Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
37/16.8T8VPC.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO
ARTICULADOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto fixada dentro do respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância.

II – Não pode a apelante fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa.

III – Assentando o entendimento do apelante numa factualidade que não logrou ver provada e cuja reapreciação igualmente não logrou ver alterada, revela-se inquinado o desfecho do recurso.

IV – Tendo a A. sofrido danos, não há que censurar o R. pelo ocorrido, quando a conduta daquela contribuiu sobremaneira para a actuação deste.

V – Sabendo-se que, na generalidade dos casos em que intervém na defesa do seu constituinte, o advogado actua num processo adversarial, debatendo-se o tribunal com posições conflituantes, aceita-se que deva conceder-se alguma amplitude de actuação e expressão ao advogado, nomeadamente nos termos em que redige e verte nos articulados a matéria factual e juridicamente relevante”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
*

1 RELATÓRIO

Maria, residente na Rua …, concelho , veio intentar a presente acção(1) declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

Alberto, residente …, Canadá,
pedindo, a final, a condenação do R. no pagamento da quantia de € 5.500, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da actuação deste.

Alega, para tanto e em síntese, que o R. figurou como A. na acção que correu termos neste Tribunal com o número 122/04.0TBVLP, fazendo à aqui A. diversas imputações, designadamente que esta manipulou com declarações falsas as autoridades administrativas.
Com tal actuação o R. ofendeu o bom nome da A. e a sua integridade moral, não tendo tido qualquer consideração por si, nem pelo seu grave estado de saúde, já que sofria de doença oncológica.

Regularmente citado, o R. veio apresentar contestação.

Alega por excepção que é parte ilegítima na presente acção por estar desacompanhado dos restantes herdeiros.

Por impugnação, alega que relativamente à referida acção de reivindicação apenas contactou a sua mandatária, Dra. Helena, tendo sido esta quem procedeu a averiguações, como alegou, e que constatou esse facto, e concluiu e presumiu como referiu. As expressões escritas pela Dra. Helena não podem ser consideradas fora do contexto em que se inserem, e não se destinam a ferir a honra da então R., não extravasando o âmbito de defesa dos interesses que lhe foram confiados.
O R. reside no Canadá só esporadicamente se dirigindo a Portugal, desconhecendo os problemas de saúde da A.
Termina pedindo que seja julgado totalmente improcedente o pedido indemnizatório que a A. formula, em virtude de não ter praticado qualquer facto ilícito.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a excepção de ilegitimidade.

Falecida a Autora na pendência da acção, foi habilitada como sua sucessora Fátima.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todas as formalidades legais.

No final, foi proferida sentença, tendo-se decidido nos seguintes termos:
Nos termos expostos, julgo a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, decido:

1) Absolver o Réu da totalidade do pedido da Autora.
2) Condenar a Autora no pagamento das custas da presente acção.
Notifique e registe.
*

Inconformada com essa sentença, apresentou Fátima, herdeira habilitada da A., Maria, recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

A Recorrente considera que foram incorretamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto:

a) Ao ponto 30º (dos factos provados) deverá ser acrescentado que o mandato outorgado pelo Réu também englobava o prédio urbano em causa e o Ponto n.º 31, no entendimento da Recorrente deveria ser considerado provado nestes termos “O Réu sabia que a casa estava em nome da Autora”.
b) Devem considerar-se provados os seguintes pontos dos “Factos Não Provados”: - alíneas B) a I).
Relativamente ao ponto 30º e 31º, a alteração requerida baseia-se nos depoimentos das testemunhas Cândido, Adelaide e Hélio, que até foram indicadas pelo recorrido, conjugados com os documentos junto aos autos, designadamente o doc. 1 junto com a petição inicial (certidão judicial dos autos que correram termos no Tribunal sob o numero 122/14.0TBVLP).
O ponto 31º da matéria provada, é opinião da recorrente que a sua redação deveria ser: “O Réu sabia que a casa estava em nome da Autora”, já que a testemunha Cândido referiu que ao 1m14s do seu depoimento “Em respeito à casa, o meu primo disse-me que a Maria tinha-a posto em nome dela”.
Também a testemunha Adelaide refere no seu depoimento que foi a Dra Helena, que lhes disse que a casa estava em nome da D. Maria, numa reunião, “Estava eu, o meu primo Carlos e a mulher Bernardete”, cd m3, 57s.
Acrescenta ainda “A Dra. Helena disse ao meu primo Carlos que a casa estava há dois anos no nome da Maria”, cd, 4,48s
A testemunha Hélio refere que aquando da pesquisa sobre a Eira, descobriram que a casa estava em nome da Maria, o que refere no seu depoimento, cd, 5m, 54s “A Dra Helena disse –andei a pesquisar a eira e os consortes da eira e descobri que a casa da M. Luz estava também associada (…)”.
A petição inicial que consta da certidão judicial dos autos 122/14.0TBVLP confirma que o Réu sabia que a casa estava em nome da Autora porque a reivindica.
O documento constante nos autos (pagina 37 do documento 1- que corresponde ao processo administrativo da Repartição de Finanças) confirma que foi em Maio de 2012 que a dita casa foi averbada em nome da Autora, ou seja dois anos antes da ação judicial a que corresponde o processo 122/14.0TBVLP, entrar em juízo.
A testemunha Adelaide refere “A Dra. Helena disse ao meu primo Carlos que a casa estava há dois anos no nome da Maria”, cd, 4,48s.
Não é credível que o advogado e sendo familiar da parte não lhe comunique os factos averiguados e não faça o que a parte lhe solicita (dentro dos princípios que regem a relação advogado/cliente).
10º Também pelos elementos probatórios indicados, o ponto 30º deverá ser alterado, referindo que o mandato outorgado pelo réu a favor da Sra. advogada também englobava o prédio urbano em causa, passando a ter a seguinte redação: “O réu, na qualidade de cabeça casal da herança de M. Luz, mandatou a Dra. Helena, sua sobrinha, para reivindicar o prédio urbano referido em 2.”- só esta conclusão pode ser retirada, sendo nosso entendimento que quando o “Tribunal refere prédio rústico, queria referir prédio urbano (já que no ponto 2 a que alude da sentença é descrito o prédio urbano).
11º As alíneas B) a I) deveriam ser consideradas provadas, face à prova produzida (testemunhal e documental).
12º O Réu conferiu á sua advogada mandato forense para o representar.
13º O mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar em nome e por conta da outra parte, atos jurídicos -1157º CC.
14º O Réu tentou imputar todo o comportamento processual na ação 122/14.0TBVLP à sua advogada, à data, injustificadamente, tendo o I. Tribunal na sua douta decisão ignorado o conceito deste instrumento jurídico.
15º O advogado pratica atos jurídicos, não em nome próprio, mas em nome do cliente, assegurando-lhe a Lei de Acesso aos Tribunais - Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro/ Lei n.º 52/08, de 28 de Agosto) e o art. 208º da Constituição da República Portuguesa, as imunidades necessárias ao exercício do mandato.
16º O advogado age processualmente, mas fá-lo em nome do cliente e escreve nas peças processuais os factos que lhe são transmitidos pelo cliente, convencido que correspondem à verdade (este é o principio que deve estar subjacente na analise desta questão, além de que o principio da boa fé e da colaboração entre sujeitos processuais impõem tal premissa, sob pena de se tornar perverso o acesso aos tribunais).
17º Tal resulta, quer da prova que foi produzida, quer dos factos que foram dados como não provados, designadamente as alíneas J, K, L, ou seja, não foi provado que não foi o réu que transmitiu à sua advogada as expressões e factos que a mesma deveria usar na peça processual.
18º Cabendo ao Réu a prova desses factos, nos termos do artigo 342º, 2 do CC, o que não logrou fazer e ao ter decidido como fez, o I. Tribunal a quo violou esta disposição legal, bem como o artigo 1157º do CC e o artigo 208º da CRP.
19º Além de que deste principio e dos factos que resultaram não provados (constantes nas alíneas J, K, L e M) deveria ter sido dado como provado os factos elencados na alínea B e D.
20º Conjugado com o facto de se ter peticionado que se dê por provado (ponto 31º dos factos provados), já que o réu/recorrido tinha conhecimento de que a casa estava em nome da autora (entretanto falecida), fazendo parte do homem médio, que quisesse saber com que fundamento a mesma se encontrava inscrita em nome de outra pessoa.
21º Tendo esse conhecimento e face à natureza do mandato judicial (damos por reproduzido o que dissemos sobre a sua natureza) e o que dissemos sobre as alíneas J, K e L (dos factos dados como não provados), o ponto D, teria de ser dado por provado e como consequência também o ponto E, já que resulta da normalidade que o réu/recorrido desse orientações à sua advogada para reivindicar o que alegadamente lhe pertencia (como resulta da petição inicial da ação 122/14.0TBVLP-doc1. junto aos autos).
22º Os pontos F, G e H, deveriam ter sido dados como provados devido á prova testemunhal produzida.
23º Impondo uma decisão diversa as declarações da testemunha António quando refere que o réu conhecia o estado de saúde da Autora “era amigo da D. Maria e da D. Fátima”, cd 11m do seu depoimento, acrescentando “Telefonou muita vez á minha esposa, não acredito que não soubesse”, cd 11m32s, referindo a testemunha Hélio, quando lhe é perguntado se o Sr Carlos sabia da doença da D. Maria “Acho que sim, concerteza. Devia saber. Eram muito amigos tinha de saber”, cd12m,11s, confirmado pela testemunha Adelaide P. ao m 5,26s do seu depoimento “claro que tinha, ele antes disso, ia a casa da irmã da Maria almoçar, sabia que a Maria estava doente e era grave e ele sabia perfeitamente” e a testemunha Adelaide refere, quando lhe perguntam se o Sr Carlos sabia que a D. Maria estava doente, cd 19,33 “Penso que devia saber”, “Ele estava cá e ela já estava doente, eles eram muito amigos”, cd 19m, 58s.
24º A testemunha Patrícia confirmou o que o seu pai (António) também referiu, que o Sr Carlos com frequência ligava à mãe (Fátima), cd m7,43 “Era frequente ligar á minha mãe e com a família e quando aconteceu isto deixou de ligar”.
25º Face a estas declarações, designadamente aos excertos que concretamente foram indicados, impunha-se que a resposta à matéria de facto nos pontos F) G) e H) fosse diferente, passando a constar dos factos provados.
26º Afere-se que o Réu tinha conhecimento da doença da autora e não se coibiu de proferir as expressões em causa, tendo atingido a sua honra e bom nome, de forma intencional, ou pelo menos sabendo e conhecendo o seu estado de saúde não teve cuidado com as afirmações produzidas e transmitidas á sua advogada (que por coincidência até é sua sobrinha-ponto 30 dos factos provados)
27º Também a alínea I) devia ter sido considerado provada, face á prova que foi produzida em Audiência de Julgamento.
28º Devia ter sido considerado provado, designadamente tendo em consideração as declarações das testemunhas: A testemunha Adelaide P. refere ao m 2,15 do seu depoimento “Nas aldeias toda a gente sabe as coisas umas das outras”, referindo a testemunha Hélio, quando o Sr Dr. Advogado do réu lhe pergunta se ouviu comentários na aldeia sobre a eira e sobre a casa, esta testemunha refere “às vezes comentava-se, ouvi outras pessoas comentarem”, cd, m13,26s., acabando por acrescentar “Eu próprio comentei com pessoas o que tinha acontecido”, cd 13,51s.
29º Estas declarações conjugadas com o facto de que nas aldeias e lugares pequenos tudo se sabe e comenta, constituindo esta realidade um facto notório (artigo 412º1 do CPC) levaria à prova positiva do facto e ao assim não ser entendido, o I. Tribunal violou este preceito legal, já que se pode concluir que os factos, pelo menos, foram discutidos publicamente na aldeia de Argemil.
30º Ao proceder à alteração à matéria de facto, a ação terá de ser julgada procedente.
31º Resulta que os factos perpetrados pelo Réu atingiram de forma grave o bom nome e a honorabilidade da Autora, perturbando a sua tranquilidade e sossego (pontos 24, 26, 27, 28 e 29 da douta sentença-dos factos provados).
32º Dispõem o artigo 484.º do C. Civil que quem afirmar factos capazes de prejudicar o bom nome de qualquer pessoa, responde pelos danos causados.
33º O direito ao bom-nome e reputação consiste, no direito a não ser ofendido ou lesado na honra, dignidade ou consideração social por imputação feita por terceiro.
34º O teor dos factos imputados pelo Réu à Autora e que resultam provados tiveram essa capacidade (como resulta dos factos dados como provados (pontos 22, 24, 26, 27, 28, 29 da douta sentença), além de terem sido proferidos de forma intencional e com esse propósito.
35º Ao assim não ter sido considerado, o I. Tribunal violou os artigos 70º1, 483º1 e 563º do CC.
36º Caso seja entendimento, que o réu/recorrido agiu apenas com mera culpa, a indemnização também é devida, nos termos do artigo 483º 1 e 2 do CC (tendo igualmente sido violado pelo I. Tribunal esse preceito legal).
37º O réu/recorrido não cuidou ou se preocupou pelo menos em confirmar se as imputações feitas á Autora correspondiam à verdade, conformando-se com a possível ofensa à mesma e por isso nos termos do artigo 483º 2 do CC, também terá a obrigação de a indemnizar.

Independentemente da alteração à matéria de facto:

38º O comportamento da Autora não exclui a obrigação de indemnizar nos termos do artigo 570º do CC, já que o averbamento do prédio em seu nome foi efetuado por lapso, pela Repartição de Finanças (como resultou provado-factos provados nos pontos 19 a 21 da douta sentença).
39º Apenas pagou o IMI porque vinha na nota de liquidação, juntamente com outros prédios de que era proprietária, sendo o seu valor insignificante (já que o imóvel tem apenas um valor patrimonial de 3.030€-facto 2 da douta sentença), não se tendo apercebido que o prédio estava na sua titularidade, o que é confirmado pela prova produzida e dada por provada (facto 15 e 16 – factos provados da douta sentença).
40º Mostra-se violado pela douta sentença o artigo 570º do CC.
41º Não se pode concordar que as afirmações escritas na peça processual tenham apenas um carácter pouco elogioso, não sendo graves o suficientes para ofender a honra e consideração da Autora.
42º O próprio Tribunal considerou provado que a Autora, Maria se sentiu indignada, vexada e humilhada na sua honra e consideração, triste e desolada (ponto 24 e 26 dados como provados), ficou noites sem dormir ou descansar, o que dificultou ainda mais o tratamento médico que lhe estava a ser ministrado, recordando-se dos factos diariamente, o que lhe trouxe inquietação e profundo desgosto, perturbando a sua tranquilidade e sossego porque não correspondiam os mesmos à verdade (pontos 27, 28 e 29 da douta sentença-factos provados).
43º Os factos em causa foram adequados a provocar à Autora danos não patrimoniais sérios e merecedores da tutela do direito, ao contrário do decidido.
44º Ao assim não ter decidido, o I. Tribunal a quo violou o artigo 483º, 484º e 496º 1 do CC.

Nestes termos e nos mais de Direito e por tudo o que se expôs, deve o presente recurso proceder por provado e a douta sentença recorrida ser revogada, condenando-se o Réu/recorrido, nos termos peticionados e mesmo que assim não se entenda, à cautela e sem prescindir, deverá a sentença recorrida ser revogada por outra que julgue a ação totalmente procedente ou se assim não entenderem V. Exas. deverão sempre revogar a douta sentença, condenando pelo menos o recorrido ao pagamento de uma indemnização sustentada na pratica dos factos com mera culpa, nos termos dos preceitos legais referidos, fazendo assim, V. Exas., aliás, como sempre, Justiça!
*

Foram apresentadas contra-alegações nas quais se pugna pela improcedência do recurso com a consequente confirmação da decisão recorrida.
*

A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida a este Tribunal.
*

Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.

*

Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
*

2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex. vi dos arts. 663º/2; 635º/4; 639º/1 a 3; 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, esta deseja que:

- se altere a matéria de facto quanto ao decidido nos factos dados como provados com os números 30. e 31. e não provados de B. a I., devendo estes passar a ser considerados como provados e aqueles com outra redacção (conclusões a 29º);
- procedente a impugnação da matéria de facto, se reaprecie a decisão de mérito da acção (conclusões 30º a 37º);
- se reaprecie a decisão de mérito da acção independentemente da alteração da matéria de facto (conclusões 38º a 44º).
*
3 – OS FACTOS

A - Factos Provados:

Ponderada toda a prova produzida nos presentes autos, resultam provados os seguintes factos:

1. Correu termos neste Tribunal, com o número 122/04.0TBVLP, acção declarativa de condenação na forma comum, onde o aqui Réu, intitulando-se representante da herança indivisa por óbito de M. Luz (sua mãe) peticionou (além de outros pedidos) que a aqui Autora (ai Ré) fosse condenada a reconhecer que a Herança que representava era proprietária plena do prédio urbano, sito no lugar …, com o artigo 99º, melhor descrito no número 1 dessa petição.
2. Consta da petição inicial da acção referida em 1. que a dita herança era legítima possuidora do dito prédio urbano, afeto a habitação, composto de dois pavimentos, sito em …, na Freguesia de …, com área bruta de construção de 36,000 m², confrontando a Norte com Manuel, a Nascente com Passagem, a Sul com Joaquim e a Poente com Hermínio, inscrito na respectiva matriz sob o Art.º 99º, tendo origem no Art.º 69º, com o valor patrimonial de € 3.010,00, não descrito na Conservatória do Registo Predial.
3. Afirma-se na mesma petição que efectuadas as “averiguações e extraídas certidões matriciais dos prédios que fazem parte integrante da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de M. Luz, de modo que se obtivessem as provas documentais necessárias, que atestassem que a titular do referido prédio rústico era M. Luz, qual não foi o espanto, verifica-se que o prédio urbano inscrito na matriz sob o Art.º 69º (actualmente Art.º 99º) se encontra presentemente inscrito na matriz predial a favor da Ré”, aqui Autora.
4. Aí se afirma no artigo 14.º da petição inicial: “Agora tudo começou a fazer sentido, o porquê de tapar a passagem para a eira: a intenção da Ré era apoderar-se tanto da eira como da casa”.
5. Tendo ainda referido no artigo 15º da petição inicial que “A Ré conseguiu a inscrição junto da matriz predial respectiva do supra referido prédio urbano através de um processo administrativo (P.A.) com o nº 2101/2013, aberto a pedido da própria, em requerimento dirigido à Autoridade Tributária e Aduaneira – Serviço de Finanças, serviço que, posteriormente, procedeu a uma série de diligências, no âmbito da acção para o controlo e saneamento dos prédios urbanos inscritos na matriz sem NIF do proprietário associado, cuja cópia se junta como doc. nº 10”.
6. E no artigo 16.º que “findas as diligências foi lavrado um “Auto de Diligências” pelo Serviço de Finanças em Maio de 2012 que atestava que: - o referido prédio ainda se encontrava associado ao verbete n.º 194204, figurando como proprietário Teresa; - que o atual titular do prédio é Maria com o NIF ...; - que o prédio veio à posse desta há mais de 20 anos por contrato verbal de compra e venda/doação, não tendo sido celebrada a respectiva escritura de aquisição; - que há mais de 20 anos, sempre esteve na sua posse e fruição do identificado prédio, sem qualquer oposição de quem tivesse interesse em contrariar tal facto, posse essa, que exerce sem interrupção, com conhecimento de toda a gente, sendo por isso uma posse contínua, não titulada, de boa fé, pacifica e pública, conforme cópia do auto de diligencias que se junta e se dá por integralmente reproduzido como doc. n.º 10.”.
7. Consta ainda do artigo 31º da sua petição inicial que “a Ré, aproveitando-se do facto de 3 herdeiros da falecida M. Luz, estarem emigrados no estrangeiro, bem como de a referida Leonor ficar viúva, no ano de 2012 e estar presentemente interdita por doença de Alzheimer e estar internada no lar da Santa casa da Misericórdia, de má-fé e para lograr os seus intentos de se apossar abusivamente da casa de habitação e da Eira”.
8. Refere-se ainda nos artigos 42º e 43º da petição inicial que “Embora a Ré, não a tenha na sua posse, não desfrute dela, não tendo as suas chaves, pretendia com o referido processo administrativo para a inscrever em seu nome na matriz, a posteriori, realizar escritura de usucapião e registá-la em seu nome, para se arrogar proprietária da mesma e assim, causar um prejuízo patrimonial à A. herança e seus interessados. Assim, o comportamento da Ré e supra descrito, causou-lhes prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, inerentes à ocupação indevida, e à manipulação com declarações falsas junto das autoridades administrativas, os quais são passíveis de indemnização em dinheiro nos termos previstos nos artigos 483º, 562º, 564º, 566º, do C. Civil e que se peticionam no montante de € 3.000,00”.
9. Refere-se ainda no artigo 43º da petição inicial que a aqui Autora manipulou com declarações falsas a sua pretensão junto das autoridades administrativas.
10. O Réu na acção referida em 1. foi representado pela advogada Dra. Helena, a quem conferiu mandato forense, tendo subscrito electronicamente a peça processual em causa.
11. A aqui Autora e aí Ré foi citada para a mencionada acção e apresentou contestação.
12. Na contestação apresentada veio defender-se por excepção e veio impugnar os factos que lhe imputavam, bem como pedir uma indemnização a título de danos não patrimoniais por parte deles atentarem contra a sua honra e bom nome, tendo natureza difamatória.
13. Por sentença já transitada em julgado foi julgada procedente a excepção de falta de personalidade judiciária da Autora, levando à absolvição da instância, não tendo sido apreciados quaisquer outros pedidos.
14. A Autora nunca exerceu quaisquer actos de posse ou demonstrou qualquer intenção em fazê-lo relativamente ao prédio referido em 3.
15. Após a acção referida em 1. ter sido intentada, a Autora verificou que o prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de …, sob o artigo 99º (anterior 69º) se encontrava inscrito na Repartição de Finanças em seu nome.
16. Teve conhecimento desta situação através da citação para a acção comum, como aí referiu.
17. Após a apresentação da contestação referida em 12., a Autora deslocou-se à Repartição de Finanças, onde lhe foi dito pelo Chefe da Repartição de Finanças que aquando da avaliação oficiosa promovida por aquela entidade (o que aconteceu a nível nacional) foi cometido um lapso ao associarem o seu número de contribuinte àquele artigo urbano que se encontrava inscrito em verbete, bastando um requerimento para rectificar a situação.
18. A Autora enviou tal requerimento para a Repartição de Finanças no dia 29 de Dezembro de 2014, via email e via fax.
19. Não foi a aqui Autora nem a seu pedido que foi feita a inscrição junto da matriz em seu nome através do processo administrativo com o número 2101/2013.
20. O documento que o aqui Réu juntou na sua petição inicial sob o número 10, designado “auto de diligências”, refere que “no âmbito de uma acção desencadeada para controlo e saneamento dos prédios urbanos inscritos na matriz sem NIF de proprietário se deslocaram ao lugar … em Maio de 2013 e verificaram que o artigo 69º da dita freguesia de … se encontrava em verbete na matriz em nome de Teresa” e que o actual proprietário seria a aqui Autora.
21. Tais diligências foram efectuadas de forma oficiosa pela Autoridade Tributária sem qualquer pedido, consentimento ou autorização da aqui Autora e a informação com que foi preenchido o dito documento foi da iniciativa da AT, sendo completamente estranha a esta.
22. Em virtude dos factos referidos em 1. a 21. a Autora sentiu-se ofendida no seu bom nome e integridade moral.
23. A Autora sofreu de doença de foro oncológico que lhe veio a causar a morte.
24. Quando leu a petição referida em 2. sentiu-se indignada, vexada e humilhada na sua honra e consideração.
25. A Autora era uma pessoa considerada por toda a gente como honesta, séria, trabalhadora e respeitadora.
26. Em virtude dos factos referidos em 1. a 21. a Autora sentiu-se triste e desolada.
27. Em consequência dos factos referidos em 1. a 21., a Autora ficou noites sem dormir ou descansar, o que dificultou ainda mais o tratamento médico que lhe estava a ser ministrado.
28. A Autora recordava-se dos factos referidos em 1. a 21. diariamente, o que lhe trazia inquietação e profundo desgosto, perturbando a sua tranquilidade e sossego.
29. Os factos imputados à Autora na petição inicial referida em 2. não correspondiam à verdade.
30. O réu, na qualidade de cabeça casal da herança de M. Luz, mandatou a Dra. Helena, sua sobrinha, para reivindicar o prédio rústico referido em 2.
31. O Réu desconhecia que a casa estivesse em nome da aqui Autora.
32. No cumprimento do mandato que o Réu lhe conferiu, a Dra. Helena enviou à autora uma carta registada convocando-a para dar explicações e resolver a situação extrajudicialmente.
33. A Autora não compareceu nem de qualquer modo contactou a Dra. Helena, nem deu quaisquer explicações nem a esta advogada nem ao então autor.
34. Foi a Dra. Helena que procedeu a averiguações e constatou o que se refere em 2. a 9.
35. O Réu reside no Canadá, só muito esporadicamente tendo vindo a Portugal para tratar de problemas de saúde de sua irmã Leonor.
36. O Réu esteve em Portugal pela última vez há mais de um ano.
37. A Autora pagou IMI referente ao prédio referido em 2.
*
B - Factos não provados:

Ponderada toda a prova produzida, não resultaram provados os seguintes factos, de entre os alegados pelas partes com relevo para a decisão da causa:

A. A petição inicial do processo referido em 1. pode ser lida por várias pessoas.
B. O Réu não verificou se as imputações que fazia à Autora correspondiam à verdade, designadamente se foi ela que requereu a abertura do processo administrativo na Repartição de Finanças que conduziu a que o dito imóvel constasse na sua titularidade ou sequer se havia participado de alguma forma nesse processo.
C. Que a citação referida em 16 aconteceu a 29 de Outubro de 2014.
D. Que o Réu tenha tido qualquer intervenção directa nos factos referidos em 1. a 21.
E. Que nas circunstâncias referidas em 22. o Réu tenha demostrado falta de consideração pela Autora e pelo seu estado de saúde.
F. Que a doença da Autora era do conhecimento do Réu.
G. O Réu, com as declarações que proferiu além de ofender a honra e consideração, atingiu o bom nome e reputação da Autora e quis fazê-lo, tendo agido de forma intencional, bem sabendo que tais factos não correspondiam à verdade.
H. O estado de saúde da Autora obrigava o Réu a ter mais cuidado com as afirmações que produziu, o que não aconteceu.
I. Os factos referidos em 1. a 21. foram discutidos publicamente.
J. O Réu não tem conhecimentos jurídicos nem conhece os procedimentos jurídicos e administrativos adequados ao tratamento do assunto.
K. Era só o referido em 30. o que o Réu sabia e foi só isto que ele comunicou e solicitou à Dra. Helena.
L. O réu não disse à Dra. Helena quais as palavras ou expressões que ela devia utilizar.
M. O Réu e a Dra. Helena não sabiam que não fora a Autora a requerer ou de qualquer modo influenciar a inscrição em seu nome do urbano que não lhe pertencia e que em seu nome estava inscrito.
N. Que, nas circunstâncias referidas em 30., cerca de meio ano antes a ré procedera ao levantamento de um muro de vedação, criando um canteiro que tapou a passagem que dava acesso da casa de habitação para a eira, ficando sem acesso ao espaço da eira que pertence à herança.
O. A Autora ainda não restituiu à herança de M. Luz o rústico (eira) que a integra, identificado no nº 2º da P.I. da acção 122/04.0TBVLP.
*
C - Motivação da decisão da matéria de facto:

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise conjugada dos documentos juntos aos autos pela Autora e Réu e dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.
Os factos assentes em 1. a 10. resultam do teor da petição inicial junta aos autos e dos documentos que a acompanham a fls. 15-51 dos autos.
Os factos assentes em 11. e 12. resultam do teor da contestação junta aos autos a fls. 59-79.
O facto assente em 13. resulta do teor da sentença proferida no processo referido em 1 e junta aos autos a fls. 80-88.
Os factos assentes em 14. a 17. resultam essencialmente do depoimento das testemunhas António e Patrícia.

Aquele, cunhado da Autora, referiu que à data aquela vivia em sua casa, devido à necessidade de realizar tratamentos para a doença de que padecia.

Referiu esta testemunha, de modo objectivo e credível, que apenas após a recepção da “carta do Tribunal” (referindo-se à citação para a acção referida em 1.) se dirigiu com a Autora às Finanças e aí constatou que o prédio referido em 2 estava inscrito em seu nome, o que permitiu ainda dar como assentes os factos 32. e 33.
Para prova dos factos assentes em 32. e 33. foi ainda tido em conta o teor da carta constante de fls. 49 dos autos.
O seu depoimento foi ainda corroborado pelas testemunhas Patrícia e Celsa, que confirmaram a data em que a Autora teve conhecimento de que o referido bem estava registado em seu nome nas Finanças.

Contudo, o facto de apenas nesta data ter tido esse conhecimento também é imputável à Autora, uma vez que a testemunha Ramiro, à data Chefe de Finanças, referiu que após o averbamento de um prédio a um determinado contribuinte o mesmo é notificado de tal procedimento por carta registada.

Para prova dos factos assentes em 18. a 21. foi determinante o depoimento da testemunha Ramiro, chefe da Direcção de Finanças. Este explicou que em 2012 se procedeu à avaliação geral dos prédios urbanos, tendo sido feitas diligências a fim de identificar os titulares dos prédios para que estes fossem objecto de averbamento.

Relativamente ao documento de fls. 51, este referiu que tal averbamento pode ser feito sem qualquer intervenção do contribuinte, como pensa que terá ocorrido neste caso relativamente à Autora, assim permitindo dar como assente os factos 20. a 21.
Para prova da doença sofrida pela Autora foram tidos em conta os depoimentos das testemunhas António, Adelaide P., Celsa e Patrícia, assim permitindo dar como assente o facto 23.
Da mesma forma, estas testemunhas elucidaram o Tribunal de forma precisa e objectiva relativamente às consequências que a acção interposta contra a Autora tiveram nesta.
A testemunha António referiu que a Autora falava constantemente do assunto (“Não falava de outra coisa”), tendo ficado mais fragilizada. A testemunha Adelaide P. afirmou que esta ficou muito triste e envergonhada, e piorou o seu estado de saúde.
A testemunha Patrícia referiu ainda que a Autora passou a ter dificuldades em comer e em dormir quando teve notícia da petição inicial referida em 1.
As mesmas testemunhas referiram ainda o facto de sendo a Autora proveniente de uma aldeia pequena ter sido comentado que a Autora se terá tentado “apoderar” do bem referido em 2., decorrendo ainda das regras da experiência comum que a existência de processos judiciais é facilmente propalada entre os seus habitantes.
Pelo que da conjugação destes depoimentos resultaram assentes os factos referidos em 24. a 28.

Contudo, neste ponto não ficou o Tribunal convencido de que o Réu tivesse à data da instauração da acção referida em 1. conhecimento da doença da Autora.

Com efeito, nenhuma das testemunhas soube referir com certeza que o Réu tivesse tal conhecimento, tendo apenas as testemunhas António e Patrícia referido que “lhe devem ter dito” e por isso este “tinha de saber”.

Ora, neste ponto resultou assente em 36. e 37. que o Réu reside no Canadá, deslocando-se raramente a Valpaços, conforme resultou do depoimento das testemunhas Adelaide e Hélio, que referiram ambos que o Autor pelo menos há um ano que não se desloca a Portugal.

Daqui decorre, a nosso ver, ser perfeitamente possível que este não tenha tido conhecimento da doença da Autora, pois não obstante serem amigos de infância nenhuma prova produzida nestes autos permite concluir que tal doença chegou ao seu conhecimento.

Aliás, é associada à condição de emigrante um natural alheamento dos assuntos ocorridos no local da sua proveniência, tanto mais que no caso o Réu nem sequer se desloca com regularidade à sua aldeia, ao contrário de outros emigrantes que habitualmente sempre se deslocam a Portugal pelo menos nas férias de Verão.

Com efeito, resultou do depoimento das testemunhas Hélio e Adelaide que o Réu se desloca raras vezes a Portugal.
Ora, competindo à Autora provar que o Réu tinha conhecimento de tal facto, não logrou o Tribunal convencer-se com a necessária certeza do mesmo.
Pelo exposto, resultou não provado o facto F.
Para prova dos factos assentes em 30., 31. e 34. foi tido em conta o depoimento da testemunha Hélio.
Ora, este referiu que quem procedeu às averiguações relativamente ao prédio referido em 2. foi a Dra. Helena, em altura em que o Réu não se encontrava em Portugal, tendo-lhe aquela transmitido tal facto quando se encontrou com a mandatária do Réu, uma vez que era esta testemunha quem pagava os honorários à Dra. Helena.
Para prova do facto assente em 37. foi tido em conta o depoimento da testemunha António, que confirmou que a Autora pagou IMI referente ao prédio referido em 2., tendo ainda sido confirmado pela testemunha Ramiro que sendo o processo administrativo das Finanças datado de Maio de 2012 e o requerimento da Autora a requerer a rectificação do averbamento apenas de Dezembro de 2014 durante esse período foi liquidado IMI à Autora.

Relativamente ao facto não provado A., a Autora não fez qualquer prova no sentido de que a petição inicial referida em 1 tenha sido lida por várias pessoas, decorrendo ainda do nosso conhecimento funcional que tal peça processual apenas é do conhecimento das partes processuais nele intervenientes, salvo se estas o transmitirem a terceiros, o que também não foi alegado nem provado.
Relativamente ao facto não provado D., em especial, refira-se que a Autora não logrou provar qualquer intervenção directa do Réu nos factos por si alegados e dados como assentes em 1. a 22.
Com efeito, resulta dos autos que o Réu mandatou a Dra. Helena para interpor a acção referida em 1.
Contudo, conforme resultou também assente, o Réu é tio desta, tendo sido a Dra. Helena quem no decurso da preparação de tal acção se deparou com o registo do prédio referido em 2. em nome da Autora.
Por outro lado, residindo o Réu no Canadá mostra-se perfeitamente plausível que este não tenha tido qualquer intervenção directa no interpor de tal acção, já que apenas mandatou a Dra. Helena para reivindicar o prédio rústico referido em 2.
Ora, daqui decorre não ter sido apurada qualquer intervenção directa do Réu nos factos que lhe eram imputados e que constam dos factos 1. a 21., competindo à Autora fazer prova de tais factos (artigo 342.º do Código Civil).
Os demais factos não provados resultam da ausência de prova bastante a seu respeito bem como da sua contradição relativamente aos factos dados como assentes.

[transcrição de fls. 261 a 265].
*

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO

I) Alteração da matéria de facto

Diverge a apelante da decisão da matéria de facto dada como provada com os números 30. e 31. e não provados de B. a I., devendo estes passar a ser considerados como provados e aqueles com outra redacção.
Com excepção de C., incluído certamente por lapso já que nenhuma referência lhe é feita e relativamente ao qual se não conhecerá, indica o sentido da decisão e os elementos de prova em que fundamenta o seu dissenso, transcrevendo e indicando os trechos dos depoimentos das testemunhas e os documentos em que se baseia.
Mostram-se, assim, cumpridos todos os ónus impostos pelo art. 640º do CPC (cfr. as três alíneas do n.º 1).

Cumpre, pois, apreciar.

O art. 662º do actual CPC regula a reapreciação da decisão da matéria de facto de uma forma mais ampla que o art. 712º do anterior Código, configurando-a praticamente como um novo julgamento.
Assim, a alteração da decisão sobre a matéria de facto é agora um poder vinculado, verificado que seja o circunstancialismo referido no nº 1, quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A intenção do legislador foi, como fez constar da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.

Assim, mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos referidos na alínea c), do nº 2, e sem prejuízo de se ordenar a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu à Relação o poder/dever de investigação oficiosa, devendo realizar as diligências de renovação da prova e de produção de novos meios de prova, com vista ao apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
As regras de julgamento a que deve obedecer a Relação são as mesmas que devem ser observadas pelo tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções judiciais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cfr. arts. 466º/3 e 607º/4 e 5 do CPC, que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos arts. 341º a 396º do CC.

Deste modo, é assim inequívoco que a Relação aprecia livremente todas as provas carreadas para os autos, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua convicção.

Provar significa demonstrar, de modo que não seja susceptível de refutação, a verdade do facto alegado. Nesse sentido, as partes, através de documentos, de testemunhas, de indícios, de presunções etc., demonstram a existência de certos factos passados, tornando-os presentes, a fim de que o juiz possa formar um juízo, para dizer quem tem razão.

Como dispõe o art. 341º do CC, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.

E, como ensina Manuel de Andrade, aquele preceito legal refere-se à prova “como resultado”, isto é, “a demonstração efectiva (…) da realidade dum facto – da veracidade da correspondente afirmação”.
Não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objetivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a “um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida” - in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192.
Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escreve Antunes Varela - in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420.
O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também nesta, que está a apreciar, as coisas se passaram do mesmo modo.
Como ensinou Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” - in B.M.J. nº 112, pág. 190.
Ou seja, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto.
O juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. art. 607º/5 do CPC, cabendo a quem tem o ónus da prova “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como refere Antunes Varela – obra supracitada.
Se se instalar a dúvida sobre a realidade de um facto e a dúvida não possa ser removida, ela resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com o princípio plasmado no art. 414º do CPC, que, no essencial, confirma o que, sobre a contraprova, consta do art. 346º do CC.
De acordo com o que acima ficou exposto, cumpre, pois, reapreciar a prova e verificar se dela resulta, com o grau de certeza exigível para fundamentar a convicção, o que o apelante pretende neste recurso.
*
Como já referido supra, pretende a apelante a alteração da matéria de facto dada como provada com os números 30. e 31. e não provados de B. a I., devendo estes passar a ser considerados como provados e aqueles com outra redacção. Isto porque entende terem sido incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo esses factos.
*
Comecemos, então, pelos aludidos números 30. e 31.

Além de outros, a Meritíssima Juiz a quo considerou provados que:

30. O réu, na qualidade de cabeça casal da herança de M. Luz, mandatou a Dra. Helena, sua sobrinha, para reivindicar o prédio rústico referido em 2.

31. O Réu desconhecia que a casa estivesse em nome da aqui Autora.
Motivando tal decisão, o tribunal consignou o seguinte:
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise conjugada dos documentos juntos aos autos pela Autora e Réu e dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.
(…)
Para prova dos factos assentes em 30., 31. e 34. foi tido em conta o depoimento da testemunha Hélio.
Ora, este referiu que quem procedeu às averiguações relativamente ao prédio referido em 2. foi a Dra. Helena, em altura em que o Réu não se encontrava em Portugal, tendo-lhe aquela transmitido tal facto quando se encontrou com a mandatária do Réu, uma vez que era esta testemunha quem pagava os honorários à Dra. Helena.
(…)

Com o que discorda a apelante, com base nos depoimentos das testemunhas Cândido, Adelaide e Hélio, que até foram indicadas pelo recorrido, conjugados com os documentos junto aos autos, designadamente o doc. 1 junto com a petição inicial (certidão judicial dos autos que correram termos no Tribunal sob o numero 122/14.0TBVLP). Em consequência, entende que a matéria dos pontos 30. e 31. deve passar a ter a seguinte redacção:
30. O réu, na qualidade de cabeça casal da herança de M. Luz, mandatou a Dra. Helena, sua sobrinha, para reivindicar o prédio urbano referido em 2.
31. O réu sabia que a casa estava em nome da Autora.
Entendendo o recorrido que não lhe assiste razão, tendo o Tribunal a quo procedido a uma correcta e fundamentada decisão quanto ao julgamento da matéria de facto, apreciando toda a prova junta aos autos e produzida em audiência de julgamento.
Quid iuris?

Revisitada a respectiva prova produzida, conclui-se não assistir razão à apelante, não se tendo adquirido convicção diferente daquela obtida pelo tribunal da 1ª instância.

Com efeito, os factos em causa são o resultado conjugado de toda a prova produzida em audiência de julgamento, tal como salientado pelo Tribunal a quo na sua cuidadosa análise da prova produzida que aqui não vamos repetir. Tendo-se efectivamente apurado que o réu, na qualidade de cabeça casal da herança de M. Luz, mandatou a Dra. Helena, sua sobrinha, para reivindicar de Maria a eira que pertencia à herança ilíquida e indivisa da aludida M. Luz, e que nas averiguações para instauração da acção de reivindicação, a identificada advogada descobriu que também a casa que fazia parte da mesma herança estava inscrita matricialmente em nome da dita Maria, e que por isso a acção de reivindicação abrangeu os dois prédios. Tendo-se entendido que a referência no ponto 30. ao prédio rústico referido em 2. seria com alusão à petição inicial da acção referida em 1. e não ao ponto 2. dos factos provados que se refere ao prédio urbano. Ora, se a descoberta que a casa (prédio urbano) que fazia parte da referida herança estava inscrita matricialmente em nome da dita Maria resultou das averiguações para instauração da acção de reivindicação do prédio rústico (a eira), é inteligível que o Réu desconhecia que a casa estivesse em nome da aqui Autora. Nada em contrário tendo resultado com utilidade do depoimento das testemunhas que a recorrente aludiu (Cândido, Adelaide e Hélio).
Logo, porque todos os elementos convocados pelo tribunal a quo constam do processo e foram devidamente ponderados, entende-se nada haver aqui a corrigir, decidindo-se pela improcedência desta impugnação da matéria de facto.
*
Passemos, agora, às alíneas B. a I. (2)

Além de outros, a Meritíssima Juiz a quo considerou não provados que:

B. O Réu não verificou se as imputações que fazia à Autora correspondiam à verdade, designadamente se foi ela que requereu a abertura do processo administrativo na Repartição de Finanças que conduziu a que o dito imóvel constasse na sua titularidade ou sequer se havia participado de alguma forma nesse processo.
D. Que o Réu tenha tido qualquer intervenção directa nos factos referidos em 1. a 21.
E. Que nas circunstâncias referidas em 22. o Réu tenha demostrado falta de consideração pela Autora e pelo seu estado de saúde.
F. Que a doença da Autora era do conhecimento do Réu.
G. O Réu, com as declarações que proferiu além de ofender a honra e consideração, atingiu o bom nome e reputação da Autora e quis fazê-lo, tendo agido de forma intencional, bem sabendo que tais factos não correspondiam à verdade.
H. O estado de saúde da Autora obrigava o Réu a ter mais cuidado com as afirmações que produziu, o que não aconteceu.
I. Os factos referidos em 1. a 21. foram discutidos publicamente.

Motivando tal decisão, o tribunal consignou o seguinte:

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise conjugada dos documentos juntos aos autos pela Autora e Réu e dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.
(…)
Pelo que da conjugação destes depoimentos resultaram assentes os factos referidos em 24. a 28.

Contudo, neste ponto não ficou o Tribunal convencido de que o Réu tivesse à data da instauração da acção referida em 1. conhecimento da doença da Autora.
Com efeito, nenhuma das testemunhas soube referir com certeza que o Réu tivesse tal conhecimento, tendo apenas as testemunhas António e Patrícia referido que “lhe devem ter dito” e por isso este “tinha de saber”.
Ora, neste ponto resultou assente em 36. e 37. que o Réu reside no Canadá, deslocando-se raramente a Valpaços, conforme resultou do depoimento das testemunhas Adelaide e Hélio, que referiram ambos que o Autor pelo menos há um ano que não se desloca a Portugal.

Daqui decorre, a nosso ver, ser perfeitamente possível que este não tenha tido conhecimento da doença da Autora, pois não obstante serem amigos de infância nenhuma prova produzida nestes autos permite concluir que tal doença chegou ao seu conhecimento.

Aliás, é associada à condição de emigrante um natural alheamento dos assuntos ocorridos no local da sua proveniência, tanto mais que no caso o Réu nem sequer se desloca com regularidade à sua aldeia, ao contrário de outros emigrantes que habitualmente sempre se deslocam a Portugal pelo menos nas férias de Verão.
Com efeito, resultou do depoimento das testemunhas Hélio e Adelaide que o Réu se desloca raras vezes a Portugal.
Ora, competindo à Autora provar que o Réu tinha conhecimento de tal facto, não logrou o Tribunal convencer-se com a necessária certeza do mesmo.

Pelo exposto, resultou não provado o facto F.
(…)
Relativamente ao facto não provado D., em especial, refira-se que a Autora não logrou provar qualquer intervenção directa do Réu nos factos por si alegados e dados como assentes em 1. a 22.
Com efeito, resulta dos autos que o Réu mandatou a Dra. Helena para interpor a acção referida em 1.
Contudo, conforme resultou também assente, o Réu é tio desta, tendo sido a Dra. Helena quem no decurso da preparação de tal acção se deparou com o registo do prédio referido em 2. em nome da Autora.
Por outro lado, residindo o Réu no Canadá mostra-se perfeitamente plausível que este não tenha tido qualquer intervenção directa no interpor de tal acção, já que apenas mandatou a Dra. Helena para reivindicar o prédio rústico referido em 2.
Ora, daqui decorre não ter sido apurada qualquer intervenção directa do Réu nos factos que lhe eram imputados e que constam dos factos 1. a 21., competindo à Autora fazer prova de tais factos (artigo 342.º do Código Civil).
Os demais factos não provados resultam da ausência de prova bastante a seu respeito bem como da sua contradição relativamente aos factos dados como assentes.

Com o que discorda a apelante, que entende que estas alíneas deveriam ser consideradas provadas, face à prova produzida (testemunhal e documental): no que concerne às alíneas B. e D., já que entende que quanto a estes factos, face ao disposto no art. 1157º do CC, o advogado pratica actos jurídicos não em nome próprio, mas em nome do cliente. Acresce que, por não terem resultado provados os factos constantes das alíneas J., K., L. e M., era ao R. que cabia o ónus da prova daqueles, o que não logrou fazer, pelo que deveriam os mesmos ter sido dados como provados. O que também deveria ter acontecido com a alínea E., já que resulta da normalidade que o réu/recorrido desse orientações à sua advogada para reivindicar o que alegadamente lhe pertencia. Já quanto às alíneas F., G. e H., deveria o Tribunal a quo ter dado os mesmos como provados, com base nos depoimentos das testemunhas António, Hélio, Adelaide P., Adelaide e Patrícia. Também a alínea I. deveria ter sido dado como provada, com base nos depoimentos das testemunhas Adelaide P. e Hélio, bem como pelo facto de que nas aldeias e lugares pequenos tudo se sabe e comenta, constituindo esta realidade um facto notório.

Entendendo o recorrido que não lhe assiste razão, pois, podendo os factos ser transmitidos ao advogado pelo mandante, in casu, apurou-se que os factos foram descobertos pelo advogado em averiguações no exercício do mandato, não sendo normal, nem habitual, que seja o mandante a dizer ao mandatário quais as expressões que ele pode e deve fazer constar da peça processual a redigir, sendo que no caso concreto, o mandante não tem formação jurídica, e reside há décadas muito longe, no Canadá. Tendo sido a A. que não logrou fazer a prova dos factos constitutivos do direito por si invocado.
Quid iuris?

Revisitada a respectiva prova produzida, conclui-se não assistir razão à apelante, não se tendo adquirido convicção diferente daquela obtida pelo tribunal da 1ª instância. Parecendo a recorrente confundir normas de direito probatório material ou formal (3), com as normas de direito probatório substantivo, como é o caso do invocado art. 1157º do CC, que será relevante tão só para a decisão de mérito da acção.
Estando em causa uma acção declarativa de condenação, a prova dos factos constitutivos, sejam eles positivos ou negativos, incumbe à parte que invoca o direito (cfr. art. 342º do CC). Não é pelo facto de estarmos perante um “facto negativo” que se inverte o ónus da prova nem tão-pouco pela dificuldade que isso naturalmente representa. (4)
Assim, os factos em causa foram o resultado conjugado de toda a prova produzida em audiência de julgamento, tal como destacado pelo Tribunal a quo na motivação da decisão da matéria de facto.
A divergência da A. e ora apelante no recurso e que contende com os factos aqui agora em questão configura a sua versão, que não logrou ver provada. Efectivamente, não está em causa a não valoração dos invocados depoimentos das testemunhas António, Hélio, Adelaide P., Adelaide e Patrícia, que foram consideradas como resulta da motivação da decisão da matéria de facto, mas a interpretação efectuada dessa prova e que esteve subjacente à fixação dos factos provados e não provados.
Assim, se quanto às alíneas B. e D. já tudo foi dito supra a fls. 15 (5), quanto às alíneas E., F. e H., do apurado não permitiu ter o Tribunal ficado convencido que o R. tivesse à data da instauração da acção referida em 1. conhecimento da doença da A. Não resultando convicção diferente dos trechos que a apelante transcreve dos depoimentos das testemunhas, já que as expressões como “não acredito que não soubesse”, “devia saber”, “tinha de saber”, “claro que sabia” e “penso que devia saber” sendo conclusivas, nada revelam. Já quanto à alínea G., para além do facto assente em 22., isto é, que a A. se sentiu ofendida no seu bom nome e consideração, nada mais se apurou, isto é, que o R., através da sua advogada, tivesse a intenção e propósito de ofender a A. na sua honra e consideração, já que apenas tinham conhecimento da falsidade das situações descritas e da falta de comparência e de resposta da aqui A. à carta que preliminarmente lhe foi enviada com vista à resolução da situação extrajudicialmente, desconhecendo, pois, que tais factos não correspondessem à verdade, e quanto à alínea I., o que se apurou é insuficiente para se dar como provado tal facto, pois se tal como lembrado pela recorrente o referido nos depoimentos pelas testemunhas “nas aldeias toda a gente sabe as coisas umas das outras”, “às vezes comentava-se, ouvi outras pessoas comentarem” e “eu próprio comentei com pessoas o que tinha acontecido”, apenas permite concluir que o processo judicial referido em 1. e de que a A. se terá tentado apoderar do bem referido em 2. foi do conhecimento público, mas já não que os factos referidos em 1. a 21. foram discutidos publicamente.
Não podendo, pois, como já referido, a apelante fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa. Tendo, assim, sido respeitado o ónus da prova e não tendo o Tribunal a quo cometido errado julgamento na apreciação da prova como pretende a recorrente.
Logo, porque todos os elementos convocados pelo tribunal a quo constam do processo e foram devidamente ponderados, entende-se nada haver aqui a corrigir, decidindo-se pela improcedência da impugnação quanto à alteração da matéria de facto.
*

II) Reapreciação em conformidade com a alteração da matéria de facto da decisão de mérito da acção

Mantendo-se incólume o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal a quo, inexiste qualquer desacerto da solução jurídica dada ao caso sub judice, mercê da alteração da matéria de facto.
A apreciação jurídica da causa ter-se-á de fazer, pois, já no âmbito da próxima questão, isto é, para a hipótese de improceder a impugnação da matéria de facto, havendo desacerto da solução jurídica para o caso, deve reapreciar-se a decisão de mérito da acção.
*

III) Reapreciação da decisão de mérito da acção

Entende a apelante que o tribunal a quo errou independentemente da alteração da matéria de facto, já que o comportamento da A. não exclui a obrigação de indemnizar nos termos do art. 570º do CC, não concordando que as afirmações escritas na peça processual tenham apenas um carácter pouco elogioso, não sendo graves o suficientes para ofender a honra e consideração da Autora (conclusões 38º a 44º).
Com o que discorda o recorrido, entendendo que A Srª Drª Helena considerou estas expressões (6) necessárias e adequadas ao relato dos factos averiguados por ela própria e ao cumprimento do mandato de que fora incumbida e que o entendimento da meritíssima juíza “a quo” de que os mencionados termos usados pela Drª Helena na petição inicial “não se revestem de especial gravidade ou ofensa para o homem médio, sendo … nela utilizados termos comuns nos articulados processuais”, sendo esse também o entendimento dominante na larga maioria da jurisprudência, exemplificando.
Quid iuris?

Assente que face ao disposto no art. 1157º do CC, o advogado pratica actos jurídicos não em nome próprio, mas em nome do cliente e tendo presente a concreta factualidade apurada nos autos, vejamos se existe por parte do R. a obrigação de indemnizar os danos sofridos pela A., sendo certo que os sofreu conforme resultou assente em 22. e 24. a 28., como pretende a recorrente.
Também aqui não assiste razão à apelante, como passaremos a analizar.
Pretende a A. por via desta acção tornar efectiva a responsabilidade civil do R. em virtude da factualidade apurada e supra descrita.

Nos termos do preceituado no art. 483º do CC, “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Ali se estabelece, pois, o princípio geral da responsabilidade civil, fundada em facto que seja objectivamente controlável ou dominável pelo agente, isto é, uma conduta humana, que tanto pode consistir num facto positivo, uma acção, como num negativo (omissão ou abstenção), violadora do direito de outrem ou de qualquer disposição legal que vise proteger interesses alheios - comportamento ilícito.
Para que desse facto irrompa a consequente responsabilidade, necessário se torna, à partida, que o agente possa ser censurado pelo direito, em razão precisamente de não ter agido como podia e devia de outro modo; isto é que tenha agido com culpa.
A ilicitude e a culpa são elementos distintos; aquela, virada para a conduta objectivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, olhando sobretudo para o lado subjectivo do facto jurídico.
A responsabilidade traduz-se na obrigação de indemnizar, de reparar os danos sofridos pelo lesado.
Este dever de indemnizar compreende não só os prejuízos causados, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão - art. 564º do CC.
O prejuízo surge, pois, como um elemento novo a acrescer ao facto ilícito e à culpa, sem o qual o agente não se constituiria na obrigação de indemnizar.
Os danos podem ter um conteúdo económico (danos patrimoniais) abrangendo os danos emergentes, efectiva diminuição do património do lesado, o prejuízo causado nos seus bens, e o lucro cessante, os ganhos que se frustraram por causa do facto ilícito, ou imaterial (danos não patrimoniais ou morais, que resultam da ofensa de bens de carácter espiritual ou morais, e que não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, podem todavia ser compensados pelo sacrifício imposto no património do lesante).
A reparação dos danos deve efectuar-se em princípio mediante uma reconstituição natural, isto é repondo-se a situação anterior à lesão; mas quando isso não for possível, ou não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor, então haverá que subsidiariamente fixar-se a indemnização em dinheiro - cfr. arts. 562º e 566º do CC. Nesta hipótese, o dano real ou concreto é expresso pecuniariamente, reflectindo-se sobre a situação patrimonial do lesado (dano patrimonial ou abstracto).

A responsabilidade civil pode, no que ora nos interessa, verificar-se no âmbito de um contrato, gerada pelo incumprimento de uma das partes, ou, no caso da responsabilidade extracontratual ou aquiliana resultar da prática de factos ilícitos culposos violadores de direitos ou interesses alheios juridicamente protegidos, causadores de prejuízos a outrem; como resulta dos seus próprios termos, esta responsabilidade gera-se fora do círculo de uma relação obrigacional entre as partes.
Muito embora em pouco se traduza, no tocante aos respectivos requisitos, a diferença entre os dois tipos de responsabilidade supra-referidos, certo é que no que concerne ao ónus da prova existe entre ambas uma diferença fundamental; na responsabilidade civil obrigacional a culpa presume-se, o que não sucede na responsabilidade extra-contratual ou aquiliana em que cabe ao lesado provar a culpa do lesante.
Volvendo agora ao caso que analisamos, a recorrente sustenta a responsabilidade do R., censurando a sua conduta à luz da responsabilidade extracontratual ou aquiliana.

Tudo ponderado, sendo certo que a A. sofreu danos, entendemos que não há que censurar o R. pelo ocorrido, já que a conduta daquela (7) contribuiu sobremaneira para a actuação deste, sempre sendo de excluir a concessão de qualquer indemnização (cfr. art. 570º do CC). Acresce que, quanto ao animus injuriandi, não podemos deixar de concordar com a Srª Juiz a quo, quando refere que “não obstante se compreender que a redacção da petição inicial referida nos factos 1 a 8 não seja de todo benéfica ou elogiosa para com a Autora, sempre seríamos do entendimento que os termos daí constantes não se revestem de especial gravidade ou ofensa para o homem médio, sendo quanto a nós nele utilizados termos comuns nos articulados processuais.”. Sabendo-se que, na generalidade dos casos em que intervém na defesa do seu constituinte, o advogado actua num processo adversarial, debatendo-se o tribunal com posições conflituantes, aceita-se que deva conceder-se alguma amplitude de actuação e expressão ao advogado, nomeadamente nos termos em que redige e verte nos articulados a matéria factual e juridicamente relevante (8).
Concluindo-se, pois, tal como na 1ª instância, pela improcedência total da acção e a consequente absolvição do R. da totalidade do pedido contra si formulado.

Improcede, pois, o recurso.
*
5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (art. 663º/7 CPC)

I – O Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto fixada dentro do respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância.
II – Não pode a apelante fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa.
III – Assentando o entendimento do apelante numa factualidade que não logrou ver provada e cuja reapreciação igualmente não logrou ver alterada, revela-se inquinado o desfecho do recurso.
IV – Tendo a A. sofrido danos, não há que censurar o R. pelo ocorrido, quando a conduta daquela contribuiu sobremaneira para a actuação deste.
V – Sabendo-se que, na generalidade dos casos em que intervém na defesa do seu constituinte, o advogado actua num processo adversarial, debatendo-se o tribunal com posições conflituantes, aceita-se que deva conceder-se alguma amplitude de actuação e expressão ao advogado, nomeadamente nos termos em que redige e verte nos articulados a matéria factual e juridicamente relevante.
*

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
*
Guimarães, 10-07-2018

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Maria Cristina Cerdeira)


1. Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Valpaços – Juízo C. Genérica
2. Note-se que em relação à alínea C. não se conhecerá, pela razão já referida supra, a fls. 12.
3. No que toca ao direito probatório costuma distinguir-se entre o direito probatório material – o que diz respeito à admissibilidade dos meios de prova e ao respectivo valor na demonstração dos factos – e o direito probatório formal – o que estabelece a forma de oferecimento e produção das diversas provas –.
4. Neste sentido, vd. o Ac. do STJ de 7-02-2008, prolatado no Proc. nº 07A4705 e acessível in www.dgsi.pt.
5. o que se apurou foi que o réu, na qualidade de cabeça casal da herança de M. Luz, mandatou a Dra. Helena, sua sobrinha, para reivindicar de Maria a eira que pertencia à herança ilíquida e indivisa da aludida M. Luz, e que nas averiguações para instauração da acção de reivindicação, a identificada advogada descobriu que também a casa que fazia parte da mesma herança estava inscrita matricialmente em nome da dita Maria, e que por isso a acção de reivindicação abrangeu os dois prédios.
6. Com referência às seguintes expressões escritas no exercício do mandato: “a intenção da Ré era apoderar-se tanto da eira como da casa”; … “conseguiu a inscrição … do urbano, através de um processo administrativo aberto a pedido da própria… ”; usando “…de má fé para lograr os seus intentos de se apossar abusivamente da casa de habitação e da eira”; “…manipulação com declarações falsas junto das autoridades administrativas”.
7. Já supra referida a fls. 18: o R., através da sua advogada, apenas tinha conhecimento da falsidade das situações descritas e da falta de comparência e de resposta da aqui A. à carta que preliminarmente lhe foi enviada com vista à resolução da situação extrajudicialmente.
8. Neste sentido, vd. por todos o Ac. da RL de 28-11-2017, prolatado no Proc. nº 1521/13.0TVLSB.L2-1 e acessível in www.dgsi.pt.