Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1448/17.7T8BRG.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ATRIBUIÇÃO A UM DOS CÔNJUGES
COMPENSAÇÃO PELO USO EXCLUSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator)

I- Aa prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do art.do nº 7 do art. 931º do CPC, permite a atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges.

II. Assim, dependendo o direito a uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada pelo outro cônjuge de uma ponderação judicial, ele só existe se o juiz o tiver efectivamente atribuído na decisão oportunamente proferida sobre tal matéria, não podendo ser reconhecido através da propositura de acção ulterior.

III. O acordo dos cônjuges, judicialmente homologado, no qual se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, através dele atribuída a um dos cônjuges, deve ser interpretado no sentido de que as partes não contemplam o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização do imóvel, não sendo admissível a sua modificação substancial em termos de converter a utilização prevista no acordo, numa utilização subordinada ao pagamento de uma quantia pecuniária.

IV- A persistência da situação não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação encontra justificação na sua própria inércia relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 990º do CPC.

V- Todavia, ocupando o primeiro cônjuge uma habitação sem qualquer pagamento e tendo o segundo de proceder a um pagamento pela utilização de outra casa que teve necessidade de arranjar, será de admitir que, aquando da partilha dos bens comuns do casal, possa haver um acerto de contas, nomeadamente, através da reclamação de um crédito por parte do segundo cônjuge, sobre o acervo patrimonial a partilha.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

MARIA, divorciada, residente na Rua … Braga, veio intentar contra A. N., divorciado, residente na Rua … Braga, a presente acção declarativa comum, tendo pedido que o réu fosse condenado a pagar-lhe o valor mensal de 125,00€, a contar desde 08 de Maio de 2013, e enquanto o réu se mantiver a habitar na fracção melhor identificada no art. 6.º da petição inicial, e até à venda da aludida fracção ou até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de divisão de coisa comum, atendendo ao facto que ocorrer em primeiro lugar.

Subsidiariamente, pediu que o réu fosse condenado a deixar o imóvel livre de pessoas e bens a fim de o mesmo ser colocado no mercado de arrendamento, repartindo-se entre autora e réu o produto do arrendamento, devendo o réu ser condenado a pagar-lhe uma renda/compensação correspondente a 125,00€ desde 08 de Maio de 2013 e até à desocupação do imóvel.

Para fundar a sua pretensão, alegou que o réu, pelo menos desde 12/12/2012, se manteve no uso e fruição exclusiva e gratuita daquela que foi a casa de morada de família de ambos, casa esta que foi entretanto objecto de partilha, tendo sido adjudicada a ambas as partes, em regime de compropriedade, pelo que entende assistir-lhe o direito a perceber metade dos rendimentos que o imóvel estaria apto a produzir.

Tendo sido citado, o réu não apresentou contestação (vide despacho de fls. 41), na sequência do que, a fls. 41, foram considerados confessados os factos articulados pela autora e, tendo-se ordenado a notificação a que alude o art. 567.º, n.º 2, do CPC, não foram apresentadas alegações.

Prosseguiram os autos com a realização de uma tentativa de conciliação, que veio a frustrar-se.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu julgar totalmente improcedente a presente acção.

Inconformado com tal decisão, apela a Autora, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões:

I – Vem presente recurso interposto da Douta sentença que julgou totalmente improcedente o pedido que julgou totalmente improcedente o pedido da A., que consistia na condenação do R., seu ex-marido, ao pagamento de um valor mensal de 125,00€ a contar desde 8 de Maio de 2013, o qual corresponderia a metade do valor locativo do imóvel até à venda da fracção ou trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de divisão de coisa comum.
II - Considerou o Tribunal a quo que não assiste à Autora o direito a peticionar uma compensação como contrapartida pelo utilização exclusiva por parte do Réu da sua quota parte na fracção, porquanto o Réu não privou a Autora de utilizar a coisa comum e não se verificam também os pressupostos do enriquecimento sem causa, pelo que inexiste fundamento legal para impor ao Réu a obrigação de pagar à Autora uma compensação pelo facto de estar a utilizar de modo exclusivo o imóvel.
III - Ora, não pode a Autora conformar-se com tal decisão. E desde logo porque a Autora, por acordo no processo de divórcio conformou-se com a utilização exclusiva da fracção por parte do Réu apenas até à data da partilha, não tendo o Réu qualquer título ou acordo que o legitime a utilizar o imóvel a partir de 8 de Maio de 2013, data em que a Autora instaurou o processo de inventário, o qual veio a ser decidido por sentença de 24 de Maio de 2016.
IV - Vedar a Autora o direito a receber uma compensação por parte de alguém – neste caso o ex-marido – que utiliza a metade da fracção que lhe foi adjudicada, é, no mínimo cortar-lhe o seu direito de propriedade e o direito ao arrendamento.
V - O Réu conhece que a utilização lícita da fracção cessou no momento da partilha do bem imóvel, porquanto o acordo de utilização da casa de morada de família apenas concedia ao Réu essa utilização lícita até à partilha.
VI - A partir desta data o Réu não usa licitamente a fracção, devendo ser reconhecida à Autora o direito a receber uma compensação por parte do Réu pela utilização exclusiva da fracção.
VII - E a gratuitidade consentida pela Autora quanto à utilização da fracção por parte do Réu cessou com a partilha, não devendo o Tribunal ficar alheio à questão suscitada pela Autora, cuja improcedência lesa gravemente os seus direitos, não podendo escudar-se o indeferimento da sua pretensão no facto de se afirmar que também a Autora poderia utilizar a fracção – sabendo-se que o Réu ali habita.
VIII - Se o Réu tivesse de arrendar outro imóvel também pagaria renda ao seu senhorio pela utilização do mesmo, como acontece actualmente com a Autora.
IX - Acresce que a decisão proferida pelo Tribunal a quo é em tudo injusta, pois não se sabe por quanto mais tempo se vai prolongar essa gratuidade, lesando-se assim gravemente a Autora e os seus direitos a perceber os frutos da sua quota- parte no imóvel.
X - Violando-se assim os princípios decorrentes da cessação da comunhão de direitos advenientes do património comum do casal, e em consequência o disposto nos artigos 1403º, 1404º, 1406º, 1793º do Código Cível e 931º.
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Os Apelados apresentaram contra-alegações concluindo pela improcedência da apelação interposta.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Apreciar se em razão do uso exclusivo da casa de morada de família por um dos ex-cônjuges do imóvel que constituiu a casa de morada de família confere ao outro o direito a uma contraprestação por essa utilização do imóvel.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida é a seguinte:

Factos provados.

Factos Provados (por confissão ficta e bem ainda em atenção ao teor dos documentos de fls. 8 a 16):

A) A autora e o réu foram casados no regime de comunhão de bens adquiridos, encontrando-se divorciados desde 12 de Dezembro de 2012, na sequência de acção de divórcio que correu os seus na 1.º secção- J1 – do Tribunal de Família e Menores de Braga sob o número de processo 688/11.7 TMBRG.
B) A autora e o réu tinham bens comuns a partilhar.
C) Por se mostrar frustrada a possibilidade de partilha extrajudicial, a autora instaurou, em 08 de Maio de 2013, por apenso ao processo referido em A), o processo de Inventário para partilha de bens do casal, o qual deu origem ao apenso A daquele processo.
D) Como “Verba n.º 1” dos bens imóveis da Relação de bens constante do processo de inventário, está descrita a fracção autónoma designada pela letra “M”, sita na Rua …, União das Freguesias do (...), concelho de Braga, composta por 1.º Andar Direito, traseiras, T2, com terraço e garagem com entrada pelo n.º 20 e uma dependência para arrumos no sotão, inscrita na matriz predial urbana sob o n.º (...).
E) Na Conferência de Interessados ocorrida em 26 de Junho de 2014, aquela verba n.º 1 foi adjudicada a cada um dos membros do ex-casal partilhante, na proporção de metade.
F) À data o imóvel tinha o valor patrimonial de 46.340,00€
G) Foi elaborado o mapa da partilha e foi adjudicado a cada um deles, para pagamento das suas meações no património comum, o valor de 23.170,00€, mapa este que foi homologado por sentença de 24 de Maio de 2016, adjudicando-se aquela verba na proporção de metade à autora e ao réu para pagamento dos seus quinhões na meação comum.
H) Tal sentença transitou em julgado em 29.06.2016.
I) Em 12 de Dezembro de 2012, na Audiência de Discussão e Julgamento do processo de divórcio, por acordo entre as partes, foi atribuído ao réu o uso e fruição exclusiva da casa de morada de família que era bem comum do casal até à partilha.
J) A casa de morada de família constituía a verba 1 dos bens imóveis na relação de bens apresentada no processo de Inventário para partilha dos bens comuns do casal.
K) O réu habita e usufrui exclusivamente do imóvel que era casa de morada de família pelo menos desde 12 de Dezembro e até à presente data.
L) Desde 01 de Abril de 2011 que a autora habita com o seu filho em casa arrendada na Rua … Braga, pagando de renda aos senhorios a quantia de 250,00€ mensais.
M) As contribuições devidas a título de IMI referentes à fracção que constituía a casa de morada de família da autora e do réu são pagas na proporção de metade pelos mesmos, encontrando-se o imóvel averbado na matriz predial urbana no serviço de finanças em nome da autora e do réu naquela mesma proporção.
N) Actualmente, a fracção em causa tem o valor patrimonial de 46.340,00€.
O) A autora está privada do uso da fracção pelo menos desde 12 de Dezembro de 2012.
P) Um prédio de igual tipologia, idade e localização ao referido em D) seria susceptível de gerar um rendimento a título de renda na ordem dos 250,00€ mensais.
Q) Em 10 de Novembro de 2016, a autora, mediante carta registada com aviso de recepção, interpelou o Reu para que procedesse ao pagamento do valor de 120,00€ (cento e vinte euros) a título de contrapartida monetária pela utilização da meação que lhe pertence na indicada fracção, que o réu se negou a pagar.
R) A autora tem a categoria profissional de auxiliar de educação e aufere o vencimento base de 607,00€, com o qual faz face a todas as suas despesas, nomeadamente alimentação, água, luz, vestuário, calçado, despesas médicas e medicamentosas e que paga a renda para ter a sua habitação.

Fundamentação de direito.

Como fundamento da sua pretensão recursória alega a Recorrente que o Réu conhece que a utilização lícita da fracção cessou no momento da partilha do bem imóvel, porquanto o acordo de utilização da casa de morada de família apenas concedia ao Réu essa utilização lícita até à partilha, sendo que, a partir desta data o Réu não usa licitamente a fracção, devendo ser reconhecida à Autora o direito a receber uma compensação por parte do Réu pela utilização exclusiva da fracção.

Mais alega que a gratuitidade consentida pela Autora quanto à utilização da fracção por parte do Réu cessou com a partilha, não devendo o Tribunal ficar alheio à questão suscitada pela Autora, cuja improcedência lesa gravemente os seus direitos, não podendo escudar-se o indeferimento da sua pretensão no facto de se afirmar que também a Autora poderia utilizar a fracção – sabendo-se que o Réu ali habita.

Ora, salvo o muito e devido respeito, a ausência de relevante e consistente argumentação passível de pôr em causa a, em nossos entender, bem fundamentada decisão de primeira instância tem como implicação que muito pouco haja a acrescentar aos fundamentos em que se sustentou tal decisão.

Com efeito, como resulta da materialidade tida como demonstrada e se refere na decisão recorrida, a permanência do réu na casa de morada de família desde o dia 12/12/2012 e até à partilha, ou seja, até à sentença homologatória proferida nos autos de inventário em 24 de Maio de 2016, que adjudicou o imóvel a ambos os ex-cônjuges na proporção de metade para cada, teve por fundamento um acordo alcançado entre os cônjuges na audiência de discussão e julgamento do processo de divórcio, no âmbito do qual foi atribuído ao réu o uso e fruição exclusiva da casa de morada de família até à partilha.

Mais se demonstrou que a utilização da casa de morada de família pelo réu se fundamenta no conteúdo de um acordo celebrado pelos ex-cônjuges, que possibilitou mesmo o imediato decretamento do divórcio por mútuo consentimento, sendo que, não foi estipulado em tal acordo que o réu se tivesse obrigado a pagar à autora qualquer compensação pela utilização exclusiva da casa que foi casa de morada de família, nem que a autora tivesse condicionado a aceitação da permanência exclusiva do réu de forma gratificada.

À luz desta materialidade, cumpre então analisar se, tendo o acordo de utilização da casa de morada de família concedido ao Réu a utilização o gozo da casa de morada de família apenas até à partilha, será devida ou poderá ser exigida pela autora uma contraprestação como correspectivo dessa utilização.

E a primeira questão que se impõe esclarecer é a determinação do período de vigência do acordo de utilização da casa de morada de família, sendo certo que expressamente se previu que tal acordo seria vigente até à realização da partilha.

Versando sobre o tema da vigência do acordo e sobre a eventual existência de enriquecimento sem causa, nestas situações de utilização da casa por um dos cônjuges após a realização da partilha refere-se no acórdão do S.T.J, de 17/01/2013, o seguinte:

(…)
“Repare-se nos elementos essenciais que estruturam a instância e em que irá assentar a decisão:

- O A. e a R. foram casados sob o regime de separação de bens;
- Na pendência do casamento, ambos adquiriram um prédio em regime de compropriedade (atenta a separação de bens), no qual foi instalada a casa de morada da família que veio a ser integrada ainda por 3 filhos;
- A ora R. moveu contra o ora A. um processo de divórcio litigioso, na pendência do qual foi suscitado o incidente de atribuição da casa de morada família que findou por acordo provisório que se traduziu na aceitação de que, na pendência da acção, a partir de 21-6-04, a casa de habitação familiar passaria a ser utilizada em exclusivo pela ora R. (e pelos 3 filhos do casal);
- O divórcio concretizou-se ainda em 2004, sendo tornado definitivo em Janeiro de 2005;
- Após o divórcio, nenhum dos cônjuges requereu a resolução definitiva da questão da atribuição da casa de morada de família, mantendo-se, relativamente à ocupação do imóvel, o statu quo emergente do referido acordo provisório;
- Do A. apenas partiu a iniciativa de intentar contra a ora R. uma acção de divisão de coisa comum do imóvel, com fundamento na relação de compropriedade que já existia desde a aquisição do bem e que se manteve depois do divórcio de ambos.

Em face desta factualidade, entenderam as instâncias que o acordo provisório deixou de produzir efeitos quando transitou em julgado a sentença de divórcio, passo fundamental se concluir ser injustificado o uso que vem sendo feito em exclusivo pela ora R. (e pelos 3 filhos).

Assim, com fundamento em que se mantém a situação de compropriedade sobre o imóvel, foi reconhecido ao A. o direito de obter uma compensação calculada de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.

Discorda-se em absoluto de tal solução, a que subjaz uma incorrecta apreciação do regime jurídico da casa de morada de família (de natureza pessoal) ultrapassado, sem motivo, pela aplicação de uma regra que nem no regime da compropriedade (de natureza material) obtém confirmação.

Além disso, a mesma traduz ainda a desconsideração de que o divórcio não apaga todos os vestígios do casamento, persistindo efeitos que podem projectar-se para além dele. Estes são mais visíveis quando existam filhos do casal, mas também assomam quando se trate de regular o interesse de um e de outro dos cônjuges relativamente a alimentos ou, como sucede no caso, quando está em causa a utilização da casa de morada de família.

No casamento em separação de bens (que vigorou in casu) a regra é a de que os bens adquiridos por ambos os cônjuges ficam submetidos ao regime da compropriedade (arts. 1735º e 1736º do CC).

Consequentemente, uma vez decretado o divórcio, cada cônjuge mantém-se titular de ½ de cada um dos bens, cuja divisão, em vez de ser efectuada através de partilha, deve operar-se com recurso à divisão de coisa comum consensual ou litigiosa (art. 1412º do CC e arts. 1052º e segs. do CPC).

Mas, como é natural, tal regime de bens, produzindo os referidos efeitos de natureza material, não prejudica outros de natureza pessoal que são comuns a todos os casamentos, independentemente do regime de bens que tenha sido adoptado.
Com efeito, a todos os casamentos é comum a norma do art. 1673º sobre o local de residência da família, assim como o dever de coabitação dos cônjuges (art. 1673º), acompanhado dos demais deveres previstos nos arts. 1674º e segs. (deveres de cooperação, de assistência e de contribuição para os encargos da vida familiar). Além disso, independentemente da titularidade do direito de propriedade do imóvel que constitua a casa de morada de família, a sua alienação ou oneração exige o consentimento de ambos os cônjuges, nos termos do art. 1682º-A, nº 2, do CC.

A especificidade da relação conjugal indicia, assim, que a sua extinção por via de divórcio não pode ser equiparada à extinção de qualquer outra trivial relação jurídica de natureza patrimonial.

Afinal, depois do divórcio, para além da subsistência do vínculo de natureza alimentar, nos termos que agora constam do art. 2016º do CC, há que contar ainda com o destino da casa de morada de família cuja regulação, nos termos o art. 1793º do CC, está submetida a critérios de oportunidade que devem levar o tribunal a ponderar, entre outros elementos atípicos, as necessidades de cada um dos ex-cônjuges e os interesses dos filhos do casal.

De acordo com a concreta avaliação das circunstâncias consideradas relevantes, a regulação desta questão pode passar pela constituição de um contrato de arrendamento por via de sentença.

Nesta eventualidade, de acordo com a concreta situação, o contrato de arrendamento sobrepor-se-á ao que porventura anteriormente tenha sido celebrado com terceiro ou constituirá uma imposição potestativa quando a casa de morada de família esteja instalada em bem imóvel que integre o acervo comum de ambos os cônjuges, que constitua bem exclusivo de algum deles ou que esteja, como no caso, em regime de compropriedade.

É de notar ainda que o contrato de arrendamento constituído ope judicis quando a casa de morada de família incida sobre imóvel que pertença a um ou a ambos os cônjuges terá o conteúdo que o Tribunal fixar na sentença, designadamente no que concerne à fixação do montante da renda que deve ser paga por aquele que ficar na posição de arrendatário, como resulta do nº 2 do art. 1793º do CC.

Por conseguinte, contrariando uma certa linha argumentativa que perpassa pelas decisões das instâncias, não é possível extrair automaticamente do facto de o A. ser comproprietário de ½ do imóvel a verificação de um “prejuízo” correspondente a ½ do respectivo valor locativo, pois que, nas referidas circunstâncias, o valor patrimonial a considerar não está necessariamente dependente do valor de mercado, antes da apreciação do circunstancialismo que, em concreto, se mostra relevante e cuja ponderação apenas pode ser feita no âmbito do processo especial previsto no art. 1413º do CPC.

No caso concreto, os cônjuges estabeleceram um acordo provisório relativo à utilização da casa de morada de família, situação estabelecida ao abrigo no disposto no art. 1407º, nº 2, do CPC.

Em conformidade com este preceito, o acordo provisório apenas asseguraria a regulação dos interesses “durante o período de pendência do processo”.

Porém, daqui não resulta que o referido acordo tenha deixado de vigorar automaticamente com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, transformando uma ocupação e utilização consensual e legítima do prédio numa ocupação e utilização ilegítima ou injustificada, de modo a fundamentar a reclamação de uma compensação segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Solução diversa emerge da conjugação entre o preceituado no art. 1793º do CC, que concentra os critérios legais de atribuição da casa de morada de família, e no art. 1413º do CPC, que regulamenta a resolução do litígio sobre tal questão, de acordo com regras próprias dos processos de jurisdição voluntária (art. 1411º, nº 1, do CPC).

Da concatenação de tais preceitos, envolvidos também pelas especificidades da relação jurídico-familiar, resulta que enquanto não houver modificação do regime de utilização da casa de morada de família, os efeitos do acordo provisório judicialmente homologado manter-se-ão, sendo que, uma vez transitada em julgado a sentença de divórcio, a qualquer dos cônjuges é facultada a possibilidade de requerer a resolução definitiva do eventual diferendo.

Não existe qualquer base legal para se sustentar uma solução que se traduza na caducidade automática do acordo provisório e, por consequência, na utilização da casa de morada de família em utilização injustificada ou indevida, susceptível de legitimar a invocação de eventual enriquecimento ilegítimo em prejuízo do cônjuge não utilizador.
Trata-se de uma solução que facilmente se compreende, já que nenhum dos ex-cônjuges pode apagar a anterior existência de uma relação jurídica de casamento, vínculo ainda mais perene quando, como ocorre no caso concreto, existam filhos menores, a quem deve ser garantida, sem percalços injustificados, a estabilidade de uma habitação”. (1)

Ou seja e concluindo, tem sido entendido que mesmo em situação de compropriedade, apos a efectuação da partilha, nas situações em que nenhum dos cônjuges requereu a resolução definitiva da questão da atribuição da casa de morada de família, mantem-se, relativamente à ocupação do imóvel, o statu quo emergente do provisório, designadamente, naquelas situações em que, como na presente. foi instaurada uma acção de divisão de coisa comum do imóvel, com fundamento na relação de compropriedade, já que a ambos foi adjudicada a casa.

E assim sendo, tem pleno cabimento na situação que se coloque a questão de saber se existirá ou não a obrigação de pagar uma quantia a título de compensação pela utilização exclusiva do imóvel que constitui casa de morada de família, por parte do cônjuge a quem tiver sido atribuída, já depois de efectuada a partilha, nos mesmos termos em que ela tem sido debatida com relação ás situações em que casa de morada de família é atribuída a uma dos cônjuges provisoriamente até ao divórcio ou até á partilha.

Ora, como é sabido a jurisprudência não é pacifica quanto ao tema que agora nos ocupa havendo contradição jurisprudencial entre a tese que considera que não há fundamento legal para impor ao R. a obrigação da pagar à A. uma quantia a título de compensação pela utilização exclusiva do imóvel que constitui casa de morada de família, atribuído provisoriamente àquele e uma outra que entende que admite a compensação devida ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, como contrapartida do uso e fruição exclusiva por parte do outro cônjuge, exercidos provisoriamente sobre o referido bem comum, sendo devida desde que se iniciou tal uso e fruição por um dos cônjuges de forma exclusiva e enquanto a mesma se mantiver, até à partilha dos bens comuns.

E a propósito de situação análogo à presente, em que também se discute admissibilidade/possibilidade da fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge, privado da utilização do imóvel onde se situava a casa de morada da família, por força da decisão judicial que, no âmbito do divórcio, a atribuiu provisoriamente ao outro cônjuge, com base numa valoração prudencial e equitativa das necessidades dos membros do casal em vias de divórcio, escreve-se no acórdão do S.T.J., de 13/10/2016, que também considera o acordo provisório vigente mesmo após o divórcio e a realização da partilha, o seguinte:

“(…)
Como se decidiu no Ac. de 17/1/13, proferido pelo STJ no P. 2324/07.7TBVCD.P1.S1:

O acordo provisório estabelecido no âmbito de acção divórcio litigioso quanto à utilização da casa de morada de família não perde automaticamente a sua eficácia com o trânsito em julgado da sentença.
Em tais circunstâncias, o cônjuge interessado tem a possibilidade de obter uma resolução definitiva do conflito acerca da atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CC, através do processo especial previsto no art. 1413º do CPC.
A persistência da situação não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação encontra justificação na sua própria inércia relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 1413º do CPC.

(…)
Importa, por outro lado, realçar que a única questão a dirimir nesta revista tem natureza necessariamente normativa, destacando-se claramente do juízo de conveniência e oportunidade que subjaz à decisão, prudencial e equitativa, que optou por atribuir o imóvel provisoriamente a um dos cônjuges e a estabelecer -ou não- uma contrapartida pecuniária a favor do outro cônjuge, privado do uso desse bem, com base na valoração casuística da situação pessoal e patrimonial dos interessados: como é evidente, esse juízo prudencial e casuístico, enquanto baseado em critérios de oportunidade e conveniência, típicos da jurisdição voluntária, nunca seria sindicável, nos termos do nº 2 do art.988º do CPC, no âmbito de um recurso necessariamente circunscrito à dirimição de questões de direito.

O que cumpre decidir na presente revista é, pois, a questão da interpretação normativa, situada no plano geral e abstracto, do regime contido no nº 7 do art. 931º do CPC: ao prever-se a possibilidade de o juiz, no âmbito do divórcio, fixar, oficiosamente ou a requerimento do interessado, um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família a lei admite ou impõe que tal composição provisória de interesses conflituantes envolva a fixação de uma contrapartida pecuniária ao outro cônjuge, necessariamente privado do uso do bem enquanto durar o processo? Tal norma pressupõe uma atribuição provisória, necessariamente a título gratuito, da casa de morada da família a um dos cônjuges, tido por mais necessitado? ou pelo contrário, consente também numa atribuição do imóvel a título oneroso, envolvendo o pagamento de uma contraprestação ao outro cônjuge, em termos análogos aos que estão previstos a propósito da atribuição definitiva da casa de morada, face ao disposto no art. 1793º do CC, moldada fundamentalmente pelo regime do arrendamento?

Saliente-se que, no caso dos autos, em momento ulterior àquele em que o juiz fixara o regime de atribuição provisória ao R., foi decretado o divórcio por mútuo consentimento dos cônjuges e homologado o acordo obtido entre ambos, no que toca, nomeadamente, à utilização da casa de morada de família, acordando os interessados em atribuí-la ao cônjuge marido, conforme o que já fora incidentalmente decidido no início do processo, e até partilha dos bens comuns.

Ou seja: aqui, a utilização actual da casa pelo R. estriba-se, não apenas na inicial decisão provisória do juiz, mas no conteúdo de um acordo celebrado pelos ex cônjuges, que possibilitou, aliás, o imediato decretamento do divórcio por mútuo consentimento.

Sustenta, por isso, a recorrente que o decretamento do divórcio teria implicado a cessação dos efeitos da atribuição provisória da casa de morada, judicialmente decretada no início do processo; não é, porém, assim: como se decidiu no Ac. de 17/1/13, proferido pelo STJ no P. 2324/07.7TBVCD.P1.S1:

1. O acordo provisório estabelecido no âmbito de acção divórcio litigioso quanto à utilização da casa de morada de família não perde automaticamente a sua eficácia com o trânsito em julgado da sentença.
2. Em tais circunstâncias, o cônjuge interessado tem a possibilidade de obter uma resolução definitiva do conflito acerca da atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CC, através do processo especial previsto no art. 1413º do CPC.
3. A persistência da situação não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação encontra justificação na sua própria inércia relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 1413º do CPC

Deste modo, a circunstância de já ter sido definitivamente decretado o divórcio não faz caducar automaticamente os efeitos da referida decisão provisória, aliás expressamente reiterados no acordo celebrado pelos cônjuges, protraindo a vigência de tal regime até ao momento da partilha dos bens do casal.

Aliás, o modo como está construída a presente acção não aponta minimamente para a existência de uma simples pretensão de reponderação da justificabilidade e dos termos em que havia sido feita a atribuição provisória, à luz de factos supervenientes, - desde logo, a consumação do divórcio: é patente que o que a A. pretende obter é a fixação retroactiva de uma compensação por tal atribuição provisória do bem ao R., reportada ao momento (15/5/13) em que foi proferida a originária decisão, invocando-se na petição a dívida actual de €3.325,00, correspondente aos 19 meses de ocupação exclusiva já verificados…

Invocam, desde logo, as partes a existência de contradição jurisprudencial entre as orientações constantes de dois acórdãos proferidos pelo STJ, em 26/4/14 e em 18/11/08, já que no primeiro ter-se-ia admitido a fixação de uma compensação ao cônjuge, privado do imóvel atribuído provisoriamente ao outro cônjuge, ao passo que, no segundo aresto, se teria concluído antes pela injustificabilidade de tal compensação pecuniária.

Não parece, porém, que tal contradição se verifique efectivamente.

No acórdão de 2012, proferido no P. 33/08.9TMBRG.G1.S1, entendeu-se que:

1. São questões diferentes, a relativa à atribuição provisória da casa de morada de família durante o período da pendência do processo de divórcio (art. 1407.º, nºs 2 e 7 do CPC) e a de constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada, como processo de jurisdição voluntária, no art. 1413.º do CC, e prevista, como efeito do divórcio, nos arts 1793.º e 1105.º do CC.
2. Tendo cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688.º do CC), face ao trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, até à partilha, mantém-se a chamada comunhão de mão comum ou propriedade colectiva, com aplicação à mesma das regras da compropriedade (art. 1404.º do CPC).
3. No plano dos princípios, não disciplinando a lei, de forma específica, como efectuar a atribuição provisória da casa de morada de família (bem comum dos ex-cônjuges) na pendência do divórcio – in casu, até à adjudicação dos bens aos ex-cônjuges – nada impede, tudo aconselhando, ao invés, que nos socorramos, como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no citado art. 1793.º e dos índices de referência aí contidos;
4. Não havendo, de qualquer modo, que fixar a compensação devida ao ex-cônjuge privado da casa de morada de família a favor do outro pelos valores de mercado, desconsiderando a situação económica daquele que da casa mais necessitar.

No acórdão de 2008, proferido no P 08A2620., decidiu-se que:

Tendo o aqui Autor saído da casa de morada de família e aí permanecendo sua mulher, aqui Ré, não mais sendo reatada a vida em comum, não tem aquele (que nem sequer alega se ter oposto a tal situação) direito a ser compensado por aquela em termos do valor locativo do prédio.

Em primeiro lugar, o acórdão proferido em 2012 não estabeleceu que a atribuição provisória da casa de morada implique, sempre e necessariamente, a atribuição de uma contrapartida patrimonial ao outro cônjuge, limitando-se a sindicar a decisão das instâncias que, a pedido do interessado, oportunamente deduzido, a havia decretado, por entender que, nas circunstâncias concretas do caso, o intérprete se poderia socorrer, pelo menos como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no art. 1793º, acentuando a prevalência nesta sede da equidade sobre estritos juízos de legalidade.

Por outro lado – e ao contrário do que invocam as partes – o acórdão proferido em 2008 não estabeleceu que, em nenhuma circunstância, pode ter lugar a fixação da dita compensação ao cônjuge privado da utilização do bem que constituía a casa de morada: o que ali se decidiu foi, bem vistas as coisas, que, nas circunstâncias peculiares da matéria litigiosa, a atribuição de tal compensação ao cônjuge que havia abandonado livremente a residência comum não se justificava materialmente – mas naturalmente sem excluir que, noutros casos, tal compensação pudesse ter lugar; como expressamente se afirma na parte final daquele aresto:

Por último, teremos de reconhecer que poderão surgir situações sensivelmente idênticas em que a solução a dar não coincida com aquela que aqui perfilhamos. Suponhamos esta hipótese: Com a separação de um casal, um dos cônjuges mantém-se a habitar a casa de morada de família, bem comum do casal, enquanto que o outro cônjuge se vê na necessidade de ir ocupar uma outra casa, adquirida por empréstimo bancário ou tomada de arrendamento. Este segundo cônjuge passa a ter de suportar um novo encargo, traduzido no pagamento de uma prestação mensal para juros e amortização do empréstimo ou para pagamento de uma renda. Ocupando o primeiro cônjuge uma habitação sem qualquer pagamento e tendo o segundo de proceder a um pagamento pela utilização de outra casa que teve necessidade de arranjar, não nos repugna admitir que, aquando da partilha dos bens comuns do casal, possa haver um acerto de contas, nomeadamente, através da reclamação de um crédito por parte do segundo cônjuge, sobre o acervo patrimonial a partilhar, não sobre o outro cônjuge. Só que esta situação não é a dos presentes autos, pelo que continuamos a entender que aqui a solução correcta é a que perfilhamos.
As decisões proferidas assentaram, pois, decisivamente numa ponderação de especificidades, tidas por relevantes, dos casos sub juditio num e noutro processo, não podendo, deste modo, afirmar-se a existência de uma real contradição jurisprudencial acerca da possibilidade de compensação do cônjuge privado do uso da casa de morada, a qual pressupõe e passa sempre por uma análise e ponderação adequadas dos interesses contrapostos, em termos de critérios práticos de justiça e equidade.

Como atrás se referiu, a jurisprudência das Relações tem oscilado, quanto a esta questão, entre duas visões, rígidas e extremadas, entendendo uma das orientações, plasmada, por exemplo, no acórdão recorrido, que (independentemente de qualquer valoração ou ponderação concreta da situação dos cônjuges dissidentes) a fixação de tal compensação é legalmente inadmissível, ao passo que a outra corrente jurisprudencial considera que tal atribuição compensatória deverá ter necessariamente lugar, como forma de obviar a um inadmissível enriquecimento do cônjuge a quem o imóvel foi provisoriamente atribuído à custa do outro interessado.

Considera-se que nenhuma destas posições extremadas, assentes fundamentalmente numa análise conceitual do regime jurídico em causa, é adequada às exigências de ponderação equitativa das circunstâncias do caso concreto, especialmente prementes no campo da definição provisória das relações entre os cônjuges, na pendência do processo de divórcio: na verdade, a formulação legal – ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo - é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial e casuística das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso; no primeiro caso, o julgador entenderá que, perante o resultado de tal ponderação casuística, a vantagem auferida pelo cônjuge beneficiário com o uso exclusivo do imóvel não justifica a atribuição de uma contrapartida patrimonial ao outro cônjuge, privado temporariamente do uso do bem; na segunda situação, pode o juiz temperar tal atribuição exclusiva com a imposição da obrigação do pagamento ao outro cônjuge de uma contrapartida económica, fundada em razões de equidade e justiça, aproximando-se, neste caso, ao menos por analogia, do regime de arrendamento que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.

Note-se que a resposta à questão que nos ocupa não pode fluir directamente de uma simples análise do regime da compropriedade, nomeadamente da norma que consta do art. 1406º, nº1, do CC: para além de as relações patrimoniais entre cônjuges ou ex-cônjuges se não poderem reconduzir, de um ponto de vista funcional, aos precisos quadros do regime legal da compropriedade em bens determinados, a referida norma, ao estabelecer uma possibilidade de uso individual do bem comum por cada comproprietário sem, todavia, privar de forma inadmissível os restantes contitulares de tal direito de uso, não contempla obviamente a específica situação litigiosa que nos ocupa, em que a atribuição do imóvel, em uso exclusivo a um dos contitulares, radicou numa decisão jurisdicional, que resolveu provisoriamente a situação de conflito, real ou latente, entre os interessados.

Tal significa, como é evidente, que o uso, individual e exclusivo, do bem pelo cônjuge a quem o mesmo foi judicialmente atribuído é lícito, encontrando ainda causa ou suporte precisamente na dita decisão, ou seja, na hétero composição de interesses que a mesma - injuntivamente – contém. Mas a circunstância de não existir efectivamente uma situação de responsabilidade civil do beneficiário da atribuição ou de enriquecimento sem causa deste não significa que se deva afastar em absoluto a possibilidade de, por exigências de justiça e equidade, face às circunstâncias concretas da vida dos cônjuges, tal atribuição exclusiva poder ser temperada com a compensação, no plano patrimonial, do outro cônjuge, privado do uso referido imóvel e, por isso, eventualmente obrigado a suportar outras despesas ou incómodos graves com o estabelecimento da sua residência, até à partilha dos bens…

Saliente-se que nos movemos no campo das decisões provisórias e cautelares, em que sempre se entendeu que o julgador dispõe de amplas possibilidades de valoração concreta e flexível dos interesses contrapostos, bem expressas, por exemplo, na norma constante do art. 376º, nº3, do CPC, ao prescrever que – em sede de procedimentos cautelares – o juiz não está sujeito à providência concretamente requerida, podendo decretar a que se revele mais eficaz e adequada à tutela do direito e à prevenção do periculum in mora.

O concreto conteúdo das medidas ou providências cautelares a decretar obedece, assim, desde há muito, a uma ampla possibilidade de modelação judicial, feita em função de juízos casuísticos, não se conciliando com uma rigidez de procedimentos, segundo a qual, independentemente das circunstâncias do caso, o tipo e a natureza da medida cautelar teriam de ser, sempre e necessariamente, definidas em abstracto; ora, tal flexibilidade impõe-se, por maioria de razão, no campo da jurisdição voluntária, em situações em que urge definir provisoriamente, segundo critérios substanciais de justiça e equidade, os interesses contrapostos dos cônjuges.

Interpreta-se, pois, a norma constante do nº 7 do art. 931º do CPC no sentido de a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família poder ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.

Desta configuração normativa conferida à decisão que atribui, a título provisório, a um dos cônjuges a casa de morada de família decorre que só existe direito a uma compensação pelo uso exclusivo se o juiz a tiver efectivamente atribuído na decisão proferida: ou seja, tal direito a uma compensação patrimonial pressupõe necessariamente, em termos constitutivos, a formulação de um juízo equitativo, em que o julgador, ponderadas as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges e por imperiosas razões de justiça material, considera que o equilíbrio dos interesses em confronto só se satisfaz com a imposição ao beneficiário da utilização do imóvel de uma contrapartida por tal uso exclusivo; e, assim sendo, não existe direito à compensação pelo uso exclusivo se se consolidar a decisão provisória acerca do uso da casa de morada, sem nela se prever explicitamente qualquer obrigação de pagamento por parte do cônjuge beneficiado com o uso exclusivo – estando, deste modo, excluída a possibilidade de o outro cônjuge vir ulteriormente, como sucede no caso dos autos, em nova acção, apensada ao processo de divórcio, pretender obter compensação, não prevista na decisão provisória oportunamente proferida nos autos sobre esse tema.

Acresce, no caso dos autos, que a referida decisão provisória foi, de algum modo, a partir do decretamento do divórcio, substituída ou consumida pelo acordo, celebrado pelos cônjuges, judicialmente homologado, no qual identicamente se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele explicitamente atribuído ao R.: saliente-se que tal acordo, interpretado à luz do princípio da impressão do destinatário, só pode significar que nele se não contemplava o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização expressamente permitida ao R – implicando a pretensão formulada na presente acção uma modificação substancial dos termos de tal acordo, ao pretender transformar a utilização incondicionada, ali efectivamente prevista, numa utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontrava o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.

Deste modo, não estando prevista, quer na decisão provisória, proferida no início do processo de divórcio acerca da utilização provisória da casa de morada de família, quer no acordo dos cônjuges acerca desta matéria, judicialmente homologado, o pagamento de qualquer compensação à A. pela utilização exclusiva da casa de morada da família, atribuída ao R., não existe fundamento bastante para obter o reconhecimento ulterior de tal obrigação, que não decorre automática e necessariamente dessa atribuição provisória, pressupondo antes uma valoração judicial constitutiva que, no caso, se não verificou”. (2)

Na verdade, como e bem se refere na decisão recorrido, “se bem que à autora assistisse a possibilidade de ver revisto o assim acordado, pois que o destino da casa de morada de família, pese embora tivesse sido decidido no âmbito de um processo de divórcio, incidiu sobre matéria sujeita à jurisdição voluntária (cfr. art. 990.º do Código de Processo Civil), e, nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, (vide art. 988.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) (3), certo é que veio a realizar-se a partilha do bem sem que a autora tivesse lançado mão de tal faculdade, pelo que cremos não lhe assistir agora o direito a ser compensada, inclusive por apelo às regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação de permanência do réu na casa de morada de família, entre a data do acordo alcançado em sede do processo de divórcio e a data da partilha, encontra justificação na própria inércia da autora relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 990.º do CPC (4) e no acordo entre ambos celebrado, que não contempla a estipulação de qualquer compensação a pagar pelo réu”.

No que concerne à possibilidade de enriquecimento sem causa, como se defende no citado Acórdão do S.T.J, de 17/’01/2013, “falta de causa do pretenso enriquecimento”.

Como aí se refere, “não basta para o reconhecimento do direito de crédito a prova de factos reveladores de um enriquecimento de um interessado e do correspectivo empobrecimento patrimonial do outro. Necessária é ainda a prova de factos que, como elemento constitutivo do direito, revelem a ausência de causa justificativa para uma tal transferência patrimonial.

Ora, de tudo o que anteriormente se disse resulta precisamente o contrário.

A situação em que se encontra o imóvel que foi casa de morada de família do A. e da R., enquanto foram casados, encontra uma causa bem visível e justificada: o facto de, após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, não ter sido impulsionada pelo ora A. a resolução judicial definitiva do diferendo relativo à utilização da casa de morada de família, através do mecanismo específico previsto no 1413º do CPC instrumental do art. 1793º do CC.

O A. optou pela instauração de uma acção de divisão de coisa comum, atenta a relação de compropriedade.

Mas, como já anteriormente se disse, uma tal acção apenas terá a virtualidade de resolver a questão da propriedade, não interferindo, de modo directo, na questão da atribuição da casa de morada de família.

Com efeito, ainda que em tal acção venha a ser atribuído ao A. o direito de propriedade sobre o prédio, com pagamento à contraparte do valor que lhe corresponda, não está afastada a possibilidade de sobre o imóvel ser constituída uma relação jurídica de arrendamento, mediante a ponderação dos critérios que, a título exemplificativo, estão previstos no art. 1793º do CC.

Independentemente da motivação do A., a causa para uma putativa transferência patrimonial favorável à R. (admita-se, por facilidade de raciocínio) parece bem visível: a inércia daquele em despoletar o aludido processo de jurisdição voluntária, no âmbito do qual se sujeitaria ao resultado que o Tribunal (depois de avaliar, “nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”, nos termos do art. 1793º, nº 1, do CC) viesse a decretar.

Detectada, assim, a verdadeira causa da manutenção da situação que perdura desde que transitou em julgado a sentença de divórcio, falta um elemento essencial para o reconhecimento de algum crédito ao abrigo do disposto no art. 473º do CC”.

Destarte, de tudo resulta que, e como se refere na decisão recorrida, se não há fundamento para impor ao réu a obrigação de entregar autora uma compensação pélo facto de estar a utilizar o imóvel de modo exclusivo, o mesmo sucede com o eventual direito do autora exigir do réu a desocupação do imóvel a fim de o mesmo ser colocado no mercado de arrendamento.


Com efeito, e com aí igualmente se conclui, “tanto o autor, como a ré, têm direito a usar o imóvel comum (cfr. art. 1406.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que a administração da coisa comum depende do acordo de ambos os consortes, por nenhum reunir em si a maioria (cfr. art. 985.º e 1407.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que o pretendido arrendamento do imóvel só poderá concretizar-se com o acordo do réu, sem prejuízo de a autora poder, em processo próprio (aquele a que alude o art. 1002.º do CPC), lançar mão da faculdade a que alude o art. 1407.º, n.º 2, do Código Civil)”.

E assim sendo, improcede a apelação com a consequente manutenção da decisão recorrida.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.
Guimarães, 15/ 11/ 2018.

Jorge Alberto Martins Teixeira
José Fernando Cardoso Amaral.
Helena Gomes de Melo.


1. Cfr. acórdão do S.T.J. de 17/01/2013, proferido no processo nº 2324/07.7TBVCD.P1.S1, in www.dgsi.pt
2. Cfr. acórdão do S.T.J., de 13/10/2016, proferido no processo nº 135/12.TBPBL-C.C1.S1, in www.dgsi.pt
3. .- o Ac. da RP de 26/10/2006, processo n.º 0634785, disponível in www.dgsi.pt:“É admissível a alteração, através do processo de jurisdição voluntária, do acordo sobre o destino da casa de morada de família, homologado por sentença transitada em julgado, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento.”; .- o recente Ac. da RG de 28/9/2017, processo n.º 1163/13.0TBPTL-G.G1, disponível in www.dgsi.pt: “Tendo sido acordado no âmbito de acção de divórcio, onde foi proferida sentença já transitada em julgado, que o cônjuge marido ficaria a residir na casa de morada de família até à partilha dos bens, sem ter sido fixada a contrapartida de qualquer compensação/renda, pode a mulher requerer posteriormente ao tribunal que seja fixada em seu benefício uma quantia mensal por aquela ocupação se, entretanto, se alteraram em seu desfavor, as circunstâncias que estiveram na base daquele acordo”.
4. Vide Ac. do STJ de 17/1/13, processo n.º 2324/07.7TBVCD.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt. Como se diz no Ac. do STJ de 13/10/2016, processo n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “dependendo constitutivamente esse direito a uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada pelo outro cônjuge de uma ponderação judicial,