Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
72/16.6T8BCL.G1
Relator: JOAO DIOGO RODRIGUES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PASSAGENS DA GRAVAÇÃO
DIVÓRCIO SEM O CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
FUNDAMENTOS DO DIVÓRCIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Não é fundamento para a rejeição da reapreciação da matéria de facto a falta de menção, nas conclusões nas alegações de recurso, das passagens da gravação dos depoimentos em que o impugnante funda a sua discórdia.

2- Esgotado o núcleo essencial que o justifica, ou seja, o afeto enquanto núcleo fundador e central da vida conjugal, o divórcio nada mais representa do que a consagração da extinção do fundamento da conjugalidade, tal como ela hoje é entendida.

3- E no divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges não é de modo diferente. Comprovada, por quaisquer factos objetivos, que a rutura definitiva do casamento ocorreu, ainda que sem culpa de qualquer dos cônjuges, o divórcio deve ser decretado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

1- A. L., instaurou a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra, M. M., alegando, em breve resumo, que, sendo casado com esta última, já com ela não habita, desde o dia 14/12/2015. E isso porque a Ré, além de o ter agredido e injuriado, nos termos que descreve, impediu-o também de entrar no apartamento que tinham escolhido para residir em conjunto.
Daí que, considerando estes factos graves e comprometedores da sua vida em comum, peça para ser decretado o divórcio entre ambos.

2- Contestou a Ré refutando esta pretensão, porquanto são falsos os factos alegados pelo A. para o seu pedido de divórcio, o qual, a seu ver, apenas é da vontade da filha e genro do mesmo.
Pugna, por isso, pela improcedência desta ação.

3- Terminados os articulados e dispensada a audiência prévia, prosseguiram os autos para a audiência final.

4- Realizada esta, foi proferida sentença que julgou a presente ação procedente, por provada, e decretou o divórcio entre o A. e a Ré.

5- Inconformada, reagiu a Ré, terminando a suas alegações recursivas concluindo o seguinte:

1. Em nosso entender não andou bem o tribunal a quo, ao fixar todo um conjunto de factos provados, e consequentemente ao decidir em favor do Autor, apenas e só com base no que foi sustentado por ele e seus familiares (filha e genro);

2. Assim, existe in casu manifesta necessidade de reapreciação da prova gravada, face ao evidente erro na apreciação da prova;

3. Perante as considerações que foram apresentadas quanto aos factos que foram tidos por provados pelo tribunal de lª instância, e as implicações que essas mesmas considerações representam em sede de conclusão pela não violação dos deveres conjugais, não estamos munidos de apoios que nos permitam preencher o conceito de rotura definitiva de casamento, e como tal, não se verificam os fundamentos que permitem decretar o divórcio.

4. Em nosso ver, é de enorme injustiça, a desconsideração plena das declarações que foram prestadas pela ré e pela testemunha B. S., que durante vários anos conviveu com o casal, e que assistiu de perto, diferentemente das testemunhas do Autor, a vários episódios da vida conjugal.

5. Estamos, pois, perante uma decisão que desconsidera totalmente a posição da ré, que depois de tantos anos se ter dedicado ao marido, vê dissolvido o casamento, contra a sua vontade, imputando-lhe uma serie de factos que ela nega, e que as testemunhas do autor, claramente não estão em posição de afirmar a sua veracidade.

6. O tribunal “a quo” errou na apreciação que fez da matéria de facto e da valoração dos depoimentos das testemunhas e das declarações das partes.

7. O tribunal valorou os depoimentos, absolutamente parciais, da filha e genro do A., quando estes são as (únicas) pessoas claramente interessadas no divórcio do A. (para que a R. não seja chamada à eventual herança do A.) e não assistiram a qualquer facto.

8. A filha e genro do R. chegaram ao “ridículo” (por nunca acompanharem o A. e a R.) de dizer que ouviam a R. injuriá-lo quando este se encontrava ao telefone com eles !!!

9. O tribunal desconsiderou totalmente (nem a eles se refere) a prova documental junta pela R. e que não foi impugnada pelo A., nomeadamente o despacho de arquivamento e de não pronúncia dos factos participados pelo A., (facto dado como provado na al. m)) e ainda a sentença que condenou o A. pela prática do crime de ofensa à integridade tisica na pessoa da Ré.

10. Deve, pois, a após a necessária reapreciação da prova gravada em conjugação com a prova documental junta em sede de audiência e apelando ainda às mais elementares regras de experiência comum, proceder-se à alteração da matéria de facto, no sentido de a mesma ter a seguinte redação:

II. Fundamentação

Factos Provados:

a) Autora e Ré contraíram casamento civil no dia 18 de Novembro de 2005, sob o regime de imperativo de separação de bens, no Consulado Geral de Portugal, em Paris, França.
b) Após o casamento estabeleceram residência em Paris, França.
c) No dia 13 de Dezembro de 2015 o casal regressou a Portugal, a fim de residir na Travessa …, em Esposende.
d) (passa a constar dos factos não provados)
e) (passa a constar dos factos não provados)
f) O A. conta com 79 anos de idade, é doente do foro cardíaco e tem dificuldade de movimentos.
g) (passa a constar dos factos não provados)
h) A. e R. tinham planeado residir numa habitação sita na Travessa …, em Esposende, tendo contratado o transporte do mobiliário, desde França para esse local.
i) A ré ainda tem na sua posse as chaves da referida habitação, porque é ela quem lá reside e não as entregou ao Autor porque ele foi residir com a filha e a R. nunca mais conseguiu estabelecer comunicação com ele, que nunca foi residir para tal habitação, tendo da residencial em Fão ido logo residir para casa da filha, de onde mais não saiu.
j) o A., desde o dia referido em c), reside com a sua filha, genro e netas.
k) (passa a constar dos factos não provados)
1) O A. teve de consultar médicos para lhe prescreverem os medicamentos relativos à doença do foro cardíaco que padece.
m) O A. participou criminalmente contra a Ré, no Ministério Público junto do Tribunal de Esposende, sobre as injúrias de que diz ser alvo e, sobre o facto de a Ré alegadamente se ter agarrado ao seu peito, com força, no local onde este tem implementado um “pacemaker”, após abertura de processo, o Ministério Publico procedeu ao seu arquivamento, por falta de indícios (o que foi confirmado por despacho de não pronúncia, após abertura de instrução.
n) Desde o dia 14 de Dezembro de 2015 que A. e Réu não mantêm comunhão de mesa, leito e habitação, vivendo em residências separadas.
o) O A. não pretende reatar a vida em comum com a Ré.

Factos não Provados.

Não resultaram provados os restantes factos alegados designadamente que:

i. No dia 14/12/2015, pelas 20h00m, no interior duma residencial sita na Rua …, Esposende, num dos quartos dessa residência, a Ré, como era habitual, dirigiu-se ao autor dizendo-lhe que a filha e suas netas eram umas “putas” e que o genro era um “paneleiro”.”;
ii. No seguimento dessa discussão iniciada entre ambos a Ré se agarrou ao peito do Autor, com força, no local onde este tem implementado um “pacemaker”.”
iii. Com a conduta descrita em ii), desferindo-lhe murros na zona do tórax junto ao coração a R. queria causar a morte do A., pelo que este temeu pela sua vida.
iv. A Ré, desde 15 de dezembro de 2015, não entregou ao A. as roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse”
v. A Ré frequentemente apelidava o Autor de “velho”, “filho da puta”, dizendo-lhe que “nunca mais morres e não tens valor nenhum”.”
vi. O A. encontra-se manipulado e manietado pela filha e genro que controlam todos os seus movimentos e vontade, não o deixando contactar com a R., incentivando-o a divorciar-se desta.
vii. A R. dedicou toda a sua vida ao A. a quem sempre forneceu alojamento e alimentação sem nada receber em troca.
11. Em face da alteração da matéria de facto que pretendemos ver considerada, deve o presente tribunal, atendendo às implicações que essas mesmas alterações representam em sede de conclusão pela não violação dos deveres conjugais, concluir que não estamos munidos de fundamentos que permitam preencher o conceito de ruptura definitiva de casamento, e como tal, pela impossibilidade de se decretar o divórcio.
12. Assim, devem Vossas Excelências decidir pela revogação da decisão anterior, em ordem a manter-se o casamento entre as partes”.
6- Entretanto, foi conhecido o óbito do A. e habilitada a sua herdeira, que respondeu, suscitando a questão da inadmissibilidade da reapreciação da matéria de facto por ausência de indicação, nas conclusões, das passagens das gravações dos depoimentos que permitem a modificação da matéria de facto e, subsidiariamente, pede a confirmação do julgado.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Mérito do recurso

A- Definição do seu objeto

O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, nº 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objeto deste recurso resume-se à questão de saber se deve ser modificada a matéria de facto nos termos requeridos pela Apelante e, na afirmativa, quais as respetivas consequências jurídicas.
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B- Fundamentação

1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

a) Autora e Ré contraíram casamento civil no dia 18 de Novembro de 2005, sob o regime de imperativo de separação de bens, no Consulado Geral de Portugal, em Paris, França.
b) Após o casamento estabeleceram residência em Paris, França.
c) No dia 13 de Dezembro de 2015 o casal regressou a Portugal, a fim de residir na Travessa …, em Esposende.
d) No dia 14/12/2015, pelas 20h00m, no interior duma residencial sita na Rua …, Esposende, num dos quartos dessa residência, a Ré, como era habitual, dirigiu-se ao autor dizendo-lhe que a filha e suas netas eram umas “putas” e que o genro era um “paneleiro”.
e) No seguimento dessa discussão iniciada entre ambos, a Ré agarrou-se ao peito do Autor, com força, no local onde este tem implementado um “pacemaker”.
f) O A. conta com 79 anos de idade, é doente do foro cardíaco e tem dificuldade de movimentos.
g) A Ré frequentemente apelidava o Autor de “velho”, “filho da puta”, dizendo-lhe que “nunca mais morres e não tens valor nenhum”.
h) A. e R. tinham planeado residir numa habitação sita na Travessa …, em Esposende, tendo contratado o transporte do mobiliário, desde França para esse local.
i) A Ré ainda tem na sua posse as chaves da referida habitação e não as entregou ao A.
j) O A., desde o dia referido em c) e após o descrito d), e) e i), reside com a sua filha, genro e netas.
k) A Ré, desde 15 de Dezembro de 2015, não entregou ao A. as suas roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse.
l) O A. teve de consultar médicos para lhe prescreverem os medicamentos relativos à doença do foro cardíaco que padece.
m) Pelos factos descritos em d) a k) o A. participou criminalmente contra a Ré no Ministério Público junto do Tribunal de Esposende.
n) Desde o dia 14 de Dezembro de 2015 que A. e Réu não mantêm comunhão de mesa, leito e habitação, vivendo em residências separadas.
o) O A. não pretende reatar a vida em comum com a Ré.
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2- Na mesma sentença não se julgou provado que:

- Com a conduta descrita em e), desferindo-lhe murros na zona do tórax junto ao coração a R. queria causar a morte do A., pelo que este temeu pela sua vida.
- O A. encontra-se manipulado e manietado pela filha e genro que controlam todos os seus movimentos e vontade, não o deixando contactar com a R., incentivando-o a divorciar-se desta.
- A R. dedicou toda a sua vida ao A. a quem sempre forneceu alojamento e alimentação sem nada receber em troca.
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3- Apreciação dos fundamentos do recurso

Como vimos, a Apelante pretende reverter o resultado obtido na sentença recorrida, questionando, em larga medida, a factualidade que nela foi julgada provada.
A Apelada, todavia, não se conforma com esse exercício e contrapõe que a impugnação da Apelante é inadmissível, visto que a mesma não especificou, como devia, nas conclusões das alegações de recurso, as passagens da gravação em que funda as suas divergências.
Pois bem, sendo certo que a lei impõe ao recorrente que impugne a matéria de facto com base na prova gravada, a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que funda o seu recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes) – artigo 640.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil -, já não é verdade que essa indicação tenha de ser feita nas conclusões das alegações de recurso.
Estas conclusões, com efeito, servem essencialmente para delimitar o objeto do recurso e não para explanar toda a sua fundamentação ou, menos ainda, para localizar os meios de prova. Por isso mesmo “[s]ervindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso”(1).
Ora, no caso presente, a Apelante assim procedeu; ou seja, elencou, na motivação do recurso, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, os meios de prova que impunham decisão diversa sobre esses factos, aditando-lhe a localização desses meios em termos fonográficos, e concluiu pela decisão que a seu ver deveria ser tomada sobre tais factos. Além disso, refletiu nas conclusões do recurso quais os factos que, a seu ver, devem ser julgados provados e não provados.
Deste modo, encontra-se cabalmente cumprido o preceituado no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código de Processo Civil, pelo que não há qualquer fundamento para a rejeição da requerida reapreciação da matéria de facto.
Posto isto, vejamos, então, qual é essa matéria.
Estão em causa os factos elencados nas alíneas d), e), g), i), j), k) e m), do capítulo dos Factos Provados.
Nas duas primeiras dessas alíneas, refere-se um episódio ocorrido no dia 14/12/2015, numa residencial situada na freguesia de Fão, concelho de Esposende, em que a Ré teria difamado a filha, netas e genro do A., e, seguidamente, se teria agarrado ao peito deste, com força, justamente, no local onde o mesmo tinha instalado um “pacemaker”.
A instância recorrida julgou estes factos provados, mas a Ré considera insuficiente a prova produzida, que se cingiu às declarações de parte do A. e aos depoimentos da filha e genro deste. Tanto mais que, no âmbito de um outro processo de natureza criminal, tais factos não foram julgados provados, mas, antes, o A. acusado e condenado por ofensas corporais à Ré.
Efetivamente, é verdade que no dito processo crime o A. não logrou comprovar a sua versão de que a Ré o agrediu nos termos por ele aí denunciados. E, pelo contrário, foi o A. quem acabou, depois de acusado e pronunciado, por ser condenado pelo crime de ofensas corporais, em relação à Ré (cfr. fls. 173 a 188).
E também é verdade que, nestes autos, a prova de tal específica agressão foi feita só com base nos depoimentos do A., da sua filha e genro, sendo que estes últimos só relataram em julgamento aquilo que o A. lhes transmitiu.
Portanto, atendendo à excessiva proximidade afetiva entre todos estes intervenientes e até ao modo pouco pormenorizado como tal agressão foi descrita em julgamento, pensamos que a mesma não se pode julgar como provada. E o mesmo se diga das expressões que concretamente foram proferidas.
Mas já se pode, e deve, julgar demonstrado que, nesse dia, o A. e a Ré se desentenderam e discutiram um com o outro.
Com efeito, não só essa discussão foi apurada no referenciado processo criminal, como o A. e até, em certa medida, a Ré, acabaram por o admitir explicita ou implicitamente. O que, à luz das regras da experiência comum, não causa qualquer estranheza. Até em face da agressão pela qual o A. acabou por ser condenado. E também foi esse desentendimento, ainda que não só, a justificação apresentada pelo A. à sua filha e genro para ir morar com eles.
Daí que se opte por substituir a redação inserta nas referenciadas alíneas por uma outra com o seguinte teor:
“No dia 14/12/2015, pelas 20h00m, no interior duma residencial sita na Rua …, Esposende, num dos quartos dessa residência, o A. e a Ré desentenderam-se e discutiram um com o outro”.
Avancemos para outro tema: o descrito na alínea g) do mesmo capítulo.
O que está em causa é a questão de saber se a Ré se dirigia, frequentemente, ao A. em termos injuriosos, tais como os que aí vêm referenciados.
Ora, os testemunhos da filha e genro do A. não nos deixaram quaisquer dúvidas a esse propósito, pois que ouviram esses epítetos diretamente, designadamente, quando o A. lhes telefonava.
A Ré pretende contrariar esta versão com os depoimentos dela própria e da testemunha, B. S.. Todavia, além de não ser de esperar, à luz das regras da experiência comum, que a Ré reconhecesse semelhante forma de tratamento, também a referida testemunha se mostrou demasiado comprometida com a versão da Ré, em virtude da amizade que alegadamente as une às duas.
A afirmação em apreço, pois, manter-se-á inalterada no capítulo dos Factos Provados.
Quanto à afirmação seguinte, ou seja, a que consta da alínea i) do mesmo capítulo, a Ré questiona-a, não propriamente por não ser verdadeira, mas porque, a seu ver, deve ser objeto de um aditamento, no sentido de esclarecer que se ela tem as chaves do apartamento arrendado para os dois morarem em conjunto, é porque só ela é que lá reside, e não o A., o qual passou a habitar em casa da filha e nunca mais conseguiu estabelecer contacto com ele.
Ora, este esclarecimento não foi objeto de prova segura nesse sentido. Pelo contrário, tanto a filha do A., como o seu genro, sempre afirmaram em julgamento que tentaram estabelecer contacto com a Ré, no sentido desta lhes entregar a documentação, medicamentos e pertences pessoais do A., e não o conseguiram, por não saberem, inclusive, onde é que aquela morava.
Deste modo, não se pode concluir, como faz a Ré, que o A. só não tem as chaves daquela que seria a casa de morada de família porque não quer.
E, pelo que acaba de ser dito, já se intui qual é, em parte, a nossa posição sobre a factualidade vertida na alínea k) dos Factos Provados.
Efetivamente, resultou inequívoco dos depoimentos da filha e genro do A. que a Ré não entregou ao A. todas as suas roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse. O que, aliás, obrigou o A. a andar vestido com roupa do genro e a deslocar-se a França para aí recolher alguma documentação clinica que a Ré tinha em seu poder e que se recusava a entregar-lhes; isto, inclusive, tendo por mediador o patrono judicial do A. Mas, sem sucesso. Só passado bastante tempo é que a Ré enviou ao A. alguns dos seus pertences e, mesmo assim, ainda não todos.
Temos, assim, por certo que se deve julgar como comprovado que: “A Ré, desde 15 de Dezembro de 2015, não entregou ao A. todas as suas roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse, apesar do mesmo lhos ter solicitado”.
Não oferece dúvidas, por outro lado, que, perante aquilo que acaba de ser dito, deve ser modificada a redação da alínea j) dos Factos Provados. Até porque foi unânime a versão de que o A., a partir do dia 15/12/2015, passou a integrar o agregado familiar da respetiva filha. O que determina a redação daquela alínea, cujo teor passará a ser o seguinte: “O A., desde o dia 15/12/2015, na sequência do desentendimento e discussão com a Ré, ocorridos no dia anterior, passou a residir com a sua filha, genro e netas”.
Resta a alínea m) dos Factos Provados. Nela se afirma o seguinte: “Pelos factos descritos em d) a k) o A. participou criminalmente contra a Ré no Ministério Público junto do Tribunal de Esposende”.
Pretende a Ré que se dê uma nova redação a esta alínea. Concretamente, propõe que aí se exare o seguinte: “O A. participou criminalmente contra a Ré, no Ministério Público junto do Tribunal de Esposende, sobre as injúrias de que diz ser alvo e, sobre o facto de a Ré alegadamente se ter agarrado ao seu peito, com força, no local onde este tem implementado um "pacemaker", após abertura de processo, o Ministério Publico procedeu ao seu arquivamento, por falta de indícios (o que foi confirmado por despacho de não pronúncia, após abertura de instrução”.
Em rigor, esta factualidade não foi toda alegada pelo A. e também não integra a causa de pedir do divórcio pelo mesmo requerido. Por outro lado, através dos documentos juntos aos autos, também não é possível conhecer o teor de toda a participação criminal apresentada pelo A.. Diz-se, no despacho de arquivamento (fls. 182 e v.º), que foi por a Ré “se ter atirado para cima dele [A.], lhe ter apertado os peitos e o ter socado na região do tórax”. Mas, se nesta parte, foi arquivado o inquérito, refere-se nesse mesmo despacho que a denúncia do A. também integraria factos suscetíveis de preencher os crimes de injúria e abuso de confiança, para os quais o Ministério Público não tinha legitimidade para imputar, sem acusação particular.
Assim, seja pela citada irrelevância de tais factos, seja por se desconhecer o teor da participação criminal do A., opta-se por os excluir da factualidade provada.
Apenas uma nota mais: como é fácil de perceber, estando já assente que o A. foi viver para casa da filha e do genro no dia 15/12/2015, não se pode manter como provado que desde o dia anterior (14/12/2015), “A. e Réu não mantêm comunhão de mesa, leito e habitação, vivendo em residências separadas”, como consta da alínea n) dos Factos Provados.
Por isso mesmo, usando da faculdade prevista no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, far-se-á essa harmonização.

Em resumo, a factualidade provada passará a ser assim constituída:

1- A. e Ré contraíram casamento civil no dia 18 de Novembro de 2005, sob o regime de imperativo de separação de bens, no Consulado Geral de Portugal, em Paris, França.
2- Após o casamento estabeleceram residência em Paris, França.
3- No dia 13 de Dezembro de 2015, o casal regressou a Portugal, a fim de residir na Travessa …, em Esposende.
4- No dia 14/12/2015, pelas 20h00m, no interior duma residencial, sita na Rua …, Esposende, num dos quartos dessa residência, o A. e a Ré desentenderam-se e discutiram um com o outro.
5- O A. conta com 79 anos de idade, é doente do foro cardíaco e tem dificuldade de movimentos.
6- A Ré frequentemente apelidava o A. de “velho”, “filho da puta”, dizendo-lhe que “nunca mais morres e não tens valor nenhum”.
7- A. e R. tinham planeado residir numa habitação sita na Travessa …, em Esposende, tendo contratado o transporte do mobiliário, desde França para esse local.
8- A Ré ainda tem na sua posse as chaves da referida habitação e não as entregou ao A.
9- O A., desde o dia 15/12/2015, na sequência do desentendimento e discussão com a Ré, ocorridos no dia anterior, passou a residir com a sua filha, genro e netas.
10- A Ré, desde 15 de Dezembro de 2015, não entregou ao A. todas as suas roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse, apesar do mesmo lhos ter solicitado
11- O A. teve de consultar médicos para lhe prescreverem os medicamentos relativos à doença do foro cardíaco que padece.
12- Desde o dia 15 de Dezembro de 2015 que A. e Réu não mantêm comunhão de mesa, leito e habitação, vivendo em residências separadas.
16- O A. não pretende reatar a vida em comum com a Ré.
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Perante esta factualidade, a questão que se coloca, agora, é a de saber se ocorre, ou não, fundamento para a dissolução do casamento celebrado entre o A. e a Ré.
Na instância recorrida, entendeu-se que sim. Mas a Ré defende, neste recurso, o contrário. Defende, no fundo, a modificação da matéria de facto e, com isso, a improcedência desta ação.
Mas, do nosso ponto de vista, como veremos, sem razão.
É por demais conhecida a modificação operada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, no que ao divórcio litigioso diz respeito. Até aí entendido também (2) como remédio/sanção para o incumprimento culposo dos deveres conjugais (cfr. artigo 1779.º, do Código Civil, na redação que lhe foi dada pelo Decreto Lei n.º 496/77, de 25 de novembro), o divórcio passou a ser encarado, desde então, essencialmente como manifestação da rutura da vida em comum. Seja porque a violação culposa dos deveres conjugais a isso conduziu, seja por outra razão qualquer que evidencie a rutura definitiva do casamento.
Esgotado o núcleo essencial que o justifica, ou seja, o afeto enquanto núcleo fundador e central da vida conjugal, o divórcio nada mais representa do que a consagração da extinção do fundamento da conjugalidade, tal como ela hoje é entendida (3).
E, assim, ou essa extinção é presumida de forma inilidível, nos casos previstos no artigo 1781.º, als. a) a c), do Código Civil, na redação atual, ou então tem de ser provada através de “quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento” – al. d) do mesmo preceito
Predomina, assim, na lei atual “a concepção do divórcio unilateral e potestativo, em que um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento, por simples declaração de vontade singular, sem que haja lugar à apreciação da culpa ou à aplicação de sanções, o que acaba por significar que o fundamento da ruptura se traduz na inexistência de uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, a que alude o artigo 1577º, do CC, isto é, numa expressão mais redutora, quando a «affectio conjugalis» e a cumplicidade entre os cônjuges baixou ao grau zero de satisfação para um deles, e em que a lei não pode sobrepor-se ou substituir-se à vontade do cônjuge que pretende a dissolução do seu casamento.
Trata-se, afinal, do direito ao casamento e do direito ao divórcio como duas faces inseparáveis da mesma moeda, expressão do princípio da autonomia da vontade, que, na hipótese do divórcio, pode ainda ser decretado, em consequência da vontade unilateral de um dos cônjuges, nos casos e termos previstos na lei, atento o estipulado pelos artigos 406º, nº 1 e 1781º, do CC, na sequência do entendimento que reconduz o casamento a um contrato dissolúvel pela vontade das partes, porque celebrado com vista à sua felicidade.
Com efeito, a relação a dois existente dentro do casal, movida pelo propósito da realização pessoal, independentemente de qualquer quadro de valores e de respostas externas, apenas baseada no compromisso permanente e na gratificação renovada, contém, em si mesma, o acordo prévio sobre a sua própria dissolução.
A ideia do casamento como relação pura, baseada no compromisso privado, que contém em si a possibilidade antecipada da sua dissolução, torna injustificada a definição de deveres conjugais imperativos, conduzindo os sistemas jurídicos para uma regulamentação minimalista do sistema de divórcio.
Tratou-se do prenúncio do aparecimento do modelo do «divórcio sem culpa», assente na constatação da ruptura do matrimónio, indiciada por causas objectivas, ou no acordo dos cônjuges, através do mútuo consentimento activo ou do consentimento passivo do cônjuge que se não opõe ao pedido de divórcio formulado pelo outro.
Seguindo esta tendência, a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, expressão que preferiu à anterior designação de «divórcio litigioso», deixando de existir o divórcio com fundamento na violação culposa dos deveres conjugais, afastando-se a culpa, quer quanto às causas, quer quanto aos efeitos do divórcio.
Este último diploma encontra-se em linha coerente com a crescente propensão para a “privatização” do casamento, subtraído, gradualmente, à intervenção tutelar do Estado, como contrato, tendencialmente, denunciável, cada vez mais próximo da disciplina dos contratos em geral, de cujo tronco comum, outrora, já fez parte e, por outro lado, com as tentativas actuais da sua descontratualização, pela sua assimilação a outras fórmulas de comunhão de vida, mas, também, de descontextualização, pela alteração do binómio natural das pessoas, originariamente, hábeis a contraí-lo, associadas à desformalização do divórcio e à sua frequência redobrada, já bem longe da natureza publicista e sacramental antecedentes, enquanto realidades a tomar em consideração na abordagem da questão do divórcio.
Do princípio da liberdade decorre que ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade, incluindo quando considerar que houve quebra do laço afectivo, devendo o cônjuge que for tratado, de forma desigual, injusta ou de forma a atentar contra a sua dignidade, poder terminar a relação conjugal, mesmo sem a vontade do outro, sendo certo que a invocação da ruptura definitiva da vida em comum deve constituir fundamento suficiente para a declaração do divórcio, não como sinal de facilitismo, mas antes de valorização de uma conjugalidade, feliz e conseguida, potencialmente, repetível” (4).
Ora, foi justamente neste pressuposto que o A. se dirigiu a juízo pedindo o seu divórcio da Ré.
Alegando ter sido vitima de agressão e injurias continuadas por parte desta, o A. veio dar conta também que, desde o dia 15/12/2015, que já não mantém qualquer vida em comum com a Ré e que a mesma, além de não lhe facultar as chaves para a entrada na casa escolhida para a morada de ambos, também não lhe entregou todas as suas roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse, apesar de lhos ter solicitado.
E conseguiu provar grande parte das suas acusações.
Assim, embora não tivesse ficado demonstrada a agressão descrita pelo A., certo é que se provou, como vimos, que, na sequência do desentendimento e discussão havidos, no dia 14/12/2015, entre ambos, os mesmos deixaram de ter vida em comum e passaram a habitar em residências separadas. Mais: a Ré, como vimos, não facultou ao A. as chaves para a entrada na casa escolhida para a morada de ambos e também não lhe entregou posteriormente todas as suas roupas e haveres pessoais, bem como os medicamentos que ficaram na sua posse, apesar de lhe terem sido solicitados e de os mesmos serem essenciais para o bem-estar e saúde do A., pois que este, além de idoso, era doente do foro cardíaco e tinha dificuldade de movimentos. O que denota um grave incumprimento dos deveres conjugais de cohabitação, respeito e cooperação, consagrados nos artigos 1672.º, 1673 e 1674.º, do Código Civil.
Mas não só nestes episódios se surpreende a violação dos deveres conjugais. A Ré, como se provou, também injuriava, frequentemente, o A., com epítetos e frases que o desconsideravam por completo, denotando pouco apreço pela vida do mesmo.
Ora é, justamente, perante este quadro que nos devemos interrogar sobre a questão de saber se o matrimónio celebrado entre o A. e a Ré tinha condições objetivas para perdurar, à luz dos valores dominantes na lei civil atual. Isto, sabendo nós que o A., como disse em julgamento, e se provou, já não pretendia, antes de falecer, reatar a sua vida em comum com a Ré, e esta, como também confessou em julgamento, só como um sofrimento via a sua relação conjugal com o A.
Pois bem, do nosso ponto de vista, a resposta à referida questão só pode ser negativa. Dentro do quadro fatual referenciado, nenhum afeto entre o A. e a Ré se pode ter por demonstrado. Nem sequer esperança havia de que pudesse vir a ser restabelecido, se o A. não tivesse, entretanto, falecido. Seja em virtude da referenciada factualidade, seja mesmo devido ao modo como o A. e a Ré passaram a olhar para o seu casamento.
De modo que a rutura conjugal requerida pelo A. não pode deixar de ser legitimada, porque definitiva. Ou seja, a sentença recorrida deve ser mantida, assim improcedendo este recurso.
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III- DECISÃO

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
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- Porque decaiu na sua pretensão, as custas serão pagas pela Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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1. Ac. STJ de 31/05/2016, Processo n.º 1184/10.5TTMTS.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
2. Diz-se também porque já então era admitido o divórcio por causas objetivas (artigo 1781.º, do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 47/98, de 10 de agosto.
3. “Liberdade de escolha e igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges, afectividade no centro da relação, plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos, quando os houver, eis os fundamentos do casamento nas nossas sociedades”, como consta da exposição de motivos do Projeto de Lei nº 509/X, consultável em https://www.parlamento.pt
4. Ac. STJ de 09/02/2012, Processo n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.