Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1242/14.7GBBCL.G1
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: MAUS TRATOS A OUTREM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME ÚNICO
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus-tratos (lei anterior), violência doméstica (lei vigente) ocorre com a prática do último acto de execução.
II – Se no decurso dos crimes, cuja execução se prolonga no tempo, surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto.
III- Neste tipo de crimes, o momento determinante para escolha da lei aplicável ao caso, é a data da execução do último acto, aquela em que cessou a consumação do crime.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1 – Por sentença proferida em 25 de Maio de 2015, foi o arguido, Serafim S., melhor identificado nos autos, condenado, como autor material de:

a) um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, al. a) e 2, do Código Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e na pena acessória de proibição de, por qualquer forma, contactar e/ou se aproximar da ofendida Maria C.., incluindo a proibição de se deslocar ou aproximar da sua residência e do seu local de trabalho, pelo período de 3 anos, nos termos do artigo 152º, nº 4 e 5, do Código Penal.

Mais foi o arguido condenado a pagar à ofendida, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de 2 500,00€, acrescida de juros moratórios computados à taxa legal, actualmente de 4%, desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento.

2 - Inconformado com a condenação, dela recorre o arguido, formulando as Conclusões que, a seguir, se transcrevem:

1. Condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto no art. 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal, relativamente a factos alegadamente ocorridos antes de 15 de Setembro de 2007 (data da entrada em vigor deste normativo legal) é, nesta parte, condenar-se uma pessoa pela prática de um ilícito que não estava previsto à data da prática dos factos.
2. A haver alguma condenação do arguido pela prática desses factos, tal teria que ser por ofensas à integridade e injurias, nos termos do disposto nos art.s 143, n.º 1, 145, n.º 1, al. a) e 181, n.º 2, todos do C.P. e não por violência domestica, nos termos do art. 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código Penal,
3. Pelo que seriam aquelas e não estas as normas a aplicar.
4. O que determina, desta feita, que os factos ocorridos antes de 15 de Setembro de 2007 e imputados ao arguido estão sujeitos ao regime de prescrição previsto no art. 118, n.º 1, al. c), do C.P. ou,
5. se assim não se entender, ao regime de prescrição previsto na al. b) desse preceito legal.
6. Deste modo
7. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido, violou o disposto no art. 20º, n.º 1 da C.R.P., bem como o disposto nos art.s 2º, n.º 4 e 118, n.º 1, al. b) e c), ambos do C.P.,
8. Impondo-se, assim, a absolvição do arguido relativamente à prática de tais factos.

3 – Ministério Público, em primeira instância respondeu fundamentadamente ao recurso interposto, concluindo pela manutenção do decidido.

4 – A Digna Procuradora-Geral Adjunta, nesta instância, secundando os argumentos aduzidos em primeira instância, manteve a posição assumida, sustentando-a, em jurisprudência e doutrina.

5 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2,do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento de mérito do Recurso.

II – O ACÓRDÃO RECORRIDO

A primeira instância julgou a matéria de facto da seguinte forma:

a) O arguido casou com Maria C.. no dia 20 de Agosto de 1978.

[Do período de tempo desde o casamento até há ao ano de 1981, na Alemanha]

b) Entre Setembro de 1978 e meados do ano de 1981, o arguido e a Maria C. residiram em …, Alemanha, regressando a Portugal nessa data, passando a residir na freguesia de L.., Barcelos.

c) Desde o início do seu casamento que o arguido não chama a Maria C. pelo seu nome, referindo-se a ela e chamando-a por “puta”.

d) No mês de Setembro de 1978, no interior da casa de residência de ambos, e após a Maria C. instar o arguido sobre a propriedade de alguns objectos femininos que se encontravam naquela casa, aquele desferiu-lhe uma bofetada na face e disse-lhe que se ela estivesse mal que voltasse para Portugal. e) No mês de Outubro de 1978, após iniciarem discussão sobre uma relação extraconjugal que o arguido mantinha, este desferiu uma nova bofetada na cara da Maria C..

[Do período de tempo desde o ano de 1981 até ao presente]

f) Entre Setembro de 1981 e Maio de 1982, quando a Maria C..se encontrava grávida da sua filha mais velha (nascida a 24 de Maio de 1982) e residiam, então, na freguesia de L., Barcelos, o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida, com o pretexto de que esta não lhe tinha que perguntar das razões pelas quais ele se encontrava atrasado para o almoço, provocando-lhe uma hemorragia no nariz.

g) Desde essa data até ao presente o arguido continuou sem chamar a Maria C..pelo nome, tratando-a por “puta” e “vaca”.

h) Em 1982, o arguido e a ofendida Maria C. passaram a residir na Rua …, Barcelos.

i) Desde o nascimento da sua filha mais velha até Junho de 2014, o arguido sempre que iniciava uma discussão com a Maria C., e sempre no interior da residência de ambos, agredia-a com bofetadas. j) Também nesse período, quase todos os dias, a apodava de puta, vaca e pasta (preguiçosa). k) Em data não concretamente apurada, mas por volta dos anos de 2002 ou 2003, na sequência de uma discussão relacionado com o enchimento de um pneu de uma viatura, o arguido desferiu pontapés na assistente, junto à casa de habitação referida em h) e na presença da filha Andreia (que então tinha 15 anos de idade).

l) Noutra situação, em data não concretamente apurada, mas anterior ao casamento da filha mais velha, na residência do casal, o arguido forçou a porta do quarto do casal com um pé de cabra e desferiu bofetadas à assistente, apelidando-a de puta e perguntando-lhe se ainda não tinha “ido desta”. m) De resto, sempre que a assistente necessitou de assistência hospitalar em resultado da actuação do arguido, este dizia-lhe que se falasse, para a próxima iria ser pior.

n) Em dia não concretamente apurado situado no final do mês de Junho de 2014, perto da hora de almoço, quando a Maria C..estava a trabalhar, o arguido veio ao seu encontro apodando-a de vaca e dizendo-lhe que eram horas de ir fazer o almoço.

o) Após, e depois daquela lhe ter dito que tinha muito trabalho e que se encontrava atrasada, o arguido pegou numa caixa de plástico aí existente e encostou-a ao corpo da Maria C., empurrando-a contra uma porta, provocando-lhe vários hematomas nos braços

p) Desde de Outubro de 2014 até 21 de Dezembro de 2014, o arguido, por mais do que uma vez, disse à Maria C..que cortaria os travões do carro daquela.

q) No dia 21 de Dezembro de 2014, o arguido, que então dormia noutro quarto separado da assistente, levou-lhe o pequeno-almoço à cama, após o que exigiu que a mesma mantivesse consigo relações sexuais; porque esta se recusou a fazê-lo, o arguido empurrou-a e disse-lhe “fica para aí puta”.

r) Nesse mesmo dia 21/12/2014, pelas 15h30m, porque a Maria C..se recusava a abrir a porta da residência sita em …, este disse-lhe do exterior que lhe iria cortar os travões do carro, mais a apodando de puta e vaca.

s) Na sequência dessa discussão, e tendo a porta sido aberta, a assistente desmaiou acabando por ser conduzida ao hospital.

t) No dia 19 de Janeiro de 2015, pelas 17h00m, na cozinha da casa de residência de ambos, o arguido, após dizer que a assistente estava em casa, referindo-se à mesma com o epíteto de “puta”, desferiu uma bofetada na face da Maria C..

u) No dia 20 de Janeiro de 2015, cerca das 19h15m, também no interior da residência mencionada em 3., o arguido apodou a Maria C..de “puta”.

v) No dia 21 de Janeiro de 2015, cerca das 13h30m, quando a Maria C..se encontrava a encaixotar alguns pertences da sua filha mais nova, o arguido apodou-a novamente de “puta”.

w) Com o comportamento descrito, o arguido pretendeu humilhar a Maria C., atingindo-a na sua dignidade, faltando ao respeito que lhe era devido e ferindo-a na sua auto-estima, fazendo-a sentir-se submissa, pretendendo impor a sua presença e impedi-la de se determinar livremente, nomeadamente nas suas relações sociais e na sua liberdade de deslocação.

x) Agiu, ainda, o arguido de modo livre, voluntário, consciente e reiterado e com intenção concretizada de causar medo e inquietação à ofendida, de molestar a sua saúde física e psíquica e ainda de perturbar a sua paz e o seu sossego.

y) Todavia, o arguido bem sabia que, por ser casado com a Maria C., tinha e tem um especial dever de respeito para com a mesma, bem como o dever de cuidar pelo seu bem-estar físico e psíquico.

z) Sabia o arguido que tais comportamentos eram proibidos por lei.

1.2. Factos provados (dos pedidos de indemnização cível, com relevância para a decisão da causa)

aa) Em consequência da actuação do arguido acima mencionada e que ocorreu no dia 21/12/2014, foi a ofendida conduzida ao Hospital de Barcelos onde lhe foram prestados os cuidados de saúde, com a realização de exames de diagnóstico e a administração dos medicamentos, melhor descritos no documento junto a fls. 260 (cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

bb) As actuações do arguido acima descritas causaram na ofendida, além de dores físicas, vergonha, tristeza, humilhação, desgosto e instabilidade psicológica, sendo ainda que em razão de tal actuação a assistente passou a sofrer de depressão prolongada.


***

Mais se provou que:

cc) O arguido está desempregado; vive actualmente na parte inferior da habitação onde a ofendida também mora; tem a 4.ª classe de escolaridade.

dd) O arguido não tem antecedentes criminais.

1.2. Factos não provados.

Com possível interesse para a decisão da causa, não ficou por demonstrar qualquer outro facto vertido na acusação.

i) Além do momento referido em k) o arguido tivesse desferido pontapés na ofendida.

ii) O arguido apodasse a ofendida de “badalhoca”.

III – QUESTÕES A DECIDIR

Delimitado o objecto do recurso pelas Conclusões do Recorrente, o thema decidendum consiste em a saber se:

1 – Qualificação jurídico-penal dos factos ocorridos antes de 15 de Setembro de 2007;

2 – Prescrição do crime imputado ao arguido em relação aos factos praticados antes de 15 de Setembro de 2007

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1 – Qualificação jurídico-penal dos factos ocorridos antes de 15 de Setembro de 2007

Não impugnando a decisão sobre a matéria de facto, sustenta o recorrente que os factos praticados antes de 15 de Setembro de 2007 não podem subsumir-se ao crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, do Código Penal, na medida em que este ilícito não estava tipificado naquela data.

Quando muito, continua o recorrente, a ser condenado por algum crime, sempre seria o de ofensas à integridade física e injúrias, mas nunca o de violência doméstica introduzido no Código Penal, pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.

Esta questão não, sendo nova, foi já decidida pelos nossos tribunais superiores em sentido contrário pugnado pelo Recorrente, posição que, também, acolhemos.

Recordando:

O crime de maus-tratos conjugais foi introduzido pelo Código Penal de 1982, no seu artigo 153º, nº1, al. a) e nº 3, punindo, quem, devido a malvadez ou egoísmo, infligir ao seu cônjuge (…) maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo»

A revisão do Código Penal levada a cabo pela Lei 49/95, de 15 de Março, alterou a incriminação, passando a punir no artigo 152º, nº 1, e 2, quem ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges maus tratos-físicos ou psíquicos, com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144.º.

As alterações introduzidas pelas Lei 65/98, de 2 de Setembro e 7/2000, de 27 de Maio, mantiveram o tipo legal de crime de maus tratos e a medida da pena principal, acrescentando, agora, a pena acessória de proibição de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência desta, por um período máximo de 2 anos.

Com a alteração de 2007, pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o artigo 152º, do Código Penal, sob a epígrafe «violência doméstica», estabelece que:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) O progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.

Estas alterações legislativas evidenciam a autonomização do crime de violência doméstica (maus-tratos na versão anterior) em relação a outros tipos de ilícitos, como por exemplo, ofensa à integridade física, injúrias e ameaças, autonomização essa que assenta na desconsideração das condutas que poderiam, eventualmente, integrar estes tipos de crime, para as valorar, globalmente, na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos sobre cônjuge (lei antiga) ou crime de violência doméstica (lei nova).

«Neste contexto entre o crime do artigo 152º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus-tratos/violência doméstica» - Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2010 (www.dgis.pt, local onde poderão ser visualizados os Arestos que vierem a ser indicados, sem outra menção.

Com excepção dos casos em que se realiza através de um único comportamento, o crime de violência doméstica (ou os maus-tratos) supõe uma reiteração de condutas que preenchem o respectivo tipo objectivo e que são susceptíveis de integrar, quando singularmente consideradas, outros tipos de crime, nomeadamente, injúria, ofensa à integridade física e ameaça.

É sabido, que, nem toda e qualquer ofensa física ou verbal a existir entre os cônjuges ou análogos, é qualificada como violência doméstica. O preenchimento do ilícito não se basta com a simples existência de ofensas, injúrias ou ameaças, sendo necessária a existência de maus tratos físicos ou psíquicos – ainda que isolados – e tidos como atentórios da dignidade humana.

«(…) O crime de Violência doméstica (…) passou a assumir, após a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – e com a introdução da locução “de modo reiterado ou não” –, como um tipo incriminatório de natureza mista. Constata-se, assim e para tal efeito, que o sobredito ilícito se pode apresentar – para efeitos da dicotomia posta em relevo por FIGUEIREDO DIAS – como um crime instantâneo ou habitual. Ou, em termos mais rigorosos, o ilícito de Violência doméstica apresenta-se tendencialmente como um crime habitual – pois que a realização do tipo incriminatório será, em regra, alcançada mediante a “prática de determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” – não obstante se admitir que a prática de um acto isolado possa conduzir à consumação do ilícito quando se ache idónea à lesão do(s) bem(ns) jurídico(s) tutelado(s).

Com o que a circunstância de o agente renovar condutas integradoras de tal ilícito não importará um seu sancionamento autónomo, mas antes relevará tão-somente em sede de medida da pena. Isto porquanto o mesmo continuará a praticar um único crime de Violência doméstica.

Efectivamente, (…)

A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessiva realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário.

A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único» Acórdão da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo nº 821/11.9TAFIG.C1).

«Sendo regra da violência doméstica consubstanciar-se num conjunto reiterado de comportamentos, naturalmente que então todos e cada um dos actos singulares perpetrados pelo agressor na vítima integram esse crime, nele se exaurindo ou esgotando e não evidenciando relevância própria para o preenchimento da tipicidade, tal-qualmente como cada um dos actos levados a cabo pelo traficante no crime de tráfico de estupefacientes. Daí decorre, (…) que sendo doutrinariamente tido como um crime habitual ou reiterado, o crime de violência doméstica consuma-se com a prática do último acto de execução».

«Daqui resulta que todas as condutas eventualmente integradoras do específico ilícito praticado pelo agente deverão ser julgadas unitariamente pois que todas elas correspondem a um único crime. Isto salvo, naturalmente e em face do teor literal do artigo 152.º do Código Penal, «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal» Acórdão da Relação do Porto de 10 de Julho de 2013.

Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos, violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.

Para os crimes cuja execução se prolonga no tempo, a doutrina tradicional, tem vindo a entender que, se durante o seu decurso, surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto.

Neste sentido se pronunciou, além do mais, o Acórdão da Relação de Évora, de 19 de Dezembro de 2013, chamando à colação os Acórdãos da Relação do Porto de 15 de Novembro de 2010 e da Relação de Lisboa de 30 de Outubro de 2012.

Aí se lê:

«Está em causa um crime cuja execução não ocorre num único e isolado momento – ou pode não ocorrer (…) e, que como tal, se consuma no momento da prática do último acto de execução, sendo assim, por referência a tal último acto, com o qual se dá a consumação do crime, que há-de ser apurada, designadamente, a lei aplicável, ou a eventual ocorrência d prescrição, entre outros aspectos (…)».

«O facto previsto na lei como crime diz-se consumado quando tiverem sido praticados os actos de execução que realizam e integram os elementos constitutivos do tipo legal de crime, produzindo as consequências previstas que preenchem o respectivo tipo; a consumação é a execução acabada e completa e a integração por inteiro dos elementos do tipo objectivo, a que pertencem sempre, além da menção do sujeito activo, a descrição de uma acção típica com a indicação do resultado (nos crimes de resultado) ou com a simples descrição da actividade (nos crimes de mera actividade).

«O crime consumado é o crime “perfeito”, o crime realizado: realiza-se completamente, o facto criminoso preenche o tipo legal do crime, ou seja, o facto concreto corresponde ao modelo de comportamento que o tipo representa. O conceito de crime consumado é um conceito formal; corresponde à realização pela do tipo legal; termina o inter criminis. O crime está consumado quando se reúnam todos os elementos da sua definição legal - Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, 1998, pág.s 235/236 » (Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2010.

No caso dos autos, encontra-se demonstrado que:

- O arguido, desde 1981 até ao presente que não chamava a Maria C..pelo nome, tratando-a por puta e vaca (ponto de facto g);

- Desde o nascimento da filha mais velha (24 de Maio de 1982) e até Junho de 2014, o arguido sempre que iniciava uma discussão com Maria da Conceição, e sempre no interior da residência de ambos, agredi-a com bofetadas (ponto de facto i);

- Também nesse período, quase todos os dias, a apodava de puta, vaca e pasta (preguiçosa) (ponto de facto j);

- Em data não concretamente apurada, mas por volta dos anos de 2002 ou 2003, na sequência de uma discussão relacionado com o enchimento de um pneu de uma viatura, o arguido desferiu pontapés na assistente, junto à casa de habitação referida em h) e na presença da filha Andreia (que então tinha 15 anos de idade) (ponto de facto k).

- Noutra situação, em data não concretamente apurada, mas anterior ao casamento da filha mais velha, na residência do casal, o arguido forçou a porta do quarto do casal com um pé de cabra e desferiu bofetadas à assistente, apelidando-a de puta e perguntando-lhe se ainda não tinha “ido desta” (ponto de facto l).

- De resto, sempre que a assistente necessitou de assistência hospitalar em resultado da actuação do arguido, este dizia-lhe que se falasse, para a próxima iria ser pior (ponto de facto m).

Com este comportamento (e o demais tido depois de Junho de 2014) o arguido pretendeu humilhar a Maria C., atingindo-a na sua dignidade, faltando ao respeito que lhe era devido e ferindo-a na sua auto-estima, fazendo-a sentir submissa, pretendendo impor a sua presença e impedi-la de se determinar livremente, nomeadamente nas suas relações sociais e na sua liberdade de deslocação.

Agiu, ainda, o arguido, de modo livre e voluntário, consciente, reiterado e com intenção concretizada de causar medo e inquietação à ofendida, de molestar a sua saúde física e psíquica e ainda perturbar a sua paz e sossego (pontos de facto w e x).

Perante esta factualidade, a conduta do arguido integra todos os elementos típicos do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, na versão actual, já que, pelos motivos acima apontados, a conduta anterior a Setembro de 2007 não assume relevância jurídico-penal autónoma.

Em suma, neste tipo de crimes, o momento determinante para escolha da lei aplicável ao caso, é a data da execução do último acto, aquela em que cessou a consumação do crime.

O mesmo é dizer que, ao contrário do que defende o recorrente, bem andou o tribunal a quo ao qualificar jurídico-penalmente a sua conduta global como um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, do Código Penal.

Improcede, pois, este segmento do recurso.

2. Prescrição

Tendo o arguido sido condenado pelo crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, do Código Penal, que se consumou no último acto de execução – 21 de Janeiro de 2015 – nenhuma dúvida se suscita que não decorreu qualquer prazo prescricional.

Como já se deixou dito em 1, nenhuma razão assiste ao recorrente nos argumentos em que assenta prescrição.

Neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 15 de Setembro de 2010, citado pelo Acórdão da Relação de Évora acima mencionado:

«Não há que invocar a prescrição do procedimento criminal relativamente a alguns dos factos pois nos termos do artigo 119º, nº 2, al. a), do Código Penal, o respectivo prazo prescricional começa a correr desde o dia em que cessou a sua consumação».

V – DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção Criminal desta Relação julgar não provido o Recurso.

Custas pelo Arguido, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS.

Coimbra, 16 de Novembro de 2015

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Alcina da Costa Ribeiro

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Luís Coimbra