Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5533/18.0T8GMR.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: INTERPRETAÇÃO DOS ARTICULADOS
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL DE PEDIDOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- À interpretação dos articulados aplicam-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que aquelas declarações valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas e tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma.

II- A incompatibilidade substancial de pedidos, geradora de ineptidão da petição inicial, verifica-se quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, que o juiz se veja impossibilitado de decidir face à ininteligibilidade do pensamento do autor.

III- Apenas pode ocorrer cumulação de pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis e geradora de ineptidão da petição no caso de cumulação simultânea de pedidos ou causas de pedir e não no caso de cumulação subsidiária.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

A. R., residente na Rua …, freguesia de …, concelho de Guimarães; J. F., residente na Rua …, freguesia de ..., deste concelho; A. D., residente na Rua de …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, S. F., residente na Rua …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, instauraram acção declarativa com processo comum contra A. M. e A. C., residentes na Rua …, no concelho de Vizela, pedindo:

a) Que reconheçam que os autores são comproprietários da parcela de terreno existente entre as traseiras do prédio dos réus e os muros (e portões) que delimitam o logradouro dos prédios dos autores, com a largura de 2,54 m e comprimento de cerca de 50 m (prolonga-se pela totalidade da extensão dos prédios da Rua ... e da Travessa da ...), com incidência na parte que ocupa toda a extensão do prédio dos réus descrito na C.R.P. com o nº … e inscrito na matriz sob o art. ….º, a favor dos prédios urbanos dos autores descritos na C.R.P. com os nº …, …, … e …;
b) Que os réus se abstenham de praticar quaisquer actos que perturbem ou impeçam o gozo, fruição e uso por parte dos autores dessa parcela de terreno;
c) Que restituam e recoloquem a parcela de terreno no estado em que se encontrava antes da construção do muro, demolindo-o;

Subsidiariamente:
Que reconheçam a constituição de uma servidão de destinação de pai de família sobre a acima referida parcela de terreno, com incidência no comprimento de toda a extensão do seu prédio, a pé, de carrinho de mão, de veículo agrícola, e de veículo automóvel;

Ainda subsidiariamente:
d) Que reconheçam a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, a pé, de carrinho de mão, de veículo agrícola, e de veículo automóvel, sobre a acima referida parcela de terreno e em toda a extensão do seu prédio, com referência à parcela de terreno e em toda a largura da mesma, e a favor dos prédios dos autores acima descritos;
e) Que recoloquem a parcela de terreno no estado em que a mesma se encontrava antes da construção do muro, demolindo-o;
f) Que paguem aos autores uma indemnização pelos prejuízos causados em consequência directa e necessária da construção do muro, a liquidar em execução de sentença.

Para tanto alegam que são donos de quatro prédios urbanos que se situam na R. ..., ..., Guimarães, e que em frente aos seus logradouros situam-se seis prédios urbanos, entre os quais o dos réus. Entre as traseiras do prédio dos réus e os muros e portões que delimitam o logradouro do prédio dos autores existe uma parcela de terreno com a largura de 2,54 m e cerca de 50 m de comprimento (que se prolonga pela totalidade da extensão dos prédios da R. ... e da Travessa da ...). O terreno onde hoje estão implantados todos estes prédios pertencia a J. P.. Após a construção dos prédios da Travessa da ... (posterior à da Rua ...) foi necessário construir o saneamento que aí não existia pelo que o referido J. P. e os autores, então inquilinos, acordaram ceder uma faixa de terreno dos seus logradouros para esse efeito e também para que os moradores da R. ... tivessem acesso desde a via pública aos prédios pelas traseiras dos mesmos. Esta cedência deu origem à referida parcela de terreno que pertence aos proprietários dos dois bairros em compropriedade. A mesma vem sendo por todos utilizada com quem frui um direito próprio há mais de 30 anos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

No dia 23/01/2017 os réus construíram um muro junto à parte traseira do seu prédio e em todo o limite da sua implantação com a altura de 80 cm. Este muro passou a ocupar a quase totalidade da largura da supra referida parcela de terreno impedindo a circulação.

Se se entender que os autores não são comproprietários com os réus da referida parcela de terreno pedem que estes sejam condenados a reconhecer a constituição de uma servidão de destinação de pai de família sobre a referida parcela de terreno com incidência no comprimento de toda a extensão do seu prédio. Caso assim não se entenda pedem o reconhecimento de uma servidão de passagem.

Referem ter sofrido danos com a conduta dos réus.
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Os réus contestaram dizendo que os autores entram em contradição, pois nos autos de procedimento cautelar, referiram que a referida parcela de terreno deixou de pertencer aos prédios de que se arrogam proprietários por ter sido cedida ao domínio público. A parte a que os autores se referem do caminho que separa os prédios da R. ... dos da Travessa ... constitui logradouro dos prédios implantados na Travessa .... Os prédios sitos na R. ... nunca tiveram acesso à via pública pelas traseiras.
Confirmam a construção do muro nas traseiras do seu prédio por serem proprietários dessa faixa de terreno.
Não podem constituídas servidões sobre parcelas do domínio público. De qualquer modo não foram alegados os requisitos de constituição de servidões.
Para a possibilidade de ser reconhecido aos autores um direito de servidão deduziram reconvenção pedindo que seja reconhecida e declarada a desnecessidade da mesma uma vez que todos os prédios dos autores confinam com a via pública.
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Os autores apresentaram resposta onde pedem que a reconvenção seja julgada improcedente.
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Em audiência prévia realizada em 17/06/2019 foi proferido o seguinte despacho saneador:

“A. Saneamento da Causa:
A.1. Dos Pressupostos e Validade da Instância:
O Tribunal é competente.
O processo é próprio.
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- Da ineptidão da p.i. quanto à causa de pedir e quanto ao pedido subsidiário:

Os Autores propuseram a presente ação pugnando pela condenação dos RR a respeitarem os seus direitos de compropriedade sobre determinada faixa de terreno (50mx2,54m) (abstendo-se de praticar atos que impeçam ou perturbem o exercício do direito de propriedade sobre tal parcela e demolindo o muro nela entretanto construído), com fundamento em serem donos e possuidores, em conjunto com os RR, da dita faixa de terreno, direito adquirido por usucapião. Subsidiariamente, pretendem que seja reconhecida a existência de uma servidão de passagem por tal parcela a favor das realidades prediais de que são donos em exclusivo, com fundamento em serem então os RR reconhecidos como donos de tal parcela de terreno.
Os RR apresentaram contestação, por impugnação.
Vejamos.
A ineptidão da p.i. por cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis determina a nulidade do processado e, desse modo, classifica-se legal e doutrinalmente como uma excepção dilatória, conducente à absolvição do Réu da instância (art.ºs 186.º, n.º1 e 2, 577.º, al. b), 278.º n.º1 do CPC.
Nos termos do disposto no art.º 555.º n.º1 do CPC; são de se considerar incompatíveis os pedidos cuja procedência produza efeitos jurídicos incompatíveis entre si ou quando o reconhecimento de um deles exclua a possibilidade de verificação dos restantes.
Assim, são de considerar incompatíveis, não só os pedidos que mutuamente se excluam como também os que assentam em causa de pedir inconciliáveis (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2.ª Ed., pág. 246, nota 4).
Relativamente à incompatibilidade de pedidos, ensina o Prof. Alberto dos Reis que tal incompatibilidade é intrínseca ou substancial, ou seja, respeita «à incompatibilidade de efeitos jurídicos que o autor se propõe obter com os vários pedidos.» (cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, Vol II, 1945, pág. 390).
Em suma, a incompatibilidade substancial entre pedidos pressupõe que o juiz seja colocado perante pretensões que se excluem reciprocamente, de tal modo que não é possível dar procedência a todas elas.
Verifica-se, desde logo, no caso concreto, uma cumulação de causas de pedir que se excluem mutuamente.
Com efeito, os AA tanto alegam que são proprietários (em comum e sem determinação de parte) da parcela de terreno em causa, como também se referem, a título subsidiário, a tal parcela como constituindo o solo, com sinais visíveis e permanentes de passagem, de uma servidão de passagem a favor de cada um dos seus prédios.
Alegação essa que é, claramente, contraditória nos seus próprios termos. Ou se tem animus de (com)proprietário ou se tem animus de serviente…
Por outro lado, os dois pedidos supra destacados são incompatíveis entre si, atento os efeitos jurídicos com eles pretendidos.
Com efeito, no primeiro dos pedidos, pretendem os AA ver reconhecido o direito de propriedade sobre tal parcela de terreno, no segundo pretendem ver reconhecido o direito de servidão sobre tal parcela de terreno.
Ou seja, é substancialmente contraditória a pretensão de quererem ver-se donos da pretensão de quererem ver-se beneficiados de uma serventia… (cfr. Ac. Relação de Guimarães de 07.12.2016, Proc. 2627/13.1TBGMR.G1, disponível no Proc. n.º 2627/13.1TBGMR que correu os seus termos pelo Juízo Central Cível de Guimarães –J3).
Como é consabido e resulta dos citados normativos, a ineptidão da p.i. é insuprível, salvo no caso – que aqui não ocorre – de ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e desde que o réu conteste arguindo essa ineptidão, e ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a p.i. (art.º 186.º n.º1 e 2 al a) e 3 do CPC). Nos restantes casos, como é o presente, a ineptidão é insuprível e implica a nulidade de todo o processado.
E não se argumente com a natureza subsidiária da causa de pedir sobre a servidão de passagem e do pedido pretendido com ela de ver reconhecida a existência dessa servidão, pois a expressão “sem prescindir” e “se, por ventura, o tribunal entender que os AA não são comproprietários da arcela de terreno acima indicada,” não retira a incompatibilidade da alegação e a incompatibilidade dos pedidos apresentados em juízo.
Pelo exposto, julga-se inepta a petição inicial e, por via disso, declara-se a nulidade de todo o processado e absolvem-se os RR da instância.
Mais condenam-se os AA no pagamento das custas que sejam devidas, atento o seu decaimento (art.º 527.º do CPC) (sem prejuízo de isenção ou de dispensa de que possam beneficiar).
Valor da causa: € 8.000,00.
Registe, notifique e d.n..
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Da reconvenção:

Atento a causa de pedir e pedido formulados pela Reconvenção, o supra decidido quanto à ação e de acordo com o disposto no art.º 266.º n.º 1, 2 al. a) e 6 última parte do CPC, declara-se prejudicada a apreciação da Causa Reconvencional proposta pelo Réu.
Notifique e d.n..”
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Não se conformando com esta sentença vieram os autores dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1) A incompatibilidade de pedidos só existe se houver uma cumulação real de pedidos;
2) Os AA. formularam um pedido principal e um pedido subsidiário ou acessório alternativo;
3) Assim, não há incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados pelos AA. e não pode ser declarada a nulidade de todo o processado;
4) Os pedidos subsidiários alternativos só serão conhecidos caso o pedido principal seja indeferido;
5) Até nos pedidos principais cumulativos incompatíveis, na defesa do principio da economia e gestão processual, o juiz deve convidar ao aperfeiçoamento da petição inicial, escolhendo aquele que pretende ver apreciado, ou ordenando ambos em relação de subsidiariedade;
6) Por maioria de razão, a defesa da economia processual e do nosso ordenamento jurídico impõe-se o prosseguimento do processo em que haja um pedido principal e pedidos acessórios alternativos, ainda que substancialmente incompatíveis com o pedido principal – no mesmo sentido, entre muitos outros, vide Ac. RL de 12-07-2018; Ac. RP de 11-12-2012; Ac. STJ de 03-05-2012; Ac. RC de 31-05-2016.
7) A não serem atendidas as demais conclusões, e complementando a 5ª, deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento-convite;
8) Violaram-se, desta forma, entre outras, as seguintes normas jurídicas: os artigos 6º; 186º, nº 2, alínea c); 554, nº 1 e 2, todos Código de Processo Civil.”

Pugna pela revogação do despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos, ou, pelo menos, ao proferimento de despacho-convite ao aperfeiçoamento nos termos do nº 2 do artigo 6º e 38º do C.P.C., este por analogia.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

a) Saber se, quer os pedidos deduzidos, quer as causas de pedir alegadas, se mostram incompatíveis entre si gerando a ineptidão da petição inicial;
b) E, na afirmativa, se não teria o julgador de convidar ao aperfeiçoamento da petição.
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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Antes de mais, à interpretação dos articulados aplicam-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que aquelas declarações valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas (art. 236º nº 1 ex vi art. 295º do C.C.).
Segundo jurisprudência pacífica tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma de molde a que importe o que é efectivamente pretendido pelas partes no processo apesar das eventuais incorrecções formais.
Neste sentido vide Ac. do S.T.A. de 27/04/2016 (Francisco Rothes), in www.dgsi.pt, onde se lê: “(…) os rigores formalistas na interpretação das peças processuais estão hoje vedados pelos princípios do moderno processo civil e bem assim pelo princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20.º da CRP), motivo por que o tribunal deve extrair do pedido que lhe é feito o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, indagando da sua real pretensão.”

Dispõe o art. 186º nº 2 do C.P.C.:

Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir incompatíveis ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Em obediência ao princípio do dispositivo na petição inicial o autor deve, além do mais, expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e formular o pedido (art. 5º nº 1 e 552º nº 1 d) e e) do C.P.C.).
O pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor.
A causa de pedir, segundo a adoptada teoria da substanciação, traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (art. 581º nº 4 do C.P.C.).
A falta de causa de pedir consiste na omissão de factos essenciais (apenas estes) que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
A petição inepta por falta de causa de pedir ou pedido, que é um vício formal, distingue-se da petição deficiente, que é uma questão de mérito ou substancial que conduz à inviabilidade ou improcedência.
A este propósito continua actual a lição de Alberto dos Reis, in Comentário (…), vol. 2º, 364-365 e 372: “Petição inepta é uma coisa, petição incorrecta é outra. Ou melhor, nem toda a incorrecção, nem toda a imperfeição do requerimento inicial conduz à ineptidão. O autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter? A petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.
(…) Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. (…) Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga.”
Nos termos do art. 186º nº 3 do C.P.C. a ineptidão por falta ou ininteligibilidade do pedido e causa de pedir consubstancia nulidade sanável quando o réu contesta arguindo a ineptidão com tal fundamento, mas verifica-se que, ouvido o autor, aquele interpretou convenientemente a petição pelo que a referida excepção é julgada improcedente.
A contradição entre o pedido e a causa de pedir só ocorre quando se verifique uma contradição ou incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico entre os dois termos da pretensão que nem sequer permite formular um juízo de mérito positivo ou negativo sobre a mesma. Assim, não basta uma simples desarmonia, exige-se que pedido e causa de pedir se neguem reciprocamente, uma conclusão que pressupõe uma premissa oposta.
Pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação – art. 555º nº 1 do C.P.C..
Na cumulação de pedidos exige-se a compatibilidade substancial ocorrendo incompatibilidade quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, colocando o juiz na impossibilidade de decidir face à ininteligibilidade do pensamento do autor.
Refere Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Ed., 1946, p. 154 e 156: “Duas ou mais pretensões são legalmente incompatíveis quando produzam efeitos contraditórios ou sob o aspecto material, ou sob o aspecto processual. (…). Exemplo nítido de incompatibilidade substancial: o autor pede simultaneamente a anulação e o cumprimento de determinado contrato.”
Naturalmente que a ineptidão só ocorre quando nos encontramos perante uma cumulação simultânea, i.e., quando se pede que sejam julgados procedentes por igual todos os pedidos, e não no caso de cumulação alternativa (art. 553º do C.P.C.) ou subsidiária (art. 554º do C.P.C.).
No caso de pedidos substancialmente incompatíveis, no âmbito da reforma do C.P.C. de 2013, designadamente José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., Coimbra Ed., p. 49-50, defende que “(…) o disposto no art. 6-2 leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade. Fora destes casos, a ineptidão da petição dificilmente deixará de constituir nulidade insanável (…)”. O mesmo autor refere, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, p. 382: “No caso de dedução de pedidos substancialmente incompatíveis, a mesma solução do art. 38 (escolha pelo autor do pedido com o qual o processo deve prosseguir, em caso de coligação ilegal), deve, por analogia, ser aplicada (…)”. A jurisprudência, alicerçada nestes ensinamentos, vem defendendo o convite ao aperfeiçoamento nestas situações – entre outros Ac. da R.P. de 03/03/2016 (Filipe Caroço), da R.C. de 31/05/2016 (Maria João Areias), in www.dgsi.pt.
Vejamos o caso em apreço.

Nestes autos os autores formulam vários pedidos sob várias alíneas:

- o pedido de reconhecimento do direito de compropriedade de autores e réus sobre a parcela de terreno existente entre as traseiras dos prédio de ambos aí identificada – a);
- a condenação dos réus a absterem-se de perturbar ou impedir o gozo, fruição e uso por parte dos autores da referida parcela de terreno – b);
- e a restituírem e recolocarem a parcela de terreno no estado em que se encontrava antes da construção do muro, demolindo-o – c);

Subsidiariamente:
- o pedido de reconhecimento da constituição de uma servidão de destinação de pai de família sobre a acima referida parcela de terreno nos termos aí referidos;

Ainda subsidiariamente:
- o pedido de reconhecimento da constituição de uma servidão de passagem por usucapião sobre a acima referida parcela de terreno nos termos aí descritos – d)
- a condenação dos réus a recolocarem a parcela de terreno no estado em que a mesma se encontrava antes da construção do muro, demolindo-o – e);

E:
- a condenação dos réus a pagarem aos autores uma indemnização pelos prejuízos causados em consequência directa e necessária da construção do muro, a liquidar em execução de sentença – f).

Procedendo à interpretação da petição inicial verificamos o seguinte:

No que concerne aos pedidos principais – a), b), c) – os autores alegam que, juntamente com os réus, são comproprietários de uma parcela de terreno situada nas traseiras das habitações de uns e outros. Para tanto referem que o terreno onde estão implantados todos esses prédios pertencia ao mesmo dono e que ocorreu uma “cedência” de parte dos logradouros dos autores para constituição de uma passagem nas traseiras dos prédios dos autores e dos réus.
Mas, não esclarecem os termos da referida “cedência” sendo certo que este termo pode ter vários significados: doação dessa área aos réus de molde a que a mesma tenha passado a ser propriedade exclusiva destes; cedência ao domínio público pelo que a mesma não é propriedade, nem dos autores, nem dos réus; doação de uma quota dos seus prédios de molde a que autores e réus tenham passado a ser comproprietários; eventual autorização dos autores aos réus para estes poderem passar a utilizar tal parcela, etc. Mais alegam factos de onde se retira a aquisição de tal compropriedade por usucapião e a ocupação pelos réus.
Assim sendo, a causa de pedir dos pedidos principais supra formulados não é inexistente, mas necessita de ser clarificada na parte referente à “cedência”.
O primeiro pedido subsidiário – “Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior” – art. 554º nº 1 do C.C. – corresponde ao pedido de reconhecimento da constituição de uma servidão de destinação de pai de família sobre a acima referida parcela de terreno. Este pedido deve ser conhecido caso não se prove o acima referido direito de compropriedade de autores e réus e se entenda que a área correspondente à parcela é propriedade exclusiva destes.
Este pedido tem como causa de pedir a alegação de que o antigo prédio que actualmente corresponde aos prédios de autores e réus pertencia ao mesmo dono, que existem sinais de serventia entre os actuais prédios e inexiste declaração contrária à constituição de servidão (art. 1549º do C.C.).
Os segundos pedidos subsidiários – al. d) e e) – devem ser conhecidos caso não se provem os pedidos principais, nem os pedidos subsidiários, e têm como causa de pedir a alegação da utilização e fruição pelos autores da referida parcela de terreno há longos anos, sem oposição de ninguém e à vista de todos (art. 1548º nº 1 e 1549º nº 1 do C.C.).
Por fim, é formulado um pedido cumulativo – al. f) – correspondente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização, o qual tem como causa de pedir factos que integram a responsabilidade extra contratual (art. 483º do C.C.).
Ora, afigura-se-nos que a petição podia ter sido redigida de forma mais clara e precisa, contudo não vislumbramos a contradição de pedidos e causas de pedir referida na decisão recorrida.
Como referimos supra apenas de pode falar de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis e geradora de ineptidão da petição no caso de cumulação simultânea de pedidos e não no caso de cumulação subsidiária. Assim sendo, nunca os pedidos sob as alíneas a), b) e c) podem estar em contradição com o acima referido primeiro pedido subsidiário e/ou com os segundos pedidos subsidiários.
Do mesmo modo, apenas em relação a “cumulação simultânea de causas de pedir” se pode falar em cumulação de causas de pedir substancialmente incompatíveis.
Acresce que, ainda que assim não fosse, sempre teria o tribunal recorrido o poder-dever de, ao abrigo do disposto no art. 590º nº 2 a) e nº 3 do C.P.C., convidar os autores a aperfeiçoar a petição.
Do referido supra quanto à deficiente alegação da causa de pedir dos pedidos principais geradora de uma petição deficiente (e não inepta) resulta que impendia sobre o tribunal a quo o dever de convidar os autores a aperfeiçoar a petição, o que se ordena.

Pelo exposto, a apelação procede procede.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I - À interpretação dos articulados aplicam-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que aquelas declarações valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar das mesmas e tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma.
II - A incompatibilidade substancial de pedidos, geradora de ineptidão da petição inicial, verifica-se quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, que o juiz se veja impossibilitado de decidir face à ininteligibilidade do pensamento do autor.
III - Apenas pode ocorrer cumulação de pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis e geradora de ineptidão da petição no caso de cumulação simultânea de pedidos ou causas de pedir e não no caso de cumulação subsidiária.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e consequentemente revogam a decisão recorrida a qual deve ser substituída por decisão que convide os autores a aperfeiçoar a petição inicial no que concerne à causa de pedir dos pedidos principais.
Sem custas.
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Guimarães, 16/01/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade