Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
382/16.2T8VLN.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍEL
Sumário:
I - Ainda que na respetiva contestação o réu suscite a questão da ineptidão, se da mesma peça processual resultar que aquele interpretou corretamente a petição, não pode o juiz, por força do disposto no nº 3 do art. 186º do CPC, julgar inepta a petição por falta de indicação do pedido;

II - O efeito da autoridade de caso julgado de decisão de mérito que, face à apresentação de desistência do pedido, declara extinto o direito de propriedade que em determinada ação se pretendia faze valer e em que àquele direito era contraposto o direito de compropriedade, impede a reapreciação da questão relativa à exclusividade da propriedade suscitada na respetiva defesa por quem no primeiro processo desistiu do pedido;

III - A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

A. M. intentou ação de divisão de coisa comum A. P., alegando, para o efeito, que autora e réu casaram entre si, em primeiras núpcias dele e segundas núpcias dela, sem processo preliminar de publicações, por isso, no regime imperativo da separação de bens, no dia 18 de maio de 1966, em Tomiño, Pontevedra, Espanha, tal casamento está dissolvido por sentença judicial de 16 de junho de 2011, transitada em julgado em 5 de Setembro de 2011, proferida pelo Tribunal Judicial de Valença, os bens adquiridos em conjunto pelo casal consideram-se compropriedade de ambos os ex-cônjuges, em partes ou quotas iguais e, por isso, a divisão dos mesmos - que elenca -, deve operar-se por ação de divisão de coisa comum, requerendo, a final, fosse citado o réu nos termos do disposto no art. 926º do CPC, seja designada data para a conferência a que alude o art. 929º do CPC seguindo-se os ulteriores termos até final.
Citado, o Réu apresentou contestação, excecionando a ineptidão da petição inicial, a incompetência relativa do Tribunal e defendendo que todo o dinheiro existente nas contas em causa pertence em exclusivo ao Réu, o que afasta a presunção da compropriedade sobre os bens.
Em articulado ulterior a Autora efetuou uma “reformulação/ampliação” do pedido, no sentido de que, no para agora interessa, se reconheça que “todos os depósitos e aplicações financeiras descritos na petição são compropriedade da Autora e do Réu, fixando-se a quota parte de cada um em metade, procedendo-se à sua divisão, correspondente adjudicação e pagamento de tornas, de conformidade com o exposto nos artigos 27, 28, 29, 30, 36, 37 da petição”.

Na fase do despacho saneador, foi proferida sentença que decidiu:

a) Com base na autoridade de caso julgado que decorre da sentença proferida na acção que correu termos na Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo (J3) sob o n.º 75/12.0TBVLN, identificada no ponto 8 dos factos provados, julgar a acção parcialmente procedente e considerar que os bens identificados no ponto 3 do mesmo elenco pertencem em compropriedade e em quotas iguais a A. e R., nada obstando à sua divisibilidade em substância;
b) Julgar improcedente o pedido de divisão formulado pela A. quanto aos veículos identificados nos pontos 9 a 11 dos factos provados;
c) Condenar o R. A. P. como litigante de má fé no pagamento duma multa de 12 (doze) UC.

Inconformado com o referido saneador-sentença, no que toca ao aí decidido nas alíneas a) e c), o Réu interpôs o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

A- A decisão proferida no douto despacho saneador/sentença é nula, além do mais, nos termos das alíneas b), c), d) e e), do artigo 615° do CPC.
B- A ação iniciou como ação especial de divisão de coisa comum atualmente "a acção seguirá os termos subsequentes à contestação em processo declarativo comum",passou a correr os termos da acção especial de divisão de coisa comum, para correr termos de processo declarativo comum e foi-lhe fixado o valor da causa em " 500.000,OO€".
C- "Compete à secção cível da instância central: A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €500.000; ( ... ), de acordo com o disposto no artigo 117°, n."l do LOSJ, e, "São remetidos à secção cível da instância central os processos pendentes nas secções da instância local em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência".
D- O apelante invocou e invoca a incompetência em razão de valor, do Juízo de Competência Genérica de Valença, nos presentes autos.
E- O articulado inicial, apresentado pela apelada não tem pedido tal é reconhecido no douto despacho saneador é " inequívoco que a A. olvidou a indicação do pedido como se impunha na senda da factualidade alegada na p.i., limitando-se a requerer a citação do Réu e a designação da conferência prevista no artigo 929.oCPC'.
F- Nos termos da alínea c) do n.02 do artigo 186.° do CPC a petição é inepta quando ''falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir"; in casu, o articulado inicial não tem pedido.
G- A apelada estava obrigada pela lei adjetiva a concluir esse seu articulado com um pedido que não o fez.
H- Nem se pode valer da "ulterior atividade do R- maxime a contestação- permite perceber que este percebeu convenientemente o pensamento da A., suprindo assim a ineptidão por falta de indicação do pedido", pois, que na contestação foi alegado no artigo 16°, que o que aí se alegava foi-o por mera cautela, e com a consciência de se estar a pronunciar sobre um pedido que não existia em absoluto, e de que nem sequer o reconhecimento da compropriedade era peticionado.
1- A falta de pedido ainda se mantém, e a ação é inepta por falta absoluta de pedido a petição inicial, pelo que é nulo todo o processo nos termos do artigo 186° n.º 1 e 2 do CPC. J- A sentença que homologou a desistência dos pedidos formulados, na ação 75112.0TBVLN pelo aí Autor, aqui Réu, nenhuma relevância tem para os presentes autos.
K- Daí só resultou, como alegado vem nos artigos 7° e 8° da petição inicial que:
"Tal desistência do pedido foi homologada por douta sentença datada de 6 de setembro de 2016 e que, tal desistência do pedido formulado pelo ora réu, todos os saldos bancários presumem-se bens comuns da autora e do réu".
L- Assim, a presunção de bens comuns da autora e do réu que resultou da homologação daquela desistência apenas poderá ter repercussão sobre o património mobiliário, (depósitos e contas bancárias efetivamente arrolados), mas mesmo as partes reconhecem que tais bens nunca poderiam ser comuns, pois, estavam casados em separação de bens.
M- Assim, por força da desistência dos pedidos e da homologação por sentença transitada em julgado, e não apreciação dos pedidos reconvencionais, os saldos bancários (arrolados que eram os que estavam em discussão e pedidos), presumem-se bens comuns, sendo que quanto as estes, deverão os mesmos ser objeto da partilha dos bens do extinto casal em sede própria (ou seja, o inventário) ".
N- É pois clara a consequência da desistência relativa às contas arroladas, ponto 8 dos fatos provados, "presumem-se comuns".
0- Com a dita sentença homologatória, ficou a presumir-se que aquelas contas também eram presumidamente comuns ao aqui apelante e á apelada e não a presumir-se que eram propriedade exclusiva do apelante ou da apelada, como pretende o Tribunal na sentença de que se recorre.
P- Face à declaração de "presunção de comunhão", por sentença transitada em julgado e do conhecimento da apelada, (compropriedade, in casu), e tratando-se de contas bancárias solidárias do extinto casal, o apelante na sua contestação, tentou, nos termos do artigo 516º do C.C., afastar tal presunção, e para tal alegou ao tribunal a proveniência do dinheiro que guarneceu as ditas contas cujos saldos (presumivelmente comuns ou em compropriedade) se encontram arrolados e fê-lo, de forma singela, acompanhado por documentos e apresentou testemunhas.
Q- Não formulou qualquer pedido reconvencional, apenas pôs em causa a compropriedade, isto porque previamente a sentença proferida no processo 75112.0TBVLN refere expressamente e declara que os bens cuja divisão (na opinião do Tribunal foi pedida nos presentes autos, não existe qualquer pedido nos autos), "presume-se" que são "comuns" dele e da apelada.
R- Pois a desistência do pedido naqueles autos não desproviu de todos os direitos, o apelante sobre os bens mencionados na petição nos mesmos, reconheceu-lhe a presunção de comunhão sobre as contas arroladas.
S- A contestação do apelante apenas consta de fatos que entendeu que caso se viessem a provar, seriam capazes de afastar, ilidir, a presunção de comunhão "compropriedade" da apelada, ou, pelo menos, fixar a sua quota de participação na compropriedade em valor inferior a metade, como declarou a douta sentença sem qualquer sustentação legal ou fatual, pronunciando-se sobre algo que não lhe foi pedido, nem podia pronunciar-se.
T - A defesa do apelante em nosso modesto entender em nada ofende a Autoridade do caso julgado.
U- Nas ações declarativas comuns, como a dos autos n.º 75112.0TBVLN, onde houve a desistência e as ações especiais de divisão de coisa comum, nem as causas de pedir, nem os pedidos (a presente ação até nem tem pedido), não são manifestamente coincidentes.
V - "O que adquire força e autoridade de caso julgado é a posição tomada pelo juiz quanto aos bens ou direitos (materiais) litigados pelas partes e a concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos. Não a motivação da sentença, as razões que determinaram o juiz, as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar àquela conclusão final (pontos ou questões prejudiciais)".
W - "Apesar de o juiz dever resolver na sentença todas as questões que as partes tenham suscitado (art.º 608º n.º2) só constituirá caso julgado a resposta final dada à pretensão concretizada no pedido".
X. Nada impede, ou impedia o apelante de estruturar a sua defesa com base na presunção de comunhão (compropriedade), que lhe é reconhecida e que nada o impede de por em causa a mesma presunção que foi reconhecida à apelada.
Y - Há presunções, não há direitos reconhecidos, e esse é o principal equívoco em que caiu a douta sentença de que se recorre.
Z- Só há autoridade do caso julgado relativamente ao reconhecimento dessa presunção de comunhão, o que, desde logo, não impede o apelante de nestes autos por em causa essa presunção, pelo menos as proporções de comunhão/compropriedade que a apelada pretende, pretensamente, ver divididos os bens declarados presumidamente "comuns". O que há é uma violação do princípio do contraditório constitucionalmente protegido.
AA- Na ação de divisão de coisa comum, cabe ao autor, entre o mais, alegar a propriedade comum por referência à respetiva causa de aquisição ( ... )", ora apesar de alegada a compropriedade pela Autora, apenas temos contas co-tituladas e uma sentença, transitada em julgado, que declara que "os saldos bancários presumem-se bens comuns, sendo que quanto a estes, deverão os mesmos ser objeto da partilha dos bens do extinto casal em sede própria ( ou seja, o inventário)".
BB- Não há qualquer título de compropriedade, que refere as quotas pertencentes a cada uma das partes para que se possa proceder a uma ação de divisão de coisa comum.
CC- Os argumentos utilizados, na douta sentença, para a não divisão dos carros tem total acolhimento para o pretenso pedido de divisão do dinheiro arrolado e atualmente depositado e aplicado nos bancos, aliás dos fatos provados não resulta estarem em causa outros valores.
DD- Não existe factualidade na sentença que sustente a decisão em a) do dispositivo, ou seja, "que os bens identificados no ponto 3 do mesmo elenco pertencem em compropriedade e em quotas iguais a A. e R., nada obstando à sua divisibilidade em substância".
EE- Da desistência do pedido resultou com relevância para os presentes autos o que está plasmado em 8° dos fatos, em lado nenhum foi declarada uma compropriedade, foi apenas apesar da desistência do pedido reconhecida uma presunção de "comunhão"/ compropriedade (eram casados em separação de bens).
FF-Face à "presunção", que tanto funciona para o apelante como para a apelada, o apelado entende ter o direito de exercer o contraditório na presente ação, pondo em causa essa compropriedade, por ser presumida, e alegou fatos que a ser provados, seriam capazes de afastar, ilidir, a dita presunção de "comunhão" /compropriedade da autora.
GG- O apelante limita-se na sua contestação a impugnar uma situação nova, não deduziu qualquer oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, como é "acusado", na douta sentença apenas se limitou, dentro daquilo que a lei lhe permite exercer o direito contraditório, que necessariamente teria de passar pelo crivo do julgamento, (se negligentemente o fez a pena é manifestamente excessiva), não tendo litigado de má-fé.
HH- O Tribunal refere que" a fls. 62 a 65 a A. requer a condenação do R. como litigante de má-fé e aproveita o ensejo para se pronunciar sobre a ineptidão da petição inicial da p. i. arguida por aquele último, além de que efectua uma "reformulação/ ampliação" do pedido"; e acrescenta: " consideramos que a apresentação dos articulados em questão não tem sustentação legal (. . .) com a exceção do apresentado pela A. na parte que prende a "reformulação /ampliação" do pedido".
II - Não admitiu o articulado da apelada onde pede a condenação em indemnização do apelante como litigante de má-fé, como é possível a douta sentença terminar da seguinte forma: "Uma vez que os autos não contêm todos os elementos necessários para fixar a importância da indemnização pedida pelo Autor, relego para ulterior a fixação do respetivo valor, momento após o trânsito em julgado desta sentença"?
JJ - Não pode ser considerado nos autos qualquer pedido de indemnização da A. contra o apelante, por este eventualmente ter litigado de má-fé, pois, o mesmo não foi admitido.
KK- A douta sentença recorrida, é violadora das mais elementares normas adjetivas e substantivas, designadamente o art." 3°, 186° n.2, c), 285° n.º 1 e 277.°, 542°, alínea d), 615° alíneas b),c),d); 925.°; 926°, todos do CPC, art.516.0 e 1317° ambos do C.C. e 117°, n.º 1 do LOSJ.
Conclui pedindo seja revogada a sentença proferida dando-se a acção por totalmente improcedente com as legais consequências.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Na sequência de notificação às partes para, querendo, se pronunciarem sobre inadmissibilidade do objeto da apelação no que concerne à impugnação da decisão que julgou improcedente a exceção da competência invocada pelo Réu/Recorrente (por de tal caber apenas reclamação nos termos do disposto no art. 105º, nº4, do CPC), veio este desistir da reapreciação da aludida exceção.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do NCPC).
Face à posição entretanto assumida nos autos pelo Recorrente relativamente à questão da incompetência do Tribunal “a quo”, mostra-se prejudicado o conhecimento das conclusões formuladas sob as alíneas A) a D).
Assim sendo, no caso vertente, as questões a decidir que relevam das conclusões recursórias são as seguintes:
- Saber se a petição inicial deve ser julgada inepta;
- Saber se a figura da autoridade do caso julgado tem aplicação à situação em apreço e quais as consequências de tal aplicação;
- Saber se há razões para a condenação do Réu/Recorrente como litigante de má-fé.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos

a) Na 1ª instância foi considerada a seguinte factualidade:
1. Em 1 de Fevereiro de 2012 A. P. instaurou contra A. M. acção declarativa que correu termos sob a forma de processo ordinário na Instância Central Cível do Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo (J3) e a que foi atribuído o n.º 75/12.0TBVLN – cfr. fls. 79 e 99 e reverso, cujo teor damos por reproduzido.
2. Para o que interessa nos presentes autos, naquela acção o A. formulou os seguintes pedidos:
“d) Declarar que todas as contas referidas no artigo 96º desta peça, e objecto do arrolamento supra referido, pertencem única e exclusivamente ao Autor, sendo um bem próprio deste, e ser condenada a Ré no seu reconhecimento.
e) E consequentemente ser ordenado às entidades bancárias aí mencionadas, a saber Banco A, Banco X, Banco Y e Banco T para entregarem as quantias arroladas e respectivos rendimentos ao Autor, a pedido deste.”.
3. No artigo 96.º da p.i. daquele processo alegou-se o seguinte: “Assim, as contas arroladas foram as seguintes:
“- todas as contas bancárias, a prazo ou à ordem e/ou quaisquer aplicações financeiras, nomeadamente, carteira de títulos, de que o Requerido (aqui autor) é titular ou co-titular, no Banco A, nomeadamente, das contas: 45475118…; 9291…; 100376…; 9080047…; 500209958…; 2108448…; 2256995…; 2258064…; 2057435…; 45259830…; 908004… 46303…; 45275118…; 9291…; 45260025…; 50020958…; 194236...; 15153…; 42756…; 45278232…; 45278232…
- Todas as contas bancárias, a prazo ou à ordem e/ou quaisquer aplicações financeiras, nomeadamente, carteira de títulos, de que o Requerido (aqui Autor) é titular ou co-titular, no Banco X, nomeadamente as contas: 00031004821… (descritivo Produto: ME 1..ª 3…); 00031086436…; 00031092472…; 00003583293…; 00003615409…; 00003615409…; 00003615409…
- Todas as contas bancárias, a prazo ou à ordem e/ou quaisquer aplicações financeiras, nomeadamente, carteira de títulos, que o Requerido é titular ou cotitular, no Banco Y, nomeadamente, da conta: PT 0035 083401327…
- Todas as contas bancárias, a prazo ou à ordem e/quaisquer aplicações financeiras, nomeadamente, carteiras de títulos, de que o Requerido é titular ou co-titular, na Banco T.”
4. O A. alegou na referida acção ser o proprietário exclusivo do dinheiro e valores depositados nas mencionadas contas bancárias.
5. A R. contestou a acção alegando que o dinheiro e valores depositados nas mencionadas contas pertence, em compropriedade, a A. e R. – cfr. fls. 100 a 15 e reverso, cujo teor damos por reproduzido.
6. Para o que interessa nos presentes autos, naquela acção a R. formulou os seguintes pedidos reconvencionais:
“b) Declarar-se que as contas e aplicações referidas nos artº(s) 97º e 98º desta peça, resultaram de aplicações co-tituladas pelo demandante e pela demandada.
c) Declarar-se que os 250.000,00 USD que se encontram em depósito na conta depósito a prazo nº 0003.1004821… do Banco X, são a metade correspondente à demandada/reconvinte, sendo declarados seus, e ordenando-se a respectiva entrega à demandada/reconvinte, por parte dessa entidade bancária.
d) Declarar-se que da quantia de 97.632,.. USD, levantada pelo demandante/reconvindo da conta depósito a prazo nº 4527823…, do Banco A, metade desse valor (48.816,.. USD) é propriedade da demandada/reconvinte, condenando-se o demandante/reconvindo ao seu pagamento à demandada.”
7. Em 6 de Setembro de 2016 o A. apresentou requerimento nos autos identificados em 1 declarando desistir de todos os pedidos formulados na acção – cfr. fls. 119 e 120.
8. No mesmo dia a desistência foi homologada por sentença que já transitou em julgado, tendo-se também considerado que, “atenta a desistência do pedido apresentada pelo autor, verifica-se que ocorreu um facto superveniente que gerou a inutilidade da apreciação dos pedidos reconvencionais. Com efeito…, já não se encontra em discussão a titularidade dos bens objecto da lide e assim sendo o bem imóvel presume-se propriedade da ré e os saldos bancários presumem-se bens comuns, sendo que quanto as estes, deverão os mesmos ser objecto da partilha dos bens do extinto casal em sede própria (ou seja, o inventário).”
9. O veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, modelo Golf GTD, com a matrícula XX, está registado a favor do R. – cfr. cópia do certificado de matrícula junto a fls. 56 (reverso) e 57, cujo teor damos por reproduzido.
10. O tractor agrícola de marca Kubota, modelo L285, com a matrícula ZZ, está registado a favor do R. – cfr. cópia do título de registo automóvel junto a fls. 54, cujo teor damos por reproduzido.
11. O veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Citroen, modelo ZX (N2H600), com a matrícula GG, está registado a favor do R. – cfr. cópia do certificado de matrícula junto a fls. 55 (reverso) e 56, cujo teor damos por reproduzido.
b) É ainda de considerar, face à prova documental junta aos autos, que:

1. Autora e réu casaram entre si, em primeiras núpcias dele e segundas núpcias dela, no regime imperativo da separação de bens, no dia 18 de maio de 1966, em Tomiño, Pontevedra, Espanha;
2. Tal casamento está dissolvido por sentença judicial de 16 de junho de 2011, transitada em julgado em 5 de Setembro de 2011, proferida pelo Tribunal Judicial de Valença.

O Direito

Da ineptidão da petição inicial

Respondendo à primeira questão, desde logo diremos que a decisão recorrida tratou de forma proficiente o tema da ineptidão da petição inicial, analisando devidamente os articulados e de tal análise retirando as adequadas consequências, pelo que aqui nos limitaremos a manifestar a nossa inteira concordância com o ali explanado nos termos que se passam a recordar:
Avançando, parece inequívoco que a A. olvidou a indicação do pedido como se impunha na senda da factualidade alegada na p.i., limitando-se a requerer a citação do réu e a designação da conferência prevista no artigo 929.º do CPC (e daqui resulta desde logo que não se pode “reformular” ou “ampliar” o que não foi pedido, como pretende a A. por via do requerimento de fls. 65).
Sucede que o n.º 3 do artigo 186.º, n.º 3, do CPC determina que “Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”, pelo que é à luz deste normativo que a questão deverá ser decidida.
Tomando essa senda, a verdade é que desde que haja contestação o juiz não pode julgar inepta a petição por falta de indicação da causa de pedir ou do pedido se chegar à conclusão que o réu, naquele articulado, interpretou correctamente petição inicial. Ora, analisada esta última parece-nos claro que o R. percebeu perfeitamente o que a A. pretende na acção: a divisão, em proporções idênticas, dos três automóveis, do dinheiro depositado em contas bancárias e dos valores mobiliários indicados na p.i.
Ao longo dos artigos 16.º e ss. da contestação o R. pronuncia-se com pormenor sobre o arrolamento decretado sobre os bens comuns do casal (a providência foi decretada no pressuposto erróneo de que A. e R. eram casados sob o regime da comunhão de adquiridos), que teve por base a acção de divórcio posteriormente instaurada pela A. contra aquele, e contesta que haja qualquer direito de compropriedade sobre os bens cuja divisão vem pedida já que estes foram adquiridos com os rendimentos que auferiu ao longo da sua vida, já que a A. quase nunca exerceu qualquer trabalho remunerado.
Em suma, a ulterior actividade do R. – maxime a contestação – permite perceber que este interpretou convenientemente o pensamento do A., suprindo assim a ineptidão por falta de indicação do pedido, “de modo que nem o autor fica prejudicado no pedido, nem o réu no exercício do contraditório” – neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 1.10.2003, processo n.º 02S3742, acessível em www.dgsi.pt. De resto, a A. requereu a reformulação do pedido em termos idênticos àqueles que o R. percepcionou, pelo que, como se diz naquele aresto, “se este declarar que a sua petição tem o sentido que o réu lhe atribuiu, a obscuridade ou confusão fica desfeita. O pedido ou a causa de pedir passará a ter, por acordo das partes, a significação e o alcance expresso na contestação”.
Em face do exposto julga-se improcedente a nulidade do processado por ineptidão da p.i.
Em abono do decidido, apenas se acrescentarão dois pontos:
Primeiro: há, inclusive, quem defenda, com bons argumentos, que o pedido pode estar formulado no articulado, desde que se revele com nitidez a intenção de obter os efeitos jurídicos pretendidos, como se frisa no Acórdão da Relação de Coimbra de 10.09.2013 (seguido pelo Acórdão da mesma Relação de 03.12.2013), isto “porque a petição configura uma declaração de vontade tendente a obter um determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos arts.236 nº1 e 238 nº1 do CC (cf., por ex., Ac do STJ de 21/4/05, em www dgsi.pt). Depois porque se não releva a ineptidão por falta ou ininteligibilidade do pedido no caso de o réu haver interpretado convenientemente a petição inicial (art.193 nº3 do CPC), por maioria de razão, ou por aplicação analógica, deve admitir-se um pedido feito no corpo do articulado, maxime se foi correctamente interpretado pelo demandado.”
Segundo: não é o facto de o Réu ter arguido a ineptidão da petição inicial e de apenas subsidiariamente se ter defendido de pedido implícito naquela peça processual que impede o Tribunal de aplicar o disposto no nº 3 do art. 186º do CPC; pelo contrário, como se afirma no Acórdão do STJ de 01.10.2003, “desde que haja contestação, o juiz não pode, por força do disposto no nº. 3 do artº. 193 do CPC (correspondente ao atual 186º), julgar inepta a petição por falta de indicação da causa de pedir ou do pedido se chegar à conclusão de que o réu na contestação interpretou correctamente a dita petição (ouvindo para tanto o autor, se necessário) e isto quer o mesmo réu tenha ou não suscitado a questão da ineptidão”.

No que toca à questão da autoridade do caso julgado da anterior decisão proferida no processo nº 75/12.0TBVLN.
Desde logo, afigura-se-nos que a alegação do Recorrente no que a esta questão respeita parte da errónea suposição de que a decisão recorrida assenta no pressuposto de que a anterior decisão que homologou a desistência do pedido formulado no processo nº 75/12.0TBVLN integra, para além do mais, uma decisão de mérito correspondente à assunção - para explicar a ali afirmada inutilidade superveniente do conhecimento dos pedidos reconvencionais - de que os bens em causa se presumiam comuns da autora e do réu.
Na verdade, ao invocar a autoridade do caso julgado, a decisão recorrida não teve em vista o segmento da decisão anterior relativo à ali afirmada inutilidade superveniente do conhecimento dos pedidos reconvencionais e às considerações, para o efeito ali também tecidas, mas sim, claramente, apenas o segmento que, homologou a desistência do pedido formulado pelo ali Autor, ora Réu, julgando extinto o direito que aquele pretendia fazer valer, qual seja, o direito de propriedade exclusiva sobre todos os ali aludidos bens.
Isso mesmo resulta claramente da fundamentação exarada nos seguintes termos:
No quadro jurídico, doutrinal e jurisprudencial assinalado entendemos que, com base na autoridade de caso julgado que decorre da sentença que homologou a desistência dos pedidos proferida na acção n.º 75/12.0TBVLN não pode o réu, agora em sede de acção de divisão de coisa comum, provocar de novo a discussão que iniciou e a que pôs termo naquele processo. Perante uma situação algo semelhante à dos autos pronunciou-se o STJ (Ac. de 23.09.2008, processo 08B1285, acessível em www.dgsi.pt) nos seguintes termos: “Se foi julgada improcedente uma acção na qual o autor pediu que fosse declarado proprietário de um prédio urbano, por ter adquirido o direito de propriedade por acessão, não pode o tribunal voltar a apreciar a aquisição do mesmo direito numa acção de divisão de coisa comum, que decorre entre as mesmas partes, quando o autor alega essencialmente os mesmos factos para sustentar a qualidade de comproprietário.”
Em suma, tendo desistido dos pedidos que formulou nos sobreditos autos, o réu, repetimo-lo, reconheceu implicitamente que a sua pretensão era infundada e que por isso não lhe assistia direito à sentença de mérito que pretendia, o que tem como consequência que admitiu, atendendo não só à posição que escudou naquela lide mas também à que a aqui autora, então nas vestes de ré, ali defendeu, a compropriedade dos dinheiros e aplicações financeiras depositados nos Bancos identificados nos autos.
Note-se que já em 1988 o STJ proferira assento (n.º 6/1988, de 15 de Junho, acessível em www.dgsi.pt, processo 074342) no sentido de que “O desistente do pedido de simples apreciação prescinde do conhecimento do respectivo direito e, por isso, o caso julgado impedi-lo-á de estruturar nele um pedido de condenação.”. Os pedidos formulados na acção n.º 75/12.0TBVLN e que estão vertidos nos factos provados são inequivocamente de simples apreciação, pelo que aplicando aquela jurisprudência de forma “revertida”, temos que o desistente do pedido de simples apreciação também fica impedido de estruturar, em acção contra ele instaurada, uma defesa em que ponha em causa o decidido na acção anterior.
E a distinção entre os referidos dois segmentos da decisão final proferida no processo nº 75/12.0TBVLN é, com efeito, fundamental.
Como se sabe, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do processo, consubstanciando-se naquilo a que a doutrina processualista designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa normal é a sentença de mérito. Assim, “perante a superveniente impossibilidade ou inutilidade da lide, o tribunal declara extinta a instância, ou seja, a relação jurídica processual, sem apreciar o mérito da causa, assumindo a decisão natureza meramente declarativa (cf., por ex., RODRIGUES BASTO, Notas, II, pág.60, Ac STJ de 5/11/92, BMJ 421, pág. 338)” - acórdão da Relação de Coimbra de 15.05.2007 -, sendo certo que só as decisões transitadas que incidam sobre o mérito da causa, ou seja, que apreciem a relação material controvertida que se discute na ação adquirem a força de caso julgado material e têm a virtualidade de poder ter força obrigatória fora do processo em que foram proferidas (Acórdão da Relação de Lisboa de 07.02.2013).
Pelo contrário, a desistência do pedido determina, nos termos do disposto do art. 285º, nº 1, do CPC a extinção do direito que na ação se pretendia fazer valer, porquanto a desistência do pedido significa ou implica, nas palavras do Conselheiro Rodrigues Bastos (in “Notas ao CPC, vol. 2º, pág. 81”), o reconhecimento, por parte do autor, de “não lhe assistir direito à sentença de mérito que pretendia” ou, por outras palavras e no dizer de Alberto dos Reis (in “Comentário ao CPC”, vol. 3º, pág. 374), que o autor “reconheceu implicitamente que a sua pretensão é infundada”.
Dissertando sobre a desistência do pedido, também a ela se refere Lebre de Freitas (em anotações ao Código de Processo Civil, vol. I, 1999, pág. 524) como “afirmação da directa actuação do negócio de auto-composição do litígio sobre a situação jurídica (material) que é objecto do pedido, a qual, quer existisse quer não anteriormente, é objecto dum negócio que opera como um facto extintivo, precludindo a questão da sua existência e conformação anteriores”, voltando a afirmar mais à frente (a pág. 533) que “tratando-se de negócio de auto-composição do litígio, o juiz verificado que o acto é válido e pertinente para o processo, profere sentença homologatória, que, embora não aplicando o direito objectivo aos factos provados na causa, constitui uma sentença de mérito, como tal condenando o réu no pedido ou dele o absolvendo, consoante o negócio jurídico celebrado”, tendo, por isso, no caso de desistência do pedido, a sentença homologatória “o efeito de constituir caso julgado material (artºs 301, nº 2, e 671, nº 1)”, com todas as consequências a tal inerentes, incluindo a da autoridade de caso julgado, no sentido da vinculação à anterior decisão do distinto objeto posterior.
A questão que se coloca é, pois, a de saber em que termos a autoridade do caso julgado daquela anterior decisão homologatória da desistência do pedido - e só dela - se reflete, em concreto, na decisão dos presentes autos.
Vejamos.
Como se sublinha no Acórdão do STJ de 24.04.2013, em que é Relator o Exmo. Sr. Conselheiro Lopes, “a figura da autoridade do caso julgado tem a ver com a existência de relações (…) de prejudicialidade entre objectos processuais: julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes – incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção. Ou seja, estamos aqui confrontados com a chamada função positiva do caso julgado (perspectivada no CC de 1867 como conduzindo a uma inclusão do caso julgado entre os meios de prova – arts. 2407, nº4, e 2502º e segs.), mediante a qual a vinculatividade própria do instituto do caso julgado impõe que o objecto da primeira decisão funcione como pressuposto indiscutível da nova decisão de mérito, a proferir na segunda causa, incidente sobre relação jurídica diversa, mas dependente ou condicionada pela anteriormente apreciada, em termos definitivos, pelo tribunal.”
Nas palavras do Acórdão da Relação de Guimarães de 07.08.2014:
“Os efeitos do caso julgado material projectam-se no processo subsequente necessariamente como excepção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objecto posterior, ou como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão do distinto objecto posterior.
A autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta a que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil.”
No caso em apreço, fácil é de perceber que o efeito da autoridade de caso julgado da decisão de mérito quanto à extinção do direito de propriedade do ali Autor e ora Réu/Recorrente, sobre os bens em causa no âmbito do presente recurso, proferida no aludido processo, em que àquele direito era contraposto, pela então Ré e aqui Autora, o direito de compropriedade dos dois elementos do ex-casal sobre os ditos bens, é o de impedir a reapreciação da questão suscitada pela defesa apresentada nestes autos.
Com efeito, o Réu/Recorrente invoca, de novo, na contestação aqui apresentada, a propriedade exclusiva, sublinhe-se, sobre todos os bens cuja divisão é aqui pedida - reforçando, na alegação de recurso apresentada, que entende ter o direito de exercer o contraditório na presente ação, pondo em causa essa compropriedade -, quando, na verdade, nestes autos que pendem entre os mesmos intervenientes, o, de novo, invocado direito de propriedade exclusiva não pode voltar a ser discutido, não podendo, nessa medida, ser posta em causa a invocada compropriedade, sem mais se impondo a decisão a respeito tomada no referido processo, ficando, nessa medida, excluída a possibilidade de apreciação na presente ação da defesa que com a mesma contende.
Na verdade, o efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer indagação ulterior sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.
A não se entender assim, permitir-se-ia que se voltasse a discutir na presente ação a existência de um direito de propriedade declarado extinto no referido anterior processo, abrindo-se a possibilidade de vir a decidir-se na presente ação em contrário do que naquele foi decidido sobre tal direito.
Em conclusão, a extinção do direito, decorrente da desistência do pedido formulado, que foi declarada naqueloutro processo, não pode deixar de vincular o ora Réu/Recorrente, impondo-se, nesta ação, a ali declarada extinção do direito de propriedade agora invocado na respetiva defesa.
Isto assente, há que relembrar que a Autora apenas defende a compropriedade dos bens ora em questão estando já excluída a hipótese de os mesmos pertencerem exclusivamente ao Réu, pelo que, necessariamente, a situação é de compropriedade.
Aqui se abre um parêntese para sublinhar que a compropriedade não se confunde com a comunhão, onde todos os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela, massa patrimonial essa que não se reparte entre os cônjuges por quotas ideais, como acontece na compropriedade, pertence “à coletividade” por eles formada, e tem como seus traços característicos que a distinguem da compropriedade o facto de o direito dos contitulares não incidir diretamente sobre cada um dos elementos que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário, bem como não poder qualquer deles pedir a divisão desse património coletivo enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição, enquanto que na compropriedade podem os cônjuges dela sair mediante o processo de divisão de coisa comum, como dos arts. 1412.º e 1413.º do C.C. (Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1966, vol. I, págs 225/226, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. III, 2ª ed., págs. 347/348 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, págs. 231/235).
Fechado o parêntese, reafirma-se que, no caso, sabendo-se precludida a possibilidade de discussão sobre a factualidade invocada pelo Réu integrante de defesa por exceção, na medida em que a mesma mais não é do que a invocação - por via da exceção - do mesmo direito extinto por força da desistência do pedido - o que, efetivamente, lhe está vedado por força da autoridade do caso julgado -, forçoso é considerar que todos os bens móveis identificados no ponto 3 dos factos provados se têm como pertencentes em compropriedade a ambos os ex-cônjuges, como se decidiu na sentença recorrida.
Mas tal não basta.
Na verdade, a divisão de coisa comum tem por fim concretizar a parte de cada consorte na propriedade comum, assumindo que cada consorte tem direito a uma porção da coisa comum, havendo, para o efeito, que partir da medida da comparticipação dos comproprietários no direito comum, certo que, se o direito de cada comproprietário na coisa comum é qualitativamente igual, quantitativamente pode ser diferente.
Para se saber qual a quota de cada um dos comproprietários aqui em confronto, há que ter presente o disposto na segunda parte do nº 2 do art. 1403º do Cód. Civil, segundo o qual as quotas dos comproprietários se presumem quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.

A respeito desta norma, explana o Acórdão da Relação de Coimbra de 12.09.2017:

“I – O art.1403º, nº 2, do C. Civil não consagra uma genuína presunção legal relativa (presunção juris tantum), mas antes uma técnica legislativa de instituição de uma norma supletiva, sendo requisito de aplicabilidade a mera omissão de referência em contrário no título de constituição da compropriedade.
II - A parte beneficiada com a presunção não tem o ónus de provar o facto-base, pois a lei considera verificado o facto presumido, cabendo à contraparte a prova do contrário, sendo denominadas como “verdades interinas”.
III - A presunção de igualdade das quotas só pode ser afastada com recurso a elementos do próprio título de constituição, e não por elementos exteriores, sendo inadmissível a prova testemunhal para o efeito”.
Tendo presente esta explicação quanto ao alcance da citada norma, forçoso é, mais uma vez, concluir, in casu - dada a apontada impossibilidade de recurso à prova testemunhal para prova do contrário e a inexistência, em concreto, de elementos documentais que sustentem outra medida da comparticipação dos referidos comproprietários no direito comum -, pelo reconhecimento de que os bens ora em causa não só pertencem em compropriedade à Autora e ao Réu como lhes pertencem em quotas iguais.
Deve, pois, manter-se, nesta parte, a decisão recorrida.

Quanto à condenação do Réu como litigante de má-fé.
No que toca à referida condenação, diz-se na sentença:

(…) no caso a quo temos que a R., na contestação, impugna a compropriedade dos bens alegada pela A., invocando a sua propriedade exclusiva. Já discorremos abundantemente sobre a autoridade do caso julgado que deriva da sentença proferida na primeira acção e da consequente impossibilidade de o R. voltar a trazer à liça a temática da dominialidade dos bens em apreço.
Posto isto, cremos que é justo dizer que apesar de estarmos perante uma matéria que, para um cidadão sem conhecimentos jurídicos – como pensamos ser o caso do R. –, reveste alguma complexidade ao nível da apreensão do seu significado, a verdade é que qualquer pessoa medianamente instruída percebe que instaurar um processo contra outra pessoa e depois dele desistir equivale a reconhecer (pelo menos quando se desista do pedido) que os motivos invocados para aquele efeito não tinham afinal razão de ser. Trata-se de um conhecimento quase empírico, que resulta dos dados da lógica e da experiência comum.
Por outro lado, estamos em crer que o aqui R. não desistiu dos pedidos que dirigiu contra a sua ex-mulher sem que se tivesse informado previamente – ou sem que tivesse sido informado, já que estava assistido por advogado constituído nos autos – das consequências processuais e substantivas de tal manifestação de vontade, tanto mais que não estamos a falar de bens com um valor diminuto, bem pelo contrário.
Que dizer?
Em primeiro lugar, como refere a própria sentença recorrida, sublinhar que “os Tribunais devem ser prudentes na condenação por litigância de má fé”.
Quanto à hipótese de se configurar no caso uma “oposição cuja falta de fundamento (o réu) não ignorava”, na esteira do que se crê ser uma constante na jurisprudência, há que recordar que a defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542º do Código de Processo Civil, sendo ainda certo que, como se pode ler no Acórdão do STJ de 11.12.2003, “a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor e réu”, o que, transposto para o caso em apreço, significa não poder afirmar-se indiciada, pela mera opção de defesa assumida pelo Réu e que o Tribunal veio a considerar improcedente, a consciência, por parte daquele, de estar a litigar sem razão, tanto mais que, ao contrário do que escreveu o Sr. Juiz a quo, no caso concreto, a sem razão do Réu não se alcança, como se vê das explanações que foi necessário efetuar para o efeito, tão linearmente como pressuposto pela condenação recorrida.
Em conclusão, “se o direito de ação judicial, não pode legitimar todo o tipo de comportamento processual praticado pelo seu titular, certo é que a peculiaridade de tal direito requer uma especial ponderação quanto à antijuridicidade da conduta, subjacente à aplicação de qualquer sanção” (Marta Alexandra Frias Borges, in “Algumas reflexões em matéria de litigância de má fé”, pág. 9), decorrendo dessa especial ponderação a não verificação, no caso concreto, dos pressupostos da condenação por litigância de má-fé.
Procede, pois, nesta parte, a apelação.

Sumário

I - Ainda que na respetiva contestação o réu suscite a questão da ineptidão, se da mesma peça processual resultar que aquele interpretou corretamente a petição, não pode o juiz, por força do disposto no nº 3 do art. 186º do CPC, julgar inepta a petição por falta de indicação do pedido;
II - O efeito da autoridade de caso julgado de decisão de mérito que, face à apresentação de desistência do pedido, declara extinto o direito de propriedade que em determinada ação se pretendia faze valer e em que àquele direito era contraposto o direito de compropriedade, impede a reapreciação da questão relativa à exclusividade da propriedade suscitada na respetiva defesa por quem no primeiro processo desistiu do pedido;
III - A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542º do Código de Processo Civil.
*
IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, exceção feita à condenação do Réu como litigante de má-fé, que se revoga, confirmando em tudo o mais o saneador-sentença recorrido.
Custas pelo Recorrente e pela Recorrida, na proporção de, respetivamente, 90% e 10%.
Guimarães, 07.12.2017


Relator
1º Adjunto
2º Adjunto