Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
12/17.5IDBRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DECLARAÇÃO DE PERDA DAS VANTAGENS
INEXISTÊNCIA DE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Preenchendo a factualidade provada um facto ilícito típico e dele tendo resultado vantagens para o seu agente, o tribunal terá de declarar a perda de tais vantagens patrimoniais, peticionada pelo Ministério Público, exceto se demonstrado que já foram recuperadas ou o ofendido já foi ressarcido.
II - Não constitui obstáculo à formulação de tal pedido pelo Ministério Público e à posterior declaração de perda, a opção da Autoridade Tributária de não formular pedido de indemnização civil por considerar suficientes os meios legais previstos para a execução fiscal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 12/17.5IDBRG, do Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foram submetidos a julgamento os arguidos R. M. e outros.

A sentença, proferida a 2 de fevereiro de 2022 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
4.1. DA RESPONSABILIDADE JURÍDICO-PENAL
a) Absolver a arguida C. R. da prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal;
b) Condenar o arguido R. M., como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, abrangendo os novos factos em causa nestes autos e os que já foram objeto de julgamento e condenação no processo comum singular n.º 235/14.9IDBRG, por integrarem a mesma continuação criminosa, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, a 6,50€ (seis Euros e cinquenta Cêntimos) por dia, totalizando o montante de 1300,00€ (mil e trezentos Euros);
c) Julgar extinta a pena de multa supra referida na alínea b) da matéria de facto pelo seu pagamento ocorrido no processo comum singular n.º 235/14.9IDBRG e já comprovado nos presentes autos;
d) Condenar o arguido R. M., como autor material de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa;
e) Condenar o arguido R. M., como autor material de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa;
f) Procedendo ao cúmulo jurídico das penas supra referidas nas alíneas d) e e), condenar o arguido R. M. na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, a 06,00€ (seis Euros) por dia, totalizando o montante de 1800,00€ (mil e oitocentos Euros);
g) Condenar a sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 7.º, 107.º e 105.º, n.º 1, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e 30.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, a 20,00€ (vinte Euros) por dia, totalizando o montante de 5000,00€ (cinco mil Euros);

4.2. RESPONSABILIDADE JURÍDICO-CIVIL
h) Condenar o arguido R. M. a pagar ao INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., a quantia de 16204,06€ (DEZASSEIS MIL, DUZENTOS E QUATRO EUROS E SEIS CÊNTIMOS), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

4.3. DA DECLARAÇÃO DE PERDA DA VANTAGEM PATRIMONIAL
i) Declarar improcedente a perda da vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público;

4.4. RESPONSABILIDADE POR CUSTAS
j) Condenar o arguido R. M. e a sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., no pagamento das custas criminais do processo, com taxa de justiça que se fixa em 04 (QUATRO) Unidades de Conta;
k) Condenar o arguido R. M., no pagamento das custas da parte civil.
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Proceda ao depósito da presente sentença na secretaria deste Tribunal.
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Após trânsito, comunique a presente sentença ao registo criminal nos termos do artigo 6.º, alínea a), e 19.º, ambos da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, e do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de agosto.
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Comunique o teor da presente sentença à administração tributária e à Segurança Social (cfr. o artigo 50.º, n.º 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias).»
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1. O Tribunal a quo julgou improcedente o pedido de declaração de perda das vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado, considerando que “o ofendido é o Estado que, através da Autoridade Tributária, optou, como é competência sua, pela execução fiscal, arredando o Ministério Público de intervenção na recuperação daquela quantia por considerar que tem meios suficientes para cobrança coerciva do imposto em causa”.
2. A figura da perda das vantagens ou produtos do crime tem natureza de medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes e, por isso, é autónoma e tem pressupostos e funções diversas do pedido de indemnização civil, que assume natureza reparadora.
3. O confisco dos proventos do crime tem uma finalidade preventiva pelo que a omissão da sua declaração frusta este propósito político-criminal e emite um sinal errado para a comunidade.
4. O facto de a administração tributária ter ao seu dispor meios legais para ser ressarcida das quantias devidas, não é obstáculo à declaração de perda da vantagem patrimonial dado que a responsabilidade tributária é autónoma da responsabilidade civil originária na prática do crime e o decretamento da perda de vantagem não fica dependente do êxito ou não da cobrança tributária nem da dedução do pedido civil, sendo que o direito à reparação pelo lesado é um direito disponível por contraponto à indisponibilidade do confisco.
5. Os pressupostos legais da perda de vantagens são apenas o facto antijurídico e a existência de proveitos, não existindo qualquer limite legal ao confisco, o que se depreende desde logo da leitura conjugada dos artigos 110.º e 130.º do Código Penal.
6. O valor da sentença que declarar a perda das vantagens do facto ilícito típico não deve ser confundido com a possibilidade da sua execução futura, não havendo norma legal que impeça a existência de vários títulos executivos, sendo que a A.T apenas poderá ser ressarcida uma vez das quantias em divida cuja génese é o incumprimento da prestação tributaria.
7. A decisão de perda de vantagens é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal visando conseguir a maior reconstituição da situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, sem ficar com qualquer benefício da prática do crime e é a visão mais consentânea com o pensamento expresso em todas as convenções e instrumentos nacionais e internacionais de combate ao crime.
8. O pedido de declaração de perda das vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado decorre de imperativos constitucionais que legitimam a intervenção do Ministério Público no domínio do exercício da ação penal que age, assim, por direito próprio no interesse supra individual da comunidade e não em representação da Administração Tributária enquanto lesada.
9. Por isso mesmo, num processo penal orientando pelo princípio da legalidade (art. 219.º da CRP), o Ministério Público deve promover e o juiz (reunidos os respetivos pressupostos legais, é claro) deve declarar perdidos a favor do Estado as vantagens decorrentes da prática do crime.
10. Resulta da sentença referida que foi provada a prática de um facto ilícito típico, consubstanciado na não entrega ao Estado e consequente apropriação, por parte do arguido R. M. no montante global de €49.621,82.
11. Tais factos consubstanciam a prática do crime de abuso de confiança fiscal, pelo qual o arguido foi condenado.
12. As necessidades quer de prevenção especial quer de prevenção geral e a necessidade do reforço da vigência da norma impõe que seja determinada a requerida perda de vantagens.
13. Assim, deve ser declarada perdida a favor do Estado, a vantagem patrimonial no montante de €49.621,82 que, através do facto ilícito típico (abuso de confiança fiscal, traduzido na não entrega do montante de IVA devido ao Estado), foi adquirida pelos arguidos.
14. Ao julgar improcedente o pedido de declaração de perda das vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 7.º do CPP, 110.º e 130.º, ambos do Código Penal.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.
Não houve resposta ao recurso.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, no qual conclui: «O recurso do Ministério Público visando a declaração de perda em favor do Estado da vantagem resultante da prática pelo arguido de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do RGIT, deverá ser julgado improcedente, em conferência, porquanto não resultou provado que aquele tenha obtido em resultado do não pagamento das contribuições à Segurança Social no tempo devido quaisquer vantagens, ou seja, lucros, benefícios ou compensações.»
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).

1. Questão a decidir

Saber se o arguido R. M. deve ser condenado no pagamento de 49 621,82 €, correspondente à vantagem patrimonial da atividade criminosa por si desenvolvida.
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2. Factos Provados

Segue-se a transcrição dos factos considerados provados na sentença recorrida.
«Resultou provada a seguinte matéria de facto:
Do processo n.º 12/17.1IDBRG e respetivo apenso C
a) A sociedade arguida Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA., tinha por objeto a exploração e gestão de centrais de receção e monitorização de alarmes de roubo e intrusão, bem como a gestão, manutenção e exploração de sistemas de segurança e vigilância de bens móveis e imóveis, sob o CAE 80100, enquadrando-se para efeitos do Imposto sobre o Valor Acrescentado – adiante designado pela sigla I.V.A. – no regime normal de periodicidade mensal;
b) A arguida C. R. é gerente de direito da sociedade arguida desde a sua constituição, no ano de 2004;
c) Contudo, a arguida C. R. nunca exerceu efetivamente a gerência da sociedade arguida, pelo que não era ela quem decidia o pagamento ou não das prestações tributárias devidas, quem contratava ou despedia funcionários, quem contactava com clientes e/ou fornecedores, desconhecendo a eventual existência de dívidas fiscais;
d) Na verdade, era o pai da arguida, R. M. quem, desde o início da atividade da referida sociedade e em concreto nos períodos tributários em análise nos presentes autos, exercia efetivamente a gerência da sociedade arguida e quem, além do mais, ordenava o processamento dos salários pagos aos respetivos empregados, tratava dos assuntos relacionados com os clientes, os fornecedores, a banca e a administração fiscal, procedendo, neste último caso, ao pagamento das prestações tributárias devidas por aquela sociedade, limitando-se a arguida C. R. a assinar os necessários documentos sempre que tal lhe era solicitado pelo seu pai;
e) No âmbito da referida atividade, a sociedade arguida prestou serviços, relativamente aos quais liquidou o I.V.A. correspondente;
f) A sociedade arguida, nos períodos abaixo indicados, liquidou I.V.A. a diversos clientes e procedeu à entrega da respetiva declaração periódica de I.V.A., conforme quadro que se segue:
Período a que respeita a

Infração
I.V.A. recebido até à data limite de

pagamento
Maio de 201113780,34€
Junho de 201119071,70€
Julho de 201120263,11€
Agosto de 201120350,49€
Setembro de 201120356,44€
Outubro de 201119045,42€
Dezembro de 201116331,44€
Abril de 201218611,63€
Maio de 201218322,40€
Junho de 201218137,91€
Julho de 201212284,52€
Agosto de 201212526,55€
Setembro de 201211758,32€
Outubro de 201216855,71€
Novembro de 201216697,34€
Dezembro de 201213877,45€
Janeiro de 201313052,43€
g) Não obstante, R. M., em representação da sociedade arguida, decidiu não entregar, juntamente com as declarações periódicas, os referidos montantes de I.V.A., que recebeu, o que não veio a fazer, nem no prazo para cumprimento de cada uma das obrigações supra indicado, nem nos 90 dias subsequentes, nem nos 30 dias contados da notificação para pagamento do imposto em dívida, juros compensatórios e valor mínimo da coima, notificados que foram pessoalmente, quer os arguidos pessoas singulares, enquanto tal, quer na qualidade de legal representante da sociedade arguida, nos termos do disposto no artigo 105º, n.º 4, alíneas a) e b), do R.G.I.T., assim se apropriando, gerindo e utilizando, dos ditos montantes de I.V.A., em proveito da sociedade arguida;
h) R. M. sabia que tais importâncias que recebeu a título de I.V.A. não pertenciam à sociedade Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA., mas sim ao Estado e que deveria entregá-las simultaneamente com as declarações periódicas respetivas nos competentes Serviços de Cobrança do I.V.A. nos prazo legais, mas não o fez, das mesmas se apropriando em benefício da sociedade arguida;
i) Atuou o arguido R. M. na qualidade de representante de facto da sociedade Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA., atuando em nome e no interesse da mesma, com o intuito de causar prejuízo ao Estado Português, como de facto causou, pois que, ao não entregar à Administração Fiscal os supra ditos montantes de I.V.A., diminuiu as receitas tributárias e, por via disso, lesou o erário público da Fazenda Nacional nos supra referidos montantes;
j) R. M. atuou pela forma supra descrita, sempre movido, quer pela circunstância de ser depositário de tais quantias fiscais e pela facilidade com que assim acedia às mesmas, quer pelas dificuldades financeiras da sociedade Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA., apropriando-se em proveito da mesma, continuadamente e sempre que conviesse à mesma, dos montantes de tal imposto;
k) R. M. agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
l) Do total de I.V.A. em falta respeitante aos meses de maio de 2011, junho de 2011, julho de 2011, agosto de 2011, setembro de 2011, outubro de 2011, abril de 2012, maio de 2012 e junho de 2012 apenas se encontra em dívida 198160,35€, na sequência de vários pagamentos efetuados;
m) No que se refere ao I.V.A. em falta respeitante aos meses de julho, agosto e setembro de 2012 e janeiro de 2013, mantém-se em dívida a totalidade do valor;
n) Era o arguido R. M. quem igualmente contratava pessoal, procedia ao pagamento dos salários e efetuava as deduções a tais remunerações correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social, entregando o respetivo montante à Segurança Social;
o) Assim, a sociedade Y - SEGURANÇA PRIVADA, LDA., e o arguido R. M., em seu nome e representação, no âmbito da atividade desenvolvida e no período temporal acima identificado, na qualidade de entidade empregadora, pagaram regularmente os salários aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários e deduziram no valor das remunerações pagas as cotizações devidas à Segurança Social às taxas legais de 11%;
p) Não obstante ter preenchido e enviados as correspondentes declarações mensais de remunerações, o arguido, mediante um plano previamente delineado, não procedeu à entrega, nem até ao dia 10 do mês seguinte a que dizia respeito, nem nos 90 dias posteriores ao termo desse prazo, das cotizações previamente deduzidas e retidas, nos montantes, taxas e períodos que, de seguida, se discriminam:
Mês de referênciaTotal de remuneraçõesCotizações Trabalhadores
Janeiro de 201349971,45€5496,86€
Fevereiro de 201335971,28€3956,84€
Março de 201337379,54€4111,75€
Abril de 201313866,01€1525,26€
Maio de 20137313,87€804,53€
Junho de 20131497,29€164,70€
Julho de 20131310,19€144,12€

q) Notificadas a sociedade e o arguido R. M., em 6 de abril de 2018, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T., não procederam ao pagamento, no prazo de trinta dias, da quantia em dívida;
r) Assim agindo, logrou o arguido R. M. apropriar-se do montante do montante de global de 16204,06€ (dezasseis mil, duzentos e quatro Euros e seis Cêntimos), fazendo da sociedade Y - SEGURANÇA PRIVADA, LDA., as referidas quantias, utilizando-as em proveito daquela sociedade, não obstante saber que as quantias deduzidas das remunerações dos trabalhadores não pertenciam à mesma e das mesmas não podia dispor, mais sabendo que devida entrega-las à Segurança Social no prazo legal imposto;
s) O arguido, após não ter entregue pela primeira vez os montantes destinados à Segurança Social que havia deduzido nas referidas remunerações, resolveu praticar o mesmo tipo de conduta ao longo dos meses/anos seguintes, agindo enquanto gerente de facto da sociedade Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA.;
t) Agiu, durante o lapso de tempo referenciado, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos atos criminosos, atuando com base numa suposta situação de impunidade por falta de fiscalização da omissão das obrigações fiscais, por não lhe ser exigido, de imediato, o pagamento das quantias devidas e servindo-se dos mesmos métodos que sucessiva e repetidamente se foram revelando aptos para atingir os seus fins;
u) Agiu o arguido com o propósito deliberado, e que concretizou, de deduzir as mencionadas quantias e de as não entregar à Segurança Social, e de reverter e despender em benefício da sociedade Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA., sua representada, as quantias deduzidas, assim enriquecendo, desde logo, o património da sociedade, em igual montante e prejudicando a Segurança Social em valor equivalente;
v) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento
w) Mantém-se em dívida a totalidade do valor supra referido na alínea r) da matéria de facto provada;

Com relevo para ambos os processos supra identificados
x) A sociedade Y - SEGURANÇA PRIVADA, LDA., nos períodos supra referidos, atravessou graves dificuldades financeiras, as quais acarretaram problemas de tesouraria, relacionadas com dívidas de clientes, dificuldades essas que culminaram com a declaração de insolvência da sociedade arguida declarada no âmbito do processo n.º 5558/13.1TBBRG do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga; -
y) O processo de insolvência supra referido foi entretanto encerrado após o rateio final, tendo sido cancelada a matrícula da sociedade;

Do apenso D
z) A sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., foi constituída a 12 de outubro de 2011 como sociedade por quotas e a 30 de agosto de 2013 foi transformada em sociedade anónima;
aa) Tal sociedade possui atualmente sede na Avenida …, n.º …, em …, mas à data dos factos em apreciação tinha sede no Parque Industrial de …, Rua de …, lote …, em Braga;
bb)O objeto social da sociedade arguida consiste na “vigilância de móveis e de imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção de entrada de armas, substancias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, designadamente estabelecimentos, certames e convenções; a proteção pessoal, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças de segurança e a exploração e gestão de centrais de receção e monitorização de alarmes e ainda atividades de formação no âmbito da segurança.”;
cc) Desde a sua constituição e até 10 de abril de 2015, data em que renunciou ao cargo, o arguido R. M. era o gerente/administrador de facto e de direito da sociedade arguida, e como tal, responsável por toda a atividade nela desenvolvida, dando as instruções e as ordens a ela atinentes, e, em seu nome e no seu interesse, decidia da afetação dos respetivos meios financeiros ao cumprimento das suas obrigações correntes, designadamente junto da Autoridade Tributária e Segurança Social;
dd)Assim, entre outras incumbências, o arguido era responsável pelo preenchimento e entrega mensal ao Centro Regional de Segurança Social de Braga das folhas de remuneração pagas pela sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, bem como pela dedução e entrega – em nome desta – do montante relativo às contribuições efetivamente deduzidas naquelas remunerações e entregues pela sociedade com a sua própria contribuição, nos termos e prazos legalmente previstos;
ee) No período de março de 2013, abril de 2013, junho de 2013 a novembro de 2014, o arguido R. M., em representação da sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., efetuou o desconto nos salários dos seus trabalhadores das contribuições legalmente devidas por aqueles à Segurança Social, nos termos estipulados no artigo 56.º e n.º 1 do artigo 59.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, artigos 37.º e 38.º, 40.º, 43.º e 53.º, todos da Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, descontos que perfizeram a quantia de 36.523,22€ (trinta e seis mil, quinhentos e vinte e três Euros e vinte e dois Cêntimos), acrescida dos respetivos acréscimos legais;
ff) Porém, após ter descontado e retido aquelas contribuições, em todo o período atrás discriminado – não obstante ter preenchido e enviado as folhas de remuneração aos serviços de Segurança Social nos meses em referência, – não procedeu à entrega dos montantes respetivos à Segurança Social, até ao dia 10 do mês seguinte àquele a que as mesmas respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após aquelas datas, nos termos definidos no artigo 105.º, n.º 4, alínea a), do R.G.I.T., antes se tendo apropriado das importâncias respetivas, que sabia pertencerem e serem devidas à Segurança Social, afetando as mesmas em proveito da sociedade arguida;
gg)Assim, nos meses em questão, o arguido efetuou o desconto, nos salários dos trabalhadores da sociedade arguida, das contribuições legalmente devidas por aqueles à Segurança Social, mas não procedeu à sua entrega naquela instituição, nos termos a seguir discriminados:

Mês/AnoSalários pagosTaxaCotizações retidasCotizações retidas e não pagas
Mar/1325.230,30€11%2.775,33€2.775,33€
Abr/1325.343,19€11%2.787,75€2.787,75€
Jun/1333.389,24€11%3.672,82€2.335,21€
Jul/1330.906,36€11%3.399,70€3.317,48€
Ago/1323.168,95€11%2.548,58€1.903,42€
Set/1323.052,03€11%2.535,72€2.535,72€
Out/1322.348,92€11%2.458,38€2.458,38€
Nov/1320.983,71€11%2.308,21€2.308,21€
Dez/1319.889,67€11%2.187,86€2.187,86€
Jan/1415.951,65€11%1.754,68€1.754,68€
Fev/1413.680,40€11%1.504,84€1.504,84€
Mar/1410.484,60€11%1.153,31€1.153,31€
Abr/1410.162,50€11%1.117,88€1.117,88€
Mai/149.625,12€11%1.058,76€1.058,76€
Jun/149.456,40€11%1.040,20€1.040,20€
Jul/149.587,63€11%1.054,64€1.054,64€
Ago/149.797,01€11%1.077,67€1.077,67€
Set/149.543,68€11%1.049,81€1.049,81€
Out/1410.908,26€11%1.199,91€1.199,91€
Nov/1411.427,22€11%1.256,99€1.256,99€
TOTAL---------------------------------------36.523,22€

hh)A sociedade arguida e o arguido foram notificados nos termos e para os efeitos do n.º 4, alínea b), e do n.º 6 do artigo 105.º do R.G.I.T., no dia 11 de abril de 2019, mas não procederam ao pagamento do respetivo montante;
ii) A sociedade arguida encontra-se a cumprir plano prestacional de regularização de divida tendo já regularizado diversos períodos, encontrando-se atualmente em dívida o valor de 13863,80€ (treze mil, oitocentos e sessenta e três Euros e oitenta Cêntimos);
jj) Atuou o arguido R. M. exprimindo e vinculando a vontade da referida sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., e procurando a satisfação dos interesses da mesma;
kk)Ao agir do modo descrito, omitindo a entrega àquela instituição de Segurança Social dos montantes das contribuições referidas descontadas nos salários dos trabalhadores da sociedade arguida, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência que ficava na situação de fiel depositário desses valores que assim passaram a pertencer aos cofres do Estado, perante quem se constituiu, em nome e em representação daquela sociedade, na obrigação legal de os entregar nos prazos e locais previstos na lei, apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançou, para a sociedade arguida um indevido e ilegítimo beneficio patrimonial, não permitiu à Segurança Social o devido recebimento de tais contribuições, delas se apoderando;
ll) O arguido, por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, sabia que tal conduta era proibida e punida por lei;
Com relevo para todos os processos
mm) O arguido R. M. é divorciado;
nn) Encontra-se reformado;
oo) Aufere a pensão mensal de 806,00€ líquidos;
pp) Completou o Curso Geral de Comércio, com equivalência ao 9.º ano de escolaridade;
qq) Vive com uma filha e uma irmã com 50 anos de idade e portadora de deficiência;
rr) Vive em casa arrendada, pagando a renda mensal de 250,00€;
ss) A sociedade arguida continua atualmente em laboração, tendo cerca de 230 (duzentos e trinta) a 240 (duzentos e quarenta) funcionários, labora em instalações arrendadas, pagando a esse título a quantia mensal de 355,00€ (trezentos e cinquenta e cinco Euros), possuindo encargos com o pessoal na ordem dos 50000,00€ (cinquenta mil Euros) mensais;
tt) No âmbito do processo comum singular n.º 235/14.9IDBRG, por sentença datada de 2 de dezembro de 2016, transitada em julgado no dia 16 de janeiro de 2017, relativamente a I.V.A. devida pela sociedade Y – SEGURANÇA PRIVADA, LDA., respeitante aos meses de maio de 2011, junho de 2011, julho de 2011, agosto de 2011, setembro de 2011, outubro de 2011, abril de 2012, maio de 2012, junho de 2012, outubro de 2012, novembro de 2012 e dezembro de 2012, o arguido R. M. foi condenado na pena de 200 (duzentos) dias de multa, a 6,50€ (seis Euros e cinquenta Cêntimos) por dia, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, do R.G.I.T., e pelo artigo 30.º, n.º 2, do C.P
uu)A pena de multa supra referida foi declarada extinta pelo seu pagamento;
vv) No âmbito do processo comum singular n.º 1013/15.3IDPRT do Juízo Local Criminal de Gaia – Juiz 1, por sentença datada de 11 de fevereiro de 2019, transitada em julgado no dia 12 de março de 2019, relativamente ao mês de outubro de 2015 e a I.V.A., a sociedade arguida X – SEGURANÇA PRIVADA, S.A., foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do R.G.I.T., tendo sido dispensada de pena.»
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III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recurso encontra-se circunscrito à improcedência do pedido formulado pelo Ministério quanto à perda da vantagem patrimonial, no montante de 49 621,82 €, com fundamento no artigo 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Código Penal.
Da sentença recorrida resulta que o arguido R. M. foi condenado como autor de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05 de junho – RGIT), no qual está incluído o recebimento, a título de IVA, da quantia de 49 621,82€, e sua não entrega à Administração Tributária (AT), o que corresponde, indiscutivelmente, a uma quantia de que o Estado ficou desapossado e constitui uma vantagem da respetiva atividade criminosa desenvolvida.
Por outro lado, resulta também dos autos que foi intentada e se encontrava pendente execução fiscal relativamente àquela mesma quantia, motivo pelo qual o Ministério Público não deduziu pedido de indemnização civil.
Neste contexto, o Tribunal a quo entendeu que embora a quantia recebida a título de IVA e não entregue à AT, no quadro da comissão de um crime de abuso de confiança fiscal, constitua vantagem que pode ser declarada perdida a favor do Estado; face à inexistência de pedido de indemnização civil do Estado (o ofendido), que através da Autoridade Tributária optou pela execução fiscal, ficou inviabilizada a possibilidade de o Ministério Público requerer a respetiva declaração de perda. Para o que se fundamenta na condição de salvaguarda dos direitos do ofendido, estabelecida no artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal.
Vejamos.
Sobre a perda das vantagens regula atualmente o artigo 110.º, n.º 1, al. b), nº 4 e nº 6, do Código Penal (na redação introduzida pela Lei 30/2017, de 30.05, a que nesses pontos correspondia o anterior artigo 111.º, nºs 2 e 4), nos seguintes temos:
«1. São declarados perdidos a favor do Estado:
a) …; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
(…)
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A »
(…)
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.»
A interpretação deste normativo não é unânime – designadamente no que respeita ao seu nº 6 – sobre ele se afirmando, essencialmente, duas correntes doutrinais e jurisprudenciais distintas.
A primeira, na qual se inclui a sentença recorrida e, entre muitos outros, o acórdão do TRP nela citado, de 22.03.2017, processo nº 84/15.7T9FLG.P1, relatado por Airisa Caldinho (2), defende, como sintetiza o sumário desse aresto, que «Não há lugar ao decretamento da perda de vantagens (artºs 111º CP) se o Estado (A.T.) optou pela recuperação do seu crédito de imposto através da execução fiscal, arredando o MºPº de intervenção na recuperação daquela quantia por considerar ter meios suficientes para cobrança coerciva desse imposto.».
Em sentido contrário, João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues (3) sustentam que a existência de pedido de indemnização civil ou a sua ausência, assim como a instauração de execução de execução fiscal, não impedem a declaração da perda de vantagens do crime, face ao interesse público subjacente a tal instituto, podendo ser o próprio Estado a entregar (restituir) ao lesado o produto da perda de vantagem.
Nesta última corrente, na qual nos incluímos, com reflexo em inúmeras decisões jurisprudenciais, citamos, a título exemplificativo, o acórdão deste TRG de 21.02.2022, processo nº 127/19.5IDBRG.G1, relatado por Cândida Martinho, em cujo sumário se pode ler: « Uma vez formulado pelo Ministério Público, titular da ação penal, o respetivo pedido de declaração de perda das vantagens, preenchendo a factualidade provada um facto ilícito típico e dele tendo resultado vantagens para o seu agente, o tribunal terá de declarar a perda de tais vantagens patrimoniais, exceto se for demonstrado que já foram recuperadas, que o ofendido já foi ressarcido, caso em que a perda não pode ser decretada, por se ter cumprido o fim da declaração da perda das vantagens.
II - A decisão de declaração da perda de vantagens é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando-se com ela reconstituir a situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, de modo a ficar sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”. III - A perda de vantagens deve ser decretada sempre que se verifiquem os seus fundamentos, não constituindo obstáculo à formulação de tal pedido por parte do Ministério Público, titular da ação penal, e à posterior declaração de perda, a opção por parte da Autoridade Tributária de não formular pedido de indemnização civil por considerar suficientes os meios legais previstos para a execução fiscal.»

Efetivamente, como sustentam os autores João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues (4), «O legislador português, ao invés do sistema alemão tradicional que tanto tem influenciado a nossa dogmática, optou por um sistema misto. A letra do artigo 111º, nº2, do Código Penal e, sobretudo, a sua conjugação com a letra e o espírito do artigo 130º, nº2, do mesmo diploma legal (e, até, com o artigo 127º, nº 3, do CPP), não deixam margem para qualquer dúvida razoável. A obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade egoística de qualquer indivíduo, mas salvaguarda, igualmente, os seus direitos, nomeadamente através da adjudicação dos bens declarados perdidos ou do produto da sua venda às vítimas.
(…) a lei não distingue: o artigo 130º do Código Penal é muito claro, não excecionando nenhuma situação, designadamente aqueles casos em que a vítima já dispõe de formas legais para recuperar os ativos de que foi privada. Por isso mesmo, uma vez que a lei não distingue, também nós não podemos distinguir: «Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus». O julgador não pode sobrepor a sua interpretação à letra da própria lei, subvertendo o seu espírito e a sua ratio. Ao contrário de outros sistemas legais, que como referimos consagraram a preferência do pedido de indemnização civil ou de outras formas de ressarcimento sobre o confisco (de tal forma que havendo possibilidade abstrata não deverá haver declaração de perda) o legislador português como (insistimos) resulta claramente do artigo 130º do Código Penal, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do ius imperium estadual. Essas formas de reparação têm de sujeitar-se ao confisco e não ao contrário, devendo a articulação ser feita a posteriori»
No caso de haver já execução fiscal ou mesmo a dedução de pedido de indemnização civil, a declaração de perda da vantagem só beneficia o credor que, como adiantam os mesmos autores, «passa a dispor de dois títulos executivos que pode utilizar alternativamente e que têm âmbitos subjetivos distintos. O que ele jamais poderá fazer (é obvio) é executar duas vezes a mesma quantia.
(…) para a execução de uma determinada quantia podem existir diferentes títulos (…), nada impede, por isso, que a Autoridade Tributária utilize uma certidão de dívida para instaurar um processo de execução fiscal (…) e ao mesmo tempo, obtenha, através do pedido de indemnização civil, uma sentença penal condenatória que sirva, igualmente, de título executivo (…).
Cabe depois, à Administração Tributária (como a qualquer outro credor) decidir qual destes títulos utiliza para execução dos tributos (créditos) em dívida e se os utiliza para procedimentos de natureza coerciva ou voluntária (eventual acordo de pagamento fracionado: o que não pode fazer, insistimos mais uma vez, é executar duas vezes a mesma quantia).
Por outro lado, também não poderemos considerar que a execução fiscal ou mesmo a dedução do pedido de indemnização civil constituem sempre formas suficientes para assegurar as finalidades subjacentes ao confisco. Desde logo, na medida em que a efetivação da responsabilidade tributária depende não só do cumprimento da ortodoxia formal prevista pelo legislador tribuário para a enunciação da exigibilidade do tributo devido, como do cumprimento de diversos prazos, nomeadamente de caducidade (v.g 45º da Lei Geral Tributária). Estas exigências, sendo adequadas a garantir a efetividade da cobrança do tributo na generalidade dos casos, não se compadecem com as exigências que se verificam na deteção dos esquemas de evasão fiscal mais complexos, designadamente aqueles concretizados mediante a interposição de entidades não residentes em território nacional ou comunitário. Nas situações em que a Administração Fiscal não pode cobrar o imposto porque este deixou de ser exigível no âmbito da responsabilidade tributária, não é sequer pacífico que possa obter tais montantes mediante recurso à dedução do respetivo pedido de indemnização civil.
Nestes casos restará pois ao Estado (enquanto legítimo destinatário dos montantes) recorrer ao mecanismo ablativo do confisco das vantagens, previsto no artigo 111º, nºs 2 e 4, do Código Penal, para, deste modo, demonstrando que o crime não compensa, assegurar o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito».
Assim, face à proficiência dos argumentos expendidos, que carecem de mais desenvolvimentos, deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando-se a perda das vantagens patrimoniais obtidas com a prática do crime dos autos.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, decretando-se a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida com a prática do crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada em causa nos presentes autos, no valor de 49.621,82 € (quarenta e nove mil seiscentos e vinte e dois euros e oitenta e dois cêntimos), condenando-se o arguido R. M. no seu pagamento ao Estado, sem prejuízo dos direitos da Autoridade Tributária relativos à prática do mesmo crime e da dedução do montante de eventuais pagamentos que hajam sido feitos a esse título.
Sem tributação.
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Guimarães, 7 de novembro de 2022
(Revisto pela relatora)

Fátima Furtado (Relatora)
Armando Azevedo (1º Adjunto)
Cândida Martinho (2ª Adjunta)



1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Disponível em www.dgsi.pt.
3. Em anotação ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.11.2016 – Revista Julgar, Online, janeiro de 2017, O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/01/20170123-ARTIGO-JULGAR-Confisco-e-pretens%C3%A3o-da-Autoridade-Tribut%C3%A1ria-J-Conde-Correia-e-H%C3%A9lio-R-Rodrigues.pdf.
4. Op. citada na nota de rodapé anterior.