Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1154/18.5T8VRL.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário do Relator:

1. Quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção. 2. Os pactos atributivos de jurisdição são válidos nos termos do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e do art. 94º CPC. 3. Quando ao abrigo de pacto atributivo de jurisdição válido, as partes prevêem dois foros alternativos, o português e o espanhol, pode o autor optar por instaurar a acção em qualquer deles. 4. Quando simultaneamente com o pacto atributivo de jurisdição, as partes igualmente convencionarem qual o Tribunal territorialmente competente, não pode o Tribunal conhecer oficiosamente da questão da incompetência territorial para daí concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário: 1. Quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção. 2. Os pactos atributivos de jurisdição são válidos nos termos do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e do art. 94º CPC. 3. Quando ao abrigo de pacto atributivo de jurisdição válido, as partes prevêem dois foros alternativos, o português e o espanhol, pode o autor optar por instaurar a acção em qualquer deles. 4. Quando simultaneamente com o pacto atributivo de jurisdição, as partes igualmente convencionarem qual o Tribunal territorialmente competente, não pode o Tribunal conhecer oficiosamente da questão da incompetência territorial para daí concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses.

I- Relatório

A “X OPTICS, S.L.”, sociedade de direito espanhol, intentou neste Juízo Central Cível de Vila Real a presente acção de processo comum contra N. A., “N. B., S.A.”, J. M., J. L., P. M. e C. M..

Peticiona que, pela sua procedência seja(m):

a) Declarada ilícita e ineficaz a resolução do acordo parassocial operada pelo 1º Réu em 30 de Outubro de 2015;
b) Declarado o incumprimento definitivo do acordo parassocial, bem como o incumprimento definitivo do contrato de compra e venda por facto exclusivamente imputável aos Réus;
c) Declarada a resolução por parte da Autora, quer do acordo parassocial, quer do contrato de compra e venda de acções;
d) Os réus condenados solidariamente, no pagamento à Autora da quantia de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) a título do preço já pago por conta da compra das acções da sociedade 2ª Ré, contra a entrega das acções da sociedade 2ª Ré, no prazo e na forma que vier a ser judicialmente fixada à Autora na sentença a proferir.
e) Os réus solidariamente, condenados no pagamento de juros à Autora, às taxas legais em vigor, a contar desde a data da citação até integral e efectivo pagamento;
f) Os réus solidariamente, condenados no pagamento de custas de parte e demais encargos do processo;
g) Os Réus, ainda, solidariamente, condenados no pagamento à Autora de todos os prejuízos que esta situação lhe causou, os quais, por ora, não são possíveis de apurar e contabilizar, relegando-se a sua quantificação para execução em sede de liquidação de sentença.

Em sede de contestação, vieram os réus invocar a excepção de incompetência (absoluta), porquanto, em seu entender, nos aludidos contratos, as partes convencionaram expressamente a competência dos tribunais espanhóis.

Notificada, respondeu a autora, pugnando pela improcedência da excepção.

Foi então proferida decisão que julgou o Juízo Central Cível de Vila Real absolutamente incompetente para a apreciação da presente acção, por preterição das convencionadas regras de competência internacional, atento o disposto nos artigos 95º e 96º a 99º do CPC, e, ao abrigo do disposto nos artigos 576º,1,2, e 577º,a do CPC, face à verificação de uma excepção dilatória, absolveu os réus da instância.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (artigos 644º,1,a, 645º,1,a, 647º,1, todos do CPC).
Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

Da análise da cláusula 4ª do contrato de compra e venda de acções e da cláusula 5ª do acordo parassocial, resulta que Recorrente e Recorridos estipularam submeter qualquer litígio que pudesse surgir (quer relacionado com o contrato de compra e venda de acções, quer com o acordo parassocial), expressa e indistintamente, à jurisdição dos tribunais espanhóis e dos tribunais portugueses.
Nos termos do nº 1 do artigo 94º do C.P.C.: “As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica”. (o realce e sublinhado são nossos).
As partes submeteram, expressa e indistintamente, qualquer litígio emergente dos contratos de compra e venda de acções e do acordo parassocial, à ordem jurídica portuguesa e à ordem jurídica espanhola.
Daqui resulta, desde logo, que as partes reconheceram e atribuíram aos Tribunais Portugueses competência internacional para dirimir o presente litígio.
Sem prejuízo destas estipulações das partes, cumpre referir que, mesmo que assim não fosse, sempre os tribunais portugueses teriam competência internacional para dirimir o presente litígio, nos termos da legislação portuguesa em vigor.
Todos os Recorridos são portugueses, têm domicílio em Portugal, mais concretamente no …, excepção feita ao 6º Recorrido que tem domicílio em …, ou seja, todos os Recorridos sem excepção, têm domicílio na área da Comarca de Vila Real.
Pelo que, nos termos conjugados dos artigos 59º, 62º e 71º n.º 1, todos do C.P.C., dúvidas não restam de que os tribunais portugueses têm, quer pela via contratual, quer pela via legal, competência internacional para dirimir o conflito em causa nos autos.
De facto, as partes quiseram atribuir, sem preferência, competência para apreciar um eventual conflito subjacente à relação contratual em causa aos tribunais portugueses e aos tribunais espanhóis, à luz do princípio da autonomia da vontade.
Princípio este reconhecido amplamente, conforme decorre da leitura do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (doravante “STJ”), relativo ao processo n.º 165595/11.1YIPRT.G2.S1, de 09-07-2014 (Gabriel Catarino).
10ª Acresce que Portugal e Espanha estão vinculadas ao Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, relativa à Competência Judiciária, Reconhecimento e Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial [doravante “Regulamento (UE)”].
11ª Nos termos das disposições conjugadas do nº 1 do artigo 5º, da secção 7 e do n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento (UE) acima referido resulta que os pactos de jurisdição insertos nos contratos de compra e venda de acções e no acordo parassocial são absolutamente válidos, no que respeita à sua competência internacional.
12ª Nos termos do disposto pelo artigo 94º n.º 2 do C.P.C., mesmo que houvessem dúvidas quanto ao ordenamento jurídico aplicável, a partir do momento em que os Tribunais portugueses têm competência para o efeito, então deve entender-se que as designações convencionais estabelecem competência exclusiva dos tribunais portugueses.
13ª Sendo que, em caso de dúvida, os pactos de jurisdição permitidos pelo artigo 94.º do C.P.C. presumem que a designação é feita exclusivamente aos tribunais portugueses.
14ª A vingar o entendimento do Tribunal “a quo” de que um conflito existente nos contratos em causa nos autos no que respeita à competência territorial interna afecta a competência internacional dos Tribunais portugueses, no que não se concede e apenas por mera hipótese académica se coloca, então sempre se dirá que os pactos de jurisdição insertos nos contratos em causa nos autos são inválidos, na medida em que não se verificam todos os requisitos do n.º 3 do artigo 94.º do CPC.
15ª Na verdade, a eleição do foro de Lérida, Espanha, não é justificado por um interesse sério de uma das partes, à luz do que vem sido entendido pela jurisprudência nesta matéria.
16ª No seguimento do que é defendido pelo Acórdão STJ de 05-11-1998 (BMJ, 481.º-416, e Col. Jur./STJ, 1997, 2.º-122), dirimir o conflito em causa nos autos em Espanha, dificulta, atrasa e onera imensamente a discussão do litígio em causa e a exequibilidade de uma eventual sentença favorável à aqui Recorrente.
17ª No presente caso, as partes, para além de estipularem em ambos os contratos a competência internacional dos Tribunais portugueses, fizeram estipulações quanto à competência territorial interna destes.
18ª Sendo que no contrato de compra e venda de acções as partes fixaram o Tribunal do Peso da Régua como tribunal competente e no acordo parassocial estipularam o Tribunal do Porto, pelo que, em limite, existirá um conflito positivo de competência interna territorial, nos termos do nº 2 do artigo 109.º do CPC – i.e., entre os tribunais portugueses do Peso da Régua e do Porto.
19ª A existência de um conflito interno territorial jamais pode determinar a invalidade de um pacto de jurisdição no que respeita à competência internacional.
20ª Nos termos do artigo 82º n.º 2 do C.P.C. havendo cumulação de pedidos, o autor pode escolher qual o foro competente.
21ª A Recorrente escolheu o Tribunal do Peso da Régua para intentar a presente demanda, porém, uma vez que, atendendo ao valor da acção, esta tem que ser tramitada por uma instância central e o Tribunal do Peso da Régua não dispõe de tal secção, então o Tribunal competente em razão do valor e do território é o Tribunal de Vila Real.
22ª Caso assim não se entenda, ou seja, caso se entenda que estamos perante um conflito de foros territoriais competentes, o que só por mera hipótese académica se coloca, então teremos que nos socorrer das normas supletivas legais.
23ª Sendo certo que, nos termos do artigo 71º n.º 1 do C.P.C., o Tribunal competente para dirimir o litígio em causa nos autos é o Tribunal do domicílio dos Recorridos, ou seja, o Tribunal ora recorrido.
24ª Mesmo que se entendesse que o Tribunal de Vila Real é territorialmente incompetente, no que não se concede, nunca essa incompetência foi suscitada pelos Recorridos, sendo certo que, nos termos do artigo 104º n.º 1 al. a) do C.P.C., a contrario, tal incompetência nunca seria de conhecimento oficioso.
25ª Caso ocorresse uma incompetência territorial, então esta sempre teria como consequência o disposto pelo artigo 105º n.º 3, ou seja, sempre haveria lugar à denominada translatio judicii para o Tribunal do Porto.
26ª A sentença em crise viola, entre o mais, o dispostos pelos artigos 59º, 62º, 71º n.º 1, 82º n.º 2 e 94º n.º1, 2 e 3 todos do C.P.C., bem como o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 de 12 de Dezembro, motivo pelo qual deverá ser revogada e substituída por outra que declare que o Tribunal de Vila Real é absolutamente competente para dirimir o conflito em causa nos autos.

Não houve contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber quais os Tribunais competentes para tramitar esta acção: se os portugueses, se os espanhóis.

III
A decisão recorrida argumenta assim:

Assim, e compulsados devidamente os autos, designadamente, e com especial acuidade, os originais dos contratos juntos, dos quais constam as respectivas traduções, verifica-se o seguinte:

a) No tocante ao contrato de compra e venda de acções, estipulou-se a seguinte cláusula (Quarta): “Para qualquer dúvida, questão ou diferença que surja na interpretação, cumprimento e execução do presente contrato, as partes, com renúncia expressa a qualquer foro que lhes possa corresponder, submetem-se expressa e indistintamente à competência e jurisdição dos julgados e tribunais da cidade de Lérida (Espanha) enquanto sede da entidade compradora, que lhe correspondem em razão da matéria, e à competência e jurisdição dos julgados e tribunais de Portugal (Peso da Régua), sem prejuízo de que se tenha de aplicar normativa comercial portuguesa em determinados aspectos relativos ao contrato, e sem prejuízo dos assuntos em que seja imperativa a competência e jurisdição portuguesa, à qual se deverá submeter se for o caso” (vd. fls. 477verso).
Por sua vez;
b) No tocante ao invocado acordo parassocial, as partes convencionaram a seguinte cláusula (Quinta): “Para qualquer dúvida, questão ou diferença que surja na interpretação, cumprimento e execução do presente contrato, as partes, com renúncia expressa a qualquer foro que lhes possa corresponder, submetem-se expressa e indistintamente à competência e jurisdição dos julgados e tribunais da cidade de Lérida (Espanha) enquanto sede da entidade compradora, que lhe correspondem pela razão e matéria, e à competência e jurisdição dos julgados e tribunais de Portugal (Porto), por ser a sociedade portuguesa, sem prejuízo de que se tenha de aplicar normativa comercial portuguesa em determinados aspectos relativos ao contrato, e sem prejuízo dos assuntos em que seja imperativa a competência e jurisdição portuguesa, à qual se terá de submeter se for o caso” (vd. fls. 375 verso).
Ademais, e conforme expressamente alegado na petição inicial, “ambos os contratos (de compra e venda e parassocial) assumiram um carácter indissociável e de interdependência um do outro, sendo que em ambos os contratos existe um vínculo traduzido no facto de a validade e vigência de um contrato depender da validade e vigência do outro, sendo cada um essencial ao outro” – cf. artigos 11º e 12º [aqui transcrito] da petição inicial e ponto III de fls. 373.
Ora, interpretando devidamente os aludidos contratos, facilmente se constata que o princípio estabelecido de indissociabilidade e interdependência choca com a discrepância de clausulados atributivos da competência para a eventualidade de verificação de um litígio.
Com efeito, se num contrato se atribui competência aos tribunais da cidade de Lérida em Espanha e de Peso da Régua em Portugal, já no outro se atribui aos mesmos tribunais espanhóis, mas, concomitantemente, aos tribunais portugueses do Porto.
Assim sendo, apreciada a acção na sua globalidade, vistos os pedidos formulados, relativos a ambos os contratos, e dada a sua indissociabilidade, é de concluir que nenhum dos tribunais portugueses a que as partes atribuíram competência (num e outro contrato), podem, só por si, apreciar as vicissitudes ocorridas em ambos os contratos.
Ao invés, tal não sucede no caso dos tribunais da cidade de Lérida, visto que as partes convencionaram, em qualquer dos contratos a sua competência.
Por conseguinte, face ao modo como foi configurada a acção, à natureza dos pedidos formulados, e bem assim à interligação contratual existente do ponto de vista substantivo, é nosso entender que a apreciação da mesma apenas poderá fazer-se no tribunal que tenha competência convencionada para a análise de ambos os contratos, isto é, os tribunais espanhóis da cidade de Lérida.
Face ao exposto, não estando nós perante matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses (artigo 63º do CPC, a contrario), julgo este Juízo Central Cível de Vila Real absolutamente incompetente para a apreciação da presente acção, por preterição das convencionadas regras de competência internacional, atento o disposto nos artigos 95º e 96º a 99º do CPC.
Consequentemente, e ao abrigo do disposto nos artigos 576º, nº1 e 2, e 577º, al. a), do CPC, face à verificação de uma excepção dilatória, absolvo os réus da instância”.

IV

Conhecendo do recurso.
Está em discussão saber em que foro deve ser tramitada a presente acção: se no foro português, se no foro espanhol.
Pensamos poder começar por dizer, acompanhando Lebre de Freitas (CPC anotado, 3ª edição, fls. 122), que “quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção”.

Como se explicou no Acórdão desta Relação de Guimarães de 9/6/2016 (Relatora: Purificação Carvalho): I. A competência é aferida em relação ao objecto da acção tal como é apresentada pelo autor na petição inicial; II. Na ordem jurídica portuguesa vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno. No entanto, quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu. III. O regime comunitário aplicável relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial está contido no Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, substituído a partir de 10 de Janeiro de 2015 pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012.

E o art. 25º do citado Regulamento permite que as partes celebrem pactos atributivos de jurisdição, ficando pressuposta, não constando acordo em contrário, a sua natureza como pactos privativos de jurisdição. Concretamente, no nº 1 desse artigo dispõe-se:

se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário (…).

Como se decidiu no Acórdão do STJ de 13 de Novembro de 2018 (Relator- Cabral Tavares), “a jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ) é clara quanto ao entendimento de que a noção de pacto atributivo de jurisdição (art. 23º do Regulamento 44/2001; art. 25º do Regulamento 1215/2012) é autónoma, relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro – a validade do pacto de jurisdição deve ser, exclusivamente aferida (preenchida) à luz da própria disposição do Regulamento, ficando excluída a convocação, no caso e designadamente, do art. 94.º CPC e do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25 de Outubro). Este ponto tem sido reiteradamente assinalado na jurisprudência deste tribunal (ASTJ, de 31.4.2016, 17.3.2016, 4.2.2016, 26.1.2016 e de 11.2.2015, todos publicados, bem como os adiante referidos, em www.dgsi.pt). Isso mesmo, genericamente, «decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (v., nomeadamente, acórdão de 27 de Junho de 2013, Malaysia Dairy Industries, C-320/12, nº 25 e jurisprudência referida)» (ATJ, de 5.12.2013, Vapenik v. Thurner, C-508/12, EU:C:2013:790, nº 23).

Sem prejuízo, a nível de direito interno, o regime jurídico nesta matéria começa no art. 59º CPC, que dispõe: “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”.

O artigo 62º consagra os elementos de conexão que permitem atribuir a competência internacional aos tribunais portugueses, e o art. 63º elenca aqueles que dão aos tribunais portugueses competência exclusiva.

O art. 94º CPC, sob a epígrafe “Pactos privativo e atributivo de jurisdição”, dispõe:

1- As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
2- A designação convencional pode envolver a atribuição de competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida.
3- A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
b) Ser aceite pela lei do tribunal designado;
c) Ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;
d) Não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
e) Resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.
4- Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham directamente o acordo quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.

O nº 2 do normativo citado permite às partes atribuir competência exclusiva ou meramente alternativa com a dos tribunais portugueses, quando esta exista, presumindo-se que seja exclusiva em caso de dúvida. E não vemos que, neste caso concreto, haja divergência entre o regime constante do Regulamento (UE) e o teor deste art. 94º.

Ora, supomos não haver dúvidas que foi o que as partes fizeram.

a) No contrato de compra e venda de acções, estipularam a seguinte cláusula (Quarta): “Para qualquer dúvida, questão ou diferença que surja na interpretação, cumprimento e execução do presente contrato, as partes, com renúncia expressa a qualquer foro que lhes possa corresponder, submetem-se expressa e indistintamente à competência e jurisdição dos julgados e tribunais da cidade de Lérida (Espanha) enquanto sede da entidade compradora, que lhe correspondem em razão da matéria, e à competência e jurisdição dos julgados e tribunais de Portugal (Peso da Régua), sem prejuízo de que se tenha de aplicar normativa comercial portuguesa em determinados aspectos relativos ao contrato, e sem prejuízo dos assuntos em que seja imperativa a competência e jurisdição portuguesa, à qual se deverá submeter se for o caso” (vd. fls. 477verso).
b) No acordo parassocial, convencionaram a seguinte cláusula (Quinta): “Para qualquer dúvida, questão ou diferença que surja na interpretação, cumprimento e execução do presente contrato, as partes, com renúncia expressa a qualquer foro que lhes possa corresponder, submetem-se expressa e indistintamente à competência e jurisdição dos julgados e tribunais da cidade de Lérida (Espanha) enquanto sede da entidade compradora, que lhe correspondem pela razão e matéria, e à competência e jurisdição dos julgados e tribunais de Portugal (Porto), por ser a sociedade portuguesa, sem prejuízo de que se tenha de aplicar normativa comercial portuguesa em determinados aspectos relativos ao contrato, e sem prejuízo dos assuntos em que seja imperativa a competência e jurisdição portuguesa, à qual se terá de submeter se for o caso” (vd. fls. 375 verso).

Da leitura destas estipulações resulta que as partes quiseram atribuir competência alternativa quer ao foro português, quer ao espanhol, o que é inteiramente legítimo, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, em anotação ao art. 94º CPC, permitindo que o autor opte pela instauração em tribunal nacional de acção que em princípio seria da competência de Tribunal de outro estado e vice-versa.

A autora, agindo ao abrigo desse pacto atributivo de jurisdição, e optando entre as duas alternativas que as partes previram, escolheu intentar a acção em tribunal português.

O Tribunal recorrido afastou a vontade legitimamente expressa das partes, considerando o Juízo Central Cível de Vila Real absolutamente incompetente para a apreciação da presente acção, com fundamento em preterição das convencionadas regras de competência territorial, atento o disposto nos artigos 95º e 96º a 99º do CPC.

Ou seja, para afastar o pacto atributivo de jurisdição aos tribunais portugueses, o Tribunal recorrido foi analisar o acordo das partes em matéria de competência em razão do território, regulado no art. 95º CPC.

Nos termos desse artigo, as regras de competência em razão da matéria, da hierarquia e do valor da causa não podem ser afastadas por vontade das partes, mas já podem afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 104º.

E o Tribunal a quo, partindo do princípio de que, tal como alegado na petição inicial, “ambos os contratos (de compra e venda e parassocial) assumiram um carácter indissociável e de interdependência um do outro, sendo que em ambos os contratos existe um vínculo traduzido no facto de a validade e vigência de um contrato depender da validade e vigência do outro, sendo cada um essencial ao outro”, constatou que o princípio estabelecido de indissociabilidade e interdependência choca com a discrepância de clausulados atributivos da competência para a eventualidade de verificação de um litígio.

Explicando melhor, diz o Tribunal a quo que “se num contrato se atribui competência aos tribunais da cidade de Lérida em Espanha e de Peso da Régua em Portugal, já no outro se atribui aos mesmos tribunais espanhóis, mas, concomitantemente, aos tribunais portugueses do Porto”. E assim, continua a decisão, “apreciada a acção na sua globalidade, vistos os pedidos formulados, relativos a ambos os contratos, e dada a sua indissociabilidade, é de concluir que nenhum dos tribunais portugueses a que as partes atribuíram competência (num e outro contrato), podem, só por si, apreciar as vicissitudes ocorridas em ambos os contratos.

Ou seja, a decisão recorrida afastou a aplicabilidade do pacto de jurisdição que permitia ao autor escolher se intentava a acção em tribunal português ou espanhol, com fundamento no pacto de competência interna que apontava para a competência de dois tribunais portugueses diferentes, num caso Peso da Régua, no outro, Porto.
A recorrente começa por negar que se possa defender o entendimento de que “um conflito existente nos contratos em causa nos autos no que respeita à competência territorial interna possa afectar a competência internacional dos Tribunais portugueses”.
Acrescenta ainda o seguinte argumento: sendo verdade que no contrato de compra e venda de acções as partes fixaram o Tribunal do Peso da Régua como tribunal competente e no acordo parassocial estipularam o Tribunal do Porto, no limite, existirá um conflito positivo de competência interna territorial, nos termos do art. 109º,2 CPC, entre os tribunais portugueses do Peso da Régua e do Porto. E a existência de um conflito interno territorial jamais pode determinar a invalidade de um pacto de jurisdição no que respeita à competência internacional. O que sucede é que, nos termos do artigo 82º,2 CPC, havendo cumulação de pedidos, o autor pode escolher qual o foro competente.
A recorrente apresenta ainda outros argumentos, mas vamos já parar por aqui, porque nos parece evidente que lhe assiste total razão.

O que o Tribunal recorrido fez foi utilizar o pacto determinador da competência territorial interna -que apontava para dois tribunais territorialmente diferentes- que as partes também subscreveram, para daí excluir a competência convencional internacional dos tribunais portugueses.

Porém, lendo com atenção o art. 94º CPC, nele não vislumbramos essa situação como uma das causas de invalidade do pacto de jurisdição. Os requisitos a que a eleição do foro tem de obedecer para ser válida são tão só os previstos nas cinco alíneas do nº 3, e nenhuma delas abarca questões de competência territorial interna (1).

Acresce que, por maioria de razão, o art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, também não permite invalidar o pacto com o fundamento invocado pelo Tribunal recorrido.

Finalmente, lendo a contestação dos réus, verificamos que estes apenas excepcionaram a incompetência absoluta do Tribunal, dizendo que por força do pacto celebrado, são os tribunais espanhóis os competentes para conhecer desta acção (arts. 1º a 7º daquela peça). Não arguiram a excepção da incompetência territorial do tribunal, a qual, por força do disposto no art. 104º,1,a a contrario CPC, não pode ser conhecida oficiosamente neste caso. Como aliás também a recorrente refere, e bem nas suas conclusões de recurso 24ª e 25ª.

E, afirma ainda a recorrente, e bem, que, “caso ocorresse uma incompetência territorial, então esta sempre teria como consequência o disposto pelo artigo 105º n.º 3, ou seja, sempre haveria lugar à denominada translatio judicii para o Tribunal do Porto”.

Assim, aqui chegados, só nos resta concluir que assiste razão à recorrente, pois o Tribunal recorrido desaplicou o pacto de jurisdição alcançado pelas partes, o que não podia fazer pois o mesmo é válido, e fê-lo conhecendo de questão que não era de conhecimento oficioso. E mesmo que se entendesse que o tribunal podia conhecer ex officio da questão da incompetência territorial, por violação do pacto de competência celebrado, a consequência nunca seria a da incompetência absoluta dos tribunais portugueses, nem a absolvição dos réus da instância, mas sim a remessa dos autos ao Tribunal competente (art. 105º,3 CPC), o Tribunal da área da Comarca do Porto.

Assim, terminamos com a mesma nota com que começámos: “quando isso não comprometa o interesse público na administração da justiça, há que atender ao interesse das partes na determinação do foro competente para o julgamento da acção”.

Daí, a conclusão a que chegamos é a de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da presente acção, por força do art. 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e do art. 94º,2 CPC.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência revoga a decisão recorrida, julgando improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, declarando os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer da presente acção.

Custas pelos recorridos (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 19/9/2019

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1 - A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: a) dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis; b) ser aceite pela lei do tribunal designado; c) ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra; d) não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; e) resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.