Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
931/13.8TBVCT.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
DECLARAÇÃO
FALSAS DECLARAÇÕES
ANULABILIDADE
CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: I – O tomador do seguro está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo segurador, ainda que as mesmas não sejam solicitadas em questionário fornecido pelo segurador - art. 24º, nºs 1 e 2, do novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (LCS).
II - Contrariamente ao que sucedia com o revogado artigo 429º do Código Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre inequivocamente do nº 1 do art. 25º da LCS.
III – Não obsta à existência de falsas declarações prestadas pelo segurado, a circunstância de ter sido um funcionário do banco tomador do seguro a preencher o questionário clínico fornecido pela seguradora e assinado pelo segurado.
IV - A anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS não exige a verificação de um nexo de causalidade entre as declarações emitidas e a doença que vitimou o segurado.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO
G... e C... instauraram acção declarativa, com processo sumário, contra Crédito seguradora A... pedindo que a ré seja condenada a pagar aos autores ou ao Crédito banco B...a quantia de € 5.284,81 ou a quantia que se apurar ser devida pela autora e falecido marido à data do óbito deste, referente ao empréstimo por eles contraído junto da dita instituição bancária.
Fundamentando a sua pretensão, alegaram os autores serem, respectivamente, viúva e filho de Manuel ..., o qual faleceu em 17 de Maio de 2012, sendo que em 16 de Agosto de 2005, a autora e o falecido marido contraíram um empréstimo junto de B..., no montante de € 11.000,00, tendo o banco, como condição para a concessão do empréstimo, obrigado aqueles a aderir a um contrato de seguro de vida tipo com a ré, a fim de garantir o reembolso daquele empréstimo, contrato de seguro de crédito pessoal que aqueles celebraram.
Em 13 de Dezembro de 2010, a autora e o falecido marido solicitaram ao banco um aumento do prazo para pagamento do empréstimo concedido, proposta que foi aceite, tendo sido renovado o contrato de seguro.
Em 17 de Maio de 2012, o marido da Autora faleceu de adenocarcinoma gástrico, tendo a autora solicitado à ré que procedesse ao pagamento do empréstimo pessoal que estava em dívida, no montante de € 5.284,81, o que aquela se recusou a fazer invocando a prestação de declarações inexactas por parte do falecido sobre a doença que lhe causou a morte, o que é completamente falso.
A ré contestou, alegando que o falecido aquando da subscrição da adesão ao seguro protecção crédito pessoal, em 02/02/2011, omitiu deliberada e intencionalmente que sofria de dislipidémia (colesterol e triglicéridos elevados), ácido úrico elevado e gama gt elevados (fígado gordo), assim como valores elevados de enzimas hepáticas TGO, TGP e GGT), declarando que gozava de boa saúde, comportamento que foi doloso, uma vez que, atentas as informações e advertências que lhe foram prestadas, o falecido Manuel sabia que tinha de informar e declarar com verdade ao que lhe era perguntado pela ré sobre a sua situação clínica. A referida omissão influiu na avaliação do risco efectuado pela ré e constituiu um pressuposto falso sobre a qual esta decidiu contratar com o falecido, aceitando em erro a inclusão deste no contrato de seguro dos autos, sendo que se a ré soubesse da situação clínica do falecido não tinha celebrado com o mesmo o contrato de seguro em causa.
Houve réplica, contrapondo os autores que o seu falecido marido e pai estava convencido, quando celebrou o contrato de seguro, que não tinha qualquer doença, e que a declaração individual de adesão e respectivo questionário clínico foram preenchidos pelo funcionário do banco sem que alguma explicação tenha sido dada à autora e ao falecido marido, que se limitaram a assinar tais documentos.
Concluíram pedindo que fosse julgada improcedente a excepção invocada pela ré e procedente a acção logo no despacho saneador.
Foi proferido despacho saneador, onde se decidiu deverem os autos prosseguir para apuramento da factualidade controvertida, tendo-se o Tribunal abstido de fixar a base instrutória, face à simplicidade da causa.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar a acção procedente, declarando-se a validade e eficácia do contrato de seguro dos autos e condenando-se a ré a pagar à C a quantia que se apurar estar em dívida no contrato de empréstimo celebrado entre a autora e o falecido marido e aquele, e que à data do óbito de Manuel era de € 5.284,81.
Inconformada, a ré apelou do assim decidido, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões (transcrição):
«I. Ao contrato em causa nos presentes autos, celebrado em 2011 (não confundir com um contrato anterior, com início em 31.08.2005 e termo em 31.08.2010), aplica-se o disposto nos artigos 24.° e 25.° do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, cujo teor consta também das cláusulas 5.ª e 6.ª das Condições Gerais da Apólice, e que constava igualmente do documento subscrito pelo falecido Manuel no momento da sua adesão ao contrato de seguro de grupo em causa, e que o mesmo, antes de se vincular, declarou conhecer.
II. O falecido Manuel respondeu falsamente a diversas questões que constavam dos formulários cujo preenchimento foi solicitado pela Recorrente como condição para a adesão ao seguro de grupo, e fê-lo de forma dolosa, na aceção do termo constante do art.° 253.°, n.º 1 do Código Civil.
III. Ao contrário do que sucede com o incumprimento da declaração inicial de risco por negligência, regulado no art.° 26.° do referido RJCS, o incumprimento da declaração inicial de risco com dolo, regulado no art.º 25.° do mesmo RJCS, não exige a verificação de nexo causal entre as falsas declarações iniciais e o sinistro.
IV. Tendo o falecido Manuel prestado falsas declarações de forma dolosa no momento da celebração do contrato de seguro em causa nos presentes autos, em violação do disposto no art.° 24.° do RGCS, deverá tal contrato ser considerado nulo nos termos dos artigos 25.°, n.ºs 1 e 3 do RGCS e 287.° do Código Civil.
V. Ao decidir como decidiu, o Tribunal II quo violou, designadamente, o disposto nos artigos 24.° e 25.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril e os artigos 227.°, 247.°, 251.° e 253.°, n.º 1, e 287.º do Código Civil.»
Os autores contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do julgado.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a questão essencial decidenda respeita ao saber se o contrato de seguro ramo vida outorgado pela ré com a autora e falecido marido desta é nulo, por este último ter dolosamente prestado falsas declarações aquando da outorga do contrato.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
a) Em 16 de Agosto de 2005, a Autora e o falecido marido Manuel contraíram um empréstimo junto do banco B, agência de Viana do Castelo, no montante de € 11.000,00.
b) Nessa altura, como condição para a concessão do empréstimo, o B exigiu à Autora e ao seu falecido marido a adesão a um contrato de seguro de vida a fim de garantir o reembolso daquele empréstimo.
c) Para o referido fim, foi celebrado entre a Autora e o seu falecido marido e a Ré A contrato de seguro de vida denominado “Protecção Crédito Pessoal”, com a apólice nº 6031420.001284, nele constando como tomador do seguro: CCAM Alto Minho; Objecto do seguro: Protecção Crédito Pessoal; Pessoas Seguras: 1. Manuel Silva Leitão e 2. Glória de Lurdes de Castro Botelho Leitão; Adesão nº 291; Capital Seguro: € 11.000,00; Início: 31.08.2005 e termo 31.08.2010; Coberturas: morte ou invalidez total e definitiva; beneficiários: CCAM Alto Minho, pelo montante em dívida à data de ocorrência do risco coberto pela apólice...”
d) Em 31 de Agosto de 2005, foi entregue pela Ré ao falecido Manuel Silva Leitão, através de carta, um “Certificado Individual de Seguro”.
e) Em 13 de Dezembro de 2010, a Autora e o falecido marido solicitaram, por carta dirigida à CCAM do Noroeste, agência de Viana do Castelo, “...um aumento do prazo para pagamento do empréstimo nº 56033063415 em quatro anos, para que o valor da prestação seja aproximado dos € 200,00 mensais...”
f) O CCAM aceitou a proposta, tendo sido renovado o seguro de crédito, pela apólice nº 6031420-001284, nele constando como tomador do seguro: B...; Objecto do seguro: Protecção Crédito Pessoal; Pessoas Seguras: 1. Manuel...; 2. G...; Apólice nº 6031420.001...; Capital Seguro: 7.500,00; Início:2011/02/03 e termo 2015/02/17; Coberturas: morte ou invalidez total e definitiva; Beneficiários: B, pelo montante em dívida à data de ocorrência do risco coberto pela apólice...”.
g) O falecido Manuel assinou, em 31/01/2011, a Declaração Individual de Adesão, bem como assinou, em 02/02/2011, a Declaração de Saúde e Questionário Clínico.
h) Na página 6 da Declaração Individual de Adesão consta o seguinte:
“Declaração Inicial de Risco
O Tomador do Seguro, o Segurado e a Pessoa Segura, estão obrigados, antes da celebração do Contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheçam e razoavelmente tenham por significativas para a apreciação do risco pela CA Vida, mesmo relativamente a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pela A...Vida para o efeito.
Em caso de incumprimento doloso deste dever, o Contrato ou a Adesão ao Contrato em causa é anulável mediante declaração enviada pela A... Vida ao Tomador do Seguro ou ao Segurado, consoante se trate de um incumprimento do Tomador de Seguro ou se trate de um incumprimento do Segurado/Pessoa Segura. Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de 3 (três) meses a contar do conhecimento daquele incumprimento. A A... Vida não está obrigada a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso ou no decurso do período de 3 meses referido, seguindo-se o regime geral da anulabilidade. A A... Vida tem direito ao prémio devido até ao final do Contrato ou até ao final do referido prazo de três meses, consoante haja ou não dolo com o propósito de obter uma vantagem, salvo se, neste último caso, a A... Vida ou um seu representante tiverem concorrido com dolo ou negligência grosseira.
Em caso de incumprimento com negligência deste dever, a A... Vida pode, mediante declaração a enviar ao Tomador do Seguro ou ao Segurado, consoante o caso, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento: a) propor uma alteração ao Contrato/Adesão, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta; b) fazer cessar o Contrato/Adesão, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente. O Contrato ou a Adesão em causa, cessa os seus efeitos 30 (trinta) dias após o envio da declaração de cessação ou 20 (vinte) dias após a recepção pelo Tomador do Seguro/Segurado da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite, sendo o prémio devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida. Se, antes da cessação ou da alteração do Contrato/Adesão, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes, a A... Vida: cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do Contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente; ou, demonstrado que, em caso algum, teria celebrado o Contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio. (...)”
i) Para efeitos da aceitação da proposta de seguro, e aquando da assinatura da referida Declaração Individual de Adesão, em 31/01/2011, o falecido Manuel apôs a sua assinatura, no local destinado para o efeito, e que se segue à seguinte: “DECLARAÇÃO
O signatário declara estar inteiramente esclarecido e ciente do dever que tem de ter que declarar com verdade e com exactidão sobre todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pela A... Vida, mesmo relativamente a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pela A... Vida para o efeito, bem como declara estar perfeitamente ciente das consequências do incumprimento desse seu dever, e declara ter respondido com inteira verdade às perguntas constantes desta Declaração Individual de Adesão, sendo os dados e informações fornecidos pelo Signatário da sua inteira e exclusiva responsabilidade, ainda que a Declaração Individual de Adesão tenha sido preenchida por terceiro(s) e por si apenas assinada.
O Signatário declara também ter tomado conhecimento de todas as informações necessárias à compreensão e celebração do presente Contrato e que tomou conhecimento das condições aplicáveis ao mesmo, de cujo o âmbito e conteúdo ficou inteiramente ciente e esclarecido, designadamente, as constantes das informações pré-contratuais que constam da presente Declaração Individual de Adesão, das Condições Gerais da Apólice e as constantes das suas condições particulares, com elas concordando inteiramente.
Declara ainda o Signatário que foi inteiramente esclarecido acerca das modalidades de Seguro que a A... Vida oferece, sendo o que resulta da presente Declaração Individual de Adesão o conveniente para a cobertura que pretende.” (Página 8 da Declaração Individual de Seguro junta com a contestação).
j) Consta dos nºs 1 e 2 da Cláusula 5ª das Condições Gerais da Apólice de Seguro subscrita que: “Cláusula 1ª - Dever de Declaração Inicial de Risco
1. O Tomador do Seguro, o Segurado e a Pessoa Segura estão obrigados, antes da celebração do Contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pela A...Vida.
2. O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pela CA Vida para o efeito. (...) – cfr. documento nº 4 junto com a contestação.
k) Consta da Cláusula 6ª das mesmas Condições Gerais que: “Cláusula 2ª - Incumprimento doloso do dever de declaração Inicial de risco
1. Em caso de incumprimento doloso do dever referido no número 1. da Cláusula anterior, o Contrato ou a Adesão ao contrato em causa, é anulável mediante declaração enviada pela A... Vida ao Tomador do Seguro ou ao Segurado/Pessoa Segura, consoante se trate de um incumprimento do Tomador do Seguro ou se trate de um incumprimento do Segurado/Pessoa Segura.
2. Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de 3 (três) meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3. A A... Vida não está obrigada a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no número 1 da presente Cláusula ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
4. A A...Vida tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no número 2 da presente cláusula, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira sua ou do seu representante.
5. Em caso de dolo do Tomador do Seguro, do Segurado ou da Pessoa Segura com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do Contrato.” – cfr. documento nº 4 junto com a contestação.
l) Da Declaração Individual de Adesão, datada de 31/01/2011, e respectivo questionário clínico, datado de 02/02/2011, consta que à pergunta se
“Tem ou teve algumas das seguintes doenças ou distúrbios” (...) Metabólicas: (...) colesterol, triglicéridos, ácido úrico...”, foi assinalada a resposta “Não”.
m) À pergunta sobre se “Consultou o seu médico Assistente/Família nos últimos 5 anos”, foi assinalada a resposta que “Sim”.
n) E à pergunta “Qual o motivo, diagnóstico, resultados de exames e tratamentos efectuados”, foi assinalada a resposta “Medicina do trabalho – em Espanha, não tem qualquer problema de saúde – obrigatório por lei.”
o) Consta, ainda, do Questionário Clínico subscrito e assinado pelo falecido uma declaração com o seguinte teor: “preenchi com o meu punho ou foi preenchido a meu pedido o presente formulário que faz parte integrante da Declaração Individual de Adesão de Seguro, tendo respondido com toda a veracidade e completamente a todas as perguntas nele contidas com perfeito conhecimento de quaisquer omissões, declarações incompletas ou inexactas ou que possam induzir a A... Vida em erro na apreciação do risco proposto, poderão ter como consequência a nulidade da adesão, ficando nulas ou sem efeito as garantias contratuais subscritas, qualquer que seja a data em que a A... Vida delas tome conhecimento.”
p) O questionário clínico foi preenchido pelo funcionário do banco.
q) A Ré aceitou a proposta de Seguro, acompanhada da Declaração Individual de Adesão e respectivo Questionário Clínico, nos termos em que se encontravam preenchidos e assinados.
r) Desde, pelo menos, 28/04/2004 que o falecido sofria de “Dislipidémia (colesterol elevado e triglicéridos elevados)”
s) Desde, pelo menos, 20/05/2005, que o falecido sofria de “ácido úrico elevado e gama GT elevados (fígado gordo).
t) Desde, pelo menos, Abril de 2008, que o falecido apresentava, de forma repetida, valores elevados das enzimas hepáticas (TGO, TGP e GGT) que foram constatados também em Novembro de 2010.
u) Manuel... faleceu no dia 17 de Maio de 2012.
v) De acordo com o certificado de óbito a causa de morte foi “Adenocarcinoma gástrico”.
w) Por carta registada com aviso de recepção, a Ré comunicou à Autora que “...em virtude de terem sido prestadas declarações inexactas por parte do Senhor Manuel..., o citado contrato de seguro foi declarado nulo.”
x) Quer em Agosto de 2005, quer em Fevereiro de 2011, o falecido Manuel ?.. e a Autora desconheciam que aquele tinha ou podia vir a ter um cancro do estômago que o levaria à morte.
y) À data do óbito do marido da Autora, ainda faltava pagar do referido empréstimo a quantia de € 5.284,81.
z) Segundo a cláusula 4ª, alínea a) das condições gerais da apólice “Estão excluídos das garantias do Contrato os casos em que o falecimento, ou os demais riscos contratados, seja provocado, directa ou indirectamente, por:
a) Doença pré-existente – Toda a alteração involuntária do estado de saúde da Pessoa Segura, não causada por acidente e susceptível de constatação médica objectiva, e que tenha sido objecto de um diagnóstico inequívoco ou que com suficiente grau de evidência se tenha revelado em data anterior à da celebração do presente Contrato, salvo o caso em que tenha havido comunicação formal à A... Vida e aceitação por parte desta, mediante as condições que para o efeito tenham sido estabelecidas; (…).

E foram dados como não provados os seguinte factos:
a) Aquando da subscrição de adesão ao seguro “Protecção Crédito Pessoal”, o falecido Manuel omitiu deliberada e intencionalmente que sofria de tais patologias e o seu passado clínico (com valores anormais e preocupantes).
b) A Ré aceitou o contrato de seguro em apreço porque foi induzida em erro sobre o estado clínico e de saúde do falecido Manuel.
c) A Ré se soubesse da situação clínica do falecido Manuel... preexistente à data da celebração do contrato não tinha celebrado com o mesmo o contrato de seguro em causa.

B) O DIREITO
Não suscitam reparos as considerações feitas na sentença recorrida sobre a natureza do contrato de seguro e o regime aplicável ao caso dos autos.
Na verdade, considerando a data da celebração do contrato (31.01.2011) - o qual configurou uma renovação de contrato anteriormente celebrado -, e a data do decesso do marido da autora (17.05.2012), não sofre contestação que é o novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (regime doravante designado abreviadamente por LCS) e que entrou em vigor a 01.01.2009, o aplicável ao caso dos autos (vide artigo 2º, n.º 2 do citado DL).
Segundo a recorrente, o falecido Manuel... prestou falsas declarações de forma dolosa no momento da celebração do contrato de seguro, em violação do disposto no art. 24º da LCS, devendo por isso ser considerado nulo o contrato nos termos dos arts. 25º, nºs 1 e 3 da LCS e 287º do Código Civil.
A propósito dos deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado, dispõe o mencionado art. 24º que “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”, acrescentando o n.º 1 do artigo 25º que, em caso de incumprimento doloso deste dever, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro e estabelece.
Contrariamente ao que sucedia com o revogado artigo 429º do Código Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre inequivocamente do nº 1 do art. 25º da LCS.
Será que no caso concreto houve um comportamento doloso do falecido marido da autora?
Nos termos do art. 253º do Código Civil, «[e]ntende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante» (nº 1), mas «[n]ão constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções» (nº 2).
Como é sabido, e tem sido posto em relevo pela doutrina, o dolo é uma espécie agravada de erro, é um erro provocado, de tal modo que, como salientou o Prof. Menezes Cordeiro, citando Castro Mendes, «a relevância do dolo depende duma dupla causalidade: é preciso que o dolo seja determinante do erro e o erro determinante do negócio»[1].
Como ensinam Antunes Varela e Pires de Lima[2], «[o] dolo supõe um erro que é induzido ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro. Para que haja dolo são necessários os seguintes requisitos:
a) Que o declarante esteja em erro;
b) Que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro;
c) Que o declaratário ou terceiro (deceptor) haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc.»
Assim, quanto ao erro sobre os termos em que a recorrente aceitou a adesão da autora e do seu falecido marido ao contrato de seguro, está provado que a ré aceitou a proposta de Seguro, acompanhada da Declaração Individual de Adesão e respectivo Questionário Clínico, nos termos em que se encontravam preenchidos e assinados [alínea q) dos factos provados].
Questionário que continha informações falsas sobre a saúde do falecido Manuel Leitão relativamente aos seus níveis de colesterol, triglicéridos, ácido úrico, gama GT e enzimas hepáticas (TGO, TGP e GGT), como resulta do cotejo das alíneas g), l), m), n), r), s) e t) dos factos provados.
Quanto à identidade da pessoa que provocou o erro, provou-se, é certo, que quem preencheu o questionário clínico foi um funcionário do banco tomador do seguro (cfr. al. p) dos factos provados), mas também ficou provado que do dito questionário, subscrito e assinado pelo falecido, consta uma declaração com o seguinte teor: «preenchi com o meu punho ou foi preenchido a meu pedido o presente formulário que faz parte integrante da Declaração Individual de Adesão de Seguro …».
Assim, se é verdade que foi o funcionário do banco que preencheu o questionário clínico, não é menos verdade que o fez a pedido do próprio aderente Manuel..., sendo portanto da responsabilidade deste último as declarações aí prestadas, incluindo as respostas falsas.
Convém, aliás, ter presente que o questionário é uma das formas de declaração inicial do risco pelo candidato tomador do seguro ou pessoa segura que tem por objectivo a ponderação por parte da seguradora dos riscos a correr com a celebração do contrato que lhe é proposto.
Consiste «numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado», assente na probidade das informações e na boa fé deste último, com vista a evitar um complexo de averiguações e exames, não devendo «redundar em prejuízo daquele»[3].
Do que aqui se trata, como se escreveu no Ac. do STJ de 06.07.2011[4], «é da postura do candidato ou proponente do seguro relativamente a perguntas simples e claras sobre o seu estado de saúde, baixas e internamentos, meras declarações de ciência que, destinadas embora a serem valoradas pela contraparte na sua declaração negocial, não continham qualquer declaração de vontade relativamente à qual se possa falar de adesão e vinculação, para efeitos de inclusão na previsão dos arts. 1º e 2º do RJCCG, designadamente em relação ao Segurado.
Pré-elaborado está o questionário, que não as respostas, e destinatário destas é a Seguradora. O Segurado não adere ao questionário, responde-lhe para fornecer à Seguradora elementos em função dos quais esta estabelece as condições de aceitação do contrato.
Tudo numa fase prévia à respectiva celebração.»
Na verdade, é consoante o conteúdo das respostas ao questionário sobre o estado de saúde do potencial segurado, que «a seguradora decide se, em definitivo, apresenta uma proposta de seguro e, na hipótese afirmativa, as condições que propõe para que seja celebrado o contrato de seguro, sendo que só então, nessa segunda fase, poderemos dizer que estamos perante um contrato de adesão. Como é óbvio, a seguradora não apresenta um contrato-tipo já com o questionário preenchido»[5].
Se o falecido Manuel... assinou “de cruz” aquele questionário, como afirmam os recorridos nas suas contra-alegações, é irrelevante para o caso, pois quem subscreve um determinado documento sem o ter lido nem tomado conhecimento do seu conteúdo não pode posteriormente, em princípio, alegar erro na declaração (art. 247º, do CC), pois se assinou é porque quis admitir o conteúdo do documento, seja qual for o seu teor, a não ser que contenha regulamentação que não podia em nenhum caso prever. A vinculação do subscritor do documento sem prévia leitura decorre do princípio da responsabilidade, sendo que se assinou sem ler fez de qualquer forma seu o contexto do documento[6].
Por último, quanto à sugestão ou artifício usados pelo falecido marido da autora ora recorrida, os mesmos correspondem à prestação de declarações à recorrente sobre o seu estado de saúde que o mesmo sabia não serem verdadeiras.
Por isso, escreveu-se com acerto na sentença recorrida:
«(…). Afigura-se-nos evidente que aquando da subscrição da proposta e do preenchimento do questionário clínico, o segurado marido, falecido, apresentava alterações metabólicas consistentes em níveis elevados de colesterol, triglicéridos, ácido úrico e gama GT, facto que este não ignorava, tanto mais que ao longo dos anos, desde 2004 e até à data da morte foi sujeito, frequentemente, a exames médicos e análises clínicas, designadamente na medicina do trabalho. Por outro lado, afigura-se-nos evidente que tais factos assumiam relevância para a seguradora poder avaliar da natureza e extensão do risco que estava a assumir ao celebrar este tipo de seguro, considerando que tais alterações, se não forem sujeitas a terapêutica, estão reconhecidamente relacionadas com patologias cardiovasculares, as quais podem provocar a morte.
Assim, é inequívoco que foram fornecidas declarações inexactas e omissão de elementos relevantes para apreciação do risco que a seguradora assumiu, o que acarreta a anulabilidade do contrato.»
Ao caso pouco importa que o falecido marido da autora não visse aquelas patologias como verdadeiras doenças, pois no referido questionário estão expressamente designadas, de forma genérica, como «doenças ou distúrbios», ou que na data em que subscreveu tal questionário tais patologias estivessem controladas, pois a recorrente perguntava em tal questionário se aquele «tem ou teve» as referidas doenças ou distúrbios, isto é, sobre o presente e passado clínicos do declarante.
Nem se diga que o falecido teria desvalorizado aqueles “distúrbios”, pois o que se perguntava no questionário clínico era se aquele tinha ou não esses distúrbios ou doenças, sendo certo que se na realidade as não valorizasse, não deixaria de as identificar.
Ademais, é a própria lei que agora de forma clara exige que o segurado declare «com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador» (art. 24º, nº 1, da LCS), o que consta igualmente do contrato de seguro (cláusula 5ª, nºs 1 e 2).
Não procede, por isso, o argumento aduzido na sentença recorrida de que o falecido marido da autora não tinha obrigação de saber que as perguntas constantes do questionário fornecido pela recorrente eram importantes para esta.
Também não podemos acompanhar a sentença, quando nela se exige a verificação de um nexo de causalidade entre as declarações emitidas e a doença que vitimou o marido da autora.
Em primeiro lugar, a anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS (replicada na cláusula 6ª das Condições Gerais do contrato de seguro dos autos) não exige a verificação de tal nexo.
Basta, para tanto, confrontar aquele preceito com o que se prescreve no nº 4 do art. 26º no caso de incumprimento da declaração inicial de risco por negligência: «[s]e, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes (…)».
Se fosse intenção do legislador exigir um nexo de causalidade entre o facto omitido e a morte do segurado para se aferir da omissão ou inexactidões dolosas da declaração do mesmo, tê-lo-ia, seguramente, exigido de forma expressa, como fez em relação às omissões ou inexactidões negligentes, sabendo, ademais, da discussão jurisprudencial que existiu, em tempos, em relação ao revogado art. 429º do Código Comercial, que nada dizia sobre o assunto.
Ademais, era entendimento jurisprudencial largamente maioritário o de que aquele último preceito não exigia o referido nexo causal, fazendo-se notar que o momento em que tinha de se verificar a exactidão ou a reticência a que aludia o mencionado art. 429º era, evidentemente, o momento em que a proposta de seguro chegava ao conhecimento da seguradora nos termos do art. 224º do Código Civil[7].
Assim, tendo o falecido Manuel... prestado falsas declarações dolosamente antes da celebração do contrato de seguro dos autos, é o mesmo anulável nos termos das disposições conjugadas dos arts. 24º, nº 1, 25º, nºs 1 e 3, da LCS e 287º do Código Civil.
Logo, a sentença recorrida não poderá manter-se.

Sumário:
I – O tomador do seguro está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo segurador, ainda que as mesmas não sejam solicitadas em questionário fornecido pelo segurador - art. 24º, nºs 1 e 2, do novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (LCS).
II - Contrariamente ao que sucedia com o revogado artigo 429º do Código Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre inequivocamente do nº 1 do art. 25º da LCS.
III – Não obsta à existência de falsas declarações prestadas pelo segurado, a circunstância de ter sido um funcionário do banco tomador do seguro a preencher o questionário clínico fornecido pela seguradora e assinado pelo segurado.
IV - A anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS não exige a verificação de um nexo de causalidade entre as declarações emitidas e a doença que vitimou o segurado.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, na procedência da apelação, julgando-se a acção improcedente, revoga-se a sentença recorrida e absolve-se a ré do pedido contra ela formulado.
Custas em ambas as instâncias pelos autores/apelados.
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Guimarães, 15 de Janeiro de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
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[1] Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, pág. 550; Teoria Geral do Direito Civil II, p. 112.
[2] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição revista e actualizada, p. 236.
[3] Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, p. 74.
[4] Proc. 2617/03.2TBAVR.C1.S1 (Alves Velho), in www.dgsi.pt.
[5] Ac. do STJ de 27.05.2008 (Moreira Camilo), proc. 08A3737.
[6] Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, p. 71, nota 156 e pp. 71-72, nota 157.
[7] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 09.09.2010 (Oliveira Vasconcelos), proc. 3139/06.5TBBCL.G1.S1.