Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
973/17.4T9BRG.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REQUISITOS
OMISSÃO DE FACTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, na sequência do arquivamento pelo Ministério Público, deve conter a descrição sintética dos elementos objectivos e subjectivos do(s) ilícito(s) imputado(s) ao arguido.

II - A omissão desses elementos determina a rejeição daquele requerimento, nos termos do disposto no Artº 287º, nº 3, do C.P.Penal, não havendo lugar, nessa hipótese, ao convite ao aperfeiçoamento
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 973/17.4T9BRG.G1, a correr termos na 3ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal dos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do disposto no Artº 277º, nº 2, do C.P.Penal, relativamente a factos participados por F. F. contra L. S., pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo Artº 205º do Código Penal.
*
2. A queixosa, tendo-se constituído assistente, notificada daquele despacho de arquivamento, veio requerer abertura da instrução, nos termos contantes de fls. 134/140 Vº, que a seguir se transcrevem (1), sustentando, a final, dever ser o arguido pronunciado “pela prática do crime constante do artº 205º do CP”:

“Exmo. Senhor JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL:

F. F., melhor identificada nos autos supra referenciados, em que é Assistente, vem aos autos supra identificados em que é Assistente, requerer nos termos do disposto no artigo 287º, nº 1, alínea b) do CPP, a ABERTURA DE INSTRUÇÃO,

nos termos e com os fundamentos seguintes:

1. Não pode a Denunciante, ora Assistente, conformar-se com os termos e fundamentos do, aliás, douto despacho de arquivamento que antecede,
2. porquanto, o mesmo não atende a qualquer uma das circunstâncias de facto que motivaram a apresentação da participação criminal pela Denunciante.
3. Desde logo, o douto despacho de arquivamento parte do pressuposto de que os elementos coligidos nos autos não são suficientemente claros para descortinar qual o acordo existente entre a Assistente e o Arguido, deparando-se com duas versões antagónicas no que concerne a tal matéria,
4. pois que o Arguido alegou que nunca se disponibilizou o guardar os bens a custo zero, exigindo o pagamento da quantia de € 1.810,00 (mil oitocentos e dez euros), ao invés do que alegou o Assistente.
5. Além disso, no versão apresentado também pelo Arguido o retenção dos bens pertencentes à Assistente são para garantia de pagamento de uma dívida,
6. motivo pelo qual entendeu o Digníssima Magistrado do Ministério Público que, se assim for, não se verifico o preenchimento de um dos elementos do crime sob investigação.

Sucede, contudo, que

7. tal pressuposto é erróneo e não tem qualquer fundamento de verdade como de seguida se demos trará.

Vejamos, pois:

8. A Assistente conheceu o Arguido através de amigos em comum, tendo com o mesmo, desenvolvido uma relação de amizade.
9. Não raras vezes, assim, o Assistente e o Arguido se encontravam no casa de amigos paro convívios, tendo o Assistente e o Arguido construído - ou, pelo mono. era essa o convicção do Assistente - um vínculo de confiança e respeito mútuo.
10. Nessa base, o Assistente, quando em meados do ano de 2016, se viu diante de uma potente situação de insuficiência económico-financeira, partilhou essa angústia com os seus amigos mais chegados, nomeadamente com o Arguido.
11. Por essa altura, o Assistente, que vivia com dois dos seus filhos, não estava o conseguir suportar as despesas da suo casa, pois o rendo que estava a pagar mensalmente era muito elevada face ao seu rendimento mensal naquele momento.
12. Por esse motivo, o Assistente decidiu denunciar o seu contrato de arrendamento e começar a procurar uma nova casa, com uma renda mais baixa.
13. Nesse interregno de tempo, o Assistente Iria morar na casa do seu irmão, com a sua filha mais nova, na altura, de 10 anos.
14. No entanto, a Ré necessitava de encontrar um local seguro e com condições de salubridade para acondicionar toda a mobília e electrodomésticos que tinha em sua casa e que lhe pertenciam.
15. Com efeito, a Assistente solicitou aos seus amigos ajuda nesse sentido.
16. E, inicialmente, a Assistente até ia guardar os seus bens na casa da sua amiga, F. G. sem qualquer custo ou contrapartida,
17. mas, depois, tal não foi possível, pois houve necessidade, por parte dessa amiga, de aí instalar a sua mãe.
18. A Assistente procurou alternativas, mas todas as suas tentativas de encontrar um local se mostraram goradas.

Ora,

19. a Assistente, aquando de um jantar em que participara na casa dos seus amigos, F. G. E AFONSO, em que o Arguido também se encontrava - cuja data já não sabe precisar, mas que foi em meados de 2016 -, acabou por comentar com os presentes as suas frustrações na localização de um espaço temporário para acondicionar os seus bens.
20. Nesse momento, o Arguido, dirigido à Assistente e perante todos os presentes, disse-lhe:

"Oh rapariga, não te preocupes mais, que o que eu tenho mais é espaço.
Guardas lá a tuas coisinhas e quando quiseres vais lá busca-Ias."
21. A Assistente, mesmo surpresa, ficou radiante com aquela predisposição por parte do Arguido em oferecer-lhe um espaço para guardar os seus bens.
22. Posto isto, até combinaram que, mais ou menos com um ou dois dias de antecedência, quando a Assistente tivesse já tudo preparado, que esta avisaria o Arguido para que ele pudesse também organizar os funcionários que iria disponibilizar para ajudar a transportar os bens, bem como o transporte.
23. Assim combinado, em dia que a Assistente já não sabe precisar também, mas que terá sido no decurso do mês de Junho de 2016, o Arguido deslocou-se à morada do apartamento onde a Assistente tinha os seus pertences, sito na Rua …, desta cidade de Braga, e com o auxílio de dois funcionários seus - ou, pelo menos, foi assim que o mesmo os apresentou à Assistente naquela circunstância de tempo e lugar - carregaram os bens do Assistente paro dentro de uma carrinho, que, segundo mencionou também o Arguido, era propriedade de uma sociedade sua.
24. Nesse dia, o Assistente tinha pedido também o dois amigos, o D. e a P. para a ajudarem a desmontar as mobílias e paro as transportar paro foro do prédio, o fim de serem carregadas, então, pelos funcionários do Arguido paro o transporte.
25. Ora, em nenhum destes precisos momentos, ou outros, o Arguido mencionou à Assistente que a disponibilização do espaço para guardar os seus bens configurava uma situação de arrendamento.
26. assim como nunca referiu que a Assistente teria que suportar o custo do transporte e o trabalho dos senhores que o Arguido levou - por sua conta e risco - ara efectuar o levantamento dos bens, nem precisou quaisquer valor para o efeito.
27. Porém, e para além de tudo isto, o Arguido nunca disse à Assistente - nem mesmo no momento do transporte dos bens da propriedade da mesma - qual a morada exacta do local para onde iria levar e aí guardar os seus bens,
28. assim como, por inerência, nunca lhe deu umas chaves para que a Assistente, quando quisesse e necessitasse, se deslocasse até ao local para proceder ao levantamento dos seus bens.
29. O Arguido apenas referiu à Assistente que iria colocar os bens desta num espaço que disse ser seu e que se localizaria na Maia - mas nunca lhe referiu sequer que o local ficava em Águas Santas - e que depois levaria lá a Assistente para ela saber onde ficava.
30. Vale isto por dizer que, é absolutamente falsa a versão - no mínimo, fantasiosa - contada pelo Arguido e vertida no Auto de Interrogatório de Arguido - datado de 27.06.2017-, segundo a qual o Arguido não disponibilizou um armazém ou algo semelhante a custo zero, ficando a Assistente ciente de tal facto,
31. e que tal garagem não era propriedade dele, havendo uma renda por si suportada.
32. O combinado entre ambos foi apenas que o Arguido iria gentilmente acomodar os bens da Assistente num espaço seu, temporariamente, apenas e só até ao momento em que a Assistente deles voltasse a necessitar,
33. momento em que esta deveria informar aquele e o mesmo lhe devolveria os seus bens.
34. E nada mais foi, a este título, conversado entre as partes. Assistente e Arguido.
35. Porém, e para além de tudo isto, o Arguido nunca disse à Assistente - nem mesmo no momento do transporte dos bens da propriedade da mesma - qual a morada exacta do local para onde iria levar e aí guardar os seus bens,
36. assim como, por inerência, nunca lhe deu umas chaves para que a Assistente, quando quisesse e necessitasse, se deslocasse até ao local para proceder ao levantamento dos seus bens.

Portanto,

37. é absolutamente falso que o Arguido tenha convencionado com a Assistente uma renda mensal de € 50,00 (cinquenta euros).
38. No que concerne ao transporte de bens e ao trabalho do pessoal com a carga e descarga dos bens da Ré, também nada foi transmitido pelo Arguido à Assistente, designadamente quais os custos associados.
39. O Arguido não apresentou à Assistente, nem no momento da carga e descarga dos bens desta, nem posteriormente, quaisquer facturas desses serviços e/ou quaisquer documentos contabilísticos relacionados de onde constassem os valores destes serviços em dívida.
40. Assim como nada juntou também aos presentes autos nesse sentido.
41. Desta feita, é, igualmente falso que a Assistente esteja em dívida para com o Arguido na importância de € 1.810,00 (mil, oitocentos e dez euros), por alegas rendas, transporte dos bens, trabalho de funcionários e qualquer quantia em dinheiro emprestada pelo Arguido à Assistente,
42. pois nada deve a Assistente aquele seja a que título for.

Não obstante isso - e continuando -,

43. após ter saído do seu anterior apartamento, o Assistente apercebeu-se que no caso do seu irmão iria necessitar de pelo menos uma mobília de quarto, pois o irmão apenas disponho de um compartimento não mobilado paro alojar o Assistente e o suo filho.
44. Em face disto, o Assistente, por altura de Julho de 2016, telefonou ao arguido e solicitou-lhe que este o acompanhasse ao local dos bens paro aí recolher uma mobília de quarto, de que estava necessitado.
45. Ora, foi precisamente nesse momento que o Arguido, e sem que nada o fizesse prever, começou o ter paro com o Assistente um discurso desviante relativamente ao convencionado entre as partes.
46. O Arguido começou por dizer que não se encontrava em momento disponível para atender ao pedido do Assistente.
47. E, posteriormente, quando o Assistente lhe ligava, dizia que não se encontrava em Portugal, mos que quando regressasse que entraria em contacto com o mesma paro lhe devolver os seus bens.
48. Porém, o retomo desses telefonemas por porte do Arguido à Assistente nunca acontecia e,
49. por fim, quando o Assistente ligava com o Arguido, este já não lhe atendia os chamadas.
50. Perante essa inércia do Arguido, a Assistente começou a ligar de outros contactos de telemóveis, designadamente de familiares seus, como o seu irmão, e de outros números de telemóvel que o Arguido não conhecia.
51. Por esse meio - com essa manobra - a Assistente conseguiu que o Arguido atendesse algumas chamadas, por meio das quais a Assistente lhe implorava pela devolução dos seus bens móveis.
52. Não obstante, o Arguido não só nunca atendeu aos seus apelos, como depois, bloqueava os contactos de telemóvel utilizados pela Assistente,
53. ou também usava ele próprio vários contactos de telemóvel - que muitas vezes não se encontravam operacionais quando a Assistente tentava telefonar para os mesmos.
54. Perante isto, e já mesmo desesperada, a Assistente, acompanhada da sua amiga P. no dia 04.10.2016, deslocou-se à sede da empresa do Arguido, sita …, Braga, para tentar falar pessoalmente com o Arguido e pedir-lhe a devolução dos seus bens móveis.
55. O Arguido não recebeu bem a Assistente e a sua amiga, tendo-lhes bloqueado a saída do veículo automóvel da Assistente,
56. obrigando a Assistente a chamar a GNR ao local.
57. O Arguido adoptou uma postura agressivo perante a Assistente e sua amiga, tendo-as, inclusive, insultado e tentado agredir fisicamente.
58. Este episódio deu origem ao processo nº 599/16.0GCBRG, que correu os seus termos no Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, mas que foi intentado pelo aqui Arguido, ali Assistente, contra a amiga da aqui Assistente, P., ali Arguida.
59. Nesse mesmo processo, o ora Arguido, ali Assistente, nas suas declarações acabou por confessar que apenas não entregava os bens à aqui Assistente, ali Testemunha, para acautelar os interesses desta, e passa-se a citar:

"(...) que o arguido retinha e pelos vistos continua a reter bens a esta pertencentes, para acautelar os interesses da referida F. F., para ela não ser enganada por falsos amigos (...)".
- cfr. Sentença proferida no referidos autos e já transitada em julgado que aqui se junta como doc. nº 1, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
60. Este tipo de argumento - e outros que tais, aliás - também era muitas vezes utilizado pelo Arguido à Assistente nas poucas conversas havidas entre ambos ao telefone.
61. Portanto, a realidade dos factos é bem diversa daquela que o Arguido procura, ou procurou, fazer crer o Tribunal por meio do seu interrogatório de Arguido.
62. E, além do mais, ou bem que o Arguido retém os bens da Assistente a título de garantia para pagamento de alegadas rendas - o que não é verdade e por isso jamais se aceitará - ou bem que, afinal, não devolve à Assistente os seus bens para alegadamente proteger os interesses desta - o que igualmente não se aceita por ser absolutamente falso.
Sem prejuízo disso,

63. O Arguido - que não ficou por aqui - alega ainda, em sede de interrogatório de arguido, que não conhece os bens da Assistente e que a mesma se devia ter olvidado da morada da garagem onde os bens se encontravam e/ou que teria perdido a chave de acesso à mesma.
64. Ora, nada mais falso!!
65. O Arguido conhece bem os bens da Assistente, assim como bem sabe que esta nunca foi com o mesmo ao local e também que este nunca lhe facultou umas chaves.

No mais,

66. E como consta dos presentes autos, por mandados expedidos e à ordem dos mesmos, as autoridades policiais deslocaram-se, primeiro à sede de uma das empresas do Arguido para proceder à apreensão dos bens da Assistente, em ....
67. Essa morada fora indicada no processo por ser a única conhecida pela Assistente como sendo a sede de uma empresa do Arguido,
68. pois. como já supra se deixou referido. a Assistente desconhecia - até aquela data - o local da garagem onde alegadamente o Arguido havia depositado os seus bens.
69. Como seria evidente, caso a Assistente soubesse qual a localização exacta dos seus bens, não teria permitido que as autoridades policieis se deslocassem a ... para uma diligência. à partida, frustrada - como se veio a revelar!!
70. Aliás, foi nessa diligência que o Arguido informou as autoridades policiais, que os bens se encontravam numa garagem sita em …, na Maia.
71. Foi o próprio Arguido que facultou às autoridades Policiais a morada completa desse local, sito na Rua …, para concretização do diligência de apreensão dos bens da Assistente.
72. Em face dessa informação, foram emitidos novos mandados de apreensão dos bens da Assistente na morada indicado.
73. No dia 11.06.2018, as Autoridades Policiais e a Assistente deslocaram-se à morada de Águas Santas e, aí chegados, depararam-se com um local onde estava instalada uma sucata.
74. Foram recepcionados por M. M. - pessoa que a Assistente desconhece - e que perante os mandados judiciais de apreensão de bens exibidos pelas autoridades policiais (Agentes da PSP) concedeu aos ali presentes o acesso ao espaço.
75. A Assistente entrou no local para tentar localizar os seus bens e nada encontrou.
76. A PSP no local ligou para o Autor e o mesmo nada disse em concreto.
77. Com efeito, também essa diligência resultou frustrada - mas apenas para causa dada pelo Arguido-, continuando a Assistente sem saber do paradeiro dos seus bens até à presente data.

Isto posto,

78. Não é verdade o que o Arguido declarou nos autos, ou seja, que nunca se recusou a entregar os bens, mas que exige o pagamento das rendas por si suportadas e o valor do transporte e o trabalho efectuado pelas pessoas, ascendendo o valor em dívida a € 1.810,00 (mil oitocentos e dez euros).
79. O Arguido, efectivamente, teve e tem intenção de se apropriar dos bens da Assistente,
80. e, para os não entregar/devolver à sua proprietária, a aqui Assistente, tem inventado várias histórias, como a da dívida contraída pela Assistente junto do Arguido, ou então, para proteger os seus interesses e afasta-Ia de pessoas que a querem mal e que lhe poderiam ficar com os seus bens.
81. Mas, na verdade, o que não há por parte do Arguido é uma verdadeira consciência de que os bens em causa - melhor já descritos nos autos - são bens próprios da Assistente e que o Arguido tem que devolver.
82. Ou caso, efectivamente, os tenha feito desaparecer, de reembolsar a Assistente pelo valor desses bens.
83. Se assim não fosse, qual a razão para o Arguido ter indicado uma morada na Maia para apreensão dos bens da Assistente pelas autoridades policiais e os bens aí não se encontrarem (nesse local) para o efeito?
84. Portanto, o Arguido procura inverter o título da posse dos bens.
85. lsto é, o Arguido recebeu os bens da Assistente e que esta lhe confiou para guardar e, agora na posse dos mesmos, o Arguido está a dar um destino diferente daquele para que os bens lhe foram confiados.
86. A apropriação constitui um dos elementos objectivos do crime de abuso de confiança, mas exige, por parte do agente do crime, um «animus» que lhe corresponde e se exteriorize, através de um comportamento, que revele e execute.
87. Enquanto, que no crime de furto a apropriação intervém como elemento tipo subjectivo de ilícito (com "intenção de apropriação") no abuso de confiança, diferentemente, a apropriação, encontra-se como elemento do tipo objectivo do ilícito.
88. Para a consumação do elemento objectivo do tipo de crime de abuso de confiança, tal como está definido no art. 205°, do Código Penal, é necessária a prática de qualquer acto objectivamente idóneo e concludente, nos termos gerais, «uti dominus»: sendo exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a "inversão do título de posse ou detenção" e é nela que se traduz e se consuma a apropriação - cfr. Ac. do TR de Lisboa, proferido no âmbito do processo nº 1162/09.7TAOER.L1-3, datado de 29.01.2014.

TERMOS EM QUE,
deverá ser admitido o presente requerimento de abertura de instrução, nos termos do art. 287°, nº 1, al. a) CPP, e, consequentemente, proferido despacho de pronúncia do Arguido pela prática do crime constante do artº 205° do CP.

PARA TANTO,
para prova dos factos supra alegados, e o fim de se proceder a uma justa e correcta apreciação dos factos ocorridos, requer que se procedam aos seguintes actos de instrução:

A) Deve tomar-se as declarações da Assistente à matéria constante dos artigos 7° o 76° do presente articulado;
B) devem tomar-se declarações à testemunha seguidamente identificada, acerca de toda a matéria dos autos e, designadamente, o todo o matéria articulado neste requerimento.

TESTEMUNHAS:
- R. R., solteira, residente na Rua … Braga;
- M. M., residente na Travessa … - Maia;
A notificar.
C) Deve ainda oficiar-se ao Comando da PSP de Braga para vir aos autos informar os Agentes da PSP que se deslocaram tanto à sede da empresa do Arguido, sita em ..., como os que se deslocaram com a Assistente a morada sita em …, na Maia, para respectiva inquirição em sede de Instrução;
D) Deve ainda ser oficiado ao processo nº 599/16.0GCBRG, que correu os seus termos no Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Braga, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, para junção aos presentes autos de certidão dos respectivos autos de inquirição de Assistente, Arguida e da Testemunha F. F., aqui Assistente, bem como da respectiva sentença proferida - cuja cópia aqui se junta.
(...).
*
3. Tal requerimento de abertura de instrução foi rejeitado pelo despacho de 04/10/2018, do Mmº Juiz de Instrução Criminal do Juízo de Instrução Criminal de Braga – J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por inadmissibilidade legal, nos seguintes termos (transcrição):

“Inconformada com o despacho de arquivamento proferido pelo MP (fls. 111/115), vem a assistente F. F. requerer a abertura da instrução (fls. 134 e ss) contra o arguido L. S. pretendendo a pronúncia destas pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º do Código Penal.

Em suma, diz que:

Entregou bens ao arguido para este guardar, tendo o mesmo assegurado que o fazia a título gratuito.

O arguido não entrega os bens, tendo deles se apropriado.

Decidindo.

Como se sabe o inquérito, nos termos do disposto no artigo 262º/1 do Código de Processo Penal, é a fase onde se prepara a decisão de acusação ou de não acusação.

Assim sendo, quando, designadamente, o Ministério Público não obtém indícios suficientes da verificação de crime ou de quem são os seus agentes, profere despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277º/1 e 2 do Código de Processo Penal.

No caso dos autos o Ministério Público arquivou o inquérito, nos termos do disposto no artigo 277º/2 do Código de Processo Penal.

Não se conformando, como se disse, a assistente requer a abertura da instrução, nos termos acima sumariamente expostos.

Dispõe o artigo 205º/1 do Código Penal que Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Diferentemente do furto, o abuso de confiança consiste em o agente fazer sua (apropriar-se) uma coisa móvel alheia que já detém.

Com efeito, o agente começa por receber a coisa validamente, passando a possuí-la ou a detê-la de forma lícita, embora a título precário ou temporário, só que, a posteriori, vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor dela ut dominus.

Deixa, pois, de possuir em nome alheio, fazendo entrar a coisa no seu património ou dispondo dela como se fosse sua, em qualquer dos casos com o propósito de não a restituir (vide Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 2ª Edição, Volume II pag. 460).

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, p. 566, “a entrega da coisa ao agente por título não translativo da propriedade inclui todo e qualquer acto ou negócio jurídico pelo qual o agente é investido no poder de disposição da coisa e fica obrigado à devolução da coisa ao transmitente ou a um terceiro. Entre esses negócios contam-se o depósito, a locação o mandato, a comissão, a administração, o comodato e a empreitada”.

Para que se considere preenchido o crime em análise, aos elementos já descritos há-de acrescer o dolo do agente. O dolo no crime de abuso de confiança consiste na vontade do agente em inverter o título de posse, na sua vontade de passar de possuidor “alieno domine” a possuidor “uti dominus”.

Assim, o crime consuma-se quando a agente passa a dispor da coisa animus domini, esta inversão do título carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se dono fosse - Maia Gonçalves, Código Penal Português, 3ª ed., 1977, pág. 775.

Quanto ao carácter alheio da coisa é decisivo que do ponto de vista do direito civil a coisa pertença a outra pessoa que não o agente.

Dito isto, olhando para o requerimento apresentado pela assistente (o qual não pode ser formulado nos mesmos termos do arguido - cfr. Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Vinício Ribeiro, 2.ª ed. p. 790) constata-se que o mesmo padece de vícios que o fulminam irremediavelmente, porquanto teria de equivaler a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar inegável e directamente ao arguido e que permitam, caso venham a mostrar-se suficientemente indiciados, o preenchimento dos elementos não só objectivos como subjectivos do tipo de crime que seja efectivamente imputado.

Na verdade para além da narração dos factos (pertinentes ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo, bem como os pertinentes ao preenchimento dos elementos respeitantes ao dolo - estando em causa crime doloso) que o requerimento de abertura da instrução deve conter, susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, impõe-se, concomitantemente, que o mesmo contenha, a data e o lugar da ocorrência dos factos, o grau de participação que o arguido neles teve, sendo o caso, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos narrados cuja autoria é imputada ao arguido, o qual deve estar identificado, ou pelo menos devem ser dadas indicações tendentes a essa identificação.

No caso concreto verifica-se o requerimento apresentado é absolutamente omisso na alegação factual pertinente ao preenchimento dos elementos subjectivos do tipo de crime em causa (abuso de confiança), sendo ainda a descrição fáctica pertinente ao preenchimento dos elementos objectivos absolutamente genérica.

Na verdade, independentemente da imputada factualidade objectiva (e olhando para o requerimento de abertura da instrução não se sabe quais os concretos bens que o arguido, na perspectiva da assistente, se apropriou, pois esta limita-se a dizer que o arguido fez seus os bens que lhe entregou para guardar - e a mesma nem sequer remete para a queixa aliás se o tivesse feito seria de duvidosa admissibilidade), não resulta alegada factualidade bastante (não se vislumbrando nele sequer uma forma de alegação implícita, mas inequívoca - ac. do TRP, de 04/06/2014, proc 187/11.7PDVNG-A.P1, in www.dgsi.pt) que permita afirmar a possibilidade de preenchimento dos elementos subjectivos do tipo de crime imputado pela assistente, sendo neste aspecto o requerimento apresentado comprometedoramente omisso.

De uma forma simplista, o dolo consiste no propósito de praticar o facto descrito na lei penal, sendo a estrutura do mesmo composta por um elemento intelectual ou cognoscitivo, ou seja resume-se, por um lado, à representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes e, por outro lado, à consciência de que esse facto é censurável e por um elemento emocional ou volitivo, ou seja a vontade de realização do facto ilícito previsto pelo agente.

E o dolo não se satisfaz dizendo que o arguido teve intenção de se apropriar dos bens da assistente e que procura inverter o título da possa.

E muito menos se satisfaz com a alegação algo contraditória de que o Arguido recebeu os bens da Assistente e que esta lhe confiou para guardar e, agora na posse dos mesmos, o Arguido está a dar um destino diferente daquele para que os bens lhe foram confiados, situação que mais se aproxima do abuso de uso (atípico).

Citemos, exemplificativamente, mais alguma jurisprudência, percorrendo todos os nossos Tribunais Superiores (Relação):

No acórdão do TRP, de 03/02/2010, proc. nº 7/08.0TAMUR.P1, in www. dgsi.pt, diz-se:

“Os princípios da vinculação temática de facto e de direito e da garantia da defesa impõem ao assistente, que requer a abertura de instrução, que concretize a imputação da matéria de facto e da matéria de direito.

Porque só é punível o facto praticado com dolo - directo/necessário/eventual - ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência - consciente/inconsciente -, impõe-se, então, ao assistente o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente, se de oposição ou de indiferença ou de descuido, perante o bem jurídico-penal lesado ou posto em perigo pela conduta proibida”.

Da mesma forma o acórdão do TRP, de 17/01/2009, proc. nº 0846210, www.dgsi.pt, diz:

“Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, o requerimento do assistente para abertura de instrução que não descreva os elementos subjectivos do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido”.

Em sentido idêntico, acórdão do TRC, de 30/09/2009, proc. nº 910/08.7TAVIS.C1, in www.dgsi.pt, onde se diz:

“São os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.

Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)”.

Do mesmo Tribunal (RC), o acórdão de 06/07/2011 ”O requerimento de abertura de instrução é uma verdadeira acusação em sentido material, e por essa razão deve conter, para além do mais, os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere terem sido preenchidos pela conduta do arguido” - proc. 212/10.9 TAFND.C1, dgsi.pt;
Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 1948/07.7PBAMD-A.L1-9, acórdão de 27/05/2010, dgsis, “O requerimento para abertura da instrução equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, nos mesmos termos que a acusação formal, seja pública, seja particular, a actividade de investigação do juiz e a própria decisão final, instrutória. É que, tal como acontece na acusação, também, no caso, o requerimento de abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum da actividade desta fase processual.

A instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não de actividade investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação (art. 286º, nº 1 do Cód. Proc. Penal) e não a constituir um complemento da investigação prévia à fase de julgamento, como já aconteceu no passado.

O objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, dito de uma forma simplista, os factos narrados como integrantes da conduta ilícita do agente têm de caber nos elementos objectivos e nos elementos subjectivos do tipo legal em causa (do respectivo preceito legal).”

Como se refere no ac. do TRG in CJ-II-291 “Não existem presunções de dolo e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta. Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito ...”

Do mesmo Tribunal, o acórdão de 06/12/2010, proc. 121/09.4TAAVV.G1, in dgsi.pt, onde se diz “O dolo constitui matéria de facto e, por isso, têm de ser devidamente alegados os factos donde tal se possa concluir.

Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo.

Admitir um requerimento de instrução completamente omisso quanto ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido e prosseguir com a instrução estando o juiz limitado nos seus poderes cognitivos por esse requerimento, seria praticar acto inútil, o que é proibido por lei - artº137º do Cód. Proc. Civil, ex vi do artº4º do C.P.P.”.

Do TRE, o acórdão de 20/09/2011, proc. 704/09.2GDSTB-AE1, dgsi.pt, onde se diz “A alegação dos factos que integram o elemento subjectivo do tipo, elemento essencial da acusação - tão essencial quanto a factualidade objectiva - não pode deixar de constar da acusação/requerimento de abertura de instrução, sob pena de o Tribunal, admitindo a instrução, não poder pronunciar o arguido (por falta de um elemento essencial para se considerar preenchido o tipo) ou, averiguando tal facto e aditando-o à pronúncia, proceder a uma alteração substancial da acusação, geradora de nulidade de tal despacho, ex vi artigo 309/1 do Código de Processo Penal.

Não releva que tal elemento se possa inferir, em sede de prova, com recurso às presunções naturais ou às regras da experiência comum, pois uma coisa é a prova de tal elemento em sede de julgamento - prova que pode deduzir-se em face dos demais factos provados - e outra, bem diferente, é a alegação dos pertinentes factos que o integram, sendo certo que o objecto da prova são os factos descritos na acusação/pronúncia e esta não pode ir além da factualidade alegada no requerimento de abertura de instrução, sob pena de nulidade”.

Mais recentemente o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência (acórdão 1/2015, DR, 1ª Série, de 27/01/2015) “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”.

Jurisprudência que vale, naturalmente, para o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, pois este funciona como uma verdadeira acusação - artigo 303.º/3 do CPP.

São assim os vícios acima apontados determinantes na sorte do requerimento de abertura da instrução apresentado.

Sem a imputação de factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos de um determinado tipo legal de crime e demais elementos necessários, o(s) arguido(s) - desde que visado pela investigação - só poderia(m) ser pronunciado)s) pelo crime de abuso de confiança simples se à pronúncia fossem levados factos que representariam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de instrução, o que está vedado e torna a instrução legalmente inadmissível.

Numa visão analógica entre a acusação e o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, a falta de indicação de indicação dos elementos referidos na alínea b) do artigo 283º/3 do Código de Processo Penal não pode deixar de ser conducente a um caso legal - porquanto prevista na lei a consequência daquela falta, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 286º, 287º/2 e 3, 283º/2 e 3-b), 308º/2, e 311º/1, 2-a), e 3-b), do Código de Processo Penal - de inadmissibilidade de um requerimento que não substancie a factualidade pertinente para o preenchimento dos elementos subjectivos do tipo de ilícito imputado às arguidas pela assistente.

E também não há lugar a convite à assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução (cf. Ac. do STJ para fixação de jurisprudência, nº 7/2005, publicado no DR I série A, n.º 212, de 04-11-2005).

Chegados aqui, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente F. F., o que decido.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC - artigo 8º/1 do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
Oportunamente dê baixa e arquive”.
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4. Inconformada com essa decisão judicial, a assistente dela veio interpor o presente recurso (que consta de fls. 188/196 Vº), extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto despacho proferido em 04.0.2018, pelo Digníssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo por meio que rejeitou a admissão do Requerimento de Abertura de Instrução (RAI) interposto pela aqui Assistente, ora Recorrente, em 21.09.2018, mantendo assim o Arquivamento do inquérito já promovido pela Digníssima Magistrada do Ministério Público, por despacho de 13.07.2018.
2. A Recorrente não concorda e não se conforma com o despacho de rejeição do RAI ora em mérito, que, salvo o devido respeito por entendimento diferente, não se alicerça em fundamento de facto e de direito cabais para o efeito.
3. O Digníssimo Juiz de Instrução Criminal motiva a sua decisão de rejeição do RAI da Assistente no entendimento de que, tal RAI, se encontra ferido de vícios, designadamente:

I. a omissão (...) de imputação factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos objectos e subjectivos de um determinado tipo legal de crime e demais elementos necessários (...), sem os quais não poderá o Arguido ser pronunciado pelo crime, in casu, de abuso de confiança simples
II. a Assistente não logrou fazer equivaler o seu RAI a uma verdadeira acusação, para tal (...) definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação e fazendo conter no mesmo a data e o lugar da ocorrência dos factos, o grau de participação que o arguido neles teve, susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, uma sanção, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos narrados e da autoria do Arguido
III. o RAI da Assistente (...) é absolutamente omisso na alegação factual pertinente ao preenchimento dos elementos subjectivos do tipo de crime em causa (abuso de confiança), sendo ainda a descrição fáctica pertinente ao preenchimento dos elementos objectivos absolutamente genérica.
4. A Assistente não partilha deste entendimento.
5. O RAI que a Assistente exibiu em juízo não padece de qualquer omissão, quer em termos factuais, quer de direito, que não lhe pudesse conferir a virtualidade de uma verdadeira acusação deduzida contra o Arguido pela prática de um crime de abuso de confiança - como considerou o Digníssimo Juiz de Instrução Criminal - e que pudesse fazer desviar do seu propósito processual, isto é, abertura da fase de instrução.
6. O RAI da Assistente, ora Recorrente, obedece a uma estrutura acusatória, fazendo-se integrar pela descrição e relação dos elementos subjectivos de tal crime, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito).
7. De acordo com o artigo 287º, nº 2 do CPP, “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º.”
8. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pela Digníssima Magistrada do Ministério Público, a Assistente requereu a abertura de Instrução, na qual narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção directa do Arguido L. S. nos mesmos e, para tal, apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo, assim, o disposto no nº 2 do artigo 287º, do CPP.
9. Tais factos estão ainda concentrados seguindo uma lógica de subsunção dos mesmos ao tipo penal em causa.
10. A Assistente não se confirmou com o facto de a Digníssima Magistrada do Ministério Público ter baseado o seu despacho de arquivamento de inquérito no eventual direito de regresso que o Arguido alegou, em sede de interrogatório de Arguido, para garantia de pagamento de valores, alegadamente, em dívida àquele por parte daquela - o que não se concede -, sem, contudo, o mesmo ter prestado nos autos qualquer prova do alegado.
11. A singela alegação por parte do Arguido, em sede de interrogatório, levou a Digníssima Magistrada do Ministério Público a entender que não haviam sido recolhidos indícios suficientes para descortinar qual o verdadeiro acordo estabelecido entre a Assistente e o Arguido, pelo que o direito de retenção do Arguido era legítimo, e ainda que, a ser assim, não se verificava preenchido um dos elementos do crime sob investigação, arquivando o inquérito.
12. O alegado pelo Arguido em sede interrogatório não corresponde à verdade dos factos e em sede de RAI - e ao contrário do fundamentado no despacho de rejeição do RAI - a Assistente deduziu contra o mesmo uma verdadeira acusação, aí vertendo toda a factualidade da prática do facto ilícito pelo Arguido, de forma contextualizada - desde a maneira como conheceu e estabeleceu contacto com o arguido -, balizada temporalmente e no espaço.
13. A Assistente reporta a factualidade transportada nos autos a meados do ano de 2016, ainda que, sem conseguir determinar com precisão as datas exactas, mas que recorda ser no momento em que, nesse mesmo ano de 2016, terá vivido um período de graves dificuldades económico financeiras.
14. Reporta ainda que nessa ocasião, tendo-lhe sido oferecido pelo Arguido um lugar, de sua propriedade e a título gratuito, para depositar todos os seus bens móveis integradores do recheio da casa que habitava nessa ocasião - todos, melhor descritos na queixa-crime deduzida pela Assistente nos Autos -, acordou com o mesmo tal depósito desses bens seria até ao momento em que a Assistente/Recorrente lograsse encontrar uma nova casa com uma renda mais acessível e com o quais a mobiliaria.
15. Sucede que essa devolução não veio a acontecer, porquanto o Arguido, ardilosamente, sempre se recusou a entregar os bens à Assistente quando esta os solicitou, invocando vários pretextos para não o fazer, pese embora a Assistente lhe tenha por várias vezes e meios solicitado que lhe devolvesse os bens, porquanto já tinha encontrado uma casa e estavam-lhe a fazer imensa falta à sua subsistência e à da sua filha menor num mínimo de vida condigna - conforme tudo melhor se encontra explanado no RAI em causa.
16. O Arguido não só não entregou voluntariamente os bens à Assistente, como não lhe revelou naquela altura qual a morada do local onde os bens se encontravam depositados, nem jamais lhe facultou uma chave de acesso ao local e também nunca apresentou à Assistente as facturas dos valores que alegadamente a Assistente lhe deve.
17. Quando a Assistente, aqui Recorrente, telefonava ao Arguido para lhe pedir a devolução dos seus bens, o que chegou a fazer por contacto telefónico na presença do irmão da Assistente, o Arguido, dito pelas próprias palavras do irmão da Assistente, arrolado por esta e ouvido como testemunha nos autos, em face da exigência da devolução dos bens exercida pela Assistente, o mesmo apresentava uma postura que passava a sensação de estar a gozar com ela - cfr. auto de inquirição da Testemunha B. F., a fls.., datado de 04.07.2017.
18. A acrescer, nem mesmo durante as diligências levadas a cabo pelas Autoridades Policiais, designadamente, por cumprimento de mandados de busca e apreensão dos bens em causa, o Arguido foi colaborante com a justiça no sucesso dos expedientes a executar, tanto mais que o Arguido indicou uma morada em Águas Santas, na Maia, mais concretamente na Rua da Piedade, n.º 92, sendo que aí chegados devidamente acompanhados pela Assistente, os bens da mesma aí não se encontravam.
19. De todo o exposto e colhido nos autos, dúvidas não há podem restar que, por parte do Arguido não existe uma verdadeira consciência de que os bens em causa são bens próprios da Assistente e que, de acordo com o acordado entre ambos, tais bens têm de retornar à proveniência, isto é, à posse da Assistente, enquanto proprietária dos mesmos.
20. Portanto, a Assistente narrou os factos concretos, cuja prática imputa ao Arguido e que fundamentam a aplicação ao mesmo de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
21. A Recorrente explana todo o circunstancialismo factual perpetrado pelo Arguido, que é integrador do tipo legal de crime de abuso de confiança, previsto no artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal.
22. Na essência do tipo legal do crime de abuso de confiança - e tal como sucede nos autos -, a coisa móvel não é subtraída a outrem pelo agente do crime, como sucede no crime de furto. A(s) coisa(s) já está(ão) em poder do agente, mas por título não translativo de propriedade, dando-lhe, porém, o agente do crime um destino diferente daquele para que lhe foi/foram confiando(s).
23. O crime de abuso de confiança pressupõe a quebra da relação de fidúcia que intercede entre o agente e o proprietário da coisa e entre o agente e a própria coisa, quer seja uma relação anterior de confiança (artigo 205º, nº 1 do CP), quer seja uma relação especial positivamente determinada na lei (depósito imposto por lei - nº 5) - cfr. Ac. do TR de Coimbra, proferido no âmbito do processo nº 341/05.0 TALRA.C1 e datado de 07-11-2012.
24. Dúvidas não existem de que, efectivamente, a Assistente compulsou no seu RAI todos os imperiosos requisitos na lei estipulados - artigo 283º, nº 3, als. b) e c), do CPP -, funcionando o mesmo como equivalente à acusação que seria feita pelo Ministério Público e da qual sempre decorreria - caso o RAI em mérito não fosse rejeitado - a vinculação factual que o Meritíssimo Juiz teria de respeitar, pautando a sua conduta no processo, por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, uma vez que o juiz não actua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma.
25. O RAI subscrito pela Assistente constituiu-se processualmente como uma verdadeira acusação em sentido material, desde logo, balizada no tempo, em que reporta o acontecimento dos factos de forma cronológica, no espaço também e ainda demonstra a intenção (o dolo) do Arguido em se apropriar dos seus bens móveis, por meio da descrição do modus operandi perpetrado pelo Arguido que após recepcionar os bens da Assistente para os depositar em local que lhe ofereceu para o efeito, não se absteve de inventar várias desculpas para se escusar a entregar-lhe os bens quando esta os solicitou e, mesmo aquando da diligências de apreensão de bens pela Autoridades Policiais e sob mandatos imitido pelo Ministério Público, em morada facultada voluntariamente pelo Arguido, os ditos bens aí não se encontravam, continuando assim, em parte incerta, mas na posse do Arguido - que será o única a saber o local exacto em que os acondicionou, morada essa que não partilha, continuando a privar a Assistente do uso de tais bens.
26. O Arguido bem sabe que a sua conduta é ilícita e não se coibiu de praticar e reiterar na sua prática, ou seja, de continuar a manter para si os bens da Assistente, não lhes devolvendo até à data.
27. Com base em todo o exposto, necessariamente cai pela base o despacho que rejeitou a admissão do mesmo por parte do Digníssimo Juiz de Instrução Criminal.
28. Além do mais, não se olvide que uma interpretação excessivamente formalista e “srictu senso” do artigo 287º, parte final, do CPP, resultaria numa limitação efectiva do acesso ao direito e aos tribunais, colidindo e violando o artigo 20º, da CRP, tal como violaria o princípio da igualdade, estipulado no artigo 13º, do mesmo diploma, pois coloca o Assistente numa posição de desigualdade de armas perante o MP, os quais, perante uma insuficiente investigação, têm os seus meios de reacção dificultados, já que não podem narrar factos que ainda não foram alvo de investigação e podem ainda nem sequer ser conhecidos, o que se invoca expressamente.

SEM PRESCINDIR

Nulidade - Falta de Instrução

29. A Assistente entendeu também pertinente, no seu RAI, a junção de nova prova ao processo e, nos termos do nº 2 do artigo 287º do CPP, indicou os actos de instrução que a Assistente pretendia que o Digníssimo Juiz de Instrução Criminal levasse a cabo, por se tratarem de meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, tendo até indicado para o efeito uma testemunha e ainda que fossem tomadas declarações à Assistente à matéria constante dos artigos 7º a 76º do RAI.
30. O Digníssimo Juiz de Instrução Criminal parece ter ignorado por completo a junção de uma sentença proferida no âmbito do processo nº 599/16.0GCBRG, que correu termos no Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em que o Arguido interveio como Assistente, a aqui Assistente, ora Recorrente, como testemunha e a amiga da Assistente como Arguida e no âmbito da qual se encontra expressamente referido aquilo que o aqui Arguido, ali Assistente, nas suas declarações acabou por confessar que continuava a reter os bens da Assistente, alegadamente, para acautelar os próprios interesses desta, (...) para ela não ser enganada por falsos amigos. - cfr. sentença proferida nos referidos autos, datada de 27.06.2018, e já transitada em julgado, junta com o RAI da Assistente como doc. n.º 1.
31. Este tipo de contradição cometida pelo Arguido, completamente despropositadas, consubstanciam uma verdadeira intenção do Arguido de se apropriar dos bens da Assistente e deveria - salvo o devido respeito por entendimento diferente - ter sido levado em linha de consideração pelo Digníssimo Juiz de Instrução Criminal na decisão de abertura de instrução para proferimento de despacho de pronúncia contra o arguido e, bem assim, para o apuramento da verdade material em sede de Julgamento.
32. Entende a Assistente que o Digníssimo Juiz de Instrução Criminal ao proferir despacho de rejeição do RAI da Assistente e sem, contudo se pronunciar sobre as novas diligência de prova carreadas para os Autos pela Assistente e, muito menos sem ter levado a cabo a requerida inquirição da testemunha indicada, preteriu as formalidades essenciais da instrução, incorreu na prática da nulidade insanável, da falta de falta de instrução, prevista na al. d) do artigo 119º do CPP, ou, pelo menos, a nulidade prevista no art. 120°, n° 2, d), traduzida na omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, nulidades que decorreriam do facto de, em sede de instrução, nem sequer terem sido objecto de apreciação e pronuncia por parte do Digníssimo Juiz de Instrução Criminal e, como tal, foram tacitamente indeferidas.
33. Tanto mais que sempre se tratam de factos novos, aportados para os autos após o seu conhecimento por parte da Assistente, e posteriores à apresentação da queixa-crime, e ainda que a instrução tem um conteúdo discricionário vinculado, competindo ao juiz determinar quais os actos de instrução, requeridos ou não pelas partes, que deverão ser praticados, sendo o critério de aferição da necessidade da prática desses actos o que resulta do art. 286°, n° 1, sendo apenas obrigatória a realização do debate instrutório, acrescendo que a decisão instrutória se basta com uma prova meramente indiciária, não se exigindo o mesmo grau de certeza ou de verdade requerida pelo julgamento final - cfr. Ac. do TR de Guimarães, proferido no âmbito do processo 1037/07-1 e datado de 29.10.2007.
34. Em suma e na sequência do modesto raciocínio supra plasmada, não houve qualquer motivo legal para a não admissão (rejeição) do RAI da Assistente, pelo se considera que o Digníssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo violou os artigos 120º, d), 286º, 287º, n.º s 2 e 3, 308.º, n.ºs 1 e 2, 311º, n.ºs 2 e 3, do CPP, 13º e 20.º, da CRP, entre outros, devendo ser admitida a fase de instrução nestes autos com todas as legais consequências.”.
*
5. Na resposta ao recurso, o Exmo. Procurador da República junto da 1ª instância respondeu ao mesmo, pugnando pela sua improcedência (cfr. fls. 210/212).
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6. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, perfilhando a posição do Ministério Público na instância recorrida, e adiantando pertinentes considerações jurídicas sobre as questões em causa.
6.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, não foi apresentada qualquer resposta.
*
7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (2) (3).

Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pela assistente/recorrente, são duas as questões que importa decidir:

- Saber se o requerimento de abertura de instrução contém a alegação de factos suficientes para preenchimento do tipo legal do crime imputado ao arguido; e
- Saber se o despacho recorrido enferma de nulidade, nos termos do disposto no Artº 119º, al. d), ou no Artº 120º, nº 2, al. d), traduzidas na falta de instrução e/ou na omissão de diligências que pudessem reputar-se de essenciais para a descoberta da verdade.

Vejamos, pois.

Começando pela primeira questão supra elencada.

Como prescreve o Artº 286º, nºs. 1 e 2, a instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A este propósito, sublinha Germano Marques da Silva (4) que, no nosso Código de Processo Penal, a fase de instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e o controlo judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra.

Ora, dispõe o Artº 287º, nº 2, que o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.

Ou seja, sendo (a instrução) requerida pelo assistente, o respectivo requerimento deverá conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada - al. b) - e a indicação das disposições legais aplicáveis – al. c).

O que significa que, tendo-se abstido o Ministério Público de acusar (é este um pressuposto essencial para legitimar a intervenção do assistente), o requerimento de abertura da instrução apresentado por este tem de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de molde a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória (5).

Há que ter ainda em conta o disposto no Artº 303º, que vincula o juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, prescrevendo o nº 3 desse preceito legal que uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

Bem como o nº 3 do citado Artº 287º, que nos aponta as três causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução: extemporaneidade; incompetência do juiz; ou inadmissibilidade legal da instrução.

Cabem no conceito de inadmissibilidade legal da instrução realidades diversas, como a circunstância de o requerimento do assistente “não conformar uma verdadeira acusação”, não sendo o mesmo admissível se dele não constar a descrição da conduta típica (com os seus elementos objectivos e subjectivos) com a indicação das disposições legais violadas ou indicação do arguido, pois é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido (6).

Cumpre referir, também, não se afigurar inconstitucional a norma em causa, do Artº 283º, nº 3, als. b) e c), quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.

Entendimento esse que já foi expressamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 358/2004, de 19/05/2004 (7), no qual a propósito se expendeu:

“Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (...) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (...) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.

Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?

A resposta é negativa.

Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”.

Sufragando-se inteiramente este entendimento, poderá, no entanto, perguntar-se: perante um requerimento de abertura de instrução que não contenha tais elementos, ou que os contenha em termos deficientes, não deverá o juiz de instrução convidar o assistente a aperfeiçoar essa peça processual?

A resposta é negativa.

Na verdade, de acordo com o consignado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I Série A, de 04/11/2005, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Ali se expendendo que “o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil, ao princípio da cooperação, conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4º do CPP.

Que (…) A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º, nº 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada – o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.”.

Que (…) O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.”.

Que “Sem acusação formal o juiz está impedido (...) de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.”.

E que “(…) O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra” (8).

Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta temática, designadamente através do Acórdão nº 175/2013, de 20/03/2013 (9), considerando “Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução”.

Do exposto, extrai-se claramente que, quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, ou não os narra de modo suficiente, não pode haver pronúncia, sob pena de violação dos Artºs. 303º, 283º, nº 3, als. b) e c), do C.P.Penal e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

Na verdade, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no Artº 309º, nº 1.

Finalmente, há que ter também em consideração a jurisprudência constante do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20/11/2014, in DR I Série, nº 18, de 27/01/2005, segundo a qual “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal.”.

Jurisprudência essa que, como bem sublinha o Mmº JIC, vale, naturalmente, para o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, pois que este funciona como uma verdadeira acusação (cfr. Artº 303º, nº 3).
Isto posto, passemos à análise da concreta situação verificada nos presentes autos.

Como se viu, o Mmº JIC, através do despacho de 04/10/2018, ora impugnado, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente F. F. em virtude de, em síntese, o mesmo ser omisso na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em causa, por aquela imputado ao arguido L. S., de abuso de confiança, p. e p. pelo Artº 205º, do Código Penal.

Entendimento que é questionado pela assistente no recurso sub-judice, que em síntese sustenta que no seu RAI delimita devidamente e como o exigido legalmente o objecto da instrução requerida, e alega o preenchimento dos elementos do tipo do crime supra mencionado.

Ora, para melhor dilucidarmos esta questão, teremos de, necessariamente, analisar os elementos objectivos e subjectivos do ilícito criminal em causa, para, num segundo momento, decidirmos se a factualidade que a propósito a assistente alegou no seu RAI preenche, ou não, tais elementos.

Vejamos, então.

Sob a epígrafe “Abuso de confiança”, dispõe o Artº 205º do Código Penal:

“1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - Se a coisa ou o animal referidos no n.º 1 forem:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5. Se o agente tiver recebido a coisa ou o animal em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”.

O tipo de ilícito em causa acha-se sistematicamente inserido no capítulo dos “Crimes contra a propriedade” e, através dele, procurou o legislador proteger a propriedade que é o único bem tutelado pelo tipo legal em causa.

O crime de abuso de confiança exige, como elementos objectivos do tipo:

- a entrega e recebimento lícitos pelo arguido de coisa móvel ou animal alheios;
- por título não translativo da propriedade;
- a apropriação dessa coisa pelo agente;
- a ilegitimidade desta apropriação.

Como se extrai da citada norma legal, o crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel ou o animal por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini. Devendo, porém, entender-se que a inversão do título da posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse, como seja a recusa de restituição – cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código Penal Português – Anotado e Comentado”, 14ª edição, pág. 653.

Na mesma esteira refere-se Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 104, à apropriação enquanto elemento objectivo do crime de abuso de confiança, destacando: “Sob que forma deva concretamente manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que, como acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa “como proprietário. (…) indispensável que através do acto ou actos de apropriação se tenha verificado uma deslocação da propriedade…”. Citando Cavaleiro de Ferreira: “o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do título de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.”

Quanto ao elemento subjectivo do ilícito, torna-se necessária a verificação do dolo relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, tratando-se, pois, nas palavras de Figueiredo Dias (ibidem, pág. 107), de “crime de congruência total”, sendo suficiente o dolo eventual.

A noção de dolo está prevista no Artº 14º do Código Penal, nos seguintes termos:

“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”.

O dolo é constituído por dois elementos essenciais: o intelectual e o emocional ou volitivo.

Tem-se por elemento intelectual o conhecimento por parte do agente de todos os elementos e circunstâncias do tipo legal do crime e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável.

Já o elemento emocional ou volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que o dolo será directo, necessário ou eventual:

- No dolo directo o agente teve como fim, como intenção, a realização do facto criminoso (nº 1);
- No dolo necessário o agente, tendo porventura outro fim diferente, reconhece o facto criminoso como consequência necessária da sua conduta e, no entanto, não se abstém da sua prática (nº 2); e
- No dolo eventual o agente ao actuar conformou-se com a possível realização do facto criminoso como consequência da sua conduta (nº 3).

Ora, voltando ao caso vertente, há que averiguar desde logo se, face à alegação efectuada pela assistente no seu requerimento de abertura de instrução, se mostram verificados todos os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança, como aquela preconiza.

Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a resposta é negativa.

Na verdade, transcorrendo o RAI apresentado pela assistente, constata-se que a mesma, basicamente, se limita a tecer críticas ao despacho de arquivamento por banda do Ministério Público, a formular juízos de valor, a infirmar a versão dos factos dada pelo arguido deu no decurso do inquérito, a tecer considerações sobre a inadequação da conduta do mesmo arguido, e a requerer diligências de prova. Sendo certo que, nos poucos factos que objectivamente relata, fá-lo de uma forma totalmente genérica, não cuidando sequer de referir em concreto, descrevendo-os, os bens (e respectivos valores) que alega ter entregue ao arguido para que os guardasse, e dos quais o mesmo se apropriou.

Mais se assemelhando a dita peça processual, como bem aduz o Digno Procurador da República na sua resposta, a um requerimento de intervenção hierárquica, e não a uma verdadeira acusação, na qual conste a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido.

Ademais, há que referir que o RAI apresentado pela assistente é omisso, na descrição factual, quanto ao elemento subjectivo – o dolo – em qualquer uma das diversas modalidades do dolo, supra mencionadas, requisito esse que, como se viu, é essencial para a punibilidade do comportamento do arguido.

Com efeito, no RAI da assistente falha por completo a imputação dos elementos subjectivos constitutivos da autoria material do crime doloso de abuso de confiança, p. e p. pelo Artº 205º do Código Penal, concretamente falhando a imputação hoc sensu da liberdade de agir do agente, a consciência pelo agente da conduta como sua, o tipo de vontade de actuação do agente e a consciência pelo agente da ilicitude criminal / penal da respectiva conduta.

Não se satisfazendo minimamente esse requisito com a alegação ínsita nos pontos 79 e 84 do RAI, nos termos dos quais o arguido teve e tem a intenção de se apropriar dos bens da assistente e que procura inverter o título da posse dos bens, e muito menos com a afirmação que faz no ponto 85 da mesma peça processual, segundo a qual “o Arguido recebeu os bens da Assistente e que esta lhe confiou para guardar e, agora na posse dos mesmos, o Arguido está a dar um destino diferente daquele para que os bens lhe foram confiados.”.

Verifica-se, pois, como bem refere o Mmº JIC no despacho impugnado, uma omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos do tipo de crime em causa, de abuso de confiança, maxime ao nível subjectivo.

Não podendo o juiz de instrução, pelas razões jurídicas anteriormente explanadas - mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática por banda do arguida de um crime - alterar ou criar por si a factualidade em falta, nem tampouco convidar a assistente a suprir as falhas detectadas.

Assim sendo, bem andou o Mmº JIC ao rejeitar o requerimento para abertura de instrução, formulado pela assistente, por inadmissibilidade legal, não se vislumbrado ter sido violada qualquer das normas trazidas à colação pela recorrente, designadamente o direito de acesso à justiça, consagrado no Artº 20º da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, como se viu, a exigência de que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente configure uma verdadeira acusação, com a narração dos factos (objectivos e subjectivos) que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, e a indicação das disposições legais aplicáveis, não se traduz num mero formalismo, decorrendo antes da necessidade da delimitação inequívoca do objecto do processo face à estrutura acusatória do processo penal consagrada no Artº 32º, nº 5, da nossa lei fundamental.

Ora, no caso sub-judice, o direito de a assistente aceder à justiça e de intervir no processo jamais foi beliscado ou colocado em causa, enquadrando-se nesses direitos a oportunidade de requerer a abertura de instrução face ao arquivamento do inquérito por banda do Ministério Público, e de recorrer para a 2ª instância da decisão que lhe indeferiu esse requerimento.

Sendo certo que, se o requerimento para abertura da instrução foi rejeitado, tal circunstância apenas é imputável à própria assistente, que não deu cumprimento às exigências legais.

Soçobra, pois, o recurso, nesta parte.

Subsidiariamente, sustenta ainda a assistente que o despacho recorrido enferma de nulidade insanável, nos termos do disposto no Artº 119º, al. d), ou pelo menos de nulidade nos termos do disposto no Artº 120º, nº 2, dado o Mmº JIC “ter ignorado por completo a junção de uma sentença proferida no âmbito do processo nº 599/16.0GCBRG, que correu termos no Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em que o Arguido interveio como Assistente, a aqui Assistente, ora Recorrente, como testemunha e a amiga da Assistente como Arguida e no âmbito da qual se encontra expressamente referido aquilo que o aqui Arguido, ali Assistente, nas suas declarações acabou por confessar que continuava a reter os bens da Assistente, alegadamente, para acautelar os próprios interesses desta, (...) para ela não ser enganada por falsos amigos”, e bem assim “ter proferido despacho de rejeição do RAI da Assistente sem, contudo, se pronunciar sobre as novas diligência de prova carreadas para os Autos pela Assistente e, muito menos sem ter levado a cabo a requerida inquirição da testemunha indicada”.

Salvo o devido respeito, não tem qualquer sustentação este argumento esgrimido pela assistente.

Com efeito, tendo o RAI apresentado pela assistente sido rejeitado por inadmissibilidade legal, torna-se manifesto e evidente que as diligência de prova em causa, apresentadas e solicitadas pela requerente, jamais poderiam ser levadas a cabo pelo Mmº JIC, pois, caso o fizesse, estaria a proceder à instrução requerida e, consequentemente, não a teria rejeitado.

Improcede, pois, esta questão recursória.

Nestas circunstâncias, e em conclusão, nenhuma censura merece o despacho recorrido, devendo ser confirmado, por não ter violado qualquer dos preceitos legais invocados pela recorrente.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela assistente F. F., confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas pela assistente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (Artº. 515º, nº 1, al. b), 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 29 de Abril de 2019

(António Teixeira)
(Nazaré Saraiva)


1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
4. Ibidem, pág. 126.
5. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 133 e sgts..
6. Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 141/142.
7. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040358.html.
8. Obviamente que, diferentemente do que sucedia com os anteriores assentos, através dos quais os tribunais fixavam doutrina com força obrigatória geral (de acordo com o Artº 2º do Código Civil, que veio a ser revogado pelo Artº 4º do Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), os acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não são vinculativos para quaisquer tribunais, mas não deixam de criar “uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, a merecer uma maior ponderação” particularmente para as instâncias que não o próprio STJ, como se intui do disposto no Artº 678º, nº 2, al. c), do C.P.Civil – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 14/05/2009, proferido no âmbito do Proc. nº 218/09.OYFLSB, in www.dgsi.pt. Ademais, tal jurisprudência uniformizadora contribui para a “unidade da ordem jurídica, face à autoridade que normalmente anda ligada às decisões dos supremos tribunais, designadamente quando eles se reúnem em pleno ou em plenário de secções para solucionar divergências jurisprudenciais” - Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 4ª edição, págs. 271 e 272). Ora, com o sublinha Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2ª edição revista e actualizada, págs. 446/448, a propósito dos acórdãos de uniformização de jurisprudência na jurisdição processual civil, considerandos que aqui se aplicam totalmente, no actual quadro normativo nacional, é pelo seu intrínseco valor persuasivo que é exercida a influência intra-sistemática da jurisprudência uniformizadora, pelo que tendo em conta o sentido e valor que se atribui a esta jurisprudência, parece óbvio “que, em princípio, enquanto se mantiverem as circunstâncias em que se baseou a tese do Supremo, devem os tribunais judiciais acatá-la, na medida em que, não o fazendo, além de esse não acatamento poder representar uma quebra injustificada do valor da segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados, ainda podem ser provocados graves danos na celeridade processual e na eficácia dos tribunais, considerando a previsível derrogação da decisão em caso de interposição de recurso”, razão pela qual se pode afirmar que apenas quando “estiver preenchido um circunstancialismo complexo será de ponderar adesão a tese oposta àquela que anteriormente obteve vencimento”, podendo elencar-se, entre tais circunstâncias a apresentação de “argumentos jurídicos que não tenham sido convincentemente rebatidos pelo acórdão uniformizador”, a “manutenção ou ampla renovação do quadro de juízes que integram as secções cíveis do Supremo que faça prever uma mudança de posição”, o “período de tempo decorrido desde a prolação da decisão, conjugado com relevantes modificações no regime jurídico ou no diploma em que se enquadra a norma cuja interpretação uniformizadora se efectivou, ou a ponderação de alterações sensíveis das condições específicas constatadas no momento da aplicação” ou a “contrariedade insolúvel da consciência ético-jurídica do julgador em caso de adesão à jurisprudência uniformizadora”. E para contrariar a jurisprudência uniformizadora do Supremo – sublinha aquele Ilustre Autor –, exige-se a verificação de fortes razões ou outras especiais circunstâncias que, porventura, ainda não tenham sido suficientemente ponderadas. Ora, tendo em conta estas considerações doutrinárias, e à míngua de argumentos novos que possam refutar os dele constantes, como se exige no Artº 445º, nº 3, do C.P.Penal, não vemos quaisquer razões para deixar de acatar a jurisprudência emanada pelo supra citado Acórdão Uniformizador.
9. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130175.html.