Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
12/13.4GEVCT.G1
Relator: ANA TEIXEIRA E SILVA
Descritores: INSTRUÇÃO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: É admissível a instrução requerida pelo assistente que, sem discordar dos factos narrados na acusação do Ministério Público, nem pretendendo atribuir-lhes outros, confina o seu requerimento à discussão da qualificação jurídica dos factos, visando a pronúncia do arguido por crime mais grave do que o imputado na acusação pública.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO
O assistente MANUEL S... veio interpor recurso do despacho do Mmº Juiz do 1º Juízo Criminal de Viana do Castelo que lhe indeferiu, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução que apresentara.
O assistente expressa as seguintes conclusões:
· A lei prevê a possibilidade de abertura da instrução relativamente a factos pelos quais o MP não tenha proferido acusação;
· Referir na acusação que os arguidos praticaram determinados factos, sem enquadrar os mesmos jurídico penalmente (como sequestro no caso em análise) mais não é que não deduzir acusação por esses factos,
· O assistente, porque estamos perante um crime público, não podia deduzir acusação desacompanhado do Ministério Público,
· Para além do que deduzir acusação por um crime de sequestro agravado, quando os arguidos vinham acusados por crimes de ofensas à integridade física simples, importar uma alteração substancial dos factos referidos na acusação, pelo que, também por este motivo, tal possibilidade estaria também vedada ao assistente por força do estipulado no nº 1 do artº 284º do CPP.
· Pelo que apenas lhe restava, para ver os arguidos julgados por factos relativamente aos quais, foram apurados em sede de inquéritos indícios mais do que suficientes de terem ocorrido, o recurso à abertura da instrução.
O Ministério Público, sufragando a posição do assistente, defendeu a procedência do recurso.
Nesta instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção integral do despacho criticado.

II - FUNDAMENTOS
1. O OBJECTO DO RECURSO.
A questão suscitada reconduz-se à admissibilidade (ou inadmissibilidade) legal da instrução, quando requerida pelo assistente para atribuir aos arguidos um “novo” crime, não constante da acusação pública.

2. O DESPACHO RECORRIDO.
Apresenta o seguinte conteúdo:
Notificado do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público veio o assistente MANUEL S... requerer a abertura de instrução, sustentando que os factos descritos naquela acusação preenchem também o crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 156.°, do Código Penal.
Termina requerendo a pronúncia dos arguidos pela prática do aludido crime.
*
Apreciando e decidindo.
De acordo com o disposto no artigo 287.°, n." 1, alínea b), a abertura de instrução a requerimento do assistente terá como objecto factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
N o requerimento de abertura de instrução não alega o assistente quaisquer outros factos para além daqueles que já constam da acusação pública, pretendendo apenas discutir a qualificação jurídica desses factos, os quais, na sua perspectiva, são também subsumíveis à prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 156.°, do Código Penal.
E não estando em causa factos, mas apenas a sua qualificação jurídica, o mecanismo adequado de que o assistente dispunha para fazer valer o seu ponto de vista era aquele que se encontra previsto no artigo 284.°, n." 1, do Código de Processo Penal, ou seja, deveria ter deduzido acusação pelos mesmos factos acusados pelo Ministério Público, qualificando-os, contudo, de modo diverso.
Tudo isto para concluir que, na nossa opinião, é legalmente inadmissível a instrução requerida pelo assistente quando, no requerimento de abertura da mesma, apenas se pretende discutir a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública.
Atento o artigo 287°, n." 3 do Código de Processo Penal, a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução
Pelo exposto, não se admite o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, por impossibilidade legal da instrução.
*
Custas a cargo do assistente - artigo 515º, n.º 1, alínea a) do Código Processo Penal.
Notifique.

3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO.
Os dados relevantes:
- encerrado o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos António L... e Vítor L..., imputando-lhes a autoria material de crimes de ofensa à integridade física simples, pp. e pp. pelo artº 143º, nº1, do CP, um deles na pessoa do assistente Manuel S...;
- o Ministério Público requereu o julgamento dos arguidos perante Tribunal Singular;
- o assistente Manuel S... veio requerer a abertura da instrução, impetrando a pronúncia dos arguidos também pelo crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artº 158º A menção, nos nºs 2 e 5 do requerimento instrutório, ao artº “156º” constitui lapso manifesto., nº2, al. b), do CP.
O quadro legal pertinente Também convocado no despacho recorrido e na Motivação de recurso., nas partes que ora relevam:
Artº 287º do CPP
1- A abertura da instrução pode ser requerida (…):
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Artº 284º do CPP
1- (…) o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.
Artº 1º do CPP
Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:
f)«Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
A discussão do caso concreto:
A estrutura do processo penal português comporta as fases de Inquérito, da Instrução (facultativa – artº 286º, nº2, do CPP) e do Julgamento.
Decorre da estrutura acusatória do processo penal Artº 32º, nº5, da CRP. que é a acusação e ou a pronúncia (havendo instrução) que definem o objecto do processo e este integra não só os factos mas também a pretensão que nelas se formula (a incriminação); quer na acusação quer na pronúncia, são inseparáveis os factos e a pretensão, até porque um dos requisitos obrigatórios é a indicação das disposições legais aplicáveis (artºs 283º, nº3, al. c), e 308º, nº2, do CPP) V. o ac. da RC de 02/11/2011, proc. 298/10.6TAVIS.C1, www.dgsi.pt..
O assistente Manuel S... requereu a instrução para obter a pronúncia dos arguidos António L... e Vítor L... pelo crime de sequestro: não porque discorde dos factos narrados no libelo público ou pretenda atribuir-lhes outros, mas porque entende que os já enunciados pelo Ministério Público (mormente sob os nºs 6 a 9) preenchem também a prática pelos arguidos do dito ilícito.
Ainda que o objecto da requerida instrução se confine à discussão da qualificação jurídica, certo é que os termos em que vem configurada pelo assistente consubstanciam uma “alteração substancial” dos factos descritos pelo Ministério Público.
Consequentemente, está-lhe vedado o uso do mecanismo previsto no citado artº 284º do CPP Contrariamente ao que defende o Mmº Juiz a quo. .
A palavra “factos Especialmente acentuada e sublinhada no despacho recorrido, cf. fls. 210. – contida na al. b) do nº 1 do artº 287º do CPP - não pode ser avaliada atomísticamente, desinserida do sistema processual penal, e em sentido puramente naturalístico, devendo antes ser interpretada na interligação com uma determinada ressonância jurídico-criminal Note-se que a factualidade a inserir na acusação é a que seja susceptível de fundamentar a aplicação de uma pena ou medida de segurança… - artº 283º, nº3, al. b), do CPP. .
Ora, não se vê como poderia o assistente manifestar a sua discordância relativamente à subsunção jurídica dos factos operada pelo Ministério Público e tentar a submissão dos arguidos a julgamento por crime público de que terá sido vítima, a não ser requerendo a instrução.
A liberdade do juiz de julgamento quanto à escolha da “solução jurídica pertinente” (conferida pelo artº 339º, nº4, do CPP) não é absoluta, dependendo o propugnado alargamento do objecto do processo de obstáculos potencialmente intransponíveis Designadamente, o acordo do Ministério Público e dos arguidos – nº3 do artº 359º do CPP. (cf. o artº 359º do CPP), tanto mais que, a vingar a tese do assistente, sempre conduziria à incompetência do tribunal singular (artº 16º do CPP) O crime de sequestro imputado é punível com a pena de 2 a 10 anos de prisão – artº 158º, nº2, do CP..
A posição por nós sufragada parece encontrar algum O caso que lhe subjaz reveste outros contornos. respaldo no ac. da RP de 20/12/2006 assim sumariado:
O assistente pode requerer a abertura da instrução relativamente a factos que representam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público Relatado pelo Desemb. Jorge França no proc. 0617070, www.dgsi.pt; referenciado na Resposta ao recurso do MP..

Face ao exposto, impõe-se a revogação do despacho recorrido.

III - DECISÃO
1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo assistente MANUEL S... e em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a substituição por despacho que, não constatando outra causa de rejeição V.g., extemporaneidade, incompetência do juiz – artº 287º, nº3, do CPP., declare aberta a instrução.
2. Sem custas.

23 de Abril de 2014