Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1074/21.6T8CHV-A.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
NULIDADES DA SENTENÇA
LIVRANÇA
PRESCRIÇÃO DA OBRIGAÇÃO SUBJACENTE
VIOLAÇÃO DO ACORDO DE PREENCHIMENTO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O terceiro dono do bem dado de garantia real, hipotecado, visado na execução –artº. 54º, nº. 2, C.P.C.- sendo estranho à relação cambiária corporizada na livrança dada à execução, e sendo pessoa diferente do devedor, pode opor ao credor, ainda que a eles tenha renunciado o devedor, os meios de defesa que este tiver contra o crédito, com exclusão das exceções que são recusadas ao fiador (cfr. art.º 698º, nº 1, do Código Civil); ou seja, além dos meios de defesa que lhe são próprios, aqueles que competem ao devedor (cfr. 637º, nº 1, do CC), nestes se incluindo a prescrição do direito cambiário contra a pessoa cuja responsabilidade garantiu com a hipoteca (art.ºs 303º, 304º, nº 1, 305º, nº 1, do CC e 70º da LULL).”
II. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº. 6/2022 de 30/6/2022, publicado no DR nº. 184/2022, Série I de 2022-9-22, tomou posição no sentido de que “No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.”; “Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.".
III. Dos artºs. 10º e 77º da LULL decorre a admissibilidade da livrança em branco.
IV. Relativamente aos elementos em falta e em concreto no que respeita à data de vencimento, o seu preenchimento abusivo pode revestir duas modalidades: a violação do pacto, o exercício abusivo do direito de livre preenchimento.
V. A exceção de prescrição que se quer invocar afere-se numa segunda apreciação, após se determinar qual a data de vencimento que devia ter sido colocada na livrança (por força de acordo ou do princípio da boa fé).
VI. Se analisado o contrato que acompanha e integra o financiamento, se verifica que se trata de uma minuta elaborada pelo banco e que se aplica/dirige a um conjunto indeterminado de situações, devidamente adaptada a sua leitura a cada caso e nomeadamente ao caso concreto, tal basta para concluir que reveste as características de um contrato de adesão, contendo um conjunto de cláusulas contratuais gerais, pelo que deve ficar sob a alçada do RCCG.
VII. O mero decurso do tempo ocorrido entre a data do incumprimento do contrato de financiamento, e a data da interpelação, declaração de vencimento antecipado e resolução do contrato, e ainda a data aposta na livrança como de vencimento, não chega para criar no agente qualquer expetativa, seja pela positiva, seja pela negativa, pelo que não incorre o credor em abuso de direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (com consulta eletrónica dos autos principais).

O “Banco 1..., S.A.” na qualidade de exequente deu entrada de requerimento executivo em 14/7/2021, figurando como executados AA e BB, a aqui embargante e recorrente, alegando que

“…Em virtude de operação bancária realizada no exercício da sua atividade, o banco exequente é dono e legítimo portador de uma livrança, no valor de € 42.175,18, vencida em 18.06.2021, subscrita por AA, para caução de um contrato de financiamento celebrado com o mesmo em 30.07.2010, no valor de euros 30.000, a ser pago em 144 meses, conforme condições do mesmo que aqui se dão por reproduzidas, contrato este que foi igualmente assinado pela executada na qualidade de garante - cf. doc. ... e .... Acresce que, nos termos do referido contrato de financiamento e da escritura pública outorgada na mesma data (30.07.2010), no cartório notarial CC, sito em ..., a também executada BB constituiu a favor do banco exequente hipoteca sobre o seguinte imóvel (cf. escritura pública que ora se junta e cujo conteúdo se dá por reproduzido - doc. ...): - prédio misto sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...52º e na matriz predial rústica sob o artigo ...12º, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...43... hipoteca foi constituída para garantir as obrigações emergentes do referido contrato de financiamento, celebrado na mesma data entre o banco reclamante e o executado AA, até ao montante máximo de € 41.100,00 - cf. docs. ... e .... A hipoteca encontra-se definitivamente registada a favor do banco exequente na competente Conservatória do Registo Predial ... sob a apresentação 7221, de 30.07.2010, conforme resulta da certidão permanente do registo predial que se junta sob o doc. .... Isto posto, em virtude do incumprimento das obrigações decorrentes do aludido contrato de financiamento, o banco exequente promoveu pelo preenchimento da respectiva livrança caução, pelo valor acima indicado, com vencimento em 18.06.2021. Apresentada a pagamento a livrança subscrita pelo executado, livrança esta dada como garantia de pagamento do contrato de financiamento, na data do vencimento da mesma, não foi esta paga então, nem posteriormente, apesar de o executado ter sido interpelado para o fazer. O crédito titulado na referida livrança cabe na previsão da escritura de hipoteca supra aludida, estando dessa forma por ela abrangida. E o seu montante cabe nos limites que a mesma assegura. Daí que o crédito exequendo goze da garantia real que lhe advém da constituição e registo da mencionada hipoteca (art. 686º do Cód. Civil). Acresce que, o banco exequente pretende exercer o direito previsto no n.º 2 do artigo 54º do Código de Processo Civil contra BB, terceira à relação subjacente, mas prestadora da garantia de hipoteca quanto ao bem imóvel supra identificado. Razão por que a demanda, na qualidade de executada, conferindo-lhe os fundamentos invocados. Ao capital acrescem juros de mora, contados desde a data de vencimento da livrança, à taxa legal de 4%, até efetivo e integral pagamento. Apresentada a pagamento a livrança subscrita pelo executado, livrança esta dada como garantia de pagamento do contrato de financiamento, na data do vencimento da mesma, não foi esta paga então, nem posteriormente, apesar de o executado ter sido interpelado para o fazer. O crédito titulado na referida livrança cabe na previsão da escritura de hipoteca supra aludida, estando dessa forma por ela abrangida. E o seu montante cabe nos limites que a mesma assegura. (…)”.
Juntou:
-livrança, apenas constituída pela frente, onde consta (além do mais) como data de emissão 30/7/2010, e de vencimento 18/6/2021; o valor de 42.175,18, a menção de AA como subscritor;
-contrato de financiamento e contrato de crédito, assinados pelos executados, com data de 30/7/2010;
-escritura pública de constituição de hipoteca da mesma data, onde consta além do mais que a hipoteca é materialmente acessória e constituída simultaneamente com o contato de financiamento;
-informação relativa ao registo da hipoteca.
*
A Executada/Embargante BB veio deduzir oposição alegando

-a nulidade de citação (…);
-pedido de suspensão da execução/venda do bem penhorado (…);
-face á suposta data do incumprimento do contrato que a exequente não alega mas que tem de ter ocorrido certamente mais de 3 anos antes da data colocada na livrança como de vencimento, pelo que quando foi preenchida a livrança já se encontrava prescrita face ao artº. 70º da LULL;
-invoca o artigo 18º do contrato de crédito, apela à boa fé no sentido de que a livrança deve ser preenchida com a data de vencimento do incumprimento do contrato, e invoca o artº. 300º do C.C. no sentido de que entender que não há prazo para o preenchimento conduz á sua nulidade face á possibilidade de prorrogação eterna do prazo de prescrição;
-alega ainda que protelar, pelo menos por 7 anos, para preencher a livrança, correndo juros a taxas elevadas, constitui abuso de direito;
-alega a violação do regime das cláusulas contratuais gerais –violação da boa fé e da proibição de obrigações duradouras e perpétuas ou dependentes apenas da vontade de quem as predisponha;
-face ao facto da livrança se destinar a garantir o cumprimento de contrato de crédito reportado a quotas de amortização de capital pagáveis com os juros e/ou prestações periodicamente renováveis , as respetivas obrigações prescrevem no prazo de 5 anos face às alíneas e) e g) do artº. 310º do C.C.;
-os juros com mais de 5 anos já prescreveram face á alínea d) do artº. 310º do C.C., e bem como face ao artº. 693º, nº. 2, do C.C., considerando que a data de vencimento é sempre anterior a agosto de 2014, e que a hipoteca garante apenas 3 anos de juros e que estes prescrevem no prazo de 5 anos, os mesmos encontram-se prescritos.

Concluiu pela procedência da oposição pedindo: (…)
“3 – Declarar a prescrição do título executivo Livrança, nos termos
do artigo 70.º, da LULL.
4 - Declarar a nulidade da cláusula 18 do contrato de crédito por
violação do disposto no artigo 300.º, CC e artigo 12.º, RCCG. Sem
prescindir,
5 – Declarar a violação do pacto de preenchimento da Livrança, por
não ter sido aposto como data de vencimento a data de incumprimento.
Sem prescindir,
6 – Declarar a prescrição da relação subjacente, nos termos das al.s
e) e g), do artigo 310.º, do CC. Sem prescindir,
7 – Declara que se encontram prescritos os juros vencidos há mais
de 5 anos, nos termos da al. d), do artigo 310.º, do CC.”
*
A Exequente apresentou contestação aos embargos alegando, em síntese, que a Embargada aceita, expressamente, a confissão da dívida por parte da Embargada, na medida em que a mesma não nega que nos termos do contrato de financiamento e escritura outorgada em 30/07/2010, constituiu a favor do Banco Exequente hipoteca sobre o imóvel. Mais alega que em virtude de operação bancária realizada no exercício da sua atividade, o Banco exequente é dono e legítimo portador de uma livrança, no valor de € 42.175,18, vencida em 18.06.2021, subscrita por AA, para caução de um contrato de financiamento celebrado com o mesmo em 30.07.2010, no valor de € 30.000,00 a ser pago em 144 meses, contrato este que foi igualmente assinado pela Executada na qualidade de garante. Também alega que por não ter sido o contrato cumprido nos seus precisos termos, o Banco Exequente procedeu ao preenchimento da livrança entregue em branco, depois de ter procedido à interpelação e à resolução do contrato sem que a dívida tenha sido regularizada e face ao vencimento imediato do crédito, e por também a livrança não ter sido paga na data do seu vencimento nem posteriormente, o Banco 1... instaurou ação executiva com vista a ser ressarcido da quantia devida.
A interpelação da embargante deu-se por carta de 16/3/2021, sendo comunicado o incumprimento definitivo e a resolução do contrato. Mais comunicou  por carta de 27/5/2021 o preenchimento da livrança com data de vencimento de 18/6/2021
Reafirma que o preenchimento da livrança foi efetuado de acordo com o pacto de preenchimento, não se verificando nem abuso de direito por parte do Banco Exequente nem a
prescrição da obrigação cambiária nem dos juros. Mais alude ao artº. 781º do C.C., e afasta a aplicação das alíneas d), e) e g) do artº. 310º do C.C..
Concluiu pela improcedência das exceções invocadas pela Embargante improcedendo, por não provados, os embargos de executado deduzidos, prosseguindo a Execução os seus termos até final.
Além do que já constava dos autos, juntou as cartas a que se refere na peça.
*
Foi apreciada e julgada improcedente a nulidade da citação por despacho proferido nos autos principais de execução em 25/03/2022, junto sob ref.ª...91, transitado em julgado.

Elaborou-se o despacho saneador, fixou-se à ação o valor de € 42.175,18, determinou-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas de prova, deste modo:
1) Apurar da nulidade de citação.
2) Apurar a data do alegado incumprimento para se apreciar a exceção da prescrição do título.
3) Apurar da alegada nulidade da cláusula 18.ª do contrato subjacente à livrança.
4) Apurar se ocorreu preenchimento abusivo da livrança dada à execução.
5) Apurar se ocorreu abuso de direito por parte da Exequente.
6) Se se verifica prescrição da dívida exequenda.
7) Se ocorreu prescrição de juros.

Mais foi julgado procedente o pedido de suspensão de venda do imóvel.
*
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou improcedente, por não provada, a presente oposição à execução, através de embargos de executado e, em consequência, determinou o prosseguimento dos autos principais de execução.
Mais atribuiu à embargante/executada as custas devidas.
*
Inconformada, a embargante/executada apresentou recurso, terminando as suas alegações com as seguintes

- CONCLUSÕES –(que se reproduzem)

I. A Sentença em crise é nula, nos termos das al.s b), c) e d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC,
II. Conquanto não se pronunciou quanto à alegada nulidade da cláusula 18 do contrato de crédito por violação do disposto no artigo 300.º, CC e artigo 12.º, RCCG;
III. Relativamente à violação do pacto de preenchimento, o Tribunal recorrido, ao contrário do que lhe competia, não toma decisão sobre este pedido e não usa de qualquer fundamentação para concluir pela ausência de prova quanto ao preenchimento abusivo.
IV. Apesar da prova produzida quanto à data de incumprimento – 30/08/2011 -sem qualquer fundamentação cabal, o Tribunal acaba a concluir que se mostra correta a data de vencimento da livrança aposta pela Exequente –18/06/2021.
V. Desconsiderando por completo não apenas a alegada nulidade da cláusula 18.ª, como toda a argumentação esgrimida nos Embargos quanto a esta matéria – com o devido respeito, feita uma leitura atenta da douta Sentença, parece que os Embargos foram absolutamente ignorados.
VI. O Tribunal, ao contrário do que é sua obrigação, não fundamenta o motivo pelo qual considera válida a data aposta pela Exequente como seja a de vencimento da Livrança.
VII. Acresce a isto, que o Tribunal não adianta qualquer fundamentação para considerar que, não estando prescrita a obrigação cartular, também não se encontra prescrita a obrigação principal ou relação subjacente.
VIII. De igual sorte, deixa por responder a questão relativa aos juros, atento o disposto no n.º 2, do artigo 693.º, do Código Civil, que dispõem que a hipoteca nunca abrange juros relativos a mais de 3 anos.
IX. Como resulta da Sentença em crise, a testemunha arrolada pela Exequente refere que o Executado deixou de pagar a 30/08/2011 e que o último contacto com a Executada foi a 02/12/2012.
X. Por sua vez, a Exequente, por requerimento datado de 12/08/2022 juntou aos autos carta datada de 16 de março de 2020 onde refere que o não pagamento se verifica desde 30/08/2011.
XI. Assim, o Tribunal a quo devia ter dado como provado que: Se verificou o incumprimento do contrato de crédito a 30/08/2011. Facto provado que deve ser adicionado.
XII. Por sua vez, deve ser aletrado o facto provado A), devendo contar que a data de vencimento da Livrança é de 30/08/2011 e não 18/06/2021.
XIII. Por igual motivo, deve ser alterado o facto provado G), dando-se como provado que o vencimento antecipado se deu a 30/08/2011 e não a 16/03/2020.
XIV. A relação subjacente à emissão da Livrança é um contrato de financiamento celebrado a 30 de julho de 2010, a ser pago 144 em prestações mensais iguais e sucessivas de capital e juros.
XV. Face à prova validamente produzida, não restam dúvidas que o incumprimento do contrato se deu a 30/08/2011.
XVI. Destarte, nos termos do disposto, além do mais, no n.º 1, do artigo 306.º, do CC, o prazo de prescrição começou a correr a 30 de agosto de 2011, data em que a Exequente podia, querendo, exercer o seu direito.
XVII. Dado que estamos perante “[…] quotas de amortização do capital pagáveis com os juros” e/ou “[…] prestações periodicamente renováveis,” nos termos das al.s e) e g), do artigo 310.º, as mesmas prescrevem no prazo de 5 anos.
XVIII. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2022, de 22 de setembro em causa fixou jurisprudência no seguinte sentido:
“I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.
II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.”
XIX. Da Jurisprudência fixada decorre que o termo a quo da prescrição se verificou a 30/08/2011, data em que se verifica o incumprimento definitivo.
XX. Destarte, tendo a execução dado entrada a 14/07/2021, é bom de ver que se verifica a prescrição prevista na al. e), do artigo 310.º, do CC, conquanto decorreram mais de 5 anos sobre o incumprimento.
XXI. Como sobejamente alegado supra, quando a Exequente preencheu a Livrança, há muito que o crédito que esta visava garantir se encontrava prescrito.
XXII. Donde resulta que o preenchimento da Livrança depois de verificada a prescrição da relação subjacente é manifestamente abusivo, desrespeitando por completo o pacto de preenchimento, conquanto, repete-se, a Livrança foi sacada em branco para garantia do bom pagamento do crédito.
XXIII. Acresce que, nos termos do artigo 70.º, ex vi do artigo 77.º, da Lei Uniforme da Letras e Livranças (LULL), as ações contra os subscritores prescrevem no prazo de três anos após o seu vencimento.
XXIV. A Livrança dada à Execução foi emitida em branco, portanto sem valor e sem data de vencimento, como resulta dos documentos juntos com o Requerimento Executivo – cfr. artigo 10.º, da LULL.
XXV. O incumprimento deu-se a 30/08/2011.
XXVI. Apesar disso, o Banco 1... apenas preencheu a Livrança e colocou a data de vencimento em 18/06/2021, mais de 3 anos após o alegado incumprimento do contrato de crédito que esteve na base da sua emissão.
XXVII. Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/06/2019, processo n.º 5046/16.4T8CBR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt, o Banco 1... devia, no respeito, além do mais, pelos princípios da boa-fé, ter aposto como data de vencimento a data de incumprimento do contrato, ou seja, 30/08/2011, e não qualquer outra.
XXVIII. Daqui decorre que quando o Banco 1.../Banco 1... preencheu a data de vencimento da Livrança, esta já se encontrava prescrita, por terem já decorrido os 3 anos previstos no artigo 70.º, da LULL.
XXIX. Resulta da cláusula 18 do contrato de crédito junto pela Exequente –contrato sujeito, além do mais, ao regime das Cláusula Contratuais Gerais -que o credor tinha o dever de preencher a livrança com uma data posterior ao do incumprimento.
XXX. Determina a boa-fé que a Livrança seja preenchida com data de vencimento do incumprimento do contrato, até por razões de segurança jurídica.
XXXI. Nos termos do artigo 300.º, do Código Civil (CC), “São nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos de prescrição ou a facilitar ou dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos.”
XXXII. Ora, salvo o devido respeito por diferente opinião, interpretar esta cláusula contratual no sentido de que o credor não tem qualquer prazo para preencher a Livrança assinada em branco, constitui uma clara violação da norma citada, culminando na sua nulidade, conquanto, dá a possibilidade de o credor prorrogar ad aeternum o prazo de prescrição.
XXXIII. O prazo de prescrição de um título cambiário é de 3 anos, mas, se considerarmos que o credor pode escolher de acordo com a sua vontade a data de vencimento, este pode prolongar até quando quiser o prazo de prescrição.
XXXIV. Tendo-se verificado o incumprimento a 30/08/2011 e a Exequente aposto uma data de 2021, não respeitou o pacto de preenchimento, tampouco, agiu de boa-fé - veja-se a este propósito o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/11/2005, processo n.º 8959/2005-6, disponível em www.dgsi.pt
XXXV. A Exequente preenche como data de vencimento 18 de junho de 2021, data muito posterior ao incumprimento, violando completamente o pacto de preenchimento.
XXXVI. Nem se diga, que a Executada não fez prova do preenchimento abusivo, como resulta da Sentença em crise.
XXXVII. O preenchimento abusivo resulta, desde logo, do facto de a Livrança ter sido preenchida 10 anos depois do incumprimento. E a Executada fez prova da data do incumprimento – facto que, aliás, devia ter sido alegado pela Exequente no seu requerimento executivo.
XXXVIII. Resulta ainda, do facto de ter sido preenchida depois de se verificar a prescrição da relação subjacente.
XXXIX. Não pode deixar de se considerar que, objetivamente, se verifica um abuso de direito quando o banco Exequente aguarda vários anos para preencher a data de vencimento da Livrança, fazendo com que corram juros a taxas de juros elevadas.
XL. Lê-se, a propósito, no artigo 334.º, do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
XLI. No caso dos autos verifica-se um abuso de direito na sua modalidade de supressio, que se traduz em “qualquer situação jurídica que não tendo sido exercida, em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa-fé” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Vol. IV, p. 313), ou seja, a supressio é, “no fundo, uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito” (op. cit., p. 323).
XLII. Não fora tal bastante, nos termos do artigo 15.º, do regime das Cláusulas Contratuais Gerais, constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (RCCG), “São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé.”
XLIII. Por sua vez, nos termos da al. j), do 18.º ex vi do artigo 20.º, RCCG, “São em absoluto proibidas, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que: Estabeleçam obrigações duradouras perpétuas ou cujo tempo de vigência dependa apenas da vontade de quem as predisponha.”
XLIV. Por força do disposto no artigo 12.º, do RCCG, “As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos.”
XLV. Face ao que supra sobejamente se alegou, verifica-se o preenchimento abusivo da Livrança, a obrigação cambiária encontra-se prescrita, nos termos do artigo 70.º, da LULL e, bem assim, a cláusula 18 do contrato de crédito junto aos autos é manifestamente proibida e, por via disso, nula, por clara violação dos princípios da boa-fé e, bem assim, por estabelecer uma obrigação perpétua ou cujo tempo de vigência depende apenas do Banco Exequente.
XLVI. Deste modo, a Exequente não tem qualquer título executivo para a presente execução.
XLVII. Nos termos da al. d), do já citado artigo 310.º, do CC, prescrevem no prazo de 5 anos os juros convencionais e legais.
XLVIII. Destarte, ainda que se entenda que a Livrança e/ou a relação cambiária não se encontram prescritas, o que se pondera apenas por dever de ofício, sempre se dirá que os juros com mais de 5 anos já prescreveram.
XLIX. Apesar da douta Sentença em crise nada adiantar quanto ao motivo pelo qual não prescreveram os juros, sempre se dirá que o termo a quo é, nos termos do artigo a data a partir da qual estes podem ser exigidos pelo credor, portanto, 30/08/2011.
L. Por sua vez, nos termos do n.º 2, do artigo 693.º, do CC, “Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos.”cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 12/06/2019, processo n.º 2029/17.0T8SLV-A.E1, disponível em www.dgsi.pt
LI. Destarte, considerando que a data de vencimento é de 30/08/2011, que a hipoteca apenas garante 3 anos de juros e que estes prescrevem no prazo de 5 anos, sempre se dirá que a Exequente não pode exigir da ora Embargante qualquer quantia a título de juros, conquanto se encontram prescritos.
LII. Com a Sentença em crise o Tribunal a quo violou as normas contidas nos artigos 615.º, al.s b), c) e d), do CPC, 10.º, 33.º e ss. e 70.º, da LULL, artigos 300.º 302.º, n.º 2, 310.º, al.s d), e) e g), 334.º e n.º 2, do artigo 693.º, do CC, artigos 12.º, 15.º e 18.º, al. j), do RCCG.”

E pede:
“…deve ser declarado procedente o presente Recurso e, consequentemente:
1 – Declara-se a nulidade da Sentença, por violação do disposto nas al.s b), c) e d), do artigo 615.º, do CPC;
2 – Alterar a matéria de facto nos termos requeridos, ou seja, Adicionar aos factos provados o seguinte: Se verificou o incumprimento do contrato de crédito a 30/08/2011.
Alterado o facto provado A), devendo contar que a data de vencimento da Livrança é de 30/08/2011 e não 18/06/2021.
Alterado o facto provado G), dando-se como provado que o vencimento antecipado se deu a 30/08/2011 e não a 16/03/2020.
3 – Declarar a prescrição da relação subjacente, nos termos das al.s e) e g), do artigo 310.º, do CC e do AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2022, de 22 de setembro.
4 – Declarar a prescrição do título executivo Livrança, nos termos do artigo 70.º, da LULL.
5 - Declarar a nulidade da cláusula 18 do contrato de crédito por violação do disposto no artigo 300.º, CC e artigo 12.º, RCCG.

Sem prescindir,
6 – Declarar a violação do pacto de preenchimento da Livrança, por não ter sido aposto como data de vencimento a data de incumprimento. Sem prescindir,
7 – Declara que se encontram prescritos os juros vencidos há mais de 5 anos, nos termos da al. d), do artigo 310.º, do CC.”
*
A embargada/exequente apresentou contra-alegações, pugnando pela negação de provimento ao recurso, com a manutenção da sentença proferida.
*
O recurso de apelação foi admitido com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Mais foi no mesmo despacho dito, a propósito das nulidades invocadas no recurso: “No caso que ora nos ocupa a recorrente invoca que a sentença proferida enferma das nulidades previstas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, sustentando tal nulidade no facto de discordar dos fundamentos usados pelo Tribunal, mas também invoca a alegada falta de fundamentos que justificam a decisão.
Compulsado o teor da sentença proferida nos autos, verificamos que o Tribunal fez constar que a sua convicção para dar como provados determinados factos assentou “(…) A factualidade que supra foi dada como provada e que entendemos necessária para apreciação da questão que divide as partes na presente demanda resulta da ponderação efetuada quanto à prova produzida nos autos, designadamente teve-se em consideração o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente o teor da livrança oferecida como título executivo nos autos principais de execução, o contrato subjacente, escritura pública, certidão predial, cartas juntas aos autos com a contestação aos embargos e o depoimento da testemunha oferecida pela Exequente que confirmou apesar do Executado AA ter deixado de cumprir o contrato em 30/08/2011, houve contactos com os Executados, sendo o último contacto telefónico efetuado com a Executada em 02/12/2012, momento em que a Embargante foi informada de que o acordo celebrado com o Executado AA não tinha sido cumprido. Referiu ainda esta testemunha que a carta registada a considerar o vencimento antecipado foi remetida à Executada/Embargante em 16/03/2020. O predito permitiu ao tribunal formar a sua convicção nos moldes sobreditos”.
Por outro lado, tendo em consideração que resulta da sentença, no seu todo, que o Tribunal valorou e teve em consideração o título executivo – uma livrança – e a relação cambiária, assim como resulta que foi nesse pressuposto que desenvolveu o raciocínio e concluiu nos termos aí melhor descritos.
Parece-nos que o Tribunal fundamentou de facto e de direito as opções efetuadas e retratadas na sentença proferida nos autos, não estando os fundamentos elencados em oposição com a sentença proferida, motivo pelo qual entendemos que não padece a sentença das nulidades invocadas.
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A executada/embargante, no recurso, interposto, invoca também a nulidade da sentença, prevista no art.615.º, alínea d) do CPC por, em seu entender, a sentença não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar, mais concretamente, quanto à nulidade da cláusula do contrato de crédito e quanto ao preenchimento abusivo da livrança.
No nosso modesto entendimento, e salvo sempre melhor opinião, parece-nos que não se verifica tal nulidade. (…)
Tendo em consideração o disposto nos arts. 660.º, n.º2 e 668.º, n.º 1, d), do CPC, há que ter em consideração a configuração que a exequente deu ao litígio, oferecendo nos autos, como título executivo, uma livrança, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções que sejam permitidas invocar à parte contrária.
Foi neste contexto que proferimos a sentença objeto de recurso.
Volvendo para o caso concreto, verificamos que o título dado à execução é um título de crédito, ou seja, uma livrança e não o contrato a ela subjacente.
Estamos, por isso, no âmbito de uma relação cambiária que é independente da relação subjacente.
E por ser assim, referimos na sentença sob recurso que “(…) Os títulos de crédito são coisas móveis e, como tal, objeto idóneo de direitos reais e suscetíveis de posse. A posse legitima o portador a exercer o direito cartular, seja ou não o portador o verdadeiro titular do documento. O Banco Exequente, na qualidade de portador de uma livrança, veio intentar ação executiva para pagamento de quantia certa. Nos termos do artigo 10.º, n.º5 do CPC “toda a execução tem por base um título executivo, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”. As livranças, tais como as letras de câmbio, são títulos de crédito, ou seja, “documentos que incorporam um direito literal e autónomo, que legitima o seu titular a exercê-lo e serve de suporte á sua circulação e mobilização” (Pedro Pais de Vasconcelos in Direito Comercial - Títulos de Crédito, AAFDL, 1990, pág. 3). São características dos títulos de crédito em geral a literalidade, autonomia, incorporação, legitimação (…).
Por termos entendido que, face à factualidade dada como provada, houve incumprimento do contrato, que o mesmo foi validamente resolvido e interpelados os obrigados cambiários para o pagamento e preenchimento da livrança e, por outro lado, não tendo a embargante logrado demonstrar, como lhe competia, o preenchimento abusivo da livrança, entendemos que, tendo em consideração que estamos perante uma obrigação cambiária, que não se verificava o instituto da prescrição de 3 anos, nenhum outra questão se impunha apreciar, razão pela qual, salvo melhor entendimento, entendemos que não se verifica a nulidade invocada, a qual se julga improcedente. (…)”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:
-a sentença é nula, e na afirmativa, em cada caso, se a nulidade pode ser suprida;
-procede a pretendida alteração da matéria de facto;
-a obrigação subjacente está prescrita;
-há violação do acordo de preenchimento;
-a cláusula 18º do contrato de financiamento é nula, seja por violação do artº. 300º do C.C., seja por violação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais;
-o banco incorreu em abuso de direito no preenchimento da livrança;
-a obrigação cambiária está prescrita;
-os juros estão prescritos ou sofrem doutra limitação quanto ao valor executado.
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III   FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Nota prévia: nas alíneas D) e F) refere-se a data de 16/3/2021, quando se queria referir 16/3/2020, o que se deve a lapso manifesto, como decorre da motivação dos factos apurados, que se baseou nas cartas juntas aos autos com a contestação e no depoimento da testemunha ouvida que “Referiu ainda esta testemunha que a carta registada a considerar o vencimento antecipado foi remetida à Executada/Embargante em 16/03/2020.” Por isso, procede-se à respetiva correção no local próprio.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria:

“Mostram-se provados os seguintes factos:
A) Em virtude de operação bancária realizada no exercício da sua atividade, o Banco Exequente é dono e legítimo portador de uma livrança no valor de 42.175,18€, que teve data de vencimento em 18/06/2021, subscrita por AA para caução de um contrato de financiamento celebrado com o mesmo em 30/07/2010 no valor de 30.000€, a ser pago em 144 meses, contrato esse que foi igualmente assinado pela Executada/Embargante como garante.
B) No referido contrato e escritura pública outorgada em 30/07/2010, no Cartório Notarial ..., a Executada/Embargante BB constituiu a favor do Banco Exequente hipoteca sobre o seguinte imóvel – prédio misto sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art....52º e na matriz predial rústica sob o art....12.º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...43.
C) A dita hipoteca foi constituída para garantir as obrigações emergentes do referido contrato de financiamento celebrado na mesma data entre o Banco Exequente e o Executado AA até ao montante máximo de 41.000,00€, encontrando-se registada pela Ap. ...21, de 30.07.2010.
D) O Executado foi interpelado para proceder ao pagamento por carta datada de 16 de março de 2020, o Banco Mutuário comunicou o incumprimento definitivo e a resolução.
E) Em virtude do incumprimento das obrigações decorrentes do aludido contrato de financiamento, o Banco Exequente promoveu pelo preenchimento da respetiva livrança caução, contudo, apresentada a pagamento, na data do vencimento da mesma, não foi esta paga nem nessa data nem posteriormente.
F) Os Executados foram interpelados para procederem ao pagamento por carta datada de 16 de março de 2020 na qual o Banco Mutuário comunicou o incumprimento definitivo e a resolução.
G) Não tendo os Executados procedido ao pagamento da divida, por carta data de 27 maio de 2021 o Banco comunicou o preenchimento da livrança apondo-lhe como data de vencimento o dia 18/06/2021, sendo certo que a data de resolução coincide com a data de vencimento antecipado, ou seja, em 16/03/2020.
H) Por a livrança não ter sido paga na data do seu vencimento nem posteriormente, o Banco 1... instaurou, em 14/07/2021 a presente ação executiva.
I) Na cláusula 18.º do contrato em causa nos autos pode ler-se o seguinte: “1. O Banco 1... poderá acionar ou descontar a livrança que lhe é entregue pelo cliente no caso de incumprimento das obrigações assumidas no contrato. 2. O Banco 1... fica autorizado pelo Cliente e pelos avalistas, caso existam, a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do contrato.”.
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IV   MÉRITO DO RECURSO.
-NULIDADE DE SENTENÇA.

A recorrente sustenta a nulidade da decisão recorrida com base nas alíneas b), c) e d), do n.º 1, do artº. 615º, do C.P.C.. E invoca a s seguintes razões:
.não se pronunciou quanto à alegada nulidade da cláusula 18 do contrato de crédito por violação do disposto no artº. 300º, C.C. e artº 12º, RCCG;
.não toma decisão sobre o pedido de violação do pacto de preenchimento, e não usa de qualquer fundamentação para concluir pela ausência de prova quanto ao preenchimento abusivo;
.apesar da prova produzida quanto à data de incumprimento – 30/08/2011 -sem qualquer fundamentação cabal, acaba a concluir que se mostra correta a data de vencimento da livrança aposta pela Exequente –18/06/2021;
.não fundamenta o motivo pelo qual considera válida a data aposta pela Exequente como seja a de vencimento da Livrança;
.não adianta qualquer fundamentação para considerar que, não estando prescrita a obrigação cartular, também não se encontra prescrita a obrigação principal ou relação subjacente;
.deixa por responder a questão relativa aos juros, atento o disposto no n.º 2, do artigo 693.º, do Código Civil, que dispõem que a hipoteca nunca abrange juros relativos a mais de 3 anos.
No mais, dado caráter vago do alegado (“Desconsiderando por completo não apenas a alegada nulidade da cláusula 18.ª, como toda a argumentação esgrimida nos Embargos quanto a esta matéria – com o devido respeito, feita uma leitura atenta da douta Sentença, parece que os Embargos foram absolutamente ignorados”), nada mais de pertinente aduz.
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Enunciemos o regime aplicável.

Dispõe o art. 615º, nº 1, C.P.C. que é nula a sentença quando (destaque a negrito nosso):

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal “supra” citado; designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito –cfr. acórdãos desta Relação de 4/10/2018, relatoras Eugénia Cunha e Maria João Matos, respetivamente, publicados em www.dgsi.pt (como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte).
Passando para as nulidades em concreto invocadas, o vício da sentença decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º do C.P.C., designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença/acórdão.
Da conjugação das normas decorre que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras (cfr. Ac. desta Relação de 5/4/2018 (relatora Vera Sottomayor).
Porém questões não são factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9/2/2012 (relator Oliveira Mendes), segundo o qual “A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.”
Dúvidas não há porém que o tribunal só pode apreciar questões que lhe forem suscitadas pelas partes (salvo as que forem de conhecimento oficioso e que o Tribunal entenda suscitar –cfr. Ac. do STJ de 20/3/2014, relatora Maria dos Prazeres Beleza) sob pena de, assim não sendo, cometer a nulidade no segmento inverso, ou seja, conhece de questões que não foram suscitadas.
De salientar que, conforme dispõe o artº. 5.º, nº. 3, do C.P.C., o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito.
No nosso processo civil vigora o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objeto do litígio (a pretensão formulada pelo autor que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objeto de tutela). Por outro lado, às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (salvo as situações do artº. 5º, nºs. 2 e 3, do C.P.C.) -tal entronca ainda no princípio do dispositivo –artºs. 3º, nº. 1, e 5º, nº. 1, C.P.C..
Como diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pag 362) “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e)”. No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por, como se viu, o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
Nesse sentido, o Tribunal tem de conhecer de “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, 2º, 2ª edição, pág. 704).
Dúvidas também não há atualmente que para estarmos perante esta nulidade é necessário que ocorra omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada, e não perante uma fundamentação meramente deficiente.
Esta última afirmação remete-nos para a apreciação da nulidade prevista na alínea b). Nesses casos, o juiz decidiu a questão mas não apresentou os respetivos fundamentos.
A falta de fundamentação de facto e de direito que justificam a decisão foi alvo de causa específica de nulidade –alínea b).
O dever de fundamentação assenta no principio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (artº. 205º, nº. 1, da Constituição da República Portuguesa). A sanção para o desrespeito desse dever é a cominação de nulidade.
A fundamentação tem de ser factual e jurídica. E de acordo com o nº. 2 do citado artº. 154º, não pode ser através da mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou oposição em apreço, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Também neste vício, pode divergir-se se a falta absoluta constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º – “a ausência total de fundamentos de direito e de facto” conforme refere José Alberto dos Reis “Código V cit., pag. 140, e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª. ed., 1985, pags. 670 a 672; ou se a integra uma fundamentação apenas incompleta ou insuficiente.
Analisa criticamente estas posições o Prof. Rui Pinto no texto “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), 2019, https://www.linkedin.com.), publicado na Revista “Julgar” online de maio de 2020.
Conclui o autor do texto a sua posição no sentido que (…) há que separar de um lado a sentença ou despacho não estarem fundamentados (de facto ou de direito), no todo ou em parte, e, do outro, a fundamentação estar presente, mas ser inadequada – não apresentar o mérito demonstrativo – para a parte dispositiva A falta de fundamentação a que se refere a al. b) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre, seja quando não há nenhuma fundamentação (de direito ou de facto) da parte dispositiva, seja quando falta, em termos funcionais e efetivos, algum segmento da fundamentação exigida pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º. Trata-se, em ambos os casos, de um vício grosseiro, grave e manifesto, como é próprio dos vícios arrolados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º. Um entendimento conforme ao artigo 205.º, n.º 1, da Constituição impõe esta interpretação de modo a garantir sempre um mínimo de impugnação de tipo de reclamatório, para as sentenças que não admitam recurso ordinário. Portanto, a falta de fundamentação não tem de ser total, pelo que subscrevemos na integra a conclusão do ac. RG 18-1-2018/Proc. 75/16.0T8VRL.G1 (ANTÓNIO BARROCA PENHA), na esteira do ac. RC 17-4-2012/Proc. 1483/09.9TBTMR.C1 (CARLOS GIL)42 , de que “ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial”, assim, “não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação” (STJ 2-3-2011/Proc. 161/05.2TBPRD.P1.S1 (SÉRGIO POÇAS). Também “a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório”, 43 Nele se julgou que à “falta de fundamentação de facto e de direito deve ser equiparada a fundamentação que exponha as razões, de facto e de direito, para a decisão de modo incompleto, tornando deste modo a decisão incompreensível e não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”.
Mas também se defende e decide que situação diversa da falta de fundamentação, é a fundamentação existente não apresentar o mérito demonstrativo suficiente para justificar a parte dispositiva. Tal ocorre quando a fundamentação existe formalmente, mas padece de insuficiência, mediocridade ou erroneidade. Ora, uma coisa é a decisão não conter fundamentação e, outra, é “bem ou mal, o tribunal fundamenta[r] a decisão” (RP 11-1-2018/Proc. 2685/15.4T8MTS.P1 (FILIPE CAROÇO)). É como um tertium genus, “entre a fundamentação completa, total e indubitável e a falta de fundamentação” (TCAN 28-4-2016/Proc. 00385/08.0BEBRG (MÁRIO REBELO))45 . Aqui já não se trata de uma causa da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º, mas de uma causa de recurso, por erro de julgamento46 . 45 “Não é uma fundamentação completa e exaustiva, mas também não configura uma total falta de Fundamentação”, prossegue o mesmo acórdão. 46 STJ 2-6-2016/Proc. 781/11.6TBMTJ.L1.S1 (FERNANDA ISABEL PEREIRA).”
Nesta senda, para Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Processo Civil”, pag. 221) “…esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208.º, n.º 1 CRP e artigo 158.º, n.º 1 CPC) …o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível». No mesmo sentido, Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, pag. 669.
Dizia já Alberto dos Reis, no “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pag. 284, que “…a parte vencida carece de ser convencida, isto é, de conhecer as razões do seu insucesso, para que possa atacá-las por via de recurso, se quiser e puder recorrer. Mas não é esta a única justificação do preceito legal, pois que a exigência da motivação é aplicável mesmo às decisões de que não cabe recurso. Desde que o nosso sistema é o de legalidade, o juiz tem de demonstrar que decidiu em conformidade com a lei; tem, portanto, de interpretar a norma legal adequada e aplicá-la aos factos da causa. Este trabalho de interpretação e aplicação é da mais alta importância; é por via dele que se forma a jurisprudência e que esta se vai uniformizando e adaptando às novas condições e necessidades do meio social”.
Por último, o vício da alínea c). Disse Alberto dos Reis que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (...) É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz” (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pag. 151). Já Remédio Marques quanto à ambiguidade da sentença diz que esta “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”. Quanto à obscuridade, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença” (“Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3ª. edição, pag. 667).
Sintetizando, “obscuro” é o que não é compreensível; “ambíguo” é o que é suscetível de diferentes interpretações, que podem inclusive ter sentidos opostos.
“Em qualquer caso, fica o destinatário da decisão sem saber ao certo o que efetivamente se decidiu, ou quis decidir. Mas não é qualquer obscuridade, ou ambiguidade, que é sancionada com a nulidade do acórdão, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível” –cfr. Ac. desta Relação da Exmª Srª Desembargadora Drª Rosália Cunha, no processo 324/19.3T8BRG.G1.
A oposição ente os fundamentos e a decisão reporta-se a uma contradição lógica. Ou seja, toda a argumentação vai num sentido e a conclusão é oposta ou divergente deste. A oposição entre os fundamentos e a decisão consubstancia um vício da estrutura da decisão, o qual se manifesta na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso –cfr. o Ac. do STJ de 02/06/2016 (relatora Fernanda Isabel Pereira). Ocorre tal nulidade quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente –cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pags. 737 e 738, e Ac. da Rel. do Porto de 2/5/2016 (relator Correia Pinto).
Também esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos artº. 154º e 607º, nºs. 3 e 4, C.P.C.; e, por outro lado, pelo facto da sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor), não ocorrendo essa nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável, ou se errou na indagação de tal norma ou da sua interpretação. –cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 9/7/2014 (relator Pedro Brighton).
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Aplicando ao caso, não vem concretizado o vício desta última alínea mencionada. Nada consta das alegações de recurso que o sustente. Situação diversa da nulidade é a discordância com o decidido e com o percurso lógico (e sequencial) que a tal conduziu. Sem mais, improcede essa argumentação.
Quanto aos restantes, uma vez que a sua pertinência nos remete para a apreciação do próprio mérito do recurso, serão analisadas caso a caso, aquando da (re)apreciação da respetiva matéria.
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-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Pretende a recorrente que se altere a factualidade a ter em conta. Pretende desde logo que se adite um facto ao elenco dos que foram apurados: “Se verificou o incumprimento do contrato de crédito a 30/08/2011”. Para tanto invoca o depoimento da testemunha ouvida (uma vez que da sentença consta que disse que o Executado deixou de pagar a 30/08/2011 e que o último contacto com a Executada foi a 02/12/2012); bem como a carta datada de 16/3/2020, junta pela exequente por requerimento datado de 12/08/2022, onde refere que o não pagamento se verifica desde 30/08/2011.
Depois pretende que seja alterado o facto provado A), devendo constar que a data de vencimento da Livrança é de 30/08/2011 e não 18/06/2021. E que por igual motivo (?), deve ser alterado o facto provado G), dando-se como provado que o vencimento antecipado se deu a 30/08/2011 e não a 16/03/2020. Aduz que, em forma de conclusão, “A relação subjacente à emissão da Livrança é um contrato de financiamento celebrado a 30 de julho de 2010, a ser pago 144 em prestações mensais iguais e sucessivas de capital e juros. (…). Face à prova validamente produzida, não restam dúvidas que o incumprimento do contrato se deu a 30/08/2011.”
Ora, antes mesmo de verificarmos do cumprimento dos ónus previstos no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do C.P.C., vigente em matéria de impugnação da factualidade, cremos ser de afastar em parte a visão da questão por esse prisma.
Na verdade, quando se diz na alínea A) dos factos apurados que a livrança “teve data de vencimento em 18/06/2021 “ tal resulta da constatação do próprio título junto aos autos executivos, conforme decorre da motivação apresentada pelo Tribunal de 1ª instância (“A factualidade que supra foi dada como provada e que entendemos necessária para apreciação da questão que divide as partes na presente demanda resulta da ponderação efetuada quanto à prova produzida nos autos, designadamente teve-se em consideração o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente o teor da livrança oferecida como título executivo nos autos principais de execução…”).
Independentemente das questões levantadas em sede de direito quanto à oposição dessa data, o que é facto é que foi essa a data inscrita na livrança como sendo a data de vencimento do título e é esse o sentido desta alínea –o que, factualmente, é distinto da data de incumprimento, essa sim que a recorrente pretende introduzir na matéria de facto.
Portanto, tudo se resume em saber se há sustento para a introdução nos factos assentes da data a que se reporta o alegado incumprimento do contrato de financiamento ...11.
Ora, independentemente da relevância dessa introdução da data de 30/8/2011, como se verá em sede de direito, mas porque a factualidade a considerar deve atender a todas as possíveis integrações jurídicas, cremos que se justifica apreciar a situação colocada pela recorrente.
Também não restam dúvidas (e mais uma vez não vamos abordar a temática do cumprimento do artº. 640º, nºs. 1 e 2 citados) que o incumprimento do contrato se deu em 30/8/2011 –refere-o a exequente na carta citada pela recorrente, além da menção pela testemunha que consta da motivação do Tribunal recorrido. Esta data não foi alegada no requerimento executivo, mas face à defesa da recorrente em sede de requerimento de embargos (artigo 32º: “…o incumprimento contratual, a ter existido, aconteceu antes de agosto de 2014, conquanto o banco ainda se chamava Banco 1...…”), e à resposta da embargada por reporte ao documento que a acompanhou e em complemento do inicialmente invocado, cremos puder assentar, sem mais, que: “O contrato de financiamento foi incumprido em 30/8/2011.”, conforme reconhecido pela embargada, o que se acrescenta aos factos.
Relativamente à alínea G), deve ser eliminada a menção a final (“sendo certo que a data de resolução coincide com a data de vencimento antecipado, ou seja, em 16/03/2020”), já que tal encerra uma conclusão e não um facto.
Do artº. 607º, nº. 4, do C.P.C., decorre que o Tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, não devendo pronunciar-se nesse campo sobre pontos/alegações que contenham matéria conclusiva, irrelevante ou de direito, que não podem ser objeto de prova. A prova incide sobre factos –artºs. 341º do C.C. e 410º do C.P.C..
Por isso, se constar do elenco da matéria de facto na decisão final expressões conclusivas ou de direito (acima de todo estas), devem as mesmas ser consideradas não escritas.
A inclusão, na fundamentação de facto constante da sentença, de matéria de direito ou conclusiva configura uma deficiência da decisão, passível de apreciação oficiosa pelo Tribunal da Relação, de molde a sancionar como não escrito todo o enunciado que se revele conclusivo, contemplando com tal expressão toda a matéria que se reconduza à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum (Ac. STJ de 23/9/2009; relator Bravo Serra).
Em igual sentido, “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.” (Ac. do S.T.J. de 28-09-2017, relatora Fernanda Isabel Pereira).
Pelo exposto, a inclusão na fundamentação de facto constante da decisão sob recurso de matéria de direito ou conclusiva configura uma deficiência da mesma decisão, vício que é passível de ser conhecido, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal da Relação, conforme decorre do disposto no artº. 662º, nº. 2, c), do C.P.C..
Procede por isso parcialmente a impugnação da matéria de facto.
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-DECISÃO DE DIREITO.

Será no enquadramento jurídico que iremos introduzir, conforme o seu contexto, as nulidades de decisão invocadas.
A primeira questão prende-se com a cláusula 18 do contrato de financiamento, sua pretensa nulidade por ofensa do artº. 300º do C.C. e do artº. 12º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais.
Lida a sentença, é verdade que essa questão não foi apreciada, não teve qualquer tratamento. É também correto que essa matéria foi alegada na petição de embargos, pelo que, mesmo que fosse para dizer que não há factualidade que o sustente, tinha de ser apreciada. E caso o Tribunal estivesse perante factos que o justificasse, teria de conhecer oficiosamente a eventual violação do regime. De facto, para além da nulidade ser de conhecimento oficioso por força do artº. 286º do C.C., temos por adquirido que em conformidade com o disposto no artº. 6º da Diretiva 93/13/CEE, e da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (cfr., entre outros, o Acórdão de 21/02/2013, disponível in http//www.curia. europa.eu/- Jurisprudência do tribunal de Justiça), constitui dever dos tribunais nacionais suscitar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contratual –cfr. Ac. do STJ de 27/09/2016 (relator José Rainho).
Portanto, declarada a nulidade, passará a conhecer-se como impõe o artº. 665º, nº. 1, do C.P.C. (sem necessidade de contraditório pois a questão foi, como vimos, levantada na p.i. de embargos e por isso já foi objeto de contraditório), o que remetemos para momento ulterior e caso se justifique.
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A situação em apreço tem contornos muito semelhantes àquela que este coletivo tratou no acórdão proferido no processo 756/22.0T8VNF-A.G1, com data de 20/10/2022 (publicado na base de dados da dgsi). Por isso recorreremos muitas vezes ao seu texto.
Fazendo um breve enquadramento relativo ao que pode ser invocado na oposição à execução, e ao que pode ser invocado no caso concreto face ao(s) título(s) apresentado(s) e à relação que liga exequente e executada, temos como princípio decorrente do artº. 10º, nº. 5, do C.P.C., que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na obra citada, vol. 1º, 3ª Edição, na pag. 33), referem que “o título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (nº. 5), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (artº. 53º, nº. 1).
O objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação jurídica acertada no título (…). É também pelo título que se determina a quantum da prestação.”
Passando então para o título executivo, a execução só pode ter como título um dos que se encontram taxativamente elencados no artº. 703º, nº. 1, do C.P.C, sendo que nos termos da alínea c) os títulos de crédito o são, como são nos termos da alínea b) os documentos exarados ou autenticados por notário que importem a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação.
A exequente juntou aos autos uma livrança, mas juntou também aos autos um contrato de financiamento, figurando como garante a aqui recorrente e como garantia, além da livrança, a hipoteca do prédio já descrito nos autos, inscrito a favor da prestadora de garantia. Mostra-se junta a escritura pública de constituição da hipoteca. A hipoteca concretizada por escritura pública é materialmente acessória e constituída simultaneamente com o contrato de financiamento. E ainda a certidão relativa ao seu registo. A exequente alegou ainda a relação subjacente à emissão da livrança, nomeadamente a constituição da garantia. Não concordamos por isso com a visão do tribunal recorrido, que restringiu a alegação à obrigação cambiária.
Relativamente aos sujeitos da execução, o regime regra para se determinar a legitimidade das partes, como exequente e executado, reconduz-se a aferir quem no título figura respetivamente como credor e como devedor –artº. 53º, nº. 1, do C.P.C..
Fundando-se a execução numa livrança, em sede de oposição mediante embargos além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração –artº. 731º do C.P.C.- o que vale também para o caso de se fundar noutros títulos, como o que iremos ver mais à frente.
A livrança é um documento que reveste então natureza cambiária, pelo que teremos de recorrer à LULL (cfr. artº. 75º).
Este título de crédito tem como características a incorporação, literalidade, abstração e autonomia. Da abstração decorre que a relação cartular ou cambiária distingue-se da relação jurídica fundamental, subjacente ou causal. Apenas em determinadas circunstâncias será necessário o apelo à relação causal, bastando à partida e nomeadamente em sede executiva, a relação cambiária (que emerge diretamente do título), sendo o seu portador exequente, e executados os signatários, co-obrigados pelo título.
Por força da remissão do artº. 77º da LULL para o artº. 10º é admissível a livrança em branco. Sendo preenchida, passa a produzir os seus efeitos próprios, e o preenchimento há-de ser feito no respeito do acordo ou pacto de preenchimento; neste as partes estabelecem os termos do preenchimento, o modo como a livrança será completada, desde logo quanto ao seu montante e data de vencimento uma vez que, por norma, no momento da sua subscrição a dívida não se mostra vencida e apurada.
Como refere Ferrer Correia (“Lições de Direito Comercial”, Lex, Reprint, 1994, pags. 482-483), é o próprio artº. 10º da LULL a admitir (ao menos, implicitamente) que a letra (ou a livrança – cfr. artº. 77º, da LULL) possa ser emitida ou passada em branco, isto é, sem conter, desde logo, os requisitos essenciais previstos nos artºs. 1º (letra) e 75º (livrança), desde que a mesma venha a ser posteriormente preenchida nos termos fixados nesses mesmos artigos e respetivamente, passando então, após o preenchimento desses elementos, a produzir os efeitos próprios do título de crédito; “…pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se mostre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1º e 2º.”
E conforme Ac. do STJ de 25/5/2017 (relator Fonseca Ramos) “O pacto de preenchimento é o contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária.”
Assim vencida a obrigação causal e não cumprida, a livrança é preenchida e deve ser paga na data do vencimento.
Porem, a data de vencimento da dívida e a data de vencimento do título podem não coincidir –como será o caso dos autos.
E ainda reportando à generalidade dos casos mas também ao dos autos, a entrega de uma livrança em branco quanto ao seu valor e data de vencimento é uma prática usual na banca, nomeadamente quando está em causa o financiamento a sociedades, sendo correntemente chamada de livrança –garantia.
No caso dos autos temos também a alegação, como já fomos anunciando, da celebração da escritura pública de hipoteca, a qual complementa o título executivo principal de base – a livrança dada à execução. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo in “A Ação Executiva Anotada e Comentada”, pag 127), comentando o artº. 550º do C.P.C referem “No caso da alínea c) do nº 2, para que a execução possa seguir a forma sumária, apenas se exige que seja baseada em título extrajudicial respeitante a obrigação pecuniária vencida que haja sido garantida por hipoteca ou penhor. Se a hipoteca ou o penhor não resultarem diretamente do título dado à execução, será necessário demonstrar, logo no início do processo, a existência de conexão entre o título e a respetiva garantia”.
Clarifica-se e acrescenta-se que o contrato de financiamento/crédito junto mais não é do que um contrato de concessão de um mútuo/crédito, imediatamente facultado e de uma só vez, cujo valor está determinado, bem como as respetivas taxas de juro e comissões. E finalmente que foi junto com a contestação aos embargos as cartas relativas à declaração de vencimento antecipado.
Nenhum óbice há por isso à consideração da existência de título executivo bastante, face ao disposto no artº. 703º, nº. 1, b), e c) do C.P.C. –cfr. a propósito o Ac. da Rel. de Coimbra de 13/11/2018 (relatora Maria Teresa Albuquerque).
Sucede que a aqui embargante/recorrente não figura na livrança. Parece-nos, com todo o respeito, que o Tribunal recorrido incorreu em erro quando refere e trata a embargante/recorrente como obrigada cambiária. Não é assim. Estamos perante o terceiro dono do bem dado de garantia real, daí resultando a sua legitimidade passiva na execução –artº. 54º, nº. 2, C.P.C.. Veja-se o facto provado sob a alínea A).
Partilhamos a posição expressa no Ac. da Rel. de Coimbra de 9/11/2010 (relator Falcão de Magalhães), alias citado pela embargante: “Assente que os Opoentes são estranhos às relações cambiárias corporizadas nas letras dadas à execução, eles não deixam, todavia, de garantir, com o património hipotecado, a responsabilidade dos mencionados obrigados cambiários.
Ora, sempre que o dono da coisa hipotecada seja pessoa diferente do devedor - como sucede aqui -, é-lhe lícito opor ao credor, ainda que a eles tenha renunciado o devedor, os meios de defesa que este tiver contra o crédito, com exclusão das excepções que são recusadas ao fiador (cfr. art.º 698º, nº 1, do Código Civil).
Não obstante esta equiparação, não integral, é certo, porque ressalvada a exclusão referida na parte final do nº 1 do citado art.º 698º, não incluindo, também, as excepções que não respeitem, propriamente, ao crédito (v.g. os benefícios previstos nos art.ºs 637º e 638º, do CC), importa salientar que, enquanto que o fiador garante a dívida de modo pessoal, ou seja, com todo o seu património, o terceiro dador da hipoteca garante a dívida exclusivamente com os bens sobre os quais constitui hipoteca.
Assim, não sendo devedor daquele a favor do qual constituiu a hipoteca sobre determinado imóvel, pode o terceiro dador da hipoteca, opor ao credor, por força da apontada equiparação, além dos meios de defesa que lhe são próprios, aqueles que competem ao devedor (cfr. 637º, nº 1, do CC), nestes se incluindo a prescrição do direito cambiário contra a pessoa cuja responsabilidade garantiu com a hipoteca (art.ºs 303º, 304º, nº 1, 305º, nº 1, do CC e 70º da LULL).”
Não se discute que foi despoletado o motivo do preenchimento da livrança – o vencimento antecipado, a resolução contratual, a interpelação, o surgimento do direito de crédito da exequente, a execução da garantia.
Sucede que a embargante invocou, neste caso além da prescrição da obrigação cambiária, também a exceção de prescrição da obrigação principal ou relação subjacente. Dúvidas não há que o pode fazer –cfr. Antunes Varela, pag. 720 do “Código Civil Anotado”, Vol I, 4ª edição, que remete para a anotação ao artº. 637º, pags. 654 e 655, onde se diz “São meios de defesa próprios do fiador todos os que respeitam, á obrigação acessória, ou seja, ao negócio jurídico constitutivo da fiança e á relação dele nascida (…)”. Mas, além destes, o nº. 1 admite que o fiador invoque os que são próprios do devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador. Repete-se, em melhores termos, o que já se dispunha no artigo 854.º do Código Civil de 1867, que apenas aludia, impropriamente, às exceções extintivas da obrigação principal. Pode assim, por exemplo, o fiador invocar a prescrição da obrigação principal, a nulidade desta (com ressalva do disposto no artº. 632.º), a sua extinção, etc. (…)”.
Temos por isso que determinar qual das exceções opera em primeiro lugar e se uma prejudica ou absorve a outra.
Sabemos que, verificando-se a prescrição da obrigação cambiária, mas alegada a relação subjacente pelo exequente, o título de crédito passa a valer como quirógrafo e a obrigação continua a puder ser exigida –se contra a obrigação principal nenhuma exceção proceder –por todos, Ac. da Rel. do Porto de 8/11/2018 (relator Freitas Vieira).
Já no caso de se verificar a procedência de uma exceção, designadamente a prescrição, relativamente à obrigação que dá origem ao preenchimento do título de crédito, caso da livrança, este não pode manter-se –Ac. da Rel. de Lisboa de 22/3/2022 (relatora Cristina Silva Maximiano).
Temos de introduzir aqui a apreciação da nulidade invocada, por omissão de pronúncia, no que respeita à falta de apreciação desta questão. De facto, a decisão não apreciou esta matéria de exceção, alegada nos embargos, e, como vimos, ela deve preceder a verificação das questões que respeitam ou atingem a obrigação cambiária, não ficando por estas prejudicada.

Declarada a nulidade, ao abrigo do artº. 665º, nº. 1, do C.P.C., passamos a apreciar (sem necessidade de contraditório pois a questão foi, como vimos, levantada na p.i. de embargos e por isso já foi objeto de contraditório).
Antes de mais a consideração do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº. 6/2022 de 30/6/2022, publicado no DR nº. 184/2022, Série I de 2022-9-22:
I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação."
"II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas."
Esta posição já tinha sido por nós seguida antes da prolação do acórdão –acórdão proferido no processo nº. 8279/17...., proferido em 23/9/2021, publicado na base de dados da dgsi. Dispensamos por isso de ilustrar a nossa concordância com a sua fundamentação.
Aplicando ao caso, temos indubitavelmente um mútuo, liquidável em 144 prestações mensais. Temos assente que o seu incumprimento se verificou em 30/8/2011 (cfr. facto que acrescentamos). Temos assente que em 16/3/2020 foi comunicado o incumprimento, o vencimento antecipado e a resolução. Note-se que esta data não foi “contestada” pela embargante. A ação executiva foi proposta em 14/7/2021, como se assentou.
A exigibilidade de toda a divida nos termos do artº. 781º do C.C., se não for convencionada, resulta da aplicação da norma.
O prazo de 5 anos, contado da interpelação para cumprimento feita extrajudicialmente, data em que operou o vencimento antecipado, ou seja, 16/3/2020 –e não na perspetiva defendida pela recorrente, desde o incumprimento, posição que o AUJ também afastou-, e até à citação dos executados, como é fácil verificar, não ocorreu.
Improcede por isso a exceção de prescrição sob este prisma.
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O que está agora em causa é a data oposta na livrança e a exceção de prescrição da obrigação cambiária (e apenas desta -cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 25/1/2022, relator José Avelino Gonçalves). Matéria que, como já vimos, mantém pertinência e tem de ser (re)apreciada.
Verificou-se, é certo, desfasamento entre a data da verificação da condição para o surgimento do direito de crédito e a data do preenchimento da livrança e do seu vencimento; entre a data em que se verificou o incumprimento e a interpelação decorreram cerca de 8 anos e meio; a data de emissão e de vencimento da livrança dista quase 10 anos do incumprimento, e 1 ano e três meses da interpelação.
Isto posto, a questão a apreciar e prévia à apreciação da exceção de prescrição propriamente, prende-se com a existência ou não de um limite temporal ao preenchimento da livrança emitida em branco no que concerne àquelas datas.
A embargante invoca um preenchimento abusivo segundo as regras da boa fé, apelando ao instituto do abuso de direito, e não propriamente a violação do pacto.
Nesta matéria já não se poderá afirmar que o Tribunal recorrido não procedeu à sua apreciação, já que da decisão consta que “…até porque competia à Executada demonstrar, o que não logrou conseguir, que ocorreu um preenchimento abusivo da livrança e/ou abuso de direito. Com efeito, toda a conduta levada a cabo pelo Banco Exequente encontra legitimação face ao demonstrado nos autos, designadamente, tendo em consideração que se apurou que o Banco Exequente se limitou a preencher a livrança de acordo com os montantes em dívida, tendo por suporte as cláusulas contratuais que constam do contrato livremente assinado pelos intervenientes…”. Cremos também que não carece de fundamentação nos termos que supra expusemos como conducente à nulidade de sentença, já que se verifica um mínimo de sustento da posição consignada.
Improcede por isso a nulidade por falta de fundamentação.
Vejamos então se assim é, recorrendo mais uma vez ao nosso anterior acórdão sobre a matéria.
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Situando e iniciando as questões a apreciar: pode-se colocar em tese, o preenchimento abusivo do título quando desconforme com os acordos realizados, ou seja, quando desrespeite o acordo de preenchimento dos elementos em falta no momento da subscrição.
Nos autos não foi invocado qualquer outro acordo de preenchimento (ainda que tácito ou implícito e decorrente da relação fundamental –cfr. Ac. da Rel. do Porto de 7/1/2019, relator Jorge Seabra, e teses aí mencionadas quanto a essa possibilidade), para além do pacto que foi junta pela embargada.
A (alegação e) prova dos termos do preenchimento abusivo ou desconforme é ónus da embargante, como matéria de exceção, fundamentadora da prescrição –artº. 342º, nº. 2, C.C..
Como se decidiu e sumariou no Ac. desta Relação de 25/10/2018 (relatora Raquel Baptista Tavares), “I - A violação do pacto de preenchimento constitui facto modificativo ou extintivo do direito e o ónus da prova do preenchimento abusivo cabe ao obrigado cambiário, em conformidade com o disposto no artigo 342º n.º 2 do Código Civil.”
Conforme factos assentes, na cláusula 18.º do contrato em causa nos autos pode ler-se o seguinte: “1. O Banco 1... poderá acionar ou descontar a livrança que lhe é entregue pelo cliente no caso de incumprimento das obrigações assumidas no contrato. 2. O Banco 1... fica autorizado pelo Cliente e pelos avalistas, caso existam, a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do contrato.
Está por isso expressa a autorização dada pelo subscritor a completar o preenchimento da livrança, fixando-lhe a data de vencimento, que “só” terá de ser posterior ao vencimento da respetiva obrigação que garante.
Não está verdadeiramente em causa a violação desta cláusula enquanto fundamento de preenchimento abusivo, desconforme ou não autorizado. Está em causa se o seu preenchimento, nos termos em que o foi, encerra abuso de direito.
De qualquer modo, cabe introduzir aqui a sua interpretação, e a sua hipotética nulidade.
Quanto ao pacto e sua interpretação no que concerne especificamente à data a colocar na livrança, diz-se “data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida”, o que nos afasta da previsão de um limite temporal, nomeadamente “a favor” do subscritor.
Retomamos aqui o texto do nosso anterior acórdão “Na esteira de vários arestos (cfr. por todos os Acs. da Relação do Porto de 19/1/2015, 24/3/2015 e de 7/1/2019 que os cita e segue), “o incumprimento (…) é uma condição necessária para o preenchimento da livrança, nomeadamente quanto ao seu vencimento, mas não determinante, ou, porventura com mais clareza, verificado o incumprimento da relação subjacente o apelado podia mas não estava obrigado a preencher a livrança; para um declaratário normal colocado na posição do apelado, a declaração tem o sentido de o preenchimento da livrança poder ocorrer, verificado o incumprimento, quando se mostre necessário ao accionamento do título e tendo em vista a satisfação coactiva do respectivo crédito.”
Veja-se a propósito posição assumida no Ac. da Relação de Lisboa de 28/4/2022 (relator Pedro Martins).
Voltando ao Ac. do STJ de 7/6/2022, aí se refere que tem sido entendimento unânime da jurisprudência do Supremo Tribunal que o pacto de preenchimento está sujeito às regras que regem a interpretação e integração do negócio jurídico, previstas nos artºs. 236.º e segs. do C.C.. No caso ali tratado como no nosso, a recorrente não invoca a eventual violação do pacto de preenchimento. Em todo o caso, por se tratar de matéria de direito, importa afirmar que, atenta a factualidade alegada pelo recorrente e tendo por referência o texto do pacto de preenchimento, não existem quaisquer indícios de que a vontade, real ou hipotética, das partes tenha sido outra que não a constante no mencionado pacto. “Por outro lado, se é certo que a emissão de livranças em branco está relacionada com o objectivo de acautelar o credor cambiário quanto a flutuações no montante da dívida, data do seu incumprimento, possível demora em eventual negociação de dívida e definição do momento adequado para a sua cobrança coerciva, entende-se que a boa-fé não impõe a previsão de um limite temporal máximo para o preenchimento da livrança.
Assim, as partes, ao abrigo da autonomia privada, optaram por não acordar qualquer limite máximo para o preenchimento da livrança, não estando, assim, em causa o seu preenchimento abusivo stricto sensu, na vertente de violação do pacto de preenchimento.
Nas palavras do referido acórdão deste Supremo Tribunal de 21-04-2022, proferido no âmbito do processo n.º 3941/20.5T8STB-A.E1.S1:
“Não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data do vencimento e, não sendo estes impostos pela boa-fé (cfr. art. 762.º, n.º 2, do CC), o portador da livrança em branco é livre de a preencher em data que considerar conveniente”.
Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2020 (proc. n.º 7062/16.7T8LSB-A.S1), de 24-10-2019 (proc. n.º 6871/17.4T8VNF-A.G1.S1), não publicados, assim como os acórdãos de 24-10-2019 (proc. n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2) e de 16-06-2019 (proc. n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.”
Em tese poderia apelar-se à discrepância entre o prazo de prescrição ordinário de 20 anos (artº. 309º do C.C.) e o prazo de prescrição cambiária de 3 anos (artº. 70º, aplicável ex vi artº. 77º da LULL), que inculca a ideia de um exercício mais célere do direito emergente da obrigação cambiária, por reporte ao momento em que os eventos que despoletam o preenchimento do título se verificam –cfr. Carolina Cunha, “Manual de Letras e Livranças”, pags. 204 e segs..
Mas da lei não resulta de forma expressa um limite temporal ao preenchimento de um título em branco.”
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Recorre-se à violação do disposto nos artºs. 302º, 300º e 280º do C.C., como sustento de eventual nulidade.
Também é de rejeitar esse argumento.
O afastamento ou o protelamento do funcionamento das regras de prescrição não estão em causa; o que está em causa não é o seu afastamento, renúncia ou protelamento, é o momento do seu início, e o retardamento é em relação ao fundamento da ativação do título, sendo certo que durante esse tempo o devedor pode-se propor cumprir a obrigação. Veja-se a propósito e com mais profunda análise o Ac. desta Relação de 28/5/2020 (relator Joaquim Boavida).
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Aqui introduzimos a matéria que ficou por apreciar no Tribunal recorrido, e que respeita ao regime das cláusulas contratuais gerais -RCCG –DL nº. 446/85 de 25 de Outubro com as alterações introduzidas pelo DL nº. 220/95 de 31/01 e DL nº. 249/99 de 07/07, motivadas pela Diretiva Comunitária nº. 93/12/CEE do Conselho de 05/04 de 1993 –respeitando o princípio do contraditório, uma vez que a questão foi levantada em sede de embargos.
Tendo de se ponderar a aplicação do RCCG, tal seria apenas para rejeitar essa perspetiva, como vamos expor.
Cabia à embargante alegar e provar que estamos perante um contrato de adesão, e concretamente abarcando aquela cláusula 18º.
Conforme se analisou e sumariou no Ac. da Relação do Porto de 17/3/2016 (relator Aristides Rodrigues de Almeida) - A natureza de adesão de um contrato ou de uma contratação não pode ser afirmada, em regra, em face do mero texto do contrato, sendo necessário que a parte que pretende beneficiar do regime jurídico correspondente alegue factos destinados a caracterizar o contrato como contrato de adesão, só então recaindo sobre a parte que se pretende fazer valer do documento os ónus de alegação e prova previstos no RCCG.
Invoca a recorrente os artºs. 15º, e 18º j) ex vi 20º do diploma.
Decorre do artº. 1º do diploma que: “1. Que as cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma. 2. O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
Decorre do artº. 2º que: “O artigo anterior abrange, salvo disposição em contrário, todas as cláusulas contratuais gerais, independentemente da forma da sua comunicação ao público, da extensão que assumam ou que venham a apresentar nos contratos a que se destinem, do conteúdo que as informe ou de terem sido elaboradas pelo proponente, pelo destinatário ou por terceiros.”
Mário Júlio de Almeida Costa (“Direito das Obrigações”, pag. 241 da 9ª edição) refere que no âmbito deste regime integra-se a regulamentação das típicas cláusulas contratuais gerais, bem como, a proteção do destinatário perante as cláusulas relativas a contratos individualizados, ou seja, tão só elaborados pelo proponente para aquela situação singular e cujo conteúdo a contraparte não pode influenciar.
No caso sub judice, analisado o contrato que acompanha e integra o financiamento, trata-se de um daqueles casos em que tal basta para que não restem dúvidas de que se trata de uma minuta elaborada pelo banco e que se aplica/dirige a um conjunto indeterminado de situações, devidamente adaptada a sua leitura a cada caso e nomeadamente ao caso concreto, pelo que reveste as características de um contrato de adesão. Contém por isso um conjunto de cláusulas contratuais gerais, pelo que deve ficar sob a alçada do RCCG.
A inclusão de cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares se contrárias à boa-fé determina a nulidade dessas cláusulas, conforme artº. 15º, conjugado com o artº. 12º e 24º do diploma. Para além dessa regra geral, a lei prevê no artº. 18º um conjunto de cláusulas absolutamente proibidas, desde logo e conforme alínea j) as que “Estabeleçam obrigações duradouras perpétuas ou cujo tempo de vigência dependa apenas da vontade de quem as predisponha;”.
Face ao que já vimos dizendo a propósito doutras vicissitudes apontadas, e ainda conforme se decidiu no Ac. da Rel. do Porto de 6/9/2021 (relatora Ana Paula Amorim), ”…a cláusula em apreço não prevê uma obrigação perpétua. A obrigação cambiária mostra-se delimitada pela relação causal e pelas suas vicissitudes e o preenchimento do título por parte do portador, nomeadamente quanto ao vencimento, não pode deixar de lhe estar subordinada, podendo, em última instância, ser esse preenchimento em termos temporais sindicado em sede de abuso de direito.
O preenchimento da livrança está condicionado à verificação de um conjunto de circunstâncias expressamente consideradas no pacto de preenchimento as quais são sindicáveis e por isso não se pode falar em obrigação perpétua.”
E conclui que a previsão daquele artigo e alínea não tem aplicação no caso aí em apreço, como dizemos nós que não tem neste, dada a similitude de situações e a idêntica análise que fazemos.
Igualmente aí se entendeu, e aqui aderimos a essa posição, que a cláusula em apreciação não viola o princípio da boa-fé que deve pautar a celebração dos negócios e a inclusão de cláusulas contratuais gerais em contratos singulares ou em contratos de adesão, sendo certo que as mesmas não podem nem desvirtuam o fim que se pretende alcançar com a celebração do concreto acordo de preenchimento, que tem subjacente uma garantia.
De acordo com os artºs. 12º e 15º, são nulas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé. O artº. 16º prevê os critérios a atender na apreciação da boa-fé: os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação concreta, e, especialmente: a) a confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis; b) o objetivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo de contrato utilizado.
O citado acórdão apela aos dizeres de Menezes Cordeiro (“Direito dos Seguros”, pags 602, 622 e 623), referindo que o critério previsto na lei concretiza-se pela “tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente”, para então assumir que a desproporção entre as obrigações assumidas pelas partes no contrato e o escopo são aspetos que a jurisprudência dos tribunais superiores tem salientado como critério de avaliação do conteúdo proibido das cláusulas.
Ora, é uma realidade que na prática bancária é frequente a emissão de livranças (ou outros títulos) em branco, como garantia de obrigações assumidas pelo subscritor da livrança, quando está em causa a concessão de crédito bancário, acompanhada de acordo de preenchimento, no sentido das que temos pela frente neste caso.
Não foi alegado qualquer facto relativamente ao contexto em que a celebração do acordo se deu. A cláusula é expressa, objetiva e tem um conteúdo percetível e inequívoco.
Logo, nenhum elemento objetivo permite concluir que seja “contrária à boa fé contratual por não ser conciliável com princípios fundamentais da regulação da qual se afaste ou que preveja direitos que resultem da natureza do contrato de tal modo que a obtenção do escopo contratual fique em perigo.”
Tudo ponderado, existe um acordo e o mesmo não foi violado (não há desconformidade entre o mesmo e o que se fez constar na livrança), nem é nulo; não enferma de nulidade a cláusula 18º do contrato.
Resta analisar se o preenchimento da livrança naqueles termos expressos nos factos viola as regras da boa fé e configura abuso de direito. Só quem tem o direito o pode exercer de forma abusiva. Portanto, essa figura parte da assunção do acordo de preenchimento válido e sem previsão de limite temporal máximo.
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Retomamos o nosso acórdão em que também tratamos desta matéria.
Os argumentos que afastam a tese do abuso de direito têm sido abordados por vária jurisprudência, como há também algumas decisões e doutrina que propendem para um limite temporal, mas estas focam-se primordialmente na interpretação do acordo.
Assim, tem sido defendido que o mero decurso do tempo, levando ao desfasamento entre os eventos e a data de emissão e de vencimento, e o grau de discricionariedade inerente a esses elementos nas mãos do credor, não permitem por si só configurar uma situação de abuso de direito. Mesmo no caso de durante esse período o credor ter-se mantido inativo (no sentido de não ter instado o devedor ao pagamento), daí não decorre uma legítima confiança na renúncia por parte do credor ao exercício do direito que lhe assiste. Veja-se, por todos os Acs. do STJ de 19/10/2017 (relatora Rosa Tching), 4/7/2019 (relatora Maria da Graça Trigo), e desta Relação de 26/9/2019 (relatora Sandra Melo) e 8/10/2020 (relatora Conceição Sampaio).
Começando por enquadrar a matéria, diz o artº. 334ºdo C.C.: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A justificação desta figura prende-se com razões de justiça e de equidade e deriva do facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
O instituto do abuso de direito é uma verdadeira “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o ato ilícito (Ac. do STJ, de 23/1/2014). É sempre uma figura de carácter e aplicação subsidiária, e de conhecimento oficioso.
Poder-se-á dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante (Ac. da Rel. de Coimbra, de 9/1/2017).
Há abuso de direito quando o direito, em princípio legítimo e razoável, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante. De facto, não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório e ofensivo daqueles valores, conforme decorre dos termos do artigo citado.
O supra referido Acórdão do STJ guia-nos nos critérios para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, havendo que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.
A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo: não é necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso de direito.
Antunes Varela diz que o abuso de direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo -Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241.
O abuso de direito pode revestir então as modalidades de “suppressio”, de “venire contra factum proprium” e de desequilíbrio. Vejamos as duas que se podem cogitar.
O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado. Ou seja, consiste no exercício duma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente que, objetivamente interpretada no confronto da lei, da boa fé e dos bons costumes é ostensivamente violadora da boa fé ou da tutela da confiança da contraparte porque gerou a convicção na outra parte de que o direito não seria por aquele exercido e, com base nisso a contraparte programou a sua atividade. Pressupõe uma situação objetiva de confiança. Ficam ressalvados contudo os casos em que a conduta assenta numa circunstância justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos que determinem o agente a mudar de atitude.
A “suppressio” designa a posição do direito subjetivo ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica, que, não tendo sido exercida em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.
A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
A verificação do abuso de direito, na modalidade de “suppressio”, exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua. Reitera-se a exigência do excesso manifesto.
Isto posto, parece-nos claro que o único fator alegado –decurso do tempo- não chega para criar no agente qualquer expetativa, seja pela positiva, seja pela negativa.
Acresce, no caso, a sucessão de acontecimentos que abarcou o Banco 1..., a transferência do crédito para o Banco 1..., tudo do conhecimento público (cfr. os factos notórios a que alude o artº. 412º, nº. 1, C.P.C.).
A embargante está a par do incumprimento contratual, resolução do contrato e execução da garantia, e esta conclusão não requer que se invoque a interpelação prévia para pagamento, com menção da data de vencimento da livrança, já que esta reporta-se também a março de 2020.
Não temos elementos para dizer que há uma dilação injustificável entre os vários momentos que despoletam os respetivos acontecimentos/acionamentos.
Tem por isso inteira validade a data de vencimento que foi aposta na livrança.
Em forma de conclusão, citamos o Ac. da Rel. de Coimbra de 18/2/2021 (relator Freitas Neto) “Salvo o respeito devido, fazer tábua rasa de um elemento com uma tal objectividade é entrar no campo de ficções que subvertem por inteiro os princípios inerentes à circulação dos títulos cambiários, nomeadamente o princípio da literalidade.
Na verdade, em lado nenhum a lei cambiária exige que o credor preencha o título com a data de vencimento do facto/pressuposto legitimador segundo o contrato de preenchimento – facto que, em princípio, coincidirá com o incumprimento. É, p. ex., plausível que, perante o incumprimento ou a insolvência do principal obrigado, os garantes queiram ainda negociar um pagamento parcial com o credor e que este adira a essa negociação, retardando o preenchimento do título.
Além do mais, o ficcionar o vencimento de um título – que foi entregue incompleto nesse elemento – na data da verificação do facto que legitima o seu preenchimento – como sustentam as posições acima identificadas – equivale a criar uma ilegal preclusão ou supressão do direito ao preenchimento atribuído credor/portador; e, por via de uma diferente contagem do prazo prescricional a partir dessa ficção de vencimento, a impor-lhe uma injusta extinção das obrigações assumidas pelos vinculados cambiários.
E não só.
A “sugestão” de que esse direito desaparece ou deixa de poder ser actuado ao fim de três anos sobre o incumprimento – ou sobre outro facto legitimador à luz do pacto de preenchimento – corresponde a instituir uma espécie de “prescrição”– igualmente sine lege – da faculdade conferida ao credor de preencher o título com a data do seu vencimento.
Não há na lei um prazo para o preenchimento de um título cambiário entregue ao credor num estado de incompletude após a ocorrência do facto legitimador desse preenchimento. Nem se pode dizer que há um abuso do preenchimento quando o credor/portador apõe no título uma data de vencimento que vai para além do decurso do próprio prazo prescricional contado desse facto legitimador.
O respeito do acordo ou pacto de preenchimento de uma livrança que é exigido pelos art.ºs 10º e 77º da Lei Uniforme só não autoriza que esse preenchimento tenha lugar em momento anterior ao da verificação do facto legitimador ali previsto.
O preenchimento com uma data posterior vale sempre como “data do vencimento” para efeito da contagem do prazo prescricional do art.º 70º da LULL, aplicável às livranças ex vi do art.º 77º.
Esta tem sido a jurisprudência pacífica, ou, pelo menos, largamente prevalecente, do nosso mais alto Tribunal, como se lembrou no Ac. do STJ de 04.07.2019, proferido no P. 4762/16.5T8CBR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde foi referida a idêntica orientação, entre outros, dos acórdãos de 12/11/2002 (proc. nº 3366/02), de 30/09/2003 (proc. n.º 2113/03), de 29/11/2005 (proc. nº 3179/05), de 09/02/2012 (proc. n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1), de 19/10/2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt; e também do acórdão proferido em 19/06/2019 no proc. nº 1025/18.5T8PRT.P1.S1 (na altura não publicado).”
E destacamos aqui de novo o Ac. do STJ de 7/6/2022, atento o lapso temporal entre os “eventos” que despoletam o preenchimento do título e a data de vencimento nesse caso, bem como o de 19-10-2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), ali mencionado.
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Dispõe o artº. 298º, nº. 1 do C.C. que estão sujeitos a prescrição pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição, sendo de ordem pública o regime de prescrição.
A prescrição extintiva é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não são exercidos durante certo tempo fixado na lei.
O fundamento específico da prescrição, como referiu o Prof. Manuel de Andrade (“Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, Almedina, 1974, pags. 445-446), “reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo”, negligência que “faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica”, acrescentando ainda, a “certeza ou a segurança jurídica”; a protecção dos obrigados “especialmente os devedores, contra as dificuldades de prova”; e ainda “exercer uma pressão ou estímulo educativo sobre os titulares dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles”. Obstando a que o titular do direito possa vir a exercê-lo sem limite de tempo, o instituto visa ainda a segurança do tráfego jurídico.
Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito –artº. 304º, nº. 1, C.C.. Trata-se de um meio de defesa do devedor que só este tem legitimidade para invocar, não sendo do conhecimento oficioso –cfr. artºs. 301º e 303º, do C.C..
O prazo geral ou ordinário da prescrição é de 20 anos, conforme o artº. 309º do C.C..
Porém a lei estabelece prazos mais curtos. É o caso da LULL que prevê o prazo de 3 anos a contar da data de vencimento do título, no caso (artºs. 70º e 77º).
É no momento do vencimento que se gera a obrigação cartular.
É orientação consolidada na jurisprudência que, tratando-se de livrança emitida em branco, o prazo prescricional corre desde o dia do vencimento aposto pelo exequente.
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Isto posto, temos que o prazo de prescrição (de 3 anos) não ocorreu, atenta a data de vencimento da livrança ...21- e data da propositura da execução (14/7/2021) e citação da embargante (cfr. artº. 323º, nºs. 1 e 2, do C.C.).
A livrança mantém o seu valor cambiário, sendo título executivo bastante (cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 14/12/2020, relator Fonte Ramos).
E por tratar de uma situação em tudo semelhante à dos autos, citamos ainda aqui o sumário do Ac. da Rel. do Porto de 23/11/2021 (relator João Ramos Lopes) que resume a matéria: “I - Nas livranças entregues em branco, o prazo prescricional estabelecido no art. 70 da LULL tem o seu termo inicial na data de vencimento nele inscrita pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.
II - Tendo o portador ficado autorizado, de acordo com a sua conveniência, a preencher as datas da livrança (designadamente a de vencimento), não pode concluir-se que tenha ocorrido violação do pacto de preenchimento por as datas inscritas (designadamente a de vencimento) corresponderem a momento posterior ao do incumprimento (tenha este ocorrido dez, cinco ou mias de três anos antes da data da entrada da execução em juízo).
III - A ampla margem de liberdade concedida ao portador no preenchimento do título (quanto à data de vencimento) não importa a nulidade do pacto – o pacto de preenchimento respeita tão só ao estabelecimento do início do prazo da prescrição (ao estabelecimento do vencimento da obrigação) e nenhuma limitação legal existe à liberdade das partes clausularem a data do início dos efeitos do negócio ou do surgimento da obrigação, sendo esse termo inicial da obrigação (o seu vencimento) legalmente estabelecido também como termo inicial do prazo de prescrição (art. 306º, nº 2 do CC), sem que tal importe violação da inderrogabilidade do regime da prescrição.”
IV - Não pode concluir-se que o exercício do direito configura, por parte do exequente, uma situação de abuso do direito quando demonstrado tão só o mero decurso do tempo, desacompanhado doutras circunstâncias demonstrativas de actuação do credor (portador do título) susceptível de, legítima e razoavelmente, poder ser interpretada pelos obrigados como se aquele não quisesse exercer o seu direito, que dela pudessem legitimamente confiar que o direito não mais seria exercido e que o exercício do direito lhes acarreta uma desvantagem iníqua.”
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Por último, quanto aos juros de mora, apenas foram contabilizados juros sobre a data de vencimento da livrança. Pelo que claramente não decorreu o prazo de prescrição, valendo aqui as considerações feitas quanto à consideração dessa data, e reportando a obrigação de juros sob qualquer perspetiva (cfr. artº. 310º, d), do C.C.).
Por último, não tem aqui aplicação o disposto no artº. 693º, nº. 2, do C.C., desde logo porque nem sequer estão a ser executados juros de mais de três anos.
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Face ao não acolhimento dos argumentos apresentados, resta concluir pela improcedência do recurso.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da embargante totalmente improcedente, e em consequência, negam provimento à apelação, mantendo a decisão recorrida.
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Custas a cargo da embargante/recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 30 de março de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)