Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2601/14.0T8VNF-B.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: PENHOR DE COISA
PENHOR DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
PENHOR DO ALVARÁ DE FARMÁCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator):

1. A constituição do penhor, em caso de incumprimento das obrigações garantidas, “habilita” a Exequente com um título executivo que lhe permite fazer prosseguir uma execução contra a Sociedade Terceira que prestou aquela garantia real, com a execução dos bens/direitos dados em garantia (no sentido de obter a satisfação do seu direito de crédito sobre os Executados).

2. Um Estabelecimento Comercial pode ser objecto de um penhor, no seu conjunto, como unidade económica ou universalidade jurídica, mas nada impede, em princípio, que tal garantia se constitua isoladamente, sobre alguns dos bens ou direitos que o integram;

3. No entanto, importa atender a que nem todos os elementos componentes do Estabelecimento Comercial podem ser autonomizados e, assim, separados para o efeito de sobre eles ser constituído uma garantia real como o penhor.

4. Um desses elementos componentes que não pode ser separado do estabelecimento comercial- e nas Farmácias ainda com maior pertinência- é “o direito de alvará do estabelecimento”, que só releva em conexão com a exploração daquele.

5. Deve-se entender, por outro lado, que, sendo o alvará, em geral, um documento que serve de título aos actos de autoridades que decidem de forma favorável pretensões várias, licenças e autorizações e que têm, normalmente, como pressuposto um interesse público, não constitui uma coisa móvel susceptível de ser eleita como objecto de um penhor (cfr. arts. 666º, nº 1 e 680º do CC).

6. Assim, quando as partes declaram constituir um penhor que tem por objecto o alvará de Farmácia, tal declaração deve ser interpretada no sentido de que o que pretendiam eleger como objecto do penhor era o Estabelecimento Comercial de Farmácia, no seu todo”
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.
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Farmácia X, Lda., Executada nos autos principais, deduziu a presente oposição à penhora contra a Exequente Y Healthcare, S.A..

Alega, para o efeito, que a penhora incidiu sobre bens especificamente impenhoráveis que não respondem pela dívida exequenda.

Refere que a Executada constituiu a favor da Exequente, um penhor do Alvará n.º ..., relativo à “Farmácia X” e que, face ao contrato outorgado, o penhor constituído pela Executada recaiu apenas sobre o Alvará n.º ... da “Farmácia X”, não tendo incidido sobre o estabelecimento comercial.
Considera, por isso, que não poderiam ter sido penhorados os bens e/ou direitos compreendidos no estabelecimento comercial “Farmácia X”.
Mais refere que penhora violou o princípio da proporcionalidade.
Pugna pela procedência da oposição à penhora, requerendo o levantamento da penhora sobre todos os bens e/ou direitos compreendidos no estabelecimento comercial “Farmácia X” que não respondam pela dívida exequenda.

Notificada, a Exequente pugnou pela improcedência da oposição, referindo, em suma, que nada obsta a que se mantenha a penhora nos termos efectuados.
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De seguida, foi proferida a seguinte decisão que aqui constitui o objecto do recurso:

“…Decisão:

Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente a oposição à penhora deduzida… “.
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É justamente desta decisão que a Executada/Recorrente veio interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

CONCLUSÕES

Vem o presente recurso interposto, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 1 dos artigos 637º, nºs 1 e 4, 639º, 644º e 645º, nº 1, a) do CPC, ex vi do disposto no artigo 652º do mesmo diploma, da Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo com a ref. CITIUS 155161855, que julgou totalmente improcedente a Oposição à Penhora deduzida pela aqui Recorrente, e com a qual não pode esta conformar-se, por assentar num grave e manifesto erro de julgamento que inquina toda a decisão proferida.
Atento o teor do Documento nº 1 junto com o Requerimento Executivo (Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida e o Termo de Penhor anexo ao mesmo), não poderia ter sido dado por assente o facto constante do ponto 1 do capítulo “DOS FACTOS: Factos Assentes.
Naquele Acordo – em que a Recorrente nem sequer outorga! – não foi constituído qualquer penhor a favor da Exequente. O único penhor constituído, sobre o Alvará nº ..., foi-o no termo autónomo de Penhor subscrito unicamente pela aqui Recorrente.
Deve, pois, o Facto Assente nº 1 ser modificado, desdobrando-se em dois factos autónomos, com a seguinte redacção:

1. A Exequente e os Executados José e Maria outorgaram um “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Divida” em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.”
“2. A Executada Farmácia X – Unipessoal, Lda. constituiu a favor da Exequente, para garantia das obrigações assumidas por José e Maria no “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida”, penhor do Alvará nº ..., emitido pelo INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamente e Produtos de Saúde, I.P., por termo autónomo de penhor outorgado em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.”
Impõe tal decisão o teor do Documento nº 1 junto com o Requerimento Executivo.
Nos termos da lei civil – cfr. artigos 601º, a contrario, e 666º do Código Civil – respondem in casu pela dívida exequenda, apenas, o bem empenhado pela aqui Recorrente, já que esta não é devedora, mas tão-só garante (vide também, neste sentido, e entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2009 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Outubro de 2003 acima identificados).
No caso vertente foi executado património que não responde pela dívida, i.e., foi a Recorrente executada por bens que extravasavam o Alvará nº ..., único bem de sua propriedade efectivamente empenhado.
Tinha, pois, a Recorrente o direito de lançar mão, como lançou, da Oposição à Penhora, ao abrigo do disposto na alínea c) do número 1 do artigo 784º do CPC, e de ver tal Oposição ser julgada procedente, em virtude dos argumentos a esse respeito expostos nesse articulado, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, e que assentavam (i) na incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência, e (ii) na manifesta desproporcionalidade, por essa via, da penhora efectuada.
Ao decidir diversamente fez o Tribunal a quo errada aplicação do disposto nos artigos 666º e 601º, a contrario, do Código Civil, e do disposto nos artigos 784º, nº 1, al. c) e 751º do CPC aos factos dos autos, devendo a Sentença recorrida ser revogada por Vossas Excelências e substituída por outra que julgue procedente, por provado, o incidente de Oposição à Penhora e, consequentemente, ordene o seu levantamento nos termos requeridos.

Termos em que

-Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser por Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, (i) alterado o ponto 1 do capítulo “DOS FACTOS: Factos Assentes:” da Sentença a quo; e (ii) revogada a Sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedente, por provado, o incidente de Oposição à Penhora e, em decorrência, ordene o seu levantamento nos termos requeridos”.
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Devidamente notificada, a Exequente/Recorrida apresentou contra-alegações, onde defende a improcedência do recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, as únicas questões colocadas consistem em:

a)- Impugnação da matéria de facto provada;
b)- Saber se a oposição à penhora deve ser julgada procedente porque a Recorrente foi executada por bens que extravasavam o Alvará nº ..., único bem de sua propriedade que está efectivamente empenhado.
c) Se existe caso julgado formado pela sentença proferida nos autos de Embargos de executado, no sentido de aí já se ter decidido, em termos definitivos, que o contrato de penhor abrange o próprio estabelecimento comercial de Farmácia (e não só o alvará de Farmácia) - questão levantada pela Recorrida.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

DOS FACTOS:
Factos assentes:

1. Exequente e Executados José e Maria outorgaram um “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida” em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, tendo sido constituído a favor da Exequente um penhor.
2. Nos autos principais foi penhorado um imóvel sito na Av. …, Braga, tendo sido atribuído o valor de 182.745,58€.
3. Foi, de igual modo, penhorado o estabelecimento comercial de farmácia denominado "Farmácia X", sito na Avenida …, em Braga, que inclui o direito ao arrendamento, o alvará ..., emitido pelo Infarmed, do qual fazem parte integrante os bens (medicamentos, produtos de dermo-cosmética) constates do inventário em anexo, composto por 70 fls., três balcões, cinco computadores, que inclui caixa registadora, tendo sido fixado como valor base o montante de 1.000,000,00€ (um milhão de euros).
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Motivação:

O Tribunal baseou-se na ficta confessio e nos documentos, não impugnados, que se encontram junto aos autos.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Comecemos por apreciar a questão da alteração da matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal Recorrido.
Julga-se que esta questão merece resposta positiva no que concerne à matéria de facto que se deve considerar como provada (mas já não quanto aos efeitos que a Executada pretende retirar dessa alteração).
Na verdade, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, os factos dados como provados mostram-se em desconformidade com a prova (documental) junta aos autos.

Com efeito, desta prova resulta que o que ficou estabelecido entre as partes foi:

- Um “Acordo de Reconhecimento e de Regularização de Dívida” celebrado, em 2 de Março de 2009, entre a Exequente e os Executados José e Maria;
- e “Penhor do Alvará nº ...”, emitido pelo INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamente e Produtos de Saúde, I.P., por termo autónomo de penhor outorgado em 2 de Março de 2009.
Nesta conformidade, sem prejuízo das conclusões a que mais à frente chegaremos, em termos de factualidade provada não é correcto apresentar como factos provados, os juízos conclusivos (ou as conclusões de Direito) que derivarão dos factos propriamente ditos.
Ora, conforme resulta da prova documental junta, o que, em termos factuais, se pode considerar como provado é que:
1. A Exequente e os Executados José e Maria outorgaram um “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida” em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
2. A Executada Farmácia X – Unipessoal, Lda. constituiu a favor da Exequente, para garantia das obrigações assumidas por José e Maria no “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida”, um “penhor do Alvará nº ...”, emitido pelo INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamente e Produtos de Saúde, I.P., por termo autónomo de penhor outorgado em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido”.
No fundo, o que se pretende com esta alteração da factualidade provada é apenas atribuir um maior rigor à decisão da matéria de facto, já que, conforme já se referiu, dela apenas devem constar os factos e não quaisquer conclusões ou matéria de direito que deverão surgir apenas na Fundamentação de Direito.
Procede, pois, a impugnação da matéria de facto deduzida pela Recorrente, alterando-se em conformidade a matéria de facto provada nos termos seguintes:

1. A Exequente e os Executados José e Maria outorgaram um “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida” em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
2. A Executada Farmácia X – Unipessoal, Lda. constituiu a favor da Exequente, para garantia das obrigações assumidas por José e Maria no “Acordo de Reconhecimento e Regularização de Dívida”, um “penhor do Alvará nº ...”, emitido pelo INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamente e Produtos de Saúde, I.P., por termo autónomo de penhor outorgado em 2 de Março de 2009, o qual se encontra junto ao requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido”;
3. Nos autos principais foi penhorado um imóvel sito na Av. …, Braga, tendo sido atribuído o valor de 182.745,58€.
4. Foi, de igual modo, penhorado o estabelecimento comercial de farmácia denominado "Farmácia X", sito na Avenida …, em Braga, que inclui o direito ao arrendamento, o alvará ..., emitido pelo Infarmed, do qual fazem parte integrante os bens (medicamentos, produtos de dermo-cosmética) constates do inventário em anexo, composto por 70 fls., três balcões, cinco computadores, que inclui caixa registadora, tendo sido fixado como valor base o montante de 1.000,000,00€ (um milhão de euros).
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Aqui chegados, importa então avançar para a ponderação do segundo fundamento invocado pela Recorrente.
- Saber se a oposição à penhora deve ser julgada procedente porque a Recorrente foi executada por bens que extravasavam o penhor do Alvará de Farmácia nº ..., único bem de sua propriedade que está efectivamente empenhado.
Como é sabido, a constituição do penhor, em caso de incumprimento das obrigações garantidas, “habilita” a Recorrente/Exequente com um título executivo que lhe permite, nos presentes autos de execução, fazer prosseguir esta execução contra a Sociedade Terceira com a execução dos bens/direitos dados em garantia real no sentido de obter a satisfação do seu direito de crédito sobre os Executados.
Esta questão mostra-se resolvida directamente pelos arts. 54º, n 2, 735, nº 1 e 2 do CPC e arts. 817º e 818º do CC.
Na verdade, conforme é sabido, em princípio, na execução têm legitimidade como exequente e executado quem no título figura, respectivamente, como credor e devedor (art. 53º do CPC) e, em princípio, também, só pode ser executado o património do devedor (art. 817º do CC) (1).
No entanto, logo no art. 54º do CPC o legislador estabelece “ desvios à regra geral da determinação da legitimidade”.
Ora, um desses desvios é, justamente, aquele que ocorre “ na execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro “ que “… segue directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor… “ (nº 2 do art. 54º do CPC).
Regula-se nesta norma a legitimidade passiva nos casos em que exista uma garantia (v.g. um penhor) em benefício do credor exequente, pertencendo a coisa a um terceiro.
Trata-se de um caso em que um terceiro não devedor onerou uma coisa de que é proprietário para pagamento de uma dívida alheia e em que o terceiro proprietário não é, pessoalmente, sujeito da obrigação exequenda.
E daí que coerentemente o citado art. 818º do CC preceitue que “… o direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro quando estejam vinculados à garantia do crédito… “.
Nesta medida, “ o terceiro é limitadamente responsável por uma dívida alheia, ou talvez mais correctamente, alguns dos seus bens são penhoráveis por causa de uma divida alheia… “ (2).
No entanto, para a prossecução de actos executivos no património de terceiro proprietário é imprescindível a demanda deste nos autos de execução (nº 2 do art. 54º do CPC)
Assim, o credor pignoratício, ou seja a Recorrente/ Exequente dos presentes autos, pode executar directamente o penhor constituído em seu favor pela Recorrente, tendo apenas que deduzir essa sua pretensão na acção executiva pendente, fazendo intervir nela a Sociedade Comercial garante e executando na mesma os bens empenhados (objecto do Penhor), obtendo, assim, de uma forma coerciva, a satisfação do seu crédito exequendo pelo produto da venda dos aludidos bens dados em penhor.
Importa salientar que o terceiro dador do penhor assemelha-se ao fiador, mas, ao contrário deste, a sua responsabilidade está circunscrita a uma coisa determinada (à coisa empenhada), não é uma responsabilidade pessoal.

Nesta conformidade, por força da constituição do penhor pela Recorrente, a Recorrida/ Exequente, além da garantia geral que representava já o património dos Executados/ devedores, passou a estar garantida pelo penhor constituído a seu favor, podendo atingir um património alheio que, assim, constitui uma garantia adicional do seu crédito.
A questão que se coloca, no entanto, no caso concreto, é a de saber a extensão do penhor constituído, pois que decorre do próprio teor do seu texto que a garantia prestada foi estabelecida nos seguintes termos:

“… Como garantia do bom e integral pagamento das obrigações assumidas no presente acordo, a Sociedade Farmácia X…constituiu a favor da 1ª Outorgante, ou de farmacêutico por esta indicado, Penhor do Alvará n.º ..., emitido pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., o qual poderá ser executado logo que se verifique a falta de pagamento integral de cinco prestações…” (cfr. Cláusula Terceira do Acordo de fls. 7 e 8 da certidão judicial junta como Doc. n.º 1);
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Antes de entrarmos nesta questão do âmbito do objecto do penhor, importa aqui recusar a ideia do Tribunal Recorrido de que a argumentação da Recorrente não é configurável em qualquer um dos fundamentos previstos para a oposição à penhora (3).
Na verdade, contrariamente ao defendido, julga-se que a pretensão da Recorrente tem pleno acolhimento na al. c) do art. 784º do CPC onde se prevê que constitui fundamento da oposição à penhora a incidência desta sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
Ora, esse é o fundamento da pretensão da Oponente. Ou seja, o facto de os bens sobre os quais a penhora veio a incidir, não poderem responder, em termos de direito substantivo (do regime jurídico do penhor), pela dívida exequenda.
O Tribunal Recorrido não tem, pois, razão, quando entende que “atento os fundamentos possíveis de apreciar no âmbito da oposição à penhora não se vislumbra qualquer motivo para que seja procedente a oposição”.
Aqui chegados, e afastada esta argumentação, importa entrar, então, na questão que contende com a extensão do penhor constituído a favor da Exequente.
Certamente por ter entendido que o penhor prestado tinha sido constituído sobre o estabelecimento comercial de farmácia denominado "Farmácia X", “avançou-se” na execução (instaurada também contra o devedor pignoratício) para a penhora daquele estabelecimento comercial.
Defende, no entanto, a Recorrente que não é assim, pois que o penhor constituído incidiu apenas sobre o alvará da referida Farmácia, pelo que nenhum outro bem e/ou direito poderia ter sido penhorado, na medida em que, intervindo na qualidade de garante, só o bem empenhado é que poderá responder pela dívida exequenda.
Já vimos em cima que, efectivamente, a Recorrente, intervindo na presente execução nos termos dos citados dispositivos legais, tem a sua responsabilidade circunscrita aos bens/direitos/coisas empenhadas, não podendo ser penhorados outros bens que existam no seu património (e daí a pertinência da invocação da al. c) do art. 784º do CPC).
A questão que se coloca é, pois, a de saber a extensão do penhor constituído pela Recorrente a favor da Recorrida.

Ou seja, poderá esse penhor, com o conteúdo que decorre do acordo celebrado, restringir-se ao penhor do alvará de farmácia, ou, pelo contrário, tem por objecto o próprio estabelecimento comercial de farmácia, em cuja “organização” se inclui aquele alvará?
Defende a Exequente/Recorrida que esta questão já terá sido decidida nos autos de Embargos de executado, por sentença transitada em julgado, pelo que existiria caso julgado.
Sucede que compulsada a sentença proferida, pode concluir-se que assim não é.
Na verdade, salvo o devido respeito pela opinião contrária, a decisão ali proferida não forma caso julgado quanto à questão que aqui se discute.
Como é sabido, a excepção de caso julgado- que pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira, entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir, ter sido decidida por sentença que não admita recurso ordinário- obsta ao conhecimento do mérito da causa e importa a absolvição da instância (cfr. arts 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º, n.º 1, 581.° e 619.°, n.º 1, todos do CPC).
Os seus requisitos, de verificação cumulativa, estão previstos no citado art. 581º nos seguintes termos:

1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”
Reporta-se, assim, à tríplice identidade relativa aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
A identidade dos sujeitos não suscita quaisquer dúvidas, face ao disposto no n.º 2 do citado art.º 581.º, já que “as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”.
Na definição da identidade do pedido, “… há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem”, sendo que “à identidade de efeito jurídico referida no n.º 3 basta … uma identidade relativa, abrangendo, «não só o efeito preciso obtido no primeiro processo, como qualquer que nesse processo houvesse estado implicitamente mas necessariamente em causa» (Castro Mendes, idem, p. 350). Por outro lado, apresentando-se o pedido determinado material e processualmente …, interessa fundamentalmente ao conceito de repetição o efeito jurídico de direito material, mas a função do caso julgado não impede que, com base na decisão anteriormente proferida, se peticione um efeito processual não abrangido pela decisão proferida: pode, por exemplo, pedir-se a condenação do réu no cumprimento da obrigação reconhecida em acção de simples apreciação” (4).
Daí que se possa afirmar que ocorre identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo.
A causa de pedir é o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para fundamentar o seu pedido.
A mesma radica no facto oferecido pela parte e não na valoração que se lhe atribui, sendo que também não se deve confundir com os meios de que a parte se serve para o sustentar ou demonstrar, pois os meios são as provas e os argumentos por via dos quais se procura estabelecer a existência do facto jurídico que serve de fundamento à acção.
Para que a excepção de caso julgado ocorra é necessário que a pretensão deduzida nas duas acções proceda do mesmo facto jurídico, podendo, quando muito, haver divergência no seu enquadramento jurídico.
Diferente da excepção do caso julgado, com a qual não se confunde, é a autoridade do caso julgado.
Este radica nos arts. 619º, n.º 1, e 621º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).”
Ambos respeitam ao caso julgado material e pressupõem o trânsito em julgado da decisão (cfr. art. 628º do CPC).
A excepção do caso julgado, enquanto excepção dilatória, tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de essa mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.

Pelo contrário, a figura da autoridade do caso julgado tem a ver com a existência de relações – já não de identidade jurídica – mas de prejudicialidade entre objectos processuais: julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes – incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção. Ou seja, estamos aqui confrontados com a chamada função positiva do caso julgado …, mediante a qual a vinculatividade própria do instituto do caso julgado impõe que o objecto da primeira decisão funcione como pressuposto indiscutível da nova decisão de mérito, a proferir na segunda causa, incidente sobre relação jurídica diversa, mas dependente ou condicionada pela anteriormente apreciada, em termos definitivos, pelo tribunal (5).
O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa.
A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado.
A função negativa é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por fim evitar contradições ou reproduções (cfr. art. 580º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a excepção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

O Prof. Lebre de Freitas, a este propósito, escreveu: “A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “… a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” (6).

No mesmo sentido, propugna o Prof. Miguel Teixeira de Sousa que: “a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior” (7).

Tem sido entendido que a autoridade do caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art. 581º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida (8).
Acresce que, tal como é referido no último acórdão citado, é entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado (9).

Como afirma Miguel Teixeira de Sousa, citado no último acórdão do STJ, referido na nota anterior, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão(10).
Aqui chegados, com interesse para o que aqui se discute, pode-se verificar que os Embargos de Executado tinham como fundamento as seguintes questões:

- Nulidade do penhor por falta de interesse e capacidade da embargante;
- Da (in)validade da constituição do penhor; e
- Da imputação do cumprimento.
Ora, se foram estes os fundamentos dos Embargos deduzidos, a decisão aí proferida apenas formou caso julgado quanto a cada um desses fundamentos.
E isto porque o caso julgado, como se referiu, “incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Ora, a verdade é que a questão da extensão do penhor não constituía, como se evidenciou, um dos fundamentos dos Embargos deduzidos, pelo que a decisão de improcedência daqueles não forma caso julgado quanto a essa questão.
Com efeito, foram outras as questões decididas e que, nessa medida, atento o respectivo trânsito em julgado, mostram-se definitivamente resolvidas.
Ou seja, o que já se mostra definitivamente decidido- com pertinência para o caso concreto- são apenas as questões relativas à nulidade do penhor por falta de interesse e capacidade da embargante- cfr. art. 6º, nº 3 do Cód. Sociedades Comerciais- e a questão da (in)validade da constituição do penhor, porquanto o alvará do estabelecimento de farmácia encontra-se na posse da mesma. - cfr. arts. 666 e ss. do CC e 398º do CComercial.
Foram essas as únicas questões definitivamente decididas (no sentido da sua improcedência)
Nesta conformidade, sem necessidade de mais alongadas considerações, pode-se concluir que à questão aqui colocada não pode ser oposta a excepção de caso julgado invocada pela Recorrida.
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Aqui chegados, importa, então, entrar na questão já enunciada.
Como é sabido, o estabelecimento comercial constitui, segundo a doutrina tradicional, uma universalidade de direito (universitas iuri) (11), um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos - bens móveis e imóveis, direito ao arrendamento ou à utilização do espaço, direito de uso do nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, etc.- organizados para a produção.
Porque, como se diz no art 202º, nº 1 do CC, " pode ser objecto de relações jurídicas", deve, na realidade, ser entendido como uma coisa- apesar da colocação sistemática do art. 782º do CPC (subsecção V- penhora de direitos) (12).
Enquanto universalidade, não pode ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes; mas pode, mesmo, existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros (13).

Como afirma o Prof. Ferrer Correia (14), "o valor do estabelecimento não é puramente igual à soma dos valores do seu activo considerados à margem da organização - antes o simples facto dessa organização implica para cada um desses bens uma valorização especial. As máquinas, as mercadorias, olhadas como elementos do estabelecimento, valem alguma coisa mais do que valeriam consideradas isoladamente ", ou seja, " o valor do todo é também superior ao da soma das suas partes ".
“O estabelecimento comercial tem na sua base os elementos que são objecto da organização e que a corporizam. São os chamados factores produtivos…abrangendo todos os elementos que o sujeito afecta a actividade da empresa e à prossecução do seu fim imediato: obter aviamento através da integração na organização. Esses elementos podem ser materiais, nomeadamente, edifícios, máquinas e utensílios, mobiliário, mercadoria e matérias-primas. Mas também podem ser imateriais: licenças ou autorizações, contratos e débitos ou títulos de crédito (…). A realidade mostra, todavia, que o estabelecimento, como bem, não se reduz a um conjunto de bens, nem a uma mera organização, nem mesmo a uma clientela. A Doutrina acabaria, pois, por conjugar uma leitura articulada de todas estas perspectivas. O estabelecimento comercial passa a ser entendido numa perspectiva unitária, considerado em si como unidade distinta dos vários bens que o compõem” (15).

No caso concreto, no acordo estabelecido entre as partes, de onde deriva a constituição do penhor, releva, em particular, a menção ao Alvará de Farmácia, eleito como referência do objecto daquele.

Ora, no âmbito do que se acaba de dizer, quanto ao estabelecimento comercial (de Farmácia), importa realçar que o referido alvará de Farmácia (Alvará n.º ..., emitido pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P.) integra, tal como os demais elementos componentes atrás referidos, a universalidade de direitos que constitui o Estabelecimento Comercial de Farmácia.
Ou seja, é um dos seus valores do respectivo activo.
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se tal Alvará de Farmácia, dentro deste enquadramento jurídico, pode ser autonomizado por forma a constituir o objecto de um penhor, tal como aparentemente teria sucedido no caso concreto.
É que um estabelecimento comercial pode ser objecto de uma garantia real (de que é exemplo corrente, a penhora), no seu conjunto, como unidade económica ou universalidade jurídica, mas nada impede, em princípio, que sejam penhorados isoladamente, alguns dos bens ou direitos que o integram (veja, por exemplo, quanto à penhora o disposto no art. 782º, nº 5 do CPC).

Assim, em vez de se penhorar o estabelecimento comercial como universalidade, podem-se somente penhorar os bens que o integram. Se tal ocorrer, a ulterior penhora do estabelecimento não inclui essas coisas simples, por desafectadas da unidade jurídica em que aquele se analisa.
No entanto, importa atender a que nem todos os elementos componentes do estabelecimento comercial podem ser autonomizados e, assim, separados para o efeito de sobre eles incidir uma penhora ou sobre eles ser constituído uma garantia real (por ex. um penhor- que é o que nos interessa no caso concreto).
Ora, um desses elementos componentes que não pode ser separado do estabelecimento comercial- e nas Farmácias ainda com maior pertinência, como iremos ver- é “o direito de alvará do estabelecimento” que só releva em conexão com a exploração daquele (16).
Nestas situações não pode, assim, esse elemento componente ser autonomizado do estabelecimento comercial, não sendo possível fazer incidir sobre ele uma penhora, nem podendo sobre ele ser constituído uma garantia real (como o penhor).
Na verdade, além destas considerações gerais, e, em particular, no que concerne ao penhor, importa reter que esta garantia real “…recai sobre certa coisa móvel. Destarte, diremos que a coisa empenhada deverá ser alienável, i. e., não poderá ser uma coisa fora do comércio, dado que… resulta claro que as garantias de crédito, para além de assegurarem a satisfação de um valor, no caso das garantias reais, implicarão igualmente que haja a execução forçada em caso de incumprimento, motivo pelo qual a coisa dada em garantia terá de ser susceptível de alienação…” (17).
Ora, como se referiu, o direito de alvará de Farmácia não pode ser autonomizado, nem alienado sem estar conexionado com o próprio Estabelecimento Comercial de Farmácia em que se integra.
Com efeito, embora o Alvará de Farmácia surja como um dos elementos componentes do Estabelecimento Comercial de Farmácia, a verdade é que, pela sua própria natureza jurídica, não pode ser autonomizado para o efeito de constituir o objecto do penhor aqui em discussão.
Na verdade, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, apesar do penhor ter sido constituído em função desse objecto, tal separação não é admissível legalmente, atenta a natureza jurídica do referido Alvará de Farmácia.
É que importa atender que “o alvará, em geral, é um documento que serve de título aos actos de autoridades que decidem de forma favorável pretensões várias, licenças e autorizações e que têm, normalmente, como pressuposto um interesse público” (18).
No caso concreto, o Alvará de Farmácia tem subjacente o controle do interesse público derivado do facto das farmácias prosseguirem uma actividade de saúde pública (art. 2º do DL nº 307/2007, de 31.8 (19)).
Com efeito, “para além dos desvios às regras que disciplinam o acesso à titularidade dos demais estabelecimentos comerciais, esta matéria apresenta também a particularidade de ser um domínio fortemente intervencionado pelo direito administrativo. Efectivamente, a abertura e o funcionamento da farmácia não dependem apenas da vontade do seu titular. Para o efeito, é condição necessária a existência de uma autorização (alvará) emitida pela entidade administrativa que tutela a matéria: o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED)” (20).

Assim, nos termos do artigo 25.º do referido DL, o licenciamento de novas farmácias é precedido de concurso público; as farmácias só podem abrir ao público depois de lhes ser atribuído o respectivo alvará, emitido pelo Infarmed; a alteração da propriedade ou a transferência da localização da farmácia dependem de averbamento no alvará.
Ora, nestas situações importa atender a que a licença, que constitui o alvará, atribui um direito que não tem por objecto certa coisa móvel (veja-se a exigência do art. 680º do CC para a constituição do penhor) (21).
O seu objecto, como se referiu, é apenas uma declaração de conformidade da farmácia com os requisitos legais de funcionamento.
O Infarmed analisa um conjunto de circunstâncias e verifica o respeito de certas condições administrativas em função de certa farmácia ou estabelecimento de farmácia. Assim, sendo o alvará essa declaração de conformidade do estabelecimento, ele integra a universalidade que este constitui.
No entanto, se se admitisse a sua separação do estabelecimento comercial de Farmácia, o alvará perderia o seu significado. Não tem interesse uma declaração de conformidade de certa farmácia ou estabelecimento para outra pessoa que não detenha aquela ou este.
Haverá a possibilidade de negociar certos elementos do estabelecimento desde que eles tenham um valor em si mesmos. Mas a licença de funcionamento do estabelecimento, só por si, considerando a sua especial natureza, de nada vale. Ela só faz sentido no conjunto de elementos que foram controlados pelo Infarmed (uma titularidade, o serviço prestado, uma direcção técnica, entre outros).
O alvará, só por si, não realiza uma função económica, não assegurando a sua ulterior venda. Ele serve sim, como vimos, ao controle da transmissão do estabelecimento.

Nesta conformidade, “após a entrada em vigor da legislação de 2007… o alvará de farmácia transmitir-se-á naturalmente com o estabelecimento trespassado, independentemente de estipulação ad hoc” (22), uma vez que não é emitido “intuitu personae” (mas acompanha o estabelecimento de Farmácia em que se integra como elemento componente).

Nessa medida, se se entendesse que o penhor incidia apenas sobre o alvará de farmácia ter-se-ia de o considerar nulo (23), por estar legalmente impossibilitada a sua constituição por força do regime jurídico do penhor (não é “coisa móvel”- cfr. art. 680º do CC), e porque, dada a sua natureza (impossibilidade de ser autonomizado do estabelecimento comercial de Farmácia em que se integra), a sua venda ou transmissão isolada violaria a lei (arts. 280º, nº 1 e 401º, nº 1; cfr. também o citado art. 680º do CC).
Esta questão da nulidade- embora com diferente fundamento, como se referiu- já foi levantada nos autos de Embargos de Executado e foi julgada improcedente.
Independentemente destas considerações, julga-se que, para afastar esta conclusão de que o penhor seria nulo, pode aqui ser defendida uma outra solução jurídica.

Com efeito, por conduzir a esta interpretação, e tendo em conta também a vontade das partes, que, quando constituíram o penhor, certamente o fizeram imbuídos de boa-fé (art. 762º, nº 2 do CC) – podendo até entender-se que seria abusivo da parte da Executada (art. 334º do CC) invocar essa nulidade da constituição do penhor sobre o alvará de farmácia (24) - julga-se que, em face dos acordos estabelecidos, se pode concluir que o que aquelas quiseram, efectivamente, eleger como objecto do penhor, foi o próprio estabelecimento comercial de Farmácia, no seu todo.
Na verdade, afigura-se-nos que foi essa a intenção das partes, quando acordaram constituir um penhor sobre o “Alvará de Farmácia”.

Com efeito, quando as partes, no momento da constituição do penhor, se referem ao Alvará de Farmácia, o que pretendiam, no fundo, eleger como objecto do penhor era “o direito à exploração do estabelecimento”- para utilizar a expressão referida em situação semelhante no ac. do STJ de 8.4.1997 já citado.

Nesse sentido, e dentro deste enquadramento jurídico, julga-se que o acordo estabelecido só pode ser entendido como referido ao próprio Estabelecimento de Farmácia (e não apenas ao Alvará de Farmácia que, pelas razões expostas, não seria susceptível de ser autonomizado do próprio Estabelecimento Comercial de Farmácia em que se integra como elemento componente, nem podia constituir objecto de um penhor), como bem entendeu o Tribunal Recorrido.
Em certa medida, sucede, aqui, aquilo que, também, vem sendo defendido para os casos em que as partes declaram constituir um “penhor sobre o direito ao trespasse e arrendamento”.
Com efeito nestas situações, também, " se terá de entender como a constituição de penhor sobre o próprio estabelecimento comercial" (25).
Interpretado desta forma o penhor constituído, não podem ser levantadas dificuldades à sua admissibilidade legal, pois que, “tendo em consideração que o estabelecimento comercial é perfeitamente identificável no momento da constituição do penhor, será defensável que este possa ser empenhado” (26).
Ora, se assim é, fica evidente que, como decorrência do acima explanado, o fundamento de oposição à penhora deduzido pela Recorrente tem que necessariamente improceder, pois que a penhora efectivada incidiu sobre um bem (o Estabelecimento Comercial de Farmácia) que, respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, podia ter sido, nessa medida, atingido pela diligência (arts. 666º, 675º, 680º e 685º do CC; cfr. art. 874, al. c) do CPC).
Improcede este fundamento do Recurso.
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Finalmente, e no que concerne ao argumento de que existe “manifesta desproporcionalidade, por essa via, da penhora efectuada”, importa referir que o Tribunal Recorrido ponderou, de uma forma correcta e adequada, o aludido princípio da proporcionalidade.

Na verdade, conforme refere a decisão recorrida:

“Nos autos principais verificamos que por decisão datada de 9 de Maio de 2016 proferido pelo Agente de Execução, a qual não foi impugnada, foi fixado o valor base de venda do estabelecimento comercial em 1.000,000.00€ (um milhão de euros).
Ao imóvel penhorado nos autos foi atribuído o valor de 182.745,58€
Pelo que considerando, assim, que o valor da quantia exequenda é de 2.547.624,49€ (não olvidando a que acrescem as despesas e encargos processuais) não se poderá afirmar que tenha existido a violação do princípio da proporcionalidade da penhora”.
Ora, ponderado o referido princípio, julga-se efectivamente que não existe qualquer violação do disposto no art. 735º, nº 3 do CPC, que impõe justamente que “a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da quantia exequenda e das despesas previsíveis da execução”.
Como é sabido, o legislador, com este princípio, procurou proteger o executado contra a verificação de eventuais abusos na execução do seu património, impedindo, designadamente, a penhora de bens e/ou direitos de valor manifestamente superior ao necessário ao pagamento da dívida exequenda e legais acréscimos (27).
Ora, no caso concreto, os bens penhorados, atento o valor que lhes foi atribuído, continuam a ser insuficientes para garantir o pagamento da quantia exequenda e legais acréscimos e, nessa medida, mostra-se cumprido o referido princípio da proporcionalidade.
Improcede, também a argumentação da Recorrente.
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IV- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente, e, em consequência, decide-se manter a Decisão Recorrida.
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Custas da apelação pela Recorrente (artigo ....º nº 1 do CPC).
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Guimarães, 3 de Maio de 2018

Pedro Alexandre Damião e Cunha
Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Moreira Dias


1. Sobre estes preceitos legais, v. Lebre de Freitas, in “ A acção executiva”, págs. 141 e ss; Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de execução”, págs. 74 e ss.; Marco Gonçalves, in “ Lições de processo executivo”, págs. 162 e ss.; Virgínio Ribeiro/ Sérgio Rebelo, in “A acção executiva anotada e comentada”, págs. 28 e ss.; Rui Pinto, in “ Manual da execução e do despejo”, págs. 282 e ss.; Miguel Mesquita, in “ A apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro”, págs. 17 e ss..
2. Miguel Mesquita, in “ A apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, págs. 22;
3. Refere o Tribunal Recorrido o seguinte: “… independentemente de averiguar se no contrato de penhor outorgado o mesmo contempla o estabelecimento comercial, o certo é que atento os fundamentos possíveis de apreciar no âmbito da oposição à penhora não se vislumbra qualquer motivo para que seja procedente a oposição…”.
4. Cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, págs. 348 a 352.
5. Cfr. acórdão do STJ de 24/4/2013, disponível em dgsi.pt.
6. Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, pág. 354.
7. In “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, págs. 49 e ss..
8. Cfr., neste sentido, entre outros, acórdãos do STJ de 13/12/2007 (relator: Nuno Cameira); de 6/3/2008, (relator: Oliveira Rocha) e de 23/11/2011 (relator: Pereira da Silva) e de 7.05.2015 (relator: Granja da Fonseca), in dgsi.pt.
9. Cfr. para além daquele, o Ac. do STJ de 12/7/2011 em dgsi.pt. Na doutrina, v. por ex., Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, pág.320;
10. In Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579.
11. Ferrer Correia, in, "Lições de Direito Comercial ", I, 229 ss.; Saulo Chanoca, in “ Reflexões em torno da penhora do estabelecimento comercial: a penhora de um bem complexo e a dinâmica da garantia”, págs. 293 e ss. (integrado na “Colectânea de estudos de processo civil” -Coord. Rui Pinto) e Rui Pinto Duarte, in “A penhora e a venda executiva do estabelecimento comercial” (Revista Themis, Ano V, nº 9), págs. 123 e ss..
12. Ac. do STJ de 6 de Abril de 2006 (relator: Oliveira Barros), in dgsi.pt; V. também, Rui Pinto Duarte, in “A penhora e a venda executiva do estabelecimento comercial”, págs. 127 e 128 (Revista Themis, Ano V, nº 9)
13. Como dizem Ferrer Correia e Ângela Coelho, na RDE X/XI, 282 e 283, citados no Ac. do STJ de 6 de Abril de 2006 (relator: Oliveira Barros): "Para se qualificar como estabelecimento determinada organização não é forçoso que estejam presentes todos os elementos que hão-de concorrer para o seu eficaz e perfeito funcionamento. Bastará que se encontrem reunidos os elementos essenciais que individualizam e dão consistência ao estabelecimento - que seja reconhecível o núcleo essencial do estabelecimento mercantil, o qual traduz a sua capacidade lucrativa ou o seu aviamento. Para saber quais são esses elementos fundamentais, não é viável formular um critério geral pela variedade de estabelecimento que a prática oferece"
14. Nas "Lições de Direito Comercial ", Vol. I, pág. 204.
15. Paulo Mota Pinto/Sandra Passinhas, in “Posse e Usucapião do estabelecimento comercial de farmácia”, in RLJ, ano 146º, págs. 220 e ss.
16. Amâncio Ferreira, in “Curso de processo de execução”12ª Edição, pág. 274. No mesmo sentido, o ac. do STJ de 8.4.1997 (relator: Martins da Costa), in CJ T. II, pág. 39.
17. Hugo Ramos Alves, in “Do penhor”, pág. 107;
18. Ac. da RC de 27.4.2017 (relator: Fernando Monteiro), in Dgsi.pt; cfr. também o ac. do STJ de 8.4.1997 (relator: Martins da Costa), in CJ, T. II, pág. 39. Sobre a relevância do Alvará de Farmácia tem interesse, ainda, o ac. da RL de 10.3.2011 (relator: Isabel Canadas), in Dgsi.pt; na Doutrina, v. Lebre de Freitas, in “Caducidade de Alvará de Farmácia e Penhora de Estabelecimento Farmacêutico Licenciado” in “Revista Themis”, Ano VII, nº 13, págs. 311 e ss. e Maria Olinda Garcia, in “Aquisição e transmissão do estabelecimento de farmácia” (integrado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Galvão Telles- Vol. IV), págs. 695 e ss..
19. Este DL foi, entretanto, alterado por diversos DLs., sendo a última alteração efectuada pelo Decreto-Lei n.º 75/2016 de 8 de Novembro; com interesse, sobre a evolução do regime da propriedade da farmácia, v. Paulo Mota Pinto/Sandra Passinhas, in “Posse e Usucapião do estabelecimento comercial de farmácia”, in RLJ, ano 146º, págs. 227 a 232.
20. Maria Olinda Garcia, in “Aquisição e transmissão do estabelecimento de farmácia” (integrado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Galvão Telles- Vol. IV), pág. 696.
21. Hugo Ramos Alves, in “Do penhor”, pág. 107: “Cumpre ter em consideração o disposto no art. 666º, nº 1, preceito que estabelece que o penhor recai sobre certa coisa móvel. Destarte, diremos que a coisa empenhada deverá ser alienável, i. e., não poderá ser uma coisa fora do comércio, dado que, atendendo ao ordenamento económico vigente, onde o valor assume uma importância primordial, resulta claro que as garantias de crédito, para além de assegurarem a satisfação de um valor, no caso das garantias reais, implicarão igualmente que haja lugar a execução forçada em caso de incumprimento, motivo pelo qual a coisa dada em garantia terá de ser susceptível de alienação, já que, em última análise, será alienada no termo do processo executivo ou da venda extrajudicial acordada pelas partes, satisfazendo o interesse do credor pela via judicial…”. Por outro lado, “nos termos do disposto no art. 680º só é admitido o penhor de direitos quando estes tenham por objecto coisas móveis e sejam susceptíveis de transmissão…” (pág. 142).
22. Paulo Mota Pinto/Sandra Passinhas, in “Posse e Usucapião do estabelecimento comercial de farmácia”, in RLJ, ano 146º, págs. 241. Salientam estes autores que isso já não sucedia no regime instituído em 1965 em que “o alvará é pessoal, uma autorização concedida a um determinado farmacêutico para o funcionamento de uma determinada farmácia de que é proprietário”- pág. 241.
23. Neste sentido, o Ac. da RC de 27.4.2017 (relator: Fernando Monteiro), in Dgsi.pt; cfr. também o ac. do STJ de 8.4.1997 (relator: Martins da Costa), in CJ, T. II, pág. 39.
24. Na sentença proferida nos autos de Embargos de executado refere-se precisamente essa ideia: “Aliás, o interesse na sua celebração foi expressamente e reconhecido pela ora embargante na missiva enviada à exequente e datada de 5.08.2013 e que consta dos autos a fls. 146 e 147 dos presentes autos, afigurando-se-nos abusiva a invocação da nulidade do contrato de penhor (cfr. art.º 334º, do Código Civil) ”.
25. V ac. do STJ de 6.5.1993 (relator: Sousa Guedes), in dgsi.pt. No mesmo sentido, entre outros, v. o ac. da RC de 14.10.2008 (relator. Sílvia Pires) que conclui que: “a referência “à penhora do direito ao trespasse” carece de qualquer sentido, mais não sendo que a penhora da titularidade do estabelecimento, ou melhor dizendo, a penhora do próprio estabelecimento”.
26. Hugo Ramos Alves, in “Do penhor”, págs. 108 a 113; no mesmo sentido, Saulo Chanoca, in “ Reflexões em torno da penhora do estabelecimento comercial: a penhora de um bem complexo e a dinâmica da garantia” (integrado na “Colectânea de estudos de processo civil” -Coord. Rui Pinto), pág. 335/6; Rui Pinto Duarte, in “O penhor do estabelecimento comercial” (estudo publicado no livro “Comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da Reforma de 1977”) - Vol. III, págs. 63 e ss.. Com indicação mais exaustiva da Doutrina, pode-se ver ainda Pestana Vasconcelos, in “Direito das Garantias”, pág. 244, nota 721, Autor que também considera admissível o penhor do estabelecimento comercial. V., ainda, no mesmo sentido, Menezes Leitão, in “Garantias das Obrigações”, págs. 271 e 272.
27. Marco Gonçalves, in “Lições de processo civil executivo”, pág. 284; na Jurisprudência, v. por ex. o ac. da RL de 9.6.2005 (relator: Manuel Gonçalves) onde se concluiu que: “1 A Penhora destina-se a obter a cobrança coerciva da dívida, sendo em princípio susceptíveis de penhora todos os bens do devedor.2- A lei processual consagra um princípio que se pode designar de «proporcionalidade» ou «suficiência», segundo o qual, a agressão do património do devedor, não deve ir além da satisfação do interesse do credor.3- O problema da suficiência der ser apreciado em termos de normalidade, tendo-se em atenção não só o valor dos bens em causa, mas ainda se os mesmos se encontram livres e desembaraçados”.