Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
45639/18.3YIPRT.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ACÇÃO DE HONORÁRIOS
COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO COMUM/JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
CASO JULGADO – DECISÃO ANTERIOR NÃO IMPUGNADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO – JULGADO O JUÍZO CÍVEL MATERIALMENTE COMPETENTE PARA JULGAR A ACÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Os juízos cíveis (jurisdição comum) são competentes em razão da matéria para conhecer de um litígio emergente de contrato de mandato forense, designadamente para a cobrança de honorários devidos pelo patrocínio da ré, concessionária de serviço público, em ações que correram termos no tribunal administrativo.

II- O contrato de mandato forense tem natureza privatística face, designadamente, à liberdade com que o mandato é exercido, à confiança pessoal entre as partes e à independência e autonomia funcional e técnica do advogado (previstas no seu Estatuto), que impedem que a sua celebração esteja dependente do procedimento de formação atinente ao contrato administrativo (especialmente às regras da concorrência).

III- Havendo duas decisões contraditórias que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

“Z. C. e Associados, Sociedade de Advogados, R.I.” deduziu requerimento de injunção contra “Águas ..., SA”, pedindo que a requerida lhe pague a quantia de € 19.173,60 de capital e € 1.904,75 de juros de mora, relativa ao cumprimento de um contrato de mandato judicial, na decorrência do qual, a requerente patrocinou a requerida nos processos n.ºs 1531/08.0BEBRG e 1531/08.0BEBRG-A, que correram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, tendo apresentado a sua nota de honorários e despesas em 18/10/2016. Interpelada mais do que uma vez, a requerida não paga a importância pedida.

A requerida deduziu oposição, excecionando a prescrição do direito da requerente e, por impugnação, alegando que pagou todos os serviços prestados pela requerente.

Tendo a ré dirigido a oposição ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, foi proferido, em 03/07/2018, o seguinte despacho:
“A autora Z. C. e Associados, Sociedade de Advogados, RI, com domicílio no Porto, intentou contra a Águas ..., SA, com sede em Vila Real, injunção para cobrança de honorários devidos nos processos n.ºs 1531/08.0BEBRG e 1531/08.0BEBRG-A, que terão corrido no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
A ré dirige a oposição ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Ora, o Tribunal Administrativo e Fiscal não tem competência em razão da matéria para tramitar e julgar ação de honorários, pelo que os autos foram remetidos a este Juízo Local Cível de Braga.
Sucede contudo que, face a essa incompetência em razão da matéria, constata-se que inexiste ligação a Braga, já que nenhuma das partes aqui está domiciliada, não se sabendo, assim, se pretendeu a autora efetivamente que fosse a distribuição dos autos feita a este Juízo Local Cível.
Pelo exposto, antes do mais, notifique a autora para, em 10 dias, informar se pretendia que os autos fossem remetidos à distribuição neste Juízo Local Cível, sendo que a falta de resposta equivalerá à resposta afirmativa.
No caso de resposta negativa, deverá a autora indicar o tribunal para o qual pretenda a remessa dos autos.
Dê conhecimento deste despacho à ré.”
A autora pronunciou-se pela distribuição no Juízo Local Cível de Braga (conforme tinha indicado no requerimento de injunção), onde os autos já corriam e prosseguiram a sua tramitação.
Foi ordenada a apensação do processo n.º 51743/18.0YIPRT, que corria termos no mesmo juízo, entre as mesmas partes e cujo objeto é igualmente a prestação de serviços de mandato forense, com o valor de € 4147,54, relativo ao patrocínio da requerida no processo n.º 2632/15.3BEBRG, com oposição idêntica à destes autos.
A autora respondeu à matéria de exceção, alegando o reconhecimento da dívida por parte da ré, e peticionou a condenação da ré como litigante de má-fé.
A matéria relativa à prescrição e à litigância de má-fé, por ser controvertida, foi relegada para decisão final.
Foi proferido, em 19/11/2018, despacho de admissão/indeferimento dos requerimentos de prova e não se designou data para julgamento “considerando a necessidade de apurar das diligências probatórias que terão de ser realizadas”.
Até 11/02/2019, as partes juntaram documentos e pronunciaram-se sobre os documentos juntos pela parte contrária.
Em 12/03/2019, a ré veio arguir a incompetência absoluta do tribunal, por considerar que está em causa a discussão de honorários devidos no âmbito de um mandato forense que se insere dentro de um contrato de prestação de serviços, de natureza administrativa, tendo a ré natureza pública, pelo que sempre estaríamos perante uma relação jurídica administrativa, caindo a presente ação no âmbito material da competência dos tribunais administrativos. Pede a sua absolvição da instância.
Respondeu a autora, entendendo que não se verifica a exceção da incompetência absoluta do tribunal para dirimir o presente litígio, devendo ser indeferido o requerimento da ré.
Foi proferida decisão que julgou incompetente em razão da matéria para decidir o atual litígio, o Juízo Local Cível de Braga e competentes os tribunais administrativos e fiscais e, em consequência, absolveu a ré da instância.

A autora interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1.ª - “OS ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PODEM CELEBRAR CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, SUJEITOS A UM REGIME SUBSTANTIVO DE DIREITO ADMINISTRATIVO, OU CONTRATOS SUBMETIDOS A UM REGIME DE DIREITO PRIVADO.” (ART.º 200.º, 1, DO CPA)
2.ª – SOB A EPÍGRAFE “PROCEDIMENTOS PRÉ-CONTRATUAIS”, DISPÕE O ARTIGO 201.º, 1, DO CPA, QUE “A FORMAÇÃO DOS CONTRATOS CUJO OBJETO ABRANJA PRESTAÇÕES QUE ESTEJAM OU SEJAM SUSCETÍVEIS DE ESTAR SUBMETIDOS À CONCORRÊNCIA DE MERCADO ENCONTRA-SE SUJEITA AO REGIME ESTABELECIDO NO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS OU EM LEI ESPECIAL.” (DESTACADO NOSSO)
3.ª – SOB A EPÍGRAFE “REGIME SUBSTANTIVO”, DISPÕE O ARTIGO 202.º, 2, DAQUELE MESMO CÓDIGO: ”NO ÂMBITO DOS CONTRATOS SUJEITOS A UM REGIME DE DIREITO PRIVADO SÃO APLICÁVEIS AOS ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA AS DISPOSIÇÕES DESTE CÓDIGO (CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO) QUE CONCRETIZAM PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E OS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA.”
4.ª – O CONTRATO DE MANDATO JUDICIAL É UM CONTRATO DE DIREITO PRIVADO SUJEITO AO REGIME SUBSTANTIVO DE DIREITO PRIVADO;
5.ª – COMPETENTE PARA DIRIMIR LITÍGIOS EMERGENTES DE CONTRATOS SUJEITOS A REGIME DE DIREITO PRIVADO, COMO É O CASO DO CONTRATO DE MANDATO, É A JURISDIÇÃO COMUM;
6.ª – O DISPOSTO NO ARTIGO 280.º, 1, IDENTIFICA OS CONTRATOS A QUE SE APLICA O REGIME SUBSTANTIVO PREVISTO NA SUA PARTE III, DA QUAL ESTÁ EXCLUÍDO, POR NÃO ENCAIXAR NELA, O CONTRATO DE MANDATO FORENSE;
7.ª – O QUE SE CONCLUI NAS ALÍNEAS ANTERIORES SÓ SOFRE A EXCEÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 280.º, 3, DO CCP. AÍ SE ESTABELECE, REPORTANDO-SE A CONTRATOS QUE, EMBORA SUBMETIDOS NA SUA FORMAÇÃO AO REGIME ESTABELECIDO NESTE CÓDIGO, NÃO SÃO CONTRATOS ADMINISTRATIVOS;
8.ª – ASSIM, NOS TERMOS DESTA NORMA, A ESSES CONTRATOS, NÃO OBSTANTE NÃO SE INTEGRAREM NO ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA PARTE III DO CCP, SÓ LHES É APLICÁVEL O REGIME AÍ ESTABELECIDO QUANTO À INVALIDADE (ARTIGOS 283.º A 285.º), LIMITES À MODIFICAÇÃO DO CONTRATO (ARTIGO 313.º COM REMISSÃO PARA O ARTIGO 312.ª) À CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL E À SUBCONTRATAÇÃO(ARTIGOS 316.º A 324.º);
9.ª – COMO SE VÊ DO ESTABELECIDO NA REFERIDA PARTE III DO CCP – DISCIPLINA DO REGIME SUBSTANTIVO DOS CONTRATOS – NUNCA SE APLICA À EXECUÇÃO DOS CONTRATOS DE DIREITO PRIVADO, SALVO NO QUE TANGE À VALIDADE DA CONTRATAÇÃO E ÀS MODIFICAÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS DO MESMO;
10.ª – O CASO DOS AUTOS NÃO CONTEMPLA QUALQUER DAQUELAS QUESTÕES, ANTES O LITÍGIO SE ENQUADRA NA FALTA DE PAGAMENTO, PELA RECORRIDA, DOS HONORÁRIOS PETICIONADOS PELA RECORRENTE;
11.ª – DAÍ QUE, REPETE-SE, A JURISDIÇÃO COMPETENTE PARA DIRIMIR TAL LITÍGIO SEJA A JURISDIÇÃO COMUM E NÃO A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA;
12.ª – ALIÁS, ATENTO O COMANDO CONSTITUCIONAL, VERTIDO NO ARTIGO 212.º, 3, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, “COMPETE AOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS O JULGAMENTO DAS AÇÕES E RECURSOS CONTENCIOSOS QUE TENHAM POR OBJETO DIRIMIR OS LITÍGIOS EMERGENTES DAS RELAÇÕES JURÍDICAS ADMINISTRATIVAS”;
13.ª – O QUE SIGNIFICA QUE A COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA SE AFERE PELA NATUREZA ADMINISTRATIVA DAS RELAÇÕES JURÍDICAS EM LITÍGIO;
14.ª – E A NATUREZA ADMINISTRATIVA DAS RELAÇÕES JURÍDICAS, QUANDO RESULTANTES DE CONTRATO, NÃO DEPENDE NEM RESULTA DO FORMALISMO OU DO PROCEDIMENTO PRÉ-CONTRATUAL QUE O PRECEDEU, MAS DOS SEUS INTRÍNSECOS FATORES DE ADMINISTRATIVIDADE;
15.ª – SÓ QUESTÕES RELACIONADAS COM A FORMAÇÃO DO CONTRATO, NEGOCIAÇÕES OU FORMALISMOS, PODEM SER SINDICADAS PELA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA NO CASO DE CONTRATOS DE DIREITO PRIVADO;
16.ª – AS QUESTÕES QUE SE SUSCITEM QUANTO AO REGIME SUBSTANTIVO DOS CONTRATOS PRIVADOS ESTÃO EXCLUÍDOS DA SINDICÂNCIA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA VERTIDA NA PARTE III DO CCP;
17.ª – O CONTRATO DE MANDATO FORENSE É UM ESPECÍFICO CONTRATO DE DIREITO PRIVADO, QUER PELAS SUAS CARACTERÍSTICAS (IMPOSSIBILIDADE DE SE FIXAR O PRAZO, O PREÇO E MESMO O OBJETO) QUER PELA NATUREZA DA RELAÇÃO ENTRE CLIENTE E ADVOGADO QUE RADICA NA CONFIANÇA MÚTUA PESSOAL;
18.ª – OUTROSSIM, E POR ISSO MESMO, NÃO É POSSÍVEL, POR EXEMPLO, A ELABORAÇÃO DE ESPECIFICAÇÕES CONTRATUAIS SUFICIENTEMENTE PRECISAS QUE PERMITAM DEFINIR QUALITATIVAMENTE ATRIBUTOS DE PROPOSTAS NECESSÁRIOS À FIXAÇÃO DE UM CRITÉRIO DE ADJUDICAÇÃO;
19.ª – ATÉ O DIREITO EUROPEU QUE ENDEUSA A “CONCORRÊNCIA”, ASSIM O ENTENDE. O ARTIGO 10.º, D), I), DA DIRETIVA 2014/24/EU, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 26 DE FEVEREIRO DE 2014, EXCLUI, EXPRESSAMENTE DAS NORMAS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA, OS CONTRATOS DE MANDATO FORENSE E DE ASSESSORIA JURÍDICA;
20.ª – ASSIM É QUE, ENTENDENDO-SE COMO NECESSÁRIO UM PROCEDIMENTO PRÉ-CONTRATUAL ELE SÓ PODE CONSISTIR NO AJUSTE DIRETO, POR CRITÉRIOS MATERIAIS, INDEPENDENTEMENTE DO VALOR;
21.ª – ALIÁS, SÓ ASSIM SERIA EXEQUÍVEL A ESCOLHA E CONTRATAÇÃO DE UM ADVOGADO, POIS NÃO HAVERIA TEMPO PARA TRATAR DE PROCEDIMENTO MAIS COMPLEXO, DADA A EXIGUIDADE DOS PRAZOS PROCESSUAIS;
22.ª – FINALMENTE, SALIENTA-SE A PREVISÃO DO ARTIGO 67.º, 2, DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, APROVADO PELA LEI N.º 145/2015, DE 9 DE SETEMBRO, ONDE AFIRMA CATEGORICAMENTE:
“O mandato forense não pode ser objeto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha pessoal e livre do mandatário pelo mandante.”
23.ª – O QUE SIGNIFICA QUE, NO MANDATO FORENSE, NÃO HÁ MEDIDA OU ACORDO – OU CONCURSO – QUE OBRIGUE O MANDANTE A ESCOLHER COMO SEU MANDATÁRIO PESSOA DIFERENTE DA QUE ELE, EM SEU EXCLUSIVO CRITÉRIO, ESCOLHERIA.
24.ª – DECIDINDO DIVERSAMENTE, A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, SALVO O DEVIDO RESPEITO, VIOLOU, DESIGNADAMENTE, O DISPOSTO NOS ARTIGOS 212.º, 3, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, 67.º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, APROVADO PELA LEI N.º 145/2015, DE 9 DE SETEMBRO, 200.º E 202.º DO CPA, 280.º, DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS E 4.º, 1, E), DO ETAF.

NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO, DO DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGADA A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, JULGANDO-SE COMPETENTE PARA DIRIMIR A PRESENTE CAUSA A JURISDIÇÃO COMUM E, LOGO, O TRIBUNAL A QUO,
COM O QUE SE FARÁ, J U S T I Ç A!

A ré contra alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver prende-se com a competência material para conhecer do presente litígio.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto relevante consta do relatório supra.

Na decisão sob recurso entendeu-se que o contrato de mandato forense que está na base do pedido formulado nesta ação, deve entender-se como um contrato administrativo legalmente tipificado e nominado, concluindo-se “que as questões de interpretação, validade e execução do alegado contrato, aqui se incluindo a realização coativa da prestação imputada ao réu, se integram na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, sendo a jurisdição administrativa a competente para dirimir o litígio”.

Seguiu de perto, na sua análise, um Acórdão deste Tribunal da Relação de 14/02/2019, proferido no processo n.º 2318/18.7T8BRG-A.G1 (Raquel Tavares), que se encontra disponível em www.dgsi.pt, que tem por objeto um contrato por via do qual a autora, por solicitação do réu (Município de…), se obrigou a contratar a artista Y. N. para a realização de um espectáculo no Convento ..., propriedade do réu, no dia 27/01/2017 e que o réu se obrigou a pagar à autora €15.999,99, mais alegando a autora que era representante exclusiva daquela artista em Portugal no 1º trimestre de 2017 e que cumpriu a sua parte do acordado, contratando a artista para o aludido espectáculo, tendo o réu cancelado o espectáculo no dia 20/01/2017, dizendo que não lhe seria possível acolher a artista na data prevista e sem dar mais explicações.

Podemos ler, nesse Acórdão, como fundamentação para a conclusão ali retirada quanto a estarmos perante um contrato administrativo, o seguinte: “Conforme bem se refere na decisão recorrida, citando Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo dos Tribunais Administrativos e Ficais e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Anotados, Volume I, 2004, páginas 48 a 53) em comentário a este preceito [artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do ETAF}: “A opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente das qualidades das partes nele intervenientes - de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares - e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.). (…) O que é relevante (...) para determinar o âmbito “contratual” da jurisdição administrativa, continua a ser a natureza jurídica do procedimento que antecedeu - ou que devia ou podia ter antecedido - a sua celebração, e não a própria natureza do contrato. Se se trata de um procedimento administrativo, a jurisdição competente para conhecer da interpretação, validade de execução (incluindo a modificação, responsabilidade e extinção) do próprio contrato celebrado na sua sequência - independentemente de ele ser um contrato administrativo ou de direito privado - é a jurisdição administrativa. E independentemente também de se tratar (de actos pré-contratuais ou) de contratos de uma pessoa colectiva de direito público ou de um sujeito privado que esteja submetido, por lei específica, a deveres pré-contratuais de natureza administrativa - como sucede, por exemplo, nomeadamente por força da transposição de normas comunitárias (embora o mesmo possa acontecer em virtude da sua aplicação directa) com: (...) iii) aquelas entidades a que se referem os n°s. 1 e 2 do art. 3° do Decreto-lei n° 197/99 (de 8 de Junho) quanto às aquisições desses mesmos bens e serviços, em geral. (…) Os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), são quaisquer contratos - administrativos ou não, com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do art. 4°/3 — que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado pelas normas de direito administrativo. O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que “admita que (ele lhe) seja submetido””.

A delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou, assim, de se estribar na distinção tradicional entre “atos de gestão pública” e “atos de gestão privada”, para passar a fazer-se com abstração da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que “a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público”, como se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos, de 11/03/2010, proferido no processo n.º 028/09, observando-se ainda que “o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é aqui colocado não no conteúdo do contrato nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2016, relatado pelo Conselheiro Tome Gomes, disponível em www.dgsi.pt).

Assente a explicação teórica, enquadrada na lei aplicável, constatou-se que, pese embora o facto de a autora representar em exclusivo a artista que o réu pretendia contratar, tal não impedia o enquadramento do contrato em causa naquela citada alínea do artigo 4.º do ETAF, pois que, em face do Código dos Contratos Públicos, os contratos de aquisição de serviços celebrados por autarquias locais são não só de qualificar como contratos administrativos como estão sujeitos a um procedimento de formação regulado por normas de direito administrativo, daí decorrendo que o facto de estar em causa um artista específico ou um prestador de serviços que detém direitos exclusivos para prestar o serviço pretendido não permite excluir o contrato do regime da contratação pública.

Ora, no caso de que nos ocupamos, não é possível extrapolar diretamente do caso analisado no Acórdão que esteve na base da decisão recorrida, para o nosso caso.

Não só a entidade contratante não é uma Autarquia Local, como o contrato é um contrato de mandato forense, que é um contrato não passível de ato administrativo e que, em concreto, não foi expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

Repare-se, que não estão aqui em causa, quaisquer vícios cometidos na fase pré-contratual pelo ente público (concessionária de serviço público), mas sim a resolução de um litígio que ocorre já em sede de execução de um contrato de natureza privatística, como é o contrato de mandato forense, face, designadamente, à liberdade com que o mandato é exercido, à confiança pessoal entre as partes e à independência e autonomia funcional e técnica do advogado (previstas no seu Estatuto), que impedem que a sua celebração esteja dependente do procedimento de formação atinente ao contrato administrativo (especialmente às regras da concorrência).

Aliás, o contrato de mandato forense não se enquadra em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 280.º do Código dos Contratos Públicos, que identificam os contratos a que se aplica o regime substantivo previsto na sua Parte III. Não sendo um contrato administrativo, apenas poderia aplicar-se o regime estabelecido no Código, quanto à invalidade, limites à modificação do contrato, cessão da posição contratual e subcontratação, caso tivesse estado submetido, na sua formação a normas relativas ao contrato administrativo, de acordo com o disposto no n.º 3 deste artigo 280.º. Como já vimos, o que está em causa nos autos prende-se, apenas, com a execução do contrato, por estarem pedidos honorários alegadamente devidos pelo patrocínio em dois processos judiciais, honorários esses, não pagos.

Veja-se, ainda, de um ponto de vista mais processual, que, estando a competência em razão da matéria dos Tribunais Administrativos e Fiscais taxativamente enunciada naquele artigo 4.º do ETAF, nenhuma alusão aí se faz a ações de honorários (obrigando, assim, os defensores da tese sufragada na decisão recorrida ao longo percurso interpretativo de que demos conta), o mesmo acontecendo com o Código de Processo Civil e com o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, onde inexiste qualquer norma que atribua competência a estes últimos tribunais para conhecerem acções de honorários conexionadas com as áreas do direito administrativo e fiscal.
Recorde-se que a competência para a ação de honorários, prevista no artigo 73.º, n.º 1 do CPC “competente o tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta”, é uma competência em razão do território, que nada tem a ver com a competência em razão da matéria. Daí que se o tribunal perante o qual foi exercido o mandato cujos honorários se pretendem ver judicialmente pagos, não é competente em razão da matéria para tal efeito, o preceito contido no art.º 73º não tem aplicação e não pode funcionar.
“Na verdade, este preceito ordena que seja proposta a acção no tribunal da causa em que foi prestado o serviço, não querendo no entanto com isso atribuir competência ao tribunal da causa, seja qual for a sua natureza, para conhecer da acção de honorários. O que antes se quis foi prescrever que, se esse tribunal tiver competência objectiva para julgar a acção de honorários, a essa competência acrescerá a competência territorial para a referida acção. Ou seja, o artigo 73º do CPC pressupõe, necessariamente que o tribunal da causa tem competência, em razão da matéria, para conhecer da acção de honorários; e partindo desse pressuposto, atribui-lhe também competência, em razão do território, para a mesma acção. Mas se o pressuposto falha, como é o caso do mandato ter sido exercido perante um tribunal do trabalho, de família, criminal, militar, administrativo, fiscal, etc., cessa a eficácia da disposição do aludido artigo 73º. Assim, e em rigor, este dispositivo estabelece uma norma de competência territorial e uma norma de conexão” - Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2012, processo n.º 74646/12.8YIPRT-A.P1 (Carlos Portela), in www.dgsi.pt (neste Acórdão decidiu-se que “o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro é materialmente incompetente para conhecer da acção de honorários instaurada pelo mandatário forense, ora recorrente, em acção que neste correu termos”).

No mesmo sentido, veja-se, também, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 27/03/2012, processo n.º 262406/09.5YIPRT.L1-7 (Luís Espírito Santo), disponível na mesma base de dados.

Concluímos, portanto, pela competência em razão da matéria, do Juízo Local Cível de Braga.

No caso dos presentes autos temos que ter em conta outra situação que obriga à revogação da decisão recorrida.
Com efeito, como resulta do Relatório que supra elaborámos, a questão da competência material do tribunal havia já sido decidida a 03/07/2018, conforme decorre do despacho que ali deixámos transcrito.
Está decidido, taxativamente, que “o Tribunal Administrativo e Fiscal não tem competência em razão da matéria para tramitar e julgar ação de honorários”.
Esta decisão foi notificada às partes, não tendo, nenhuma delas, interposto recurso, pelo que a mesma transitou em julgado – artigo 628.º do Código de Processo Civil.
Em contrário, poder-se-ia dizer que se trata de uma decisão de adequação formal, da qual não é admissível recurso, nos termos do artigo 630.º, n.º 2 do CPC. Não há dúvida que o juiz quis regularizar o processado, uma vez que a ré dirigiu a oposição à injunção, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e os autos foram remetidos à distribuição no Juízo Local Cível de Braga (como, aliás, estava indicado no requerimento de injunção).
Contudo, o juiz foi mais longe, uma vez que face ao cabeçalho da oposição da ré, que divergia quanto à indicação do tribunal onde deveria correr a ação, tomou posição na divergência – entre autora e ré – quanto à competência material do tribunal para dirimir o litígio emergente da cobrança de honorários devidos em processos que correram termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, decidindo, expressamente, que o Tribunal Administrativo não tem competência em razão da matéria para tramitar e julgar ação de honorários. Ou seja, perante a questão controvertida entre as partes, deu razão a uma delas, decidindo que era competente o juízo local cível.

Ora, conforme dispõe o artigo 620.º, n.º 1 do CPC, os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo. Trata-se do caso julgado formal, que se restringe às decisões que apreciem matéria de direito adjectivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo. Como bem é salientado por Abrantes Geraldes e outros, in CPC Anotado, vol. I, Almedina, pág. 745: “despacho que recai sobre a relação processual é todo aquele que, em qualquer momento do processo, aprecia e decide uma questão que não seja de mérito”, citando Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. II, 3.ª edição, p. 753.
Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, sendo aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual – artigo 625.º do Código de Processo Civil.

Assim, tendo ficado decidido no processo, em 03/07/2018, que o Tribunal Administrativo e Fiscal não tem competência, em razão da matéria, para tramitar e julgar ação de honorários, não podia, depois, vir a decidir-se, em 12/06/2019, que os tribunais administrativos e fiscais é que são competentes para decidir este litígio.

Face a estas decisões contraditórias, terá que cumprir-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se o Juízo Local Cível de Braga competente, em razão da matéria para tramitar e julgar a presente ação.
Custas pela apelada.
***
Guimarães, 31 de outubro de 2019

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes