Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
895/13.8TBGMR-C.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
REMUNERAÇÃO DE TERCEIRO
AUXILIAR DO CABEÇA DE CASAL
ACORDO PROCESSUAL INTERLOCUTÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Cabe ao cabeça de casal apresentar as contas que lhe são exigidas pelos demais herdeiros, relacionando quer as receitas, quer as despesas.
II – O cargo do cabeça de casal é gratuito, pelo que não pode o mesmo socorrer-se dos serviços remunerados de terceiros para executar o seu trabalho.
III – Assim, a remuneração a esse terceiro não pode ser tida como despesas da herança.
IV – É válido o acordo processual interlocutório, celebrado entre as partes, através do qual elas reduzem, de comum acordo, os pedidos inicialmente formulados.
Decisão Texto Integral:
A, M e AL, todos melhor identificados nos autos, na qualidade de interessados nos autos de inventário ao qual este processo foi apenso, vieram intentar AÇÃO ESPECIAL DE PRESTAÇÃO DE CONTAS contra o ali cabeça-de-casal AL, seu pai, desde a data em que o mesmo assumiu funções.
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Citado o Réu, por este foram apresentadas contas, concluindo por um saldo (credor), desde a morte do inventariado até 31 de dezembro de 2015, de € 74.115,03 (setenta e quatro mil cento e quinze euros e três cêntimos).
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As contas apresentadas foram contestadas, nomeadamente as despesas pagas a F, a título de subvenção mensal de € 200,00, situação que não autorizaram nem aceitam; despesas de deslocações a Lisboa, às vezes referentes a duas pessoas, que não se acham documentadas; despesas não comprovadas referentes a processo judicial e honorários; e despesa com perícias, pareceres e ações, injustificadas e excessivas.
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O Réu apresentou resposta à contestação, articulado admitido ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil a fim de garantir o contraditório.
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Após realização de audiência prévia, foi designada data para a realização da audiência de julgamento, tendo as partes nessa audiência reduzido o âmbito do litígio, limitando-se as questões a decidir à apreciação das despesas efetuadas com o assistente, inclusive com despesas de deslocações e refeições e ainda com os imóveis de Lisboa.
Nessa mesma audiência o mandatário do requerido comprometeu-se a juntar aos autos os recibos em falta relativos a honorários do Ilustre Advogado Dr. Teixeira e Melo, que serão assim aceites pelos requerentes. *
Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo procedente a ação, considerando validamente prestadas as contas da herança até 31 de dezembro de 2015.
Julgo injustificadas as despesas referidas no montante de 25.859,76€ (vinte e cinco mil oitocentos e cinquenta e nove euros e setenta e seis cêntimos), fixando como saldo positivo a quantia de 179.975,82 € (cento e setenta e nove mil novecentos e setenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos).
Condeno o Réu no pagamento aos Autores do saldo apurado, deduzido de € 20.000 (vinte mil euros) - quantia que se julga necessária para os encargos do novo ano -, na proporção dos respetivos quinhões hereditários…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o R interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
“1. Todas as deslocações que o cabeça de casal fez a Lisboa acompanhado do Senhor F foram no interesse da herança;
2. E não o foram no interesse exclusivo do cabeça de casal;
3. As tarefas executadas pelo F são de características técnicas e não meramente administrativas, nomeadamente: de contabilidade, de organização escritural e administrativa; de análise fiscal para obtenção de isenção de IMI dos prédios em centro histórico; de análise construtiva de obras particulares para organização de dossiers relativa a obras nos prédios da Rua D. João I e Dr. Avelino Germano, ambas em Guimarães; de análise financeira para conciliação bancária relativa às aplicações financeiras e receitas e despesas da herança.
4. Por isso, tais despesas devem ser consideradas efectuadas e justificadas no interesse da herança, devendo ser pagas por esta.
5. A mesma apreciação do Tribunal relativa às despesas no montante de 1.896,97€ exarada no primeiro parágrafo da pag. 6 da sentença em recurso deve ser tida para a despesa constante do paragrafo seguinte, devendo ser esse o montante de 1 896,97€ reconhecido como despesa da herança.
6. A colaboração do F foi valiosa e vantajosa para a Herança, tendo resultado avultada economia, não só pelo facto de este executar serviços que teriam de ser pagos com avultadas quantias se encomendadas a profissionais liberais, como se demonstra pelos documentos juntos,
7. Mas, ainda, porque, com a sua colaboração na análise dos dossiers na Câmara de Lisboa relativos a obras coercivas nos prédios da herança foi possível verificar um erro em desfavor da Herança de 80.000,00€.
8. E com a isenção de IMI que se obteve através da intervenção de F, a Herança obteve uma economia de 3.420,01 €, como se demonstra pelos documentos juntos.
9. Por isso, as despesas de dormida e alimentação nas deslocações do cabeça de casal a Lisboa acompanhado de F devem ser consideras no interesse da herança e o seu custo por esta suportado;
10. E também a subvenção mensal ao mesmo Senhor no montante de 9.000,00€, o deve ser, dada a sua valia e qualidade técnica.
11. No que diz respeito às despesas com honorários com Advogado, Dr. Luís Teixeira e Melo, no montante de 16.051,50€ referida no segundo parágrafo da página 7 da sentença, tais despesas encontram-se aceites pelos herdeiros e, por se tratar de direitos disponíveis, devem ser consideradas autorizadas e justificadas.
12. E, assim, ser considerada justificada a despesa no montante de 25.859,76€, pelo que (…)
1. Deve ser dado provimento a este recurso;
2. E, em consequência, a sentença recorrida ser substituída por outra que julgue justificadas as despesas havidas e pagas ao Senhor F no montante de 9.808,26€ e ao Distinto Advogado, Dr. Luís Teixeira e Melo, no montante de 16.051,50€, tudo no montante de 25.859,76€…”.
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Pelos recorridos foram apresentadas contra-alegações nas quais pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se deveriam ser consideradas justificadas as despesas apresentadas pelo cabeça de casal, no valor de € 25.859,76.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:
1. No dia 10 de Dezembro de 2011 faleceu J, no estado de viúvo, com único filho, AL.
2. O inventariado deixou testamento público onde, além do mais, instituiu herdeiros do remanescente da sua quota disponível, em comum e partes iguais, os seus três únicos netos, aqui AA., A, M e AL.
3. É o Réu cabeça-de-casal da herança.
4. O Réu apresentou nestes autos contas até 31 de dezembro de 2015, com as receitas e despesas relacionadas, e que aqui se dão como reproduzidas.
5. Desde o falecimento do inventariado e até ao dia 31 de dezembro de 2015, a herança obteve de receitas € 253.214,15.
6. As rendas dos prédios sitos na cidade de Lisboa são pagas, atualmente, através da "ALP - Associação Lisbonense de Proprietários", já o tendo sido através de "M. FELIX & SILVA, LDA" que já representava o proprietário no tempo do "de cujus".
7. O Réu pagou € 9.000 de subvenções, correspondente a € 200 mensais, a Fernando Guedes, que foi chamado por este, com a oposição dos demais interessados, para o auxiliar na gestão da herança.
8. O Réu solicitou à sociedade "Sete Telhados, Lda." relatório técnico que serviu de suporte para a ação administrativa contra a Câmara Municipal de Lisboa.
Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram outros factos para além dos supra referidos ou que com estes estejam em contradição, não se provando os factos não sustentados em documentação…”.
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Insurge-se o recorrente contra a decisão recorrida que, na apreciação das contas por si prestadas e respectivos comprovativos, decidiu julgar "injustificadas as despesas referidas no montante de 25,859,76€”.
Trata-se das seguintes despesas:
- Subvenção de 200,00€ mensais, no total de € 9,000,00, pagos pelo cabeça de casal a F, seu assessor, alegadamente no interesse da herança;
- Despesas de deslocações a Lisboa, alegadamente para gestão de imóveis da herança, relacionadas com aquele assessor, no valor de € 411, 29 e de € 396,97; e
- Despesas de Advogado no montante de 16,051,50€.
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Quanto às subvenções pagas a F, refere-se na decisão recorrida que "…no tocante às subvenções pagas a F, no montante de € 9.000 (nove mil euros) - sustentadas nos documentos impugnados juntos a fls. 230, 328, 385, 554, 607, 489, 554, 693, 739, 840, 894 e 920 - as mesmas não se podem considerar justificadas, bem como as despesas comprovadas de hospedamento e refeições com o mesmo, contabilizadas a metade do demonstrado, e que ascendem a € 411,29 [€ 152,24 de fatura de hotel (docs. 70-2 e 70-3), € 85 de fatura de hotel (docs. 106-1 e 106-2), € 85 de fatura de hotel (docs. 129-3 e 129-4) e faturas de restauração juntas imputadas a metade, respetivamente de € 11,85, € 9,38, € 15,30, € 15, € 10,62, € 15 e € 10,90 (docs. 106-3, 129-1, 129-2, 231-1 e 231-3, 193-1 e 193-2)].
Relativamente a estas viagens a Lisboa, que se encontram demonstradas nos termos da prestação de contas nos dias 24-01-2012, 13-02-2012, 29-02-2012, 04-07-2012, 12-09-2012, 01-10-2012, 12-07-2013, 29-10-2013, 28-11-2013 e 09-01-2014, foram registadas como despesas que não se encontram comprovadas, no montante global de € 1896,97 (referentes a combustível, portagens, refeições, etc.)…”.
Como motivação substantiva, a Mma Juiz consignou que “o inventário não pode ser sobrecarregado com o pagamento de encargos não previstos, a menos que se trate de serviço prestado por terceiro profissional qualificado, em matéria eminentemente técnica, e o serviço prestado pelo Fernando Guedes, em que não se tratou de exigência técnica, mas de uma avença cuja remuneração se não justifica".
E acrescenta: “O cabeça-de-casal não é um mandatário ou gestor de negócios, é um mero administrador, a quem é deferida uma tarefa precária, não por competência funcional, mas por proximidade do inventariado. Não obstante os encargos que lhe podem derivar da administração, o seu cargo é gratuito (artigo 2094º do Código Civil) (…).
“E aqui se coloca a primeira questão levantada, que é a de saber se não sendo o cargo do cabeça de casal remunerado, é justificado o recurso a terceiros, com remuneração, para exercer competências próprias do cabeça-de-casal.
Aos interessados não importa que as funções sejam exercidas pelo cabeça-de-casal ou por terceiro, mas que o inventário siga os seus termos, não podendo ser sobrecarregados, em geral, com o pagamento de um encargo não previsto.
Obviamente que se o serviço prestado por terceiro for premente e necessário para garantir a integridade dos bens da herança e com conteúdo estritamente técnico, que exija a intervenção até de profissional qualificado, o encargo pode ser pontualmente devido como encargo da herança.
Entendemos ser o que acontece com a intervenção da ALP, que presta um serviço à herança que já era prestado no tempo do falecido por outra sociedade, justificada pela distância a que se encontram. Também por identidade de razão, pelo estudo técnico efetuado para apoio nos processos administrativos referentes aos prédios de Lisboa.
Mas tal não acontece nos autos com o pagamento de subvenção mensal a terceiro, onde não se tratou de um serviço de exigência técnica, pontual, mas uma avença, que não se justifica a sua remuneração, com as funções que correspondem às do cabeça-de-casal e que não são legalmente remuneradas…”.
E nada temos a objectar á decisão proferida neste ponto.
O que se referiu, no fundo, foi que os serviços prestados pelo assessor, remunerados com uma avença mensal, vão contra o disposto no artº 2094º do CC que institui que o cargo do administrador da herança é gratuito.
Ora, ao aceitar-se a remuneração mensal fixada pelo cabeça de casal ao assessor está a desvirtuar-se o sentido da lei, transferindo-se a remuneração (indevida) do cabeça de casal para um terceiro, que executa as funções da competência do cabeça de casal.
Claro que o recorrente contrapõe a essa consideração (conclusões 1 a 10) que todas as deslocações que fez a Lisboa, acompanhado do Senhor Fernando Guedes, foram no interesse da herança; que as tarefas executadas pelo Fernando Guedes são de características técnicas e não meramente administrativas, nomeadamente: de contabilidade, de organização escritural e administrativa, de análise fiscal para obtenção de isenção de IMI dos prédios em centro histórico, de análise construtiva de obras particulares para organização de dossiers relativa a obras nos prédios da Rua D. João I e Dr. Avelino Germano, ambas em Guimarães, de análise financeira para conciliação bancária relativa às aplicações financeiras e receitas e despesas da herança; que a colaboração do Fernando Guedes foi valiosa e vantajosa para a Herança, tendo resultado avultada economia, não só pelo facto de este executar serviços que teriam de ser pagos com avultadas quantias se encomendadas a profissionais liberais, mas, ainda, porque, com a sua colaboração na análise dos dossiers na Câmara de Lisboa relativos a obras coercivas nos prédios da herança foi possível verificar um erro em desfavor da Herança de 80.000,00€; e que com a isenção de IMI que se obteve através da intervenção de F, a Herança obteve uma economia de 3.420,01 €.
Acontece que, apesar de o recorrente fazer apelo a matéria de facto por si alegada na resposta à contestação - no sentido de justificar a intervenção do acessor em defesa dos interesses da herança -, não impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, não cumprindo – nem aludindo sequer – ao preceito legal atinente a essa matéria, nomeadamente ao artº 640º do CPC.
Donde, termos de concluir que o mesmo aceita a decisão da matéria de facto nos termos fixados, sendo com base nela que deverão ser apreciadas as questões colocadas, constando apenas daquela matéria de facto, quanto à despesa em causa, que “o Réu pagou € 9.000 de subvenções, correspondente a € 200 mensais, a Fernando Guedes, que foi chamado por este, com a oposição dos demais interessados, para o auxiliar na gestão da herança” (ponto 7), ou seja, que se fez acompanhar de um acessor na administração da herança, a quem pagou, com a oposição dos demais interessados.
Ora, como flui do disposto no art. 2079º do CC, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de- casal, sendo essa administração qualificada como ordinária – nela não cabendo, portanto, poderes de disposição de bens sem o consentimento dos demais interessados -, cabendo-lhe apenas a prática de actos e negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens que constituem o acervo hereditário (Cfr. Lições de Direito das Sucessões”, vol. 2º, p. 55, de Capelo de Sousa, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2º, p. 62, de Manuel de Andrade, Partilhas Judiciais, vol. 1º, p. 304 e segs., de Lopes Cardoso e Direito Civil- Sucessões, p. 495, de Oliveira Ascensão).
Pegando nos dizeres da lei, a administração do cabeça-de-casal está apenas ao serviço do património hereditário, que deve ser exercida com zelo e prudência (alínea b) do n.º 1 do art. 2086º do CC). Excedida essa prudência, cessa a obrigação da herança de custear despesas que com ela não contendam, que se reputam, assim, da exclusiva responsabilidade de quem as efetuou (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. III, 4. a ed., p. 84).
Reiteramos, por isso, como se fez na decisão recorrida, que a subvenção paga ao assessor, por parte do cabeça de casal, contra a vontade dos demais interessados, extravasa os poderes de administração da herança, não sendo justificadas essas despesas nas contas apresentadas.
E o mesmo se passa quanto às despesas apresentadas com as deslocações a Lisboa, relacionadas com o referido avençado, nos valores de 411,29 € e de 396,97€, sendo a sua não aprovação pelo tribunal recorrido uma mera sequela do decidido a propósito da subvenção paga. Não sendo julgada pertinente ou necessária a "assessoria", obviamente que aquelas despesas de deslocação não se mostram igualmente justificadas.
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Quanto às despesas de Advogado, no montante de 16,051,50€, que o tribunal considerou não se mostrarem justificadas nos autos, a questão já não é tão pacífica.
Em jeito de intróito, começamos por dizer que a acção especial de prestação de contas está regulada nos artºs 941º e segs. do CPC e que pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e a aprovação de receitas obtidas e despesas realizadas por quem administra bens alheios.
Trata-se de uma acção especial que materializa processualmente o princípio civilístico mais geral que é o da obrigação ou do dever de informar, consagrado no artº 573 do Código Civil, o qual exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a dúvida fundada do titular de um direito sobre a sua existência ou o seu conteúdo, e a existência de outrem em condições de prestar as informações necessárias.
Ora, caso concreto e particular de prestação de informações é o de prestação de contas, obrigação que deve ser entendida não como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem, mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento (artº 944º nº 1 e 3 do CPC).
Serve esta pequena introdução para esclarecer que quem está obrigado a apresentar contas – nomeadamente o cabeça de casal – tem o ónus, não só de as relacionar (em forma de conta-corrente) e justificar a sua proveniência, mas também de as comprovar documentalmente, se essa prova lhe for exigível.
Se o ónus da prova onera a parte a quem o facto aproveita, é o R. que deve provar as despesas que leva às contas, sobretudo se os AA se opõem às despesas por ele apresentadas - no sentido de que são superiores ou injustificadas.
Nesse caso, é sobre o R que impende o ónus de provar os factos por si alegados, demonstrando não só a realização das despesas, mas que as mesmas tiveram a ver com os bens administrados, no exercício da sua administração.
No caso em apreço a prestação de contas foi exigida pelos autores ao R., seu pai, cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu avô e o réu veio prestar contas (944º do CPC), que os AA vieram contestar, nomeadamente as despesas relacionadas com honorários de advogados, questionando não só o seu montante, mas os próprios serviços prestados.
Perante o quadro descrito, caberia ao R. a demonstração das despesas efectuadas – relacionadas com acções judiciais e honorários ao mandatário – e que as mesmas tiveram como única beneficiária a herança por ele administrada.
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Acontece que, como decorre do relatório deste acórdão, as partes na audiência de julgamento reduziram o âmbito do litígio, limitando as questões a decidir à apreciação das despesas efetuadas com o assistente, inclusive com despesas de deslocações e refeições e ainda com os imóveis de Lisboa.
E nessa mesma audiência acordaram ainda que o mandatário do requerido comprometeu-se a juntar aos autos os recibos em falta relativos a honorários do Ilustre Advogado Dr. Teixeira e Melo, que serão assim aceites pelos requerentes.
Ou seja, as partes acordaram na audiência de julgamento restringir o objecto do litígio a duas questões: as despesas com o acessor e as despesas de honorários (sujeitas apenas estas últimas à junção dos respectivos recibos em falta).
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Analisado o comportamento das partes perante o litígio, é às partes que incumbe a definição do objecto do processo, a matéria ou assunto sobre o qual o tribunal é chamado a pronunciar-se. Este objecto é constituído por dois elementos: o pedido e a causa de pedir.
O pedido é o efeito jurídico que se pretende conseguir por via da acção, a forma de tutela jurisdicional requerida para um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido e a causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar o direito ou interesse invocado pela parte, o facto ou acto de que, no entender da parte, o direito procede.
O objecto do processo tem, desde logo, uma relevância intraprocessual, dado que condiciona o objecto da decisão, visto que aquilo que é pedido e alegado pela parte é aquilo que pode ser apreciado e decidido pelo tribunal.
Como corolário do princípio da disponibilidade privada, o tribunal não pode apreciar mais do que aquilo que a parte pediu. Caso o faça, a decisão é nula por excesso de pronúncia, o que se verifica sempre que o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado. Vale, portanto, neste domínio, um princípio de identidade ou coincidência: o objecto da decisão deve coincidir com o objecto do processo.
É ao autor que cabe definir, logo na petição inicial, o seu pedido – e deve formulá-lo com toda a precisão e uma vez formulado o pedido e logo que o réu se mostre citado, o pedido deve, em princípio, manter-se o mesmo.
Mas o princípio não é absoluto: o autor pode, no decurso da instância, modificar o seu pedido, para coisa diversa, para menos – ou para mais.
Neste domínio há que fazer uma distinção entre os casos em que as partes estão de acordo na modificação, e os casos em que o réu não consente na alteração.
Havendo acordo das partes – hipótese mais rara - o pedido pode ser alterado em qualquer altura do processo, em primeira ou segunda instância, desde que a alteração não perturbe profundamente a instrução, discussão e julgamento da causa; os tribunais de instância só podem recusar a alteração, em defesa dos superiores interesses da boa instrução, discussão e julgamento da causa.
Ora, foi precisamente o que as partes fizeram nesta acção; reduziram, por acordo, o pedido formulado inicialmente pelos AA.
Um tal acordo é, nitidamente, um negócio processual, i.e., um acto processual de carácter negocial que modifica uma situação processual, mais exactamente, dado o seu carácter bilateral, um contrato processual – e um contrato processual interlocutório, dado que é realizado durante a pendência da causa, e se destina a conformar o objecto do processo e, por essa via, a respectiva decisão.
E a este negócio processual são aplicáveis as disposições gerais sobre a conclusão dos negócios e sobre a sua interpretação e integração (artºs 224º a 239º do Código Civil), pelo que pode concluir-se do mesmo que ao R. competiria apenas juntar aos autos os recibos emitidos pelo Dr. Teixeira e Melo – os quais seriam aceites pelos AA – para as despesas relacionadas com os honorários serem por eles aceites.
Efetivamente, a declaração negocial pode ser expressa ou tácita. Será expressa se consistir num comportamento finalisticamente ordenado para exprimir ou comunicar algo; será tácita, se consistir numa atitude da qual se deduza, com toda a probabilidade, a expressão ou comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo (artº 217 nº 1 do Código Civil).
Ora, do que ficou a constar naquela audiência, embora não de forma expressa – como aconteceu relativamente às despesas relacionadas com a acessoria – foi que as partes iriam limitar o objecto do litígio, quanto às despesas tidas com os honorários, ao comprovativo das mesmas despesas, ou seja, à junção dos recibos em falta emitidos pelo ilustre causídico.
Foi essa também, cremos, a interpretação que o R. fez da declaração emitida pelos AA, pois que, em cumprimento do assumido, juntou aos autos sete documentos (fls. 1320 a 1326), que os AA tiveram oportunidade de analisar, em prazo que lhes foi concedido para o efeito.
E assim, por requerimento de 19 de Setembro de 2016 os AA, depois de tecerem algumas considerações sobre os valores das notas de honorários apresentadas, concluem no ponto 3º daquele requerimento: "... os interessados, embora não estejam convencidos, concedem relativamente a esta parte das contas", acrescentando no ponto 4º: “Não podem fazer o mesmo quanto às despesas de deslocação a Lisboa e sobretudo no respeitante aos encargos com o “auxiliar” F…”.
De tudo quanto fica exposto resulta, cremos que de forma clara, que os AA acabam por aceitar como justificadas as despesas apresentadas pelo R com os honorários pagos ao Dr Luís Melo, as quais, perante todo o cenário descrito, deveriam ter sido consideradas como encargo da Herança.
Assiste assim razão ao recorrente, nesta parte, devendo a sentença ser revogada em conformidade.
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Sumário:
I – Cabe ao cabeça de casal apresentar as contas que lhe são exigidas pelos demais herdeiros, relacionando quer as receitas, quer as despesas
II- A ele caberá também justificar a proveniência das despesas, comprovando-as documentalmente, sempre que possível.
III – A menos que haja no processo acordo processual entre as partes que apenas imponha ao R a apresentação dos recibos do mandatário.
IV – É válido o acordo processual interlocutório, celebrado entre as partes, através do qual elas reduzem, de comum acordo, os pedidos inicialmente formulados.
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DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se Parcialmente procedente a Apelação e altera-se a decisão recorrida no seguinte sentido:
“Julgo injustificadas as despesas referidas no montante de € 9.808,26 (nove mil, oitocentos e oito euros e vinte e seis cêntimos), fixando como saldo positivo a quantia de 163.924,32 € (cento e sessenta e três mil, novecentos e vinte e quatro euros e trinta e dois cêntimos) …”.
Mantém-se, no mais, a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) por recorrente e recorridos, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique
Guimarães, 4.4.2017