso, não obstante a venda do bem imóvel e a apreensão de parte dos vencimentos dos insolventes, ainda assim, efectuado o rateio, ficou por liquidar cerca de 50% do valor dos créditos reclamados.
Mas ainda que se defenda que a apreensão de parte de vencimento nos mesmos moldes em que é ordenada a cessão, configura uma cessação antecipada do rendimento, e como tal deverá ser considerada no cômputo total do prazo de 5 anos, afigura-se-nos que o trânsito em julgado do despacho proferido na assembleia de credores, realizada em 1 de Junho de 2011, obsta ao deferimento do pretendido pelos apelantes.
É que só volvidos mais de sete anos sobre o despacho que determinou a apreensão de parte do rendimento dos apelantes e a cessão dos rendimentos por 5 anos é que é que os insolventes vieram requerer que se fixasse o início do período de cessão em 01.06.2011 (data do despacho).

No caso, os apelantes, não concordando com o decidido, no despacho de 1.06.2011 que determinou previamente a apreensão de parte do rendimento dos apelantes, deveriam ter reagido, o que não fizeram, acabando o despacho de 1.06.2011 por transitar em julgado, como se referiu no despacho recorrido.

No processo de insolvência uma vez que os recursos sobem imediatamente e em separado (artº 14º, nº 5) não se coloca a questão do despacho não transitar, no caso de não caber apelação autónoma, podendo ser impugnado com o recurso que vier a ser interposto das decisões a que se refere o 644º, nº1 do CPC (art 644º, nº 3 do CPC) .

Na data do despacho de 1.06.2011 os apelantes, embora não soubessem por quanto tempo iria perdurar a apreensão, não podiam desconhecer que, face aos termos do despacho, sempre a entrega de rendimentos iria perdurar por mais de 5 anos, por se seguir à apreensão, a cessão.

Os apelantes vieram ainda invocar no corpo alegatório do seu recurso, segundo interpretamos, à cautela, que o artº 6º, nº 6 do DL 79/2017 e o artº 239º, nº2 do CIRE são inconstitucionais, na interpretação sufragada no despacho recorrido, violando o princípio da confiança, da igualdade e do direito a uma tutela jurisdicional efectiva, previsto no artº 20º, nº 1 da CRP.

No entanto, em sede de conclusões, apenas vieram invocar a violação do princípio da igualdade e de violação do direito a uma tutela efectiva, pelo que apenas está em causa a alegada violação do artº 13º, nº 1 e 20º, nº 1 da CRP.

Relativamente ao direito a uma tutela efectiva, os apelantes não concretizam de que modo ocorre essa violação, não bastando alegar que tais princípios foram violados.

No que concerne à violação do princípio da igualdade, os apelantes limitaram-se a dizer que a não consideração de todas as quantias entregues pelos apelantes em data anterior a 1 de Julho de 2017, discrimina os recorrentes, não lhe assegurando o direito a receberem dos tribunais um tratamento similar ao de todos os seus concidadãos.

Conforme estavelmente resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional «só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem” (cfr. acórdão n.º 187/2013).

E, segundo o Ac. do TC n.º 395/2017, de 12/07/2017, o «princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio».

Pressuposto do princípio da igualdade é que todos os todos os cidadãos tenham a mesma dignidade social e sejam iguais perante a lei. A violação do princípio da igualdade tem de ser analisada face a factualidade concreta, não sendo suficiente invocação da violação abstracta de tal princípio.

Sempre se dirá, contudo, o seguinte:

O artº artigo 6º nº 6 do DL 79/2017 ao fixar o início da cessão, nos casos em que não tinha ainda sido proferido despacho de encerramento do processo de insolvência, na data da sua entrada em vigor, foi o de uma igualização relativa de todos os cidadãos que se encontravam na mesma situação, procurando garantir que todos cedam os seus rendimentos por cinco anos. Não se optou pela fixação do início da cessão na data da prolação do despacho liminar, ainda que os autos prossigam para liquidação do activo, como se verifica para os processos em que foi proferido despacho liminar de exoneração do passivo restante, posteriormente a 1 de Julho de 2017 (data da entrada em vigor das alterações efectuadas pelo DL 79/2017), porque a aplicação retroactiva comportava o perigo dos credores pouco ou nada receberem, por não se terem iniciado as entregas, aguardando o encerramento do processo, e a sua adopção acabaria por constituir uma desigualdade para com os novos insolventes: - estes poderiam com razão queixar-se de que tinham sido obrigados a ceder os seus rendimentos disponíveis por cinco anos, enquanto os anteriores, por via da omissão do despacho de encerramento aquando do despacho liminar de exoneração, haviam cedido rendimentos, efectivamente e a esse título, por prazo menor.

Como se defende no Ac. do TRL de 27.09.2018, proc. nº 3066/12.7TJLSB-F.L1-6, “são as concretas situações passadas que vêm dizer que a introdução duma desigualdade não viola o princípio da igualdade, em tanto quanto este se afirma perante situações iguais e não perante situações desiguais, e em tanto quanto essas situações são a justificação razoável do regime diferenciado”.

O artº 6º, nº 6 do DL 79/ 2017 não é uma norma interpretativa. Discutia-se, antes deste diploma, se a alínea e) do nº 1 do artigo 230º introduzida pela Lei 16/2012, de 20.4.2012, apenas se aplicava aos casos de inexistência de bens, aplicando-se no caso contrário a al. a) do nº 1 do mesmo preceito, isto é, se houvessem bens, teria de haver uma actividade do administrador de insolvência, teria de haver reclamação, verificação e graduação de créditos, teria de proceder-se à liquidação do produto dos bens e proceder-se ao pagamento rateado e final realizar-se a conta, e tudo isto não se conseguia fazer se, logo no despacho de admissão liminar se declarasse o encerramento do processo de insolvência, cessando a competência e funções do administrador, impedindo-se a verificação dos créditos e assim sucessivamente, e a final correndo-se o risco de se quedar o insolvente manifestamente beneficiado. Se o legislador tivesse querido que o nº 7 do artigo 233º (redacção do DL 79/2017) solucionasse a discussão que levara a jurisprudência a pronunciar-se – saber se encerramento do processo só poderia ser ordenado em caso de inexistência de bens - não teria então determinado uma solução transitória contrária, no que se refere aos processos pendentes, a essa mesma solução (cfr. se defende no Ac. do TRL de 27.09.2018, proc. nº 3066/12.7TJLSB-F.L1-6. No mesmo sentido de que o artº 6º, nº 6 não é uma norma interpretativa, o Ac. do TRG de 10.07.2018, proc. 4843/13.7TBBRG-E.G1).

E também não se mostra violado o direito a uma tutela efectiva.

O acesso aos tribunais para salvaguardar os direitos pressupõe que a tutela obtida através dos tribunais seja efetiva. Salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira que “[o] princípio da efectividade postula, desde logo, a existência tipos de acções ou recursos adequados (…), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão” Gomes Canotilho e Moreira, Constituição Da República Portuguesa Anotada, 2007.

Não se vislumbra, nem os apelantes mencionam, de que modo, este princípio se mostra violado, mediante a interpretação defendida na decisão recorrida.

IV – Decisão

Pelo exposto, se decide julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida que fixou o início do período da cessão de rendimentos em 1 de Julho de 2017.
Custas pela massa insolvente (artº 303º e 304º do CIRE).
Not.
Guimarães, 24 de abril de 2019

Helena Maria Carvalho Gomes Melo
Maria João Marques Pinto Matos
Pedro Alexandre Damião e Cunha

Este acórdão tem voto de conformidade do 1º Adjunto que só assina por não estar presente (artº 153º, nº 1 do CPC).

1 - Na qual se prevê que, quando o encerramento do processo ainda não haja sido declarado, o juiz declara o seu encerramento no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.