Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
643/11.7GBGMR-B.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: RECOLHA AMOSTRAS CONDENADOS
REGIME LEGAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
APLICAÇÃO DA LEI ANTIGA
ARTºS 5º
Nº 1
DO CPP E 12º
DO CPC E LEI 5/2008
DE 12.02
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- No âmbito da aplicação da lei no tempo em direito processual penal rege o nº1 do artigo 5º do CPP, pelo que constitui princípio geral de que a lei, como qualquer lei, só dispõe para o futuro - artigo 12º do C. Civil - mas, sendo assim, a lei nova é de aplicação imediata aos processos e aos atos processuais que sejam praticados após a sua entrada em vigor, ainda que o processo tenha iniciado antes. Acresce que, ainda dentro do mesmo principio, ficam ressalvados os atos praticados e as situações ocorridas no domínio da lei antiga.
II- Na ausência de norma transitória que resolva os termos da aplicação da lei no tempo aos processos pendentes funciona aquele princípio geral de aplicação imediata da lei nova (tempus regit actum), o qual tem três limites, a saber: 1º- Manutenção da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior; 2º- Não aplicação imediata da lei nova se da sua aplicação resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido; 3º- Não tem lugar se da sua aplicação resultar quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo.
III- No caso vertente está em causa saber qual a versão da Lei nº Lei 5/2008 de 12.02 - diploma que aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal - deverá ser aplicada, a saber: a versão vigente no momento em que o processo foi instaurado e que se encontrava em vigor no momento em que poderia ou deveria ter sido aplicada, ou a lei nova atualmente em vigor (Lei nº 90/2017, de 22.08) cuja vigência coincide ainda com o tempo processual antes de o processo findar.
IV- Para efeito de recolha de amostra de ADN, no caso sub judice, é de aplicar a lei antiga, porquanto da aplicação da lei nova resultariam efeitos retroativos, ou seja, a aplicação a atos já praticados antes do inicio da sua vigência, quando o princípio geral é antes a da aplicação imediata da lei nova aos processos pendentes, mas com expressa salvaguarda da validade dos atos praticados na vigência da lei anterior.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum singular nº 643/11.7GBGMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães, em que é arguido J. O., com data de 08.11.2019, foi proferido despacho judicial pelo qual foi indeferida, por intempestiva, a promoção do M.P., em que se promovia, ao abrigo do disposto no artigo 8.º/2 da Lei 5/2008, de 12.02, na sua versão inicial, a recolha de amostra de ADN do arguido, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados.
2. Não se conformando com tal despacho, o M.P. dele interpôs recurso, tendo concluído nos seguintes termos [transcrição]:
1. Nos presentes autos, o arguido J. O. foi condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período, não se tendo determinado, em sede de sentença, a recolha de amostra ao arguido e a inserção do perfil de ADN na respetiva base de dados.
2. Através do despacho recorrido, o Tribunal a quo recusou ordenar aquela recolha e inserção do perfil de ADN, com fundamento na atual redação do art.° 8.º/2 da Lei 5/2008, que determina que tal decisão seja tomada na sentença.
3. O art.º 8°/2 da Lei 5/2008 só passou a exigir que a recolha de amostra e a inserção do perfil de ADN seja ordenada na sentença, após as alterações introduzidas pela Lei 90/2017.
4. À data da prolação da sentença (2013), vigorava a redação original do 8°/2 da Lei 5/2008, que exigia que essa recolha e inserção fosse ordenada após o trânsito em julgado da sentença.
5. A aplicação imediata da Lei 90/2017 aos processos cujas sentenças foram proferidas antes da sua entrada em vigor quebra a harmonia entre a sentença e os atos posteriores, na medida em que se passa a exigir às sentenças o cumprimento de requisitos que, à data da sua prolação, só podiam ser satisfeitos através de atos posteriores às mesmas sentenças.
6. Assim sendo e nos termos do art.° 5/2, al. b), do Código de Processo Penal, impõe-se a aplicação da redação original do art.° 8°/2 da Lei 5/2008, devendo-se ordenar, portanto, a recolha da amostra e a inserção de perfil de ADN peticionada pelo Ministério Público.
7. Mesmo que assim não se entenda, a alteração introduzida pela Lei 90/2017 pretendeu resolver as dúvidas que se tinham suscitado na jurisprudência sobre o carácter obrigatório e automático de tal decisão, determinando que a recolha e a inserção “é sempre ordenadas, de forma a instituir e manter uma efectiva base de dados de perfis de ADN para efeitos, entre outros, de investigação criminal (art.° 1°/1 da Lei 5/2008).
8. Neste contexto histórico e teleológico, a circunstância do despacho cumpridor do art.° 8°/2 da Lei 5/2008 (redação atual) estar ou não inserido uma sentença é secundário, uma vez que o crucial é cumprir a obrigação legal de recolha e inserção do perfil de ADN, não o momento em que esse cumprimento é satisfeito.
9. Assim, a exigência legal de prolação da decisão em sede de sentença tem um valor meramente ordenador, não preclusivo da possibilidade de tomada posterior da decisão que é legalmente obrigatória e automática.
10. Mesmo que assim não se entenda, sempre será de corrigir a sentença, de modo a fazê-la incluir a decisão obrigatória/automática, nos termos do art.° 380° do Código de Processo Penal, tal como se decidiu no Ac. do TRC de 02/20/2019, proferido no proc. 269/1 6.9GAACB-A.C1.

Termos em que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por decisão que decida a recolha de ADN ao arguido assim se fazendo Justiça.

3. O recurso foi admitido.
4. O arguido não respondeu ao recurso.
5. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi de parecer que o recurso deverá ser julgado procedente.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.Penal, mas não foi apresentada qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal.
Assim, e tendo presente o disposto no nº 1 do artigo 412º do C.P.P., face às razões de discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, temos que a questão a decidir reconduz-se a um problema de aplicação da lei no tempo e consiste em saber se, para efeitos de recolha de amostra de ADN de arguido condenado com vista à inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, qual a versão da Lei n.º 5/2008, de 12.02 deverá ser aplicada.

2. A decisão recorrida

2.1- O despacho recorrido tem o seguinte teor [transcrição]:
--- Ao contrário do defendido pelo Ministério Público, entendemos que a Lei n.º 90/2017 de 22 de agosto que, entre o mais, procedeu à segunda alteração à Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, que aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, é aplicável aos presentes autos. ---
--- Cremos que, em termos de aplicação da lei no tempo, só é de entrar em linha de conta com as regras operativas do art.º 12.º do CC, no caso de a nova lei não conter disposições transitórias, que expressa e especificadamente, estatuam sobre a matéria em causa. No caso, aquela Lei n.º 90/2017 de 22 de agosto prescreve no seu art.º 5.º as disposições transitórias, das quais se pode, quanto a nos, extrair a conclusão da aplicabilidade daquela lei aos presentes autos. ---
--- Assim e de acordo com o que tem sido entendido no âmbito de outros processos similares, dispõe o art.º 380.º n.º 1 do CPP que: “O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando: a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.”. ---

--- Por seu turno, reza o art.º 374.º do CPP que:

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.

4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.”. ---
--- Assim, tendo em atenção tais preceitos legais, entendemos que o cumprimento do disposto no art.º 8.º n.º 1 da Lei 5/2008, não cabe naqueles. Isto é, a ordem de recolha de amostra com vista a obtenção do seu perfil de ADN não compreende um caso de aplicação do art.º 380.º do Código de Processo Penal. ---
--- Ora, dispõe o art.º 8.º n.º 2 da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro que “A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença.”. ---
--- Deste modo, de acordo com tal dispositivo legal, o momento em que é ordenada a recolha de amostra é na sentença. Nos autos a sentença foi proferida em 04.04.2013 e transitou em julgado em 02.12.2013, pelo que, nesta fase, cremos que o promovido é intempestivo. ---
--- Pelo exposto, indefere-se o promovido por ser intempestivo. ---
--- Notifique. ---

3. Apreciação do recurso

A questão essencial a decidir nos presentes autos, como acima se fez notar, reconduz-se a um problema de aplicação da lei no tempo, estando em causa saber qual a versão da Lei nº Lei 5/2008 de 12.02 - diploma que aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal - deverá ser aplicada, a saber: a versão vigente no momento em que o processo foi instaurado e que se encontrava em vigor no momento em que poderia ou deveria ter sido aplicada, ou a lei nova atualmente em vigor (Lei nº 90/2017, de 22.08) cuja vigência coincide ainda com o tempo processual antes de o processo findar.
No âmbito da aplicação da lei no tempo no direito processual penal rege o nº1 do artigo 5º do CPP, pelo que constitui princípio geral de que a lei, como qualquer lei, só dispõe para o futuro - artigo 12º do C. Civil - mas, sendo assim, a lei nova é de aplicação imediata aos processos e aos atos processuais que sejam praticados após a sua entrada em vigor, ainda que o processo tenha iniciado antes. Acresce que, ainda dentro do mesmo principio, ficam ressalvados os atos praticados e as situações ocorridas no domínio da lei antiga.
Porém, importar ter em atenção à distinção entre as normas processuais em sentido próprio e as normas processuais materiais. Quanto a estas últimas, como bem refere Henriques Gaspar (2), “Estas regulam espaços que têm que ver ainda com a dignidade penal do facto e com a dicotomia axiológica «lícito-ilícito», e não com a «admissibilidade-inadmissibilidade» dos atos, assumindo, por isso, uma dimensão material que as sujeita ao principio da legalidade e da consequente proibição de aplicação retroativa (pela referência à data do facto) de lei menos favorável”.
Na ausência de norma transitória que resolva os termos da aplicação da lei no tempo aos processos pendentes funciona aquele princípio geral de aplicação imediata da lei nova (tempus regit actum), o qual tem três limites, a saber: 1º- Manutenção da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior; 2º- Não aplicação imediata da lei nova se da sua aplicação resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido; 3º- Não tem lugar se da sua aplicação resultar quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo.

No caso vertente apenas relevam as normas processuais em sentido próprio, uma vez que está em causa a recolha de amostra de ADN do arguido condenado, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados. Trata-se de uma norma claramente de cariz processual em sentido próprio na medida em que determina o momento processual em que deverá proceder à recolha de amostra de ADN de arguido condenado, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados.
Os benefícios da criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal é indiscutível, como foi salientado pela Comissão encarregada de elaborar a proposta de regime jurídico de constituição de uma base de dados de perfis de ADN, em face dos resultados obtidos nos países onde, muitos anos antes de nós, foi criada um base de dados deste tipo “ têm amplamente evidenciado resultados positivos no que se refere à identificação de desaparecidos, identificação de delinquentes, exclusão de inocentes, interligação entre diferentes condutas criminosas, colaboração internacional em processos de identificação, contribuindo para dissuasão de novas infrações”, cfr. Acórdão TC n.º 155/2007, ponto nº 12.2.2.
No nosso país, pese embora a criação, em 2008, de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal (Lei nº 5/2008, de 12.02), depressa veio a concluir-se pela ineficácia do seu funcionamento devido, nomeadamente, ao reduzido número de perfiz de AND que nela eram inseridos. E, diga-se, neste particular, uma parte da jurisprudência ajudou que assim fosse, pois que chegou a defender-se, na versão inicial da Lei nº 5/2008, de 12.02, que a recolha da amostra de ADN de arguido condenado não era decorrência automática da condenação.
Assim, v.g., segundo o Ac. RL de 11.10.2011, processo nº 721/10.0PHSNT.L1-5, publicado em www.dgsi.pt, “I - A recolha de amostras de ADN, a que se refere o art.8, nº2, da Lei nº5/08, de 12-2, não é automática face a uma condenação transitada em julgado, pressupondo a existência de grave perigo de continuação criminosa ou outros receios relevantes que possam ou permitam inferir a necessidade daquela recolha e subsequente conservação; II - Determinando aquela recolha, a sentença deve fundamentar em concreto aquele perigo, de modo a convencer da sua necessidade e proporcionalidade”.
Contudo, julgamos que a orientação maioritária era a de que, uma vez verificados os requisitos formais do nº 2 do artigo 8º da Lei nº 5/2008, de 12.02, a recolha de amostra de ADN era obrigatória. Neste sentido, vide v.g. Ac. RL de 05.05.2015, processo nº 241/11.5JELSB.L1-5; Ac RE de 15.05.2012, processo nº 6/11.4TAPTG.E1; eAc RC de 19.12.2018, processo nº 279/16.6PBCTB.C1, todos publicados in www.dgsi.pt
No sobredito contexto, e reconhecendo os benefícios do funcionamento de uma base de dados de perfis de ADN, houve a necessidade de aperfeiçoar o regime da base de dados existente, em particular no que tange à recolha de amostras, no sentido do aumento do número de perfis de ADN da base de dados. E daí as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 40/2013, de 25.06 e pela Lei nº 90/2017, de 22.08, especialmente desta última.

Assim, no que concerne à questão que nesta sede nos ocupa, verifica-se que o artigo 8º, nºs 1 e 2 da Lei nº 5/2008, de 12.02, na redação originária, vigente à data da prolação da sentença, estatuía que:

«1 - A recolha de amostras em processo crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição do arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172º do Código de Processo Penal.
2 - Quando não se tenha procedido à recolha de amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída.»

Após as alterações introduzidas pela Lei nº 90/2017, de 22.08, o artigo 8º, nº1 e 2 da Lei nº 5/2008, de 12.02, passou a ter a seguinte redação:

«1 - A recolha de amostra em arguido em processo criminal pendente, com vista à interconexão a que se refere o n.º 2 do artigo 19.º-A, é realizada a pedido ou com consentimento do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento escrito, por despacho do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado. 2 - A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença

No caso vertente, o arguido foi condenado por sentença datada de 04.04.2013 e transitada em julgado em 02.12.2013, pela prática de um crime de furto, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Pese embora o artigo 8º, nº 2 da Lei nº 5/2008, de 12.02, na sua versão inicial, dizer expressamente que a recolha da amostra é ordenada mediante despacho, pelo juiz de julgamento, após o trânsito em julgado da sentença, e de sobre a data do transito em julgado da sentença já ter mais de cinco anos (considerado a data do despacho recorrido), o certo é que, no caso vertente, por razões que aqui não relevam, não se procedeu à recolha de amostra de ADN do arguido.
Entretanto, em 22.09.2017, entrou em vigor a Lei nº 90/2017, de 22.08, que alterou, nomeadamente o nº 2 do artigo 8º da Lei nº 5/2008, de 12.02, passando este a referir que a recolha de amostra de AND é ordenada na sentença, ou seja, numa altura em que a sentença dos autos já havia sido proferida.
Contrariamente ao que se refere no despacho recorrido, este diploma legal não contém qualquer norma transitória que nos permite concluir pela sua aplicação imediata aos processos pendentes e assim resolver expressamente a questão aqui em discussão, que é a de recolha de amostra de ADN do arguido condenado, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados.
Por isso, a questão em apreço tem de ser resolvida por via do disposto no atrás citado artigo 5º do CPP, do qual resulta, como vimos a aplicação imediata da lei nova, sem prejuízo dos três limites acima mencionados.
Ora, desde já se adianta que não é possível aplicar a lei nova, ou seja, a Lei nº 90/2017, de 22.08, no sentido de solucionar à questão em apreço, porquanto dela resultando que a recolha de amostra de ADN é ordenada na sentença, da sua aplicação decorreria a sua aplicação retroativa, ou seja, a atos já praticados antes do inicio da sua vigência, porquanto, aquando da sua entrada em vigor, a sentença havia sido proferida há mais de 4 anos.
Acontece que a lei não prevê e, por isso, não consente, a aplicação retroativa da lei processual penal em sentido próprio. A regra é antes a da aplicação imediata da lei nova aos processos pendentes, mas com expressa salvaguarda da validade dos atos praticados na vigência da lei anterior.
No caso, a aplicação imediata da lei nova determinaria a invalidade da sentença proferida (3), quando é certo que a mesma, para além de ter respeitado todas as normas em vigor na data em que foi proferida, há muito tempo transitou em julgado.
De forma que a única conclusão legalmente admissível, por deixar intocada a sentença proferida, é a aplicação da lei antiga, que previa que o juiz de julgamento, após trânsito em julgado da sentença, por despacho, ordenasse a recolha da amostra de ADN do arguido, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados.
Note-se que da aplicação da lei antiga – que poderia e deveria ter sido aplicada anteriormente, mesmo antes da entrada em vigor da lei atualmente em vigor - não resulta sequer violação do princípio de que a lei nova é a que melhor e mais atualizadamente satisfaz o interesse público prosseguido pelas normas (princípio que está na base e que fundamenta a aplicação imediata da lei processual penal).
É que a aplicação de ambas as normas (lei nova e lei antiga) conduzem ao mesmo resultado, ou seja, à recolha da amostra de ADN do arguido, com vista à inserção dos respetivo perfil na base de dados, sendo diferentes apenas quanto ao momento de o fazer, tendo agora ficado claro, para quem anteriormente tivesse dúvidas, que a recolha da amostra é automática e obrigatória, sendo decorrência da condenação pela prática de crime doloso em pena de prisão igual ou superior a três anos, ainda que substituída.
Acresce dizer que a constitucionalidade do artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12.02, na redação dada pela Lei n.º 40/2013, de 25.06, foi afirmada pelo TC no seu Ac. nº 333/2018.
Outrossim, por forma diversa do referido no despacho recorrido, nunca a aplicação da lei nova poderia ser recusada por ser intempestiva, mas apenas porque importa salvaguardar a validade dos atos praticados anteriormente, no caso a sentença proferida na vigência da lei antiga.
Por conseguinte, impõe-se revogar o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a recolha de amostra de ADN do arguido, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados, ao abrigo do disposto no artigo 8º, nº 2 da Lei nº 5/2008, de 12.02, na versão anterior à que lhe foi introduzida pela Lei nº 90/2017, de 22.08.
Em suma, o presente recurso deverá ser julgado procedente.

III- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo M.P. e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a recolha de amostra de ADN do arguido, com vista à inserção do respetivo perfil na base de dados, ao abrigo do disposto no artigo 8º, nº 2 da Lei nº 5/2008, de 12.02, na versão anterior à que lhe foi introduzida pela Lei nº 90/2017, de 22.08.
Sem custas
Notifique
Guimarães, 13.07.2020
(Texto integralmente elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo)
(Clarisse Machado S. Gonçalves)


1. De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal, no que para o caso em apreciação poderia relevar estão apenas as irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. In Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 31.
3. Repare-se que a situação é diferente da que ocorre quando, em pela vigência da Lei nº 5/2008, de 12.02, na versão que lhe foi introduzida pela Lei nº 90/2017, na sentença é omitido o cumprimento do disposto no artigo 8º, nº 2. Neste caso, a jurisprudência tem seguido a posição segundo a qual a sentença pode ser corrigida ao abrigo do disposto no artigo 380º do CPP. Nesse sentido, vide v.g. Ac RG de 26.02.2020, processo 468/16.3GAPER-A.G1; e Ac RC 20.02.2019, processo 269/16.9GAACB-A.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.