Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
309/16.1T8CMN-B.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: DOCUMENTO COMPROVATIVO DA CONCESSÃO DO APOIO JUDICIÁRIO
DOCUMENTO COMPROVATIVO DO PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA
FALTA DE APRESENTAÇÃO
CONSEQUÊNCIAS
ULTERIOR CONCESSÃO DE APOIO JUDICIÁRIO
TUTELA DA CONFIANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário ou daquele que comprova o pagamento da taxa de justiça tem como consequência a possibilidade da secretaria recusar a petição inicial (art. 558º, f), do CPC); não sendo a petição recusada pela secretaria, a consequência é a da recusa da distribuição da petição (art. 207º, nº1, do CPC).

II – Na sequência da recusa da petição ou da recusa de distribuição, pode a parte limitar-se a proceder à junção do documento comprovativo em falta nos 10 dias subsequentes, nos termos previstos no artigo 560º do CPC, considerando-se, nesse caso, a ação proposta na data da apresentação da petição inicial recusada.

III – Não tendo a secretaria procedido em conformidade com o legalmente previsto – isto é, tendo a secretaria errado – e sabendo-se que, nos termos do no nº 6 do art. 157º do CPC, "os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes", jamais tal erro da secretaria pode conduzir à aplicação à parte de uma multa que, tivesse a secretaria procedido corretamente, nunca lhe seria aplicada.

IV – A necessária harmonização da lei processual civil com a Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais exige que, quando a insuficiência económica seja concomitante à propositura da ação, ainda que a concessão do dito apoio só venha a ocorrer em momento ulterior à propositura da ação, o apoio judiciário produza os seus efeitos desde a data do respetivo requerimento (devidamente comprovado nos autos).

V – Mesmo para quem assim não entenda, o princípio da proteção da confiança em relação à atividade judicial - consubstanciada na proteção de expectativas criadas por habituais menos rigorosos e menos exigentes procedimentos dos tribunais - sempre demandará que se considere legítima a interpretação de que a junção aos autos do comprovativo do apoio judiciário concedido em cumprimento do solicitado pela secretaria conduz à regularização do processado, sobretudo quando tal interpretação se mostra consolidada pelo ulterior normal prosseguimento dos autos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Na ação declarativa proposta por A. M. contra L. D., Unipessoal, Lda. e outros, na sequência de requerimento da referida sociedade Ré a pedir o desentranhamento da petição inicial “por falta de apresentação de DUC e respetivo pagamento da taxa de justiça” ou de comprovativo de concessão de apoio judiciário nos termos do nº 4 do art. 552º do CPC, foi proferido despacho que determinou se notificasse a Autora para, nos termos do art. 145º n. 3 do CPC, proceder e comprovar nos autos o pagamento da taxa de justiça no prazo de dez dias, acrescida de multa de igual montante, mas não inferior a 1UC nem superior a 5UC - art. 570º n. 3 do CPC.

Inconformada, a Autora recorreu desta decisão apresentando as seguintes conclusões:

– A secretaria do Juízo de competência Genérica de Caminha, do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, recebeu P.I. de ação de reinvindicação de bens imóveis, sem que estivesse comprovado o pagamento da taxa de justiça devida, ou o comprovativo do apoio judiciário concedido, tendo, posteriormente a referida secretaria, notificado a A/Recorrente para no prazo de 10 dias vir juntar aos autos resposta ao requerimento de apoio judiciário, o que a A/Recorrente cumpriu, tendo ficado sanada a falta.
– A A/Recorrente foi agora confrontada, passados dois anos da receção da P.I. pela secretaria, com douto despacho, em que é notificada para proceder ao pagamento da taxa de justiça acrescida de multa de igual montante.
– Pelo facto, à A/Recorrente foi-lhe cerceada a possibilidade de nos termos do artigo 560º do NCPC, ver recusada a P.I., dando à A/Recorrente de aperfeiçoar a P.I., evocando a urgência da entrega desta, beneficiando do apoio judiciário na modalidade de isenção da taxa de justiça e demais encargos com o processo (conforme lhe foi concedido) e sem multa.
– A A/Recorrente considera-se vitima de um erro judiciário (error júris), resultado da omissão da secretaria, que a prejudica ou e a impossibilitou de praticar o ato sem ter que liquidar taxa de justiça, acrescida de multa.
– Não lhe tendo sido oferecidas as mesmas oportunidades, estamos perante um sistema que conforme a atuação/omissão põe em causa os direitos legalmente protegidos, nomeadamente o direito à igualdade na aplicação da lei pelos Tribunais.
- Sabendo que “ Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.”, art. 157º, nº 6 do NCPC.

Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido e que, em consequência, se delibere a suspensão dos posteriores trâmites da presente ação até decisão a proferir na ação declarativa comum nº 309/16.1T8CMN.

Não houve contra-alegações.

Efetuado convite ao aperfeiçoamento, a Recorrente veio retirar das suas conclusões o excerto em que requeria a suspensão da ação, restringindo a sua pretensão à mera revogação do despacho recorrido.

Nesta fase, veio, por seu turno, a Recorrida sociedade, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, requerer a junção de, segundo a mesma:

a) Acórdão proferido pela Relação de Guimarães, 2.ª Secção Cível, de 09/11/2017, proferido nos autos do processo 243/14.0TBCMN-D.G1, junto a estes autos principais com a Ref. 1746320;
b) Requerimento apresentado pela Recorrida que precedeu a sua contestação nos autos principais, com a Ref. 1288865.

A referida junção foi indeferida por despacho da Relatora.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do NCPC).

Assim sendo, no caso, é a seguinte a questão a decidir:

- Saber se, num caso de falta de comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou de comprovativo do apoio judiciário concedido, tendo a secretaria, ao invés de ter recusado a petição ou a distribuição da ação, notificado o autor para no prazo de 10 dias vir juntar aos autos “resposta ao requerimento de apoio judiciário” – cujo comprovativo o autor havia junto com a petição – e depois de aquele, em resposta ao solicitado, ter junto comprovativo do apoio judiciário concedido, recai sobre a parte a obrigação de proceder ao pagamento da taxa de justiça e da multa prevista no art. 570º, nº 3, do CPC.
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III - FUNDAMENTOS

Os Factos

- É de considerar que:

1. A Autora, ao propor, em 03.11.2016, a ação em causa, juntou documento comprovativo do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos, apresentado em 17.10.2016, não procedendo à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial, nem invocando qualquer motivo justificativo da urgência da propositura da ação.
2. A secretaria não recusou a petição, nem houve recusa de distribuição.
3. Foram enviadas cartas para citação dos réus.
4. A 10.11.2016, a secretaria remeteu notificação à mandatária da Autora para vir juntar aos autos resposta ao requerimento de apoio judiciário apresentado.
5. Em 21.11.2016, a Autora veio juntar aos autos a decisão da Segurança Social que lhe concedeu o apoio judiciário na modalidade requerida (decisão datada de 15.11.2016).
6. Efetuadas as citações, o processo prosseguiu os seus normais termos até à audiência prévia.
7. Na audiência prévia, em 05.12.2018, a juíza a quo proferiu o despacho recorrido, cujo teor integral é o seguinte:

Nos termos do art. 552 n. 3 do CPC " O autor deve juntar à petição inicial o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo".

Porém, tratando-se de citação urgente ou verificando-se outra razão de urgência, o autor pode apenas apresentar documento comprovativo do pedido de apoio judiciário requerido, mas ainda não concedido, nos termos do nº 5 do citado art. 552º do CPC.

Dispõe o art. 558º al. f) do CPC que a secretaria deve recusar a petição inicial, além do mais, quando a parte não tenha cumprido o disposto no nº 3 do art. 552º do CPC, excepto no caso previsto no nº 5 do mesmo artigo.

No caso, a autora ao propor a presente acção, juntou documento comprovativo do pedido do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos, não procedendo à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça inicial, nem invocando qualquer motivo justificativo da urgência da propositura da acção.

Só posteriormente é que veio juntar aos autos a decisão da Segurança Social que lhe concedeu o apoio judiciário na modalidade requerida.

Não tendo a autora procedido ao pagamento da taxa de justiça e não tendo invocado qualquer motivo da urgência da acção, a secretaria deveria ter recusado a petição inicial, permitindo à autora lançar mão das faculdades previstas nos arts 559º e 560º ambos do CPC, ou seja, reclamar da recusa do recebimento da petição inicial e, no caso, da confirmação da recusa, apresentar outra petição ou juntar o documento referido na citada al. f) do art. 558º do CPC.

A secretaria, porém, não recusou a petição inicial, razão pela qual está precludida, nesta fase, a possibilidade de aplicar as aludidas disposições legais, sendo certo que nos termos do no nº 6 do art. 157º do CPC, "os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes".

Claramente que o recebimento da petição inicial nos termos referidos, precludindo a possibilidade de, em tempo, a autora lançar mão das indicadas faculdades legais, a prejudica, designadamente porque a presente acção deu entrada há dois anos. Assim, quanto a nós não pode o Tribunal aplicar o disposto das citadas disposições legais, mormente recusar a petição inicial.

Cumpre assim, definir o regime aplicado à situação em apreço, já que o autor instaurou a presente acção sem proceder ao pagamento da taxa de justiça e sem que se tenha invocado qualquer razão de urgência.

Em nosso entendimento, deve aqui ser aplicado o disposto no nº 3 do artº 145º do CPC, pois como se disse e se reafirma, já não é possível aplicar a disciplina especificamente prevista para a petição inicial.

Assim sendo, determino que se notifique a autora para, nos termos do art. 145º n. 3 do CPC, proceder e comprovar nos autos o pagamento da taxa de justiça no prazo de dez dias, acrescida de multa de igual montante, mas não inferior a 1UC nem superior a 5UC - art. 570º n. 3 do CPC.

Enquanto não for efectuado o pagamento da taxa de justiça inicial (porque a taxa de justiça subsequente já não é devida, atenta a concessão de apoio judiciário), não podem os presentes prosseguir, pelo que ficam a aguardar o decurso de tal prazo.
***
O Direito.

Como já se disse, a questão que se coloca é a de saber se, num caso de falta de comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou de comprovativo do apoio judiciário concedido, tendo a secretaria, ao invés de ter recusado a petição ou a distribuição da ação, notificado o autor para no prazo de 10 dias vir juntar aos autos “resposta ao requerimento de apoio judiciário” – cujo comprovativo o autor havia junto com a petição –, recai sobre a parte, depois de, em resposta ao solicitado, ter junto comprovativo do apoio judiciário concedido, a obrigação de proceder ao pagamento da taxa de justiça e da multa prevista no art. 570º, nº 3, do CPC.

Isto é, saber se, nessa situação, na falta de regulação expressa, se deverá considerar aplicável, por analogia, o disposto no art. 145º, nº 3, do CPC, conforme decidido, “in casu”, pela primeira instância, com a consequente cominação prevista no art. 570º, nº 3, do mesmo código, ou seja, com o acréscimo ao pagamento omitido de multa de igual montante (mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC).

Vejamos.

Nos termos do art. 552º, nº 3, do CPC, “o autor deve juntar à petição inicial o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo”.

A título de exceção, preceitua o nº 5 do mesmo preceito que, “sendo requerida a citação nos termos do artigo 561.º, faltando, à data da apresentação da petição em juízo, menos de cinco dias para o termo do prazo de caducidade ou ocorrendo outra razão de urgência, deve o autor apresentar documento comprovativo do pedido de apoio judiciário requerido, mas ainda não concedido”.

Fora dos referidos casos, a falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário ou daquele que comprova o pagamento da taxa de justiça tem como consequência a possibilidade da secretaria recusar a petição inicial (art. 558º, f), do CPC); não sendo a petição recusada pela secretaria, a consequência é a da recusa da distribuição da petição (art. 207º, nº1, do CPC).

Na sequência da recusa da petição ou da recusa de distribuição, pode a parte reclamar para o juiz ou, tão só, limitar-se a proceder à junção do documento comprovativo em falta nos 10 dias subsequentes, nos termos previstos no artigo 560º do CPC, considerando-se, nesse caso, a ação proposta na data da apresentação da petição inicial recusada.

Sendo as supra referidas as consequências legalmente previstas para a falta da junção dos comprovativos a que alude o art. 552º, nº 3, do CPC, desde logo se nos afigura óbvio que na situação em apreço nunca, sobre a Autora, poderia recair consequência mais gravosa do que aquela prevista no citado art. 560º – junção, no prazo de 10 dias, do comprovativo do pagamento da taxa de justiça –, o que, por si só, sempre implicaria a exclusão de aplicação de qualquer multa.

Com efeito, não tendo a secretaria procedido em conformidade com o legalmente previsto – isto é, tendo a secretaria errado – e sabendo-se que, nos termos do no nº 6 do art. 157º do CPC, "os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes", como a própria decisão recorrida enfatiza, jamais tal erro da secretaria poderia conduzir à aplicação à Autora de uma multa que, tivesse a secretaria procedido corretamente, nunca lhe seria aplicada.

Afastando a aplicação de qualquer sanção, Salvador da Costa, in “Regulamento das Custas Processuais Anotado”, Almedina 2013, 5ª ed., pág. p. 436-439, sugere que nos casos em que, ao contrário do que seria o legalmente adequado, a instância se iniciou, uma vez detetada, durante a tramitação do processo, a omissão do comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida relativa à petição ou requerimento inicial, o juiz profira despacho a ordenar que o processo aguarde que o autor ou o requerente o junte, sem prejuízo do disposto no artigo 281º, nº1, do CPC, ou seja, da deserção da instância, com a consequente extinção da mesma (art. 277º, c, do mesmo código).

Expressando idêntico entendimento, vejam-se, entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra de 16.10.2014 (Relator Jorge Manuel Loureiro) e de 11.10.2017 (Relatora Maria João Areias).

Assim sendo, no particular caso de não junção de comprovativo de pagamento da taxa de justiça mas de comprovação, sem invocação de urgência, da apresentação de requerimento para obtenção de apoio judiciário – situação configurada nos autos –, mesmo para quem eventualmente defenda que, não obstante ulterior comprovação da concessão do requerido, o autor sempre está obrigado ao pagamento da taxa de justiça inicial, o supra exposto imporia, sempre, a concessão àquele de oportunidade para, após tomada de posição do juiz sobre a matéria, efetuar junção do comprovativo do pagamento da dita taxa, sem o acréscimo de qualquer multa.

A questão que remanesce é, pois, apenas, a de saber se, num caso de ulterior junção de comprovativo de deferimento do apoio judiciário requerido antes da propositura da ação, será sequer exigível o pagamento da taxa de justiça inicial.

Aparentemente, no sentido da não exigibilidade de tal pagamento, pode ver-se o sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 20.04.2010 (Relatora Maria do Rosário Gonçalves): “Não recusando a secretaria o recebimento da petição inicial, deverá o juiz conceder um prazo ao autor, para demonstrar nos autos a concessão de apoio judiciário, emanado dos serviços competentes para o efeito”.

Nesse mesmo sentido – isto é, preconizando o prosseguimento da ação mediante a mera apresentação do comprovativo do apoio judiciário ulteriormente concedido –, decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 7 de junho de 2018 (Relatora Maria Manuela B. Santos G. Gomes).

Para o efeito, considerou-se neste último que “tendo a parte, entretanto, sido dispensada de proceder ao pagamento da dita taxa, por via do deferimento e concessão ao Autor do benefício do apoio judiciário, devendo as normas ser integradas, ponderadas e aplicadas em função do ordenamento jurídico de que fazem parte, razão não se vislumbra para inutilizar todo o processado por causa da preterição de uma formalidade, regularizada, excepto se tal redundasse em prejuízo ou desigualdade de armas entre as partes.

Ou seja, não obstante o A. não ter dado cumprimento à obrigação legalmente imposta no momento da apresentação da p. inicial – juntar documento comprovativo da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa da taxa de justiça e outros encargos – alcançado esse cumprimento e assegurada plenamente a respectiva finalidade em momento ulterior, razões ínsitas ao princípio da economia processual, aliado ao dever de gestão processual (art. 6º do CPC), impunham que se tivesse como sanada a falta verificada e se ordenasse o andamento do processo, tanto mais que a ré fora até já citada e contestou (cfr. ainda art. 157º nº 6 do CPC)”.

Por seu turno, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa parecem sugerir que nesses casos poderá não haver tão-pouco lugar à recusa da petição: “Quando se trate de petição inicial, é de observar o regime concretamente definido nos arts. 552º, nº 3, 558º, al. f), e 560º, nos termos dos quais a falta de comprovação do prévio pagamento da taxa de justiça devida ou da concessão de benefício de apoio judiciário (ou, pelo menos, da formulação do pedido, caso ainda não haja decisão) determina a recusa da petição inicial pela secretaria (salvo no caso particular referido no art. 552º, nº 5)” (in CPC Anotado, I, pág. 174).

Nesse sentido, também, o acórdão da Relação de Lisboa de 28/11/2013, proferido no âmbito do processo 2645/13.0TBBRR.L1-6.
Que posição adotar?

O custo do serviço “justiça” é pago através de taxas: a taxa tem como contrapartida a prestação deste serviço e, via de regra, é paga no momento em que se pratica o ato ao qual a taxa diz respeito.

Na versão original do CPC, a falta de pagamento de preparo dava lugar à extinção da instância (art. 287º, f), a falta de preparo inicial ou das custas pelo recorrente dava lugar à deserção do recurso (art. 292º, nº 1), a falta de preparo inicia pelo réu ou recorrido dava lugar ao desentranhamento da contestação ou das alegações de recurso (art. 110º, nº 2, do CCJ), etc.

Entendeu-se, porém, que “o direito de acesso aos tribunais impunha a supressão destas cominações”, o que foi feito com a revisão do CPC (José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, À Luz do Código Revisto”, pág. 93).

Assim, atualmente, “as exigências consagradas na lei acerca da comprovação do pagamento da taxa de justiça devida pela prática de atos processuais são acompanhadas de mecanismos tendentes a evitar automatismos cominatórios que ponham em causa o direito material” (Abrantes Geraldes e outros, obra citada, I, pág. 175).

Suprimidas as anteriores cominações, o que o legislador se propôs evitar com a nova regulação da matéria foi o desenvolvimento do iter processual e da prestação do serviço em causa sem ter garantida a correspondente contrapartida, o que tentou fazer prevendo a recusa da petição inicial no caso de falta de comprovativo do pagamento da taxa de justiça ou, em alternativa, de comprovativo de concessão de apoio judiciário.

Sendo esta a razão de ser das consequências previstas, se, erradamente, a secretaria não recusou a petição mas, diferentemente, notificou o autor para comprovar nos autos “a resposta ao requerimento de apoio judiciário” e, antes de ter havido oportunidade de qualquer tomada de posição pelo juiz do processo, o autor comprovou nos autos a concessão do dito apoio judiciário – requerido, recorde-se, em momento prévio à propositura da ação –, a nosso ver, nenhum sentido faz exigir daquele o pagamento da taxa de justiça de que, comprovadamente, já foi dispensado.

Por outro lado, impõe-se proceder a uma leitura harmoniosa das diversas disposições legais com pertinência para a questão em apreço, não se podendo olvidar a preponderância que, entre tais disposições, alcançam as normas relativas ao apoio judiciário e o espirito que às mesmas subjaz.

Nos termos da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (Acesso ao Direito e aos Tribunais) têm direito a proteção jurídica aqueles que demonstrem estar em situação de insuficiência económica (art. 7º, nº 1), entendendo-se que se encontra em situação de insuficiência económica aquele que não tem condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo (art. 8º, nº 1), decorrendo do disposto no art. 18º, nº 2, do mesmo diploma que o exigido pelo legislador é que o apoio judiciário seja requerido antes da primeira intervenção processual e que a insuficiência económica na base de tal requerimento seja concomitante à interposição da ação, não sendo legítimo penalizar-se o autor em função do maior atraso, por parte das autoridades administrativas, na decisão da concessão do apoio em causa, certo que “o acesso ao direito e aos tribunais é um direito constitucionalmente consagrado, com mecanismos próprios para ser posto em prática, não podendo a lei ordinária conflituar com tal princípio” (cfr. citado Acórdão da Relação de Lisboa de 07.06.2018).

Assim sendo, se é evidente que, quando superveniente a insuficiência económica justificadora da concessão de apoio judiciário no decurso da ação, a decisão que defere esse pedido não tem efeito retroativo, já nada impedirá – pelo contrário, a necessária harmonização da lei processual civil com a Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais assim parece exigi-lo – que, quando a insuficiência económica seja concomitante à propositura da ação, o apoio judiciário produza os seus efeitos desde a data do requerimento, prévio a tal propositura, para o efeito apresentado.

A corroborar este entendimento, veja-se que, nos casos de urgência, o legislador se basta com o comprovativo da apresentação do pedido e a ulterior concessão de apoio judiciário já no decurso do processo, valendo esse apoio desde o momento da instauração da ação (art. 552º, nº 5, do CPC) e que, por outro lado, o art. 560º do CPC nenhuma distinção faz, relativamente ao comprovativo da concessão de apoio judiciário a juntar nos casos de recusa da petição, entre o comprovativo que se refira a decisão prévia à propositura da ação e aquele que se refira a decisão posterior a esse momento.

No caso concreto, deve, aliás, anotar-se que, indevidamente, as citações foram efetuadas antes da junção aos autos do comprovativo do apoio judiciário concedido, só depois tendo a Autora sido notificada para juntar ao processo a decisão relativa ao pedido comprovado no processo, o que, de novo, sucedeu por erro da secretaria.

Assim, mais não seja por força deste outro lapso, ainda que se entendesse que a solução legal passava pelo pagamento da taxa de justiça, tendo a Autora satisfeito a solicitação que lhe foi efetuada nos termos em que foi notificada e no prazo geral de 10 dias, os princípios da previsibilidade e da confiança, que são uma das vertentes do Estado de Direito Democrático consagrado no artº 2 da Constituição da República Portuguesa, sempre imporiam que se aceitasse como regularizada a situação em apreço, uma vez que, “devendo as secretarias judiciais atuar nos termos da lei e segundo as orientações do juiz de que dependem, as partes hão de poder confiar naquilo que os funcionários judiciais lhes transmitam ou levem a cabo” (Abrantes Geraldes e outros, obra citada, pág. 193).

Mais precisamente, o princípio da proteção da confiança em relação à atividade judicial - consubstanciada na proteção de expectativas criadas por habituais menos rigorosos e menos exigentes procedimentos dos tribunais - sempre demandaria que, no caso, se considerasse legítima a interpretação de que o cumprimento do solicitado conduziria à dita regularização, mais ainda quando tal interpretação se viu consolidada pelo prosseguimento do processo ao longo de mais de dois anos após a junção aos autos do comprovativo do apoio judiciário concedido, sendo, pois, justa a incompreensão manifestada pela Autora face à decisão recorrida.
Procede, pois, a apelação, com a consequente retoma do normal prosseguimento do processo.

Sumário

I – A falta de apresentação do documento comprovativo da concessão do apoio judiciário ou daquele que comprova o pagamento da taxa de justiça tem como consequência a possibilidade da secretaria recusar a petição inicial (art. 558º, f), do CPC); não sendo a petição recusada pela secretaria, a consequência é a da recusa da distribuição da petição (art. 207º, nº1, do CPC).
II – Na sequência da recusa da petição ou da recusa de distribuição, pode a parte limitar-se a proceder à junção do documento comprovativo em falta nos 10 dias subsequentes, nos termos previstos no artigo 560º do CPC, considerando-se, nesse caso, a ação proposta na data da apresentação da petição inicial recusada.
III – Não tendo a secretaria procedido em conformidade com o legalmente previsto – isto é, tendo a secretaria errado – e sabendo-se que, nos termos do no nº 6 do art. 157º do CPC, "os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes", jamais tal erro da secretaria pode conduzir à aplicação à parte de uma multa que, tivesse a secretaria procedido corretamente, nunca lhe seria aplicada.
IV – A necessária harmonização da lei processual civil com a Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais exige que, quando a insuficiência económica seja concomitante à propositura da ação, ainda que a concessão do dito apoio só venha a ocorrer em momento ulterior à propositura da ação, o apoio judiciário produza os seus efeitos desde a data do respetivo requerimento (devidamente comprovado nos autos).
V – Mesmo para quem assim não entenda, o princípio da proteção da confiança em relação à atividade judicial - consubstanciada na proteção de expectativas criadas por habituais menos rigorosos e menos exigentes procedimentos dos tribunais - sempre demandará que se considere legítima a interpretação de que a junção aos autos do comprovativo do apoio judiciário concedido em cumprimento do solicitado pela secretaria conduz à regularização do processado, sobretudo quando tal interpretação se mostra consolidada pelo ulterior normal prosseguimento dos autos.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, consequentemente, determina-se a retoma do normal prosseguimento do processo.
Custas pela Recorrida sociedade.
Guimarães, 28.03.2019

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues