Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
207/14.3GAVF.G1
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: MÁQUINA DE JOGO
FORTUNA E AZAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: O jogo de uma máquina que, não pagando directamente prémios em fichas ou dinheiro, desenvolve temas próprios de jogos de fortuna ou azar (em tudo semelhante ao modo de operação de um jogo de roleta) e apresenta como resultado pontuações (susceptíveis de serem convertidas em dinheiro) dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte (sem qualquer intervenção da perícia do jogador), deve ser classificado como um jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 1º e 4º, nº1, al. g, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

1 – Nos presentes autos de inquérito-crime, foi proferido despacho de acusação contra Leonilda S., imputando-lhe a prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelo artigo 108º, nº1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 114/2011, de 30 de Novembro, por referência aos artigos 1º, 3º e 4º, nº, 1, f), do mesmo diploma.

2 – A arguida, inconformada com o despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, requereu a abertura de instrução, visando a sua não pronúncia pela prática do crime pelo qual vinha acusada.

3 – Finda a instrução, foi proferido despacho de não pronúncia.

4 – Inconformado, dele, recorre, agora, o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se transcrevem:

«1. Constitui objecto do presente recurso a decisão instrutória proferida nos autos, na qual o M.º Juiz de Instrução Criminal “a quo” decidiu não pronunciar a arguida, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelos artigos 1º, 3º, 4º, 108º e 115º, todos do DL 422/89, de 02/12, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 10/95, de 19-01 e determinou o oportuno arquivamento dos autos.

2. Entendeu o M.º JIC que o “jogo” desenvolvido na máquina apreendida nos autos não pode ser classificado como “jogo de fortuna ou azar”, razão pela qual a sua exploração não é susceptível de integrar o crime imputado à arguida, nem qualquer outro crime previsto na dita “Lei do Jogo”.

3. Mais concluiu que pelo seu modo de funcionamento e tipo de jogo se está perante máquina que desenvolve uma “modalidade afim”, tal como definida no artigo 163º, n.º1, por referência aos artigos 159º, 160º, n.º1 e 161º, do DL nº. 422/89, de 02-12 (com as alterações introduzidas pelo DL nº. 10/95, de 10-01).

4. A máquina em causa nos autos, é do tipo de roleta, em que é um sinal luminoso giratório que determina a sorte ou o azar do jogador, consoante tal luz se imobilize num dos oito pontos premiados ou não, o que depende, única e exclusivamente, da sorte do jogador. Ganhando créditos, o jogador pode optar por continuar a jogar ou por trocá-los pelas quantias pecuniárias correspondentes.

5. O artigo 1º, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, define como jogos de fortuna ou azar todos aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”, sendo a alínea g) do nº 1 do artigo 4º, exemplifica como tipo de jogo de fortuna ou azar, “Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte”.

6. O artigo 108º, nº 1, do referido Decreto-Lei, dispõe que comete um crime de exploração de jogo ilícito “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados”. Trata-se de uma cláusula geral que tem vindo a suscitar dificuldades de interpretação, quando se pretende distinguir este ilícito criminal dos ilícitos contra-ordenacionais que correspondem a modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo – cfr. arts. 159º a 161º, do mesmo diploma legal.

7. O modo de funcionamento do equipamento apreendido nos autos é igual ou análogo ao do jogo da “roleta electrónica”, ou “slot machine” usada nos casinos e assenta num sortilégio de fórmulas matemáticas do respectivo software, das quais há-de resultar que as figuras em movimento se detenham em certo ponto do seu percurso, em relação ao qual o jogador não controla de modo algum o desenlace da jogada, ao qual é absolutamente indiferente a sua vontade ou perícia.

8. Não restam, pois, quaisquer dúvidas de que o comportamento da arguida, reflectido nos autos, é indiciariamente subsumível ao disposto no art. 108º, 1, do DL 422/89, de 2-12, com referência aos arts. 1º e 3º e 4º nº 1 al. g), do mesmo diploma.

9. Pelos fundamentos expostos, entendemos que deverá ser revogado o despacho de não pronúncia da arguida e, ordenar-se ao M.º JIC, que profira despacho de pronúncia em conformidade com os factos constantes da acusação do Ministério Público.

10. Ao decidir como decidiu violou o M.º JIC os artigos 308º, n.ºs 1 e 2, 283º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal e artigo108º, 1, do DL 422/89, de 2-12, com referência aos arts. 1º e 3º e 4º nº 1 al. g), do mesmo diploma».

5 – A arguida defende a manutenção da decisão recorrida, na Resposta à Motivação do Recorrente, nos termos que constam a fls.148 a 150.

6 - Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto, secundando os argumentos aduzidos em primeira instância pelo Ministério Público, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

7 - Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II – THEMA DECIDENDUM

A questão essencial a decidir consiste em saber se os factos indiciados se podem subsumir no crime de exploração ilícita de jogo previsto e punido pelo artigo 108º, nº1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.

III – FACTOS INDICIADOS

Os factos relevantes para a qualificação jurídico-penal constam da acusação e são os seguintes:

«1. No dia 22/03/2014, a arguida explorava o estabelecimento comercial denominado “Café T.”, sito na Avenida …, em V. N. de Famalicão.

2. Na circunstância, encontrava-se exposta no interior do sobredito estabelecimento, à disposição de qualquer cliente, uma máquina em forma de cubo, de cor azul, com um painel frontal em acrílico, no qual se encontrava inscrita a expressão “No FEAR”.

3. O painel da máquina apresentava, também, um botão vermelho no canto inferior direito e, sequencialmente, os algarismos “50; 10; 1; 2; 5; 20; 100 e 200” que rodeavam uma circunferência composta por diversos leds vermelhos e oito verdes, os quais correspondiam a cada um dos algarismos sobreditos.

4. No centro da circunferência aludida em 3. encontravam-se ainda dois visores digitais, rectangulares, sendo o primeiro deles indicativo de créditos disponíveis e o segundo (abaixo do primeiro) dos valores premiados.

5. A máquina descrita em 2. a 4. exibia, na lateral direita, uma ranhura que permitia a introdução de moedas de €0,50, ou €1,00, mediante inserção das quais iniciava o seu funcionamento da seguinte forma:

a. à introdução de uma moeda de €0,50, ou €1,00, correspondiam, respectivamente, uma ou duas jogadas;

b. a mera inserção de uma daquelas moedas despoletava, de modo automático e sem qualquer intervenção do jogador, um movimento giratório da luz dos leds que compunham a circunferência descrita em 3.;

c. este movimento giratório poderia terminar, de forma aleatória, fixo em qualquer dos seus leds da circunferência, o qual permaneceria aceso;

d. caso o último led aceso fosse verde, o jogador ganharia o valor do correspondente algarismo, que apareceria no visor inferior colocado no centro daquela circunferência, e o jogador poderia receber, em numerário, o valor correspondente ao exibido no painel da máquina;

c. Se o último led aceso fosse vermelho, o jogador nada ganharia.

6. A única intervenção do jogador consistia na introdução de uma moeda, no moedeiro da máquina, sendo totalmente aleatório o resultado de cada jogada.

7. A arguida fazia sua, uma percentagem dos proveitos da máquina, entregando o restante ao seu proprietário, cuja identidade não foi apurada.

8. A arguida não possuía qualquer autorização para a exploração do jogo descrito em 5..

9. Na circunstância, no interior da máquina - «moedeiro» - encontravam-se €41,00 em moedas de €0,50 e €1,00.

10. Mantendo a referida máquina no estabelecimento indicado em 1., a arguida agiu com o propósito de aumentar os lucros da actividade daquele mesmo estabelecimento.

11. A arguida conhecia as características do jogo existente na aludida máquina, nomeadamente que o resultado de cada jogada era totalmente aleatório à vontade e perícia do jogador.

12. A arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».

IV – A DECISÃO RECORRIDA

A decisão recorrida, na parte que interessa para a decisão, tem o seguinte teor:

«(…) Conforme referimos no relatório da presente decisão, na acusação que deduziu o Ministério Público imputa à arguida a prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelos artigos 1.º, 3.º, 4.º, n.º 1, alínea f), e 108.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro.
Vejamos, então, o tipo legal do crime em apreço.
De acordo com o disposto no citado artigo 108.º, pratica o crime em questão quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados.
No sentido de tentarmos perceber melhor o tipo legal do crime em apreço, façamos, antes de mais, uma breve resenha da evolução histórica da disciplina jurídica do jogo em Portugal.
A matéria em questão começou por ser regulada nos artigos 264.º a 272.º do Código Penal de 1886, sob a epígrafe de «jogos e lotarias», sendo sancionada a prática dessas actividades, fora dos condicionalismos legais, com penas que variavam entre 1 mês e 6 meses de prisão e, em caso de reincidência, com prisão de 2 meses até 1 ano.
Posteriormente, o Decreto n.º 14.643, de 3 de Dezembro de 1927, pondo termo a uma longa tradição, veio autorizar a exploração de jogos de fortuna ou azar, em regime de concessão de exclusivo, em determinadas localidades qualificadas como zonas de jogo.
Subsequentemente, em 01/04/1969, entrou em vigor a disciplina jurídica do jogo constante do Decreto-Lei n.º 48.912, de 18 de Março de 1969, que reuniu num só diploma disposições dispersas por diversos decretos avulsos, que entretanto haviam sido publicados.
Este diploma, no seu artigo 1.º, definia como de fortuna ou azar «os jogos cujos resultados são contingentes, por dependerem exclusivamente da sorte.». Além disso, o artigo 2.º prescrevia que a prática de tais jogos só era permitida nos casinos existentes nas zonas de jogo e nas épocas estabelecidas para o seu funcionamento.
O artigo 4.º elencava os tipos de jogos de fortuna ou azar cuja exploração era autorizada nos casinos das zonas de jogo, apenas compreendendo jogos bancados e jogos não bancados e a nível de máquinas, apenas o constante do n.º 3 – máquinas automáticas (pagando directamente fichas ou moedas).
O artigo 56.º, por seu turno, estatuía que aqueles que infringissem o disposto no sobredito artigo 2.º, quer explorando jogos de fortuna ou azar, incluindo máquinas automáticas de fichas ou moedas, quer exercendo a sua actividade na respectiva exploração, eram punidos com prisão de 6 meses a 2 anos e demissão dos seus cargos se fossem funcionários do Estado ou dos corpos administrativos.
Constatava-se ainda que o Decreto-Lei n.º 48.912 continha já a regulamentação do que chamava, fazendo uso de uma terminologia que se sedimentaria na legislação posterior, de «modalidades afins do jogo de fortuna ou azar», considerando como tais «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside essencialmente na sorte»3, que ficaram dependentes de autorização casuística do Ministro do Interior.
De harmonia com o §1.º do artigo 43.º do referido diploma legal, eram especialmente abrangidas «as rifas, tômbolas, sorteios, assim como quaisquer máquinas automáticas cujo funcionamento não dependa da utilização, nem origine a atribuição de fichas e para cujos resultados não influa a perícia e, ainda, os concursos de publicidade, ou outros, em que se verifique a atribuição de prémios». A promoção de qualquer dessas modalidades, em conformidade com a lei, consistia na prática de uma transgressão, sujeita à aplicação de multa (artigo 59.º, corpo).
Saliente-se que o artigo 44.º do mesmo diploma legal prescrevia que não se consideravam abrangidos na disposição anterior a instalação e exploração de aparelhos automáticos ou quaisquer dispositivos destinados unicamente à venda de artigos ou produtos, quando a importância despendida não excedesse o valor comercial dos mesmos.
Ulteriormente, o Decreto-Lei n.º 293/81, de 16 de Outubro, estabeleceu o regime de registo e exploração de máquinas eléctricas de diversão.
Em 16 de Fevereiro de 1985, entraram em vigor os Decretos-Lei n.º 21/85 e 22/85, ambos de 17 de Janeiro desse ano.
O primeiro definia o regime de exploração de máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas de diversão, tendo sido posteriormente revogado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 316/95, de 28 de Novembro. O segundo, por seu turno, introduziu alterações ao Decreto-Lei n.º 48.912.
Qualquer destes diplomas legais mais não visou do que corresponder à evolução dos tempos, tendo em conta a evolução tecnológica que as máquinas sofreram.
Como se acentuou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 22/85, «são muitas e sofisticadas as modalidades de máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas, que, embora não pagando directamente prémios em dinheiro ou em fichas, se têm revelado meios apropriados para a prática ilegal de jogos de fortuna ou azar, na medida em que favorecem a aposta de dinheiro sobre os créditos representados nas pontuações em que se traduzem os seus resultados, dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. A solução legal até agora adoptada, consistente na qualificação de tais máquinas como de diversão e na sua sujeição ao regime instituído para as máquinas de tipo flipper, tem-se revelado ineficaz para prevenir e reprimir o seu emprego na aludida prática de jogo ilícito». Acrescentando, ainda: «justifica-se, assim, a revisão do enquadramento legal daquelas máquinas, qualificando-se as mesmas como verdadeiros jogos de fortuna ou azar e, consequentemente, restringindo-se o seu uso aos casinos das zonas de jogo autorizadas».
Na prossecução deste propósito, o artigo 1.º do predito Decreto-Lei n.º 22/85 veio aditar o n.º 4 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48.912 (que passou a constituir um novo tipo de jogos de fortuna ou azar, apenas autorizado nos casinos das zonas de jogo), do seguinte teor: «4) Máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas que, não pagando directamente prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.».
O mesmo Decreto-Lei n.º 22/85, no seu artigo 2.º, alterou a redacção do §1.º do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 48.912, retirando do elenco das modalidades afins aí referidas os jogos desenvolvidos por quaisquer máquinas automáticas.
Por outro lado, o artigo 56.º do referido Decreto-Lei n.º 48.912, com a redacção introduzida pelo artigo 3.º daquele Decreto-Lei n.º 22/85, passou a punir a exploração das máquinas automáticas referidas no n.º 4 do artigo 4.º, em desconformidade com as exigências legais, com prisão de 6 meses a 2 anos.
Fora deste regime, por não favorecerem as apostas ilícitas, embora sujeitas a uma regulamentação própria, ficaram as máquinas de mera diversão, definidas no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 21/85 como aquelas que, não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico desenvolvessem jogos cujos resultados dependessem exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador (não importando que a este fosse concedido o prolongamento da utilização gratuita da máquina face à pontuação obtida).
Trata-se, no essencial, de uma noção reproduzida pelo artigo 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 316/95, de 28 de Novembro, estando a exploração destas máquinas dependente do respectivo registo e da concessão da correspondente licença de exploração emitida pelo governador civil do distrito (artigos 17.º e 20.º).
Deste modo, pode-se, indubitavelmente, concluir que os jogos em máquinas, com pontuação exclusiva ou fundamentalmente dependente da sorte, passaram a constituir, materialmente, jogos de fortuna ou azar.
Em 01/01/1990 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, que no seu artigo 1.º definiu, precisamente, os jogos de fortuna ou azar como sendo «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte».
Trata-se de uma noção formalmente semelhante à contida no artigo 1.º do supra mencionado Decreto-Lei n.º 48.912, com uma única diferença – dantes falava-se em jogos que dependiam «exclusivamente da sorte», muito embora a lei já considerasse enquadrados (e contínua a considerar) nos jogos de fortuna ou azar jogos nos quais intervém uma certa dose de perícia do jogador (por exemplo: o black-jack/21; o bacará chemin de fer).
Por conseguinte, não estão excluídos, à partida, jogos que dependam, em certa medida, da perícia ou habilidade do jogador. Tudo está em que o resultado (o ganhar ou perder) de tais jogos seja decidido, ou dependa em última instância, de algo que apenas a sorte pode ditar e que a perícia, a inteligência ou a habilidade do jogador não pode controlar.
Além da noção geral do artigo 1.º, o Decreto-Lei n.º 422/89 consagra, no n.º 1 do artigo 4.º, um enunciado, de carácter não taxativo, de tipos de jogos de fortuna ou azar, neles incluindo «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte» (alínea g) desse normativo). Na alínea f) da mesma disposição legal, são também considerados jogos de fortuna ou azar os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas». Prescrevendo-se, ainda, como regra geral que todos esses jogos somente podem ser explorados nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário, ou noutros locais especialmente autorizados, mediante concessão do Governo a empresas constituídas sob a forma de sociedades anónimas, já que o direito de explorar esses jogos é legalmente reservado ao Estado (artigos 3.º, 6.º, 8.º e 9.º).
Assim, a nível de incriminação e como referimos supra, dispõe o artigo 108.º, n.º 1, que quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Contudo, este diploma não foi o último passo da evolução legislativa na disciplina jurídica do jogo, dado que o Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro (que reportou os seus efeitos a partir da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 1995), introduziu alterações em algumas das disposições do Decreto-Lei n.º 422/89, em especial sobre as modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, cuja regulamentação pelo antigo Decreto-Lei n.º 48.912 havia sido deixada incólume pelo diploma de 1989 (veja-se o artigo 160.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 422/89, na sua versão originária).
Deste modo, perante o que passou a prescrever o artigo 159.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, reformulado pelo citado Decreto-Lei n.º 10/955, «modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas valor económico», acrescentando o n.º 2 que são abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, «rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos».
A exploração de tais modalidades afins depende de autorização (artigo 160.º), sob pena de ser punida com coima, a título de contra-ordenação (artigo 163.º), estando vedada, em princípio, a entidades com fins lucrativos (artigo 161.º, n.º 1).
Não pode deixar de se salientar que, de acordo com o que passou a estabelecer o artigo 161.º, n.º 3, as modalidades afins não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, exemplificando-se, além do mais, com os casos do póquer, roleta, dados, bingo, lotaria, totobola e totoloto.
Em virtude da complexidade jurídica associada à questão em apreço, a evolução legislativa sumariamente apresentada contribuiu para um panorama jurisprudencial muito diversificado, assentando em vários critérios distintivos e dando origem a soluções variadas, umas vezes considerando crime a prática e exploração de jogos em máquinas que se encontram frequentemente em cafés e outros estabelecimentos do género, ou porque os resultados dependem exclusivamente do factor sorte, ou porque pagam prémios em dinheiro ou simplesmente com valor económico, ou porque não constituem formas de promoção ao público, de modo a enquadrarem o conceito de «operações oferecidas ao público», e outras vezes (bastante menos) considerando que a exploração e prática de tais jogos constitui simplesmente uma contra-ordenação.
O problema residia em saber qual o critério a adoptar para a distinção dos jogos em máquinas que devem ser considerados ilícito criminal, daqueles que devem ser considerados como ilícito contra-ordenacional.
Este problema ficou resolvido, cremos, com a prolação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/20106, que fixou jurisprudência neste sentido:
6 Proferido em 04/02/2010 e publicado no Diário da República, 1ª Série, N.º 46, de 08/03/2010.
«Constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 159.º, n.º 1, 161.º, 162.º e 163.º do Decreto -Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto -Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público.».
Neste acórdão referiu-se, para além do mais que ora não releva, o seguinte:
«O critério para se distinguirem os dois tipos de ilícito – ilícito criminal e ilícito de mera ordenação social – não pode deixar de ser material, no sentido de que se há-de partir das próprias categorias legais, em que assumem, quanto aos tipos legais de crime, relevo especial, na respectiva interpretação, o critério teleológico, fundamentalmente ligado à protecção de um bem jurídico, como expressão do princípio da legalidade, não só na sua feição formal, mas também na sua vertente material (nullum crimen sine lege, certa et prior) e a que estão associados princípios de matriz constitucional tão importantes como os da dignidade penal, de carência de pena e de máxima restrição penal.
Destes princípios decorre que, traduzindo-se a estatuição da pena numa limitação mais ou menos grave da liberdade, a sanção só se justifica quando esteja em causa a necessidade de protecção de um relevante valor com ressonância ético-social, prévio à constituição do tipo legal de crime, ao contrário do que sucede com as contra-ordenações, que são ético-socialmente indiferentes e em que a ilicitude deriva da valoração delas pela lei como proibidas, dando origem a uma sanção de carácter não penal – uma coima. Daí que as sanções penais, enquanto atentam contra o direito fundamental à liberdade, devem limitar-se ao mínimo imprescindível para garantir a paz na vida em comunidade.
(…) A lei (artigos 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro), na definição de jogos de fortuna ou azar, combina precisamente uma fórmula generalizadora (artigo 1.º) com a técnica exemplificativa (artigo 4.º). Por meio da primeira, define os jogos de fortuna ou azar como sendo «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte»; por meio da segunda, tipifica exemplificativamente esses jogos nas suas diversas alíneas [vários jogos bancados, concretamente determinados – alíneas a) a d)]; jogos não bancados, também concretamente determinados [alínea e)] e jogos em máquinas [alíneas f) e g)].
No que respeita a estes últimos, mencionam-se os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» [alínea f)] e «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte» [alínea g)].
A caracterização dos jogos de fortuna ou azar é essencial para a distinção entre os tipos de ilícito criminal e as denominadas “modalidades afins”.
Ora, tendencialmente, os jogos de fortuna ou azar, de resultado contingente, por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte, segundo a formulação genérica do artigo 1.º, são os que estão especificados no artigo 4.º, n.º 1.
Como se afirma no acórdão-fundamento, estes jogos «estão tipificados de modo exemplificativo, mas, no contexto, tendencialmente especificados». Aliás, o referido artigo 4.º começa por afirmar que «nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar (…)», enumerando a seguir, com precisão, os diversos tipos de jogos: os bancados nas suas várias modalidades [alíneas a) a d)]; os não bancados, também concretamente especificados [alínea e)] e os jogos em máquinas, caracterizados nos seus elementos essenciais em duas alíneas [as alíneas f) e g)].
(…)
Por conseguinte, não obstante exemplificativa a especificação dos jogos de fortuna ou azar constante da lei, ela é tendencialmente completa e comporta uma certa rigidez, como é próprio de um tipo legal de crime, que é um tipo de garantia.
Todas as modalidades de jogos que não correspondam às características descritas e especificadas nos referidos artigos 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins, como se defende no acórdão-fundamento.
No caso das máquinas de jogos, só são de considerar como jogos de fortuna ou azar:
- Os jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
- Os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
O facto de os jogos em máquinas terem desaparecido do elenco exemplificativo do artigo 159.º, n.º 2 (modalidades afins), após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 22/85, de 17 de Janeiro, não significa que todos os jogos em máquinas se dividam, pura e simplesmente, em jogos de fortuna ou azar e jogos de diversão, estes de resultados dependentes exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador e não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, nos termos do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 21/85, também de 17 de Janeiro.».
Vertendo agora para o caso dos autos, temos que de acordo com o descrito na matéria de facto constante da acusação pública, supra tida por suficientemente indiciada, a máquina apreendida nos autos denominada “No FEAR” funcionava da forma descrita no artigo 5.º da acusação pública.
Desta descrição resulta, salvo o devido respeito por diferente opinião e tendo presente os considerandos teóricos supra referidos, que a máquina em questão não pode nem deve ser classificada como desenvolvendo um jogo de fortuna e azar.7
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do processo n.º 626/11.7GDGDM.P1, com data de 11/12/20138, a propósito de uma situação em tudo semelhante à que tratamos nesta decisão, «atenta a natureza e características da máquina apreendida ao arguido e examinada a fls. 83 a 85, apenas poderiam estar em causa, os jogos descritos nas als. f) e g), do n.º 1 do citado art. 4.º, da Lei do Jogo.
Para o efeito, importa que se trate de uma máquina, considerando-se como tal qualquer aparelho, automático, mecânico, eléctrico ou electrónico, não sendo integrável neste conceito os painéis expositores de produtos, como é o caso daqueles que correspondem à exposição de chocolates ou cujos brindes estejam aí fixados.
Por sua vez, o funcionamento desse aparelho, enquanto jogo de fortuna ou azar, deverá corresponder a um acto de jogar fundamentalmente dependente da sorte, em que existe uma total indefinição e desproporção entre aquilo que se arrisca e o resultado que se pode vir a obter (prémio).
No que concerne ao prémio a atribuir, este deverá corresponder a moedas ou a fichas que possam ser cambiadas por dinheiro, o que não se verifica no caso em apreço, como facilmente resulta da matéria de facto provada.
Relativamente ao tema do jogo, deverá a máquina desenvolver um tema próprio dos jogos de fortuna ou azar, ou seja, deverá corresponder a um acto de jogar, tal como o definimos anteriormente.
Como se pode constatar, através da descrição constante do relatório pericial de fls. 83 a 85, mediante a introdução de uma moeda de €0,50, €1,00 ou €2,00, é disparado automaticamente um ponto luminoso no painel frontal, que percorre num movimento circular, uniformemente desacelerado, os vários orifícios existentes no mostrador, iluminando-os à sua passagem. De seguida, e sem qualquer interferência do jogador, o ponto luminoso vai perdendo gradualmente velocidade, até parar, fixando-se aleatoriamente num dos orifícios mencionados. Se esse ponto corresponder a um dos orifícios identificados pelos números 1, 50, 2, 100, 5, 20, 200 e 10, o jogador ganha a quantia correspondente à conversão de cada ponto por €1,00; se parar num dos restantes orifícios, o jogador não tem direito a qualquer prémio.
Pela presente descrição se conclui que o “jogo” desenvolvido pela máquina não corresponde a qualquer dos temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, sendo antes uma modalidade afim destes jogos.
Aliás, e para sermos mais impressivos, podemos afirmar que este tipo de máquinas não tem qualquer correspondência com nenhuma existente nos casinos, antes pelo contrário.
A intenção do legislador passa pelo entendimento de se considerar que os jogos que dependem essencialmente do acaso e da sorte do jogador são aqueles em que este não tem qualquer possibilidade de influenciar ou condicionar o resultado do respectivo jogo.
Poder-se-á definir um jogo de fortuna ou azar como aquele em que o domínio de um evento desencadeado ou induzido pela acção humana escapa à capacidade de controle e de previsão muito provável de que a uma causa sucede um determinado efeito desde que cumpridos e induzidos factores certos e conjugados. Isto é, a uma causa objectivamente estruturada com factores e elementos pré-determinados e empiristicamente testados não se segue necessária e inevitavelmente o efeito pretendido e motivado.
A conceptualização bipolar utilizada pelo legislador, “fortuna ou azar”, colhe o seu fio identificador e a argamassa uniformizadora dos conceitos na definição de acaso. Afinal tanto para a fortuna como para o azar experienciados na álea do jogo intervém o factor acaso ou uma probabilidade indeterminada e não controlada da parte de quem introduz o elemento desencadeador, no caso das máquinas utilizados neste tipo de jogos, uma moeda ou peça equivalente.
Retomando o caso que nos ocupa, e considerando a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada, verifica-se que, introduzida uma moeda com o valor facial de €0,50, €1,00 ou €2,00, a máquina desenvolve um mecanismo circular, podendo vir a imobilizar-se num dos pontos numerados, que correspondem ao prémio a atribuir em equivalente monetário. Contudo, caso se imobilize num dos restantes pontos, o jogador não tem direito a prémio algum.
Poder-se-á questionar se o valor do prémio é correspondente ao valor da moeda introduzida. Certamente não será. E, como se vê, a máquina não corresponde sempre com um prémio ao estímulo ou impulso desencadeador do jogo. A incerteza no resultado ou na obtenção de um prémio aleatório, no sentido de descontinuado e ponteado de hiatos no desenvolvimento normal do jogo, e com uma distribuição aleatória, compõe a característica estrutural da máquina em questão. Essa descontinuidade na atribuição de um prémio atribui à máquina apreendida a natureza de “fortuna ou azar”, tal como, em nossa opinião, deve ser interpretado o conceito ínsito no artigo 1º do Decreto-Lei n.º nº 422/89, de 2.12.
Convém ainda realçar que, exceptuados os casos de pura diversão – a incluir no conceito de “máquinas de diversão” ou de convívio pessoal, familiar ou social (ou seja, fora da esfera “pública”) – o que está em causa nos “jogos de fortuna ou azar” é a aposta, o ganho, o prémio. A perspectiva de, apostando pouco, ganhar muito. Por isso se chamam “jogos de fortuna ou azar”. Fortuna para o ganho (existência de prémio). Azar para a perda (ausência de prémio).
Não é, pois, compaginável um “jogo de fortuna ou azar” sem que se perspective a possibilidade de ganho. Este só tem significado se reportado à natureza do prémio. Sem o prémio não há apelo à aposta e ao jogo.
Quanto à natureza do prémio, verifica-se que o mesmo corresponde a dinheiro, embora a própria máquina não faça a respectiva atribuição “direta”, sabendo o jogador antecipadamente que o mesmo só pode oscilar entre €1,00 e €200,00. Ou seja: apesar de o jogo em causa depender exclusivamente da sorte, o certo é que, também previamente, o jogador sabia que o prémio que iria receber era necessariamente variável entre €1,00 e €200,00.
Para além de o tema do jogo não se assemelhar ao promovido noutra espécie de máquinas que desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar (cf. art. 4 nº 1-g) do citado diploma legal), o prémio não era pago directamente pela máquina em “fichas ou moedas” (cf. art. 4 nº 1-f) do mesmo diploma legal).
Mas constituirá a atribuição de prémios em dinheiro, ainda que não directamente através da máquina, condição sine qua non para a qualificação do jogo como de fortuna ou azar?
Segundo o Ac. Rel. Coimbra de 02.02.2011 ao apelar à atribuição de prémios em dinheiro, imediatamente ou através da substituição de fichas ou pontos, “a ideia que está na base dos termos utilizados tem a ver com o acréscimo de compulsividade que a atribuição de fichas e de pontos confere ao jogo, o mesmo acontecendo com as moedas. Com efeito, quer as moedas quer as fichas podem ser imediatamente utilizadas para que o jogador continue indefinidamente o jogo, funcionando a atribuição de pontuações que se vão somando do mesmo modo. Mas tal ocorre porque o que caracteriza tais jogos, embora a lei não o diga, é a natureza indefinida do prémio e a possibilidade de num percurso intermédio o jogador perder tudo o que havia ganho”.
Já nas modalidades afins a que alude o artigo 159º da Lei do Jogo, tal não acontece. Na verdade, nas rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos, a determinação prévia do prémio a que o jogador se pode habilitar gera um elemento de compulsividade menor.
Daí que, de acordo com o citado aresto, nenhum jogo que tenha os prémios previamente definidos, ainda que atribua prémios em dinheiro ou desenvolva temas de jogos de fortuna ou azar, integra a classificação de jogos de fortuna ou azar e pode a sua exploração constituir crime.
Também no Ac. Rel. Évora de 31.05.2011 se entendeu que “o que caracteriza as modalidades afins e as distingue dos jogos de fortuna ou azar é a premeditação do respectivo prémio, a que acresce a pequena dimensão daquilo que o jogador arrisca, que até pode ser pura e simplesmente insignificante.
No caso dos presentes autos, a máquina apreendida e examinada é idêntica (quer nos valores a introduzir - €050, €1,00 ou €2,00 -, quer quanto aos prémios a atribuir – variáveis entre €1,00 e €200,00) às máquinas sobre as quais se debruçaram os acórdãos supra referidos e cujo entendimento aqui vimos seguindo, sendo inclusivamente esta a tese imanente ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2010.
Como se escreve neste AFJ “Acresce que a tutela penal adstrita à proibição dos jogos de fortuna ou azar fora dos locais autorizados encontra fundamento, em valores de relevante ressonância ético-social, nomeadamente pelos efeitos devastadores a nível social, familiar, económico e laboral, com incremento de criminalidade grave, não só de carácter patrimonial, mas também de carácter pessoal (vida, integridade física, ameaça, coacção) que a dependência de jogos de grande poder aditivo e potenciação de descontrole pode acarretar. Tal não sucede relativamente aos jogos em máquinas automáticas que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos de casino, mesmo em máquinas, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente”.
O tipo de máquina em causa nos presentes autos, bem como o “jogo” que desenvolvia da forma descrita – cujo resultado dependia exclusivamente da sorte nos termos acima indicados e não da perícia do jogador – como é claro não se integra em qualquer dos tipos de “jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 4º do cit. DL nº 422/89 (nem a qualquer deles se equipara).
Por outro lado, considerando o seu modo de funcionamento, valores da respectiva “aposta” e prémios que atribuía, fácil se torna concluir que se está perante máquina que desenvolve uma “modalidade afim”, tal como definida no artigo 163º nº 1, por referência aos artigos 159º, 160º nº 1 e 161º do cit. DL nº 422/89, pelo que a sua exploração nos moldes descritos na decisão recorrida, não integra a prática do crime imputado ao arguido.».
É, pois, por tudo isto que este Tribunal entende não se mostrar preenchido o tipo legal do crime em apreço, impondo-se a consequente prolação de um despacho de não pronúncia».

V – DO MÉRITO DO RECURSO

A única questão que aqui cabe decidir é a de saber se a máquina de jogo descrita na acusação, apreendida e explorada pela arguida, desenvolvia um jogo de fortuna e azar, para efeitos, do crime previsto e punido pelo artigo 108º, do Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro.

A questão não é nova, sendo objecto de controvérsia jurisprudencial, como aliás evidenciam as duas posições assumidas nestes autos (a da decisão sindicada e a do recorrente).

Na primeira, chamando à colação o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2010, de 4 de Fevereiro do mesmo ano e o Acórdão da Relação do Porto de 11 de Dezembro de 2013, sustenta-se que o jogo desenvolvido pela máquina dos autos não podia ser classificado como um jogo de fortuna ou azar.

Já a segunda, na esteira do decidido por esta Relação, no Acórdão de 13 de Abril de 2015, (Processo nº 485713.5EAPRT), defende que aquele mesmo jogo assume a natureza de fortuna ou azar.

Como os argumentos de cada uma das teses estão bem espelhadas nas posições assumidas nestes autos, não cuidaremos de os repetir.

Centrando a nossa atenção no jogo desenvolvido pela máquina de jogo apreendida e explorada pela arguida, diremos, com o devido respeito pela posição contrária, que a razão está do lado do Ministério Público e demais jurisprudência citada quer na Motivação de Recurso, quer no douto Parecer que antecede.

Com efeito, não está em causa o funcionamento de um jogo similar ao que deu origem ao mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência, no qual, o jogador introduz uma moeda e, rodando um manipulo para a direita, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário no caso de o número nela inscrito coincidir com alguns números constantes de um cartaz exposto ao público.

O painel da máquina dos autos apresentava um botão vermelho no canto inferior direito e, sequencialmente os algarismos, 50; 10, 1, 2, 20, 100 e 200, que rodeavam uma conferência composta por diversos leds vermelhos e oito verdes, os quais correspondiam a cada um dos algarismos sobreditos.

No centro da conferência encontravam-se ainda dois visores digitais rectangulares, sendo o primeiro deles indicativo de créditos disponíveis e o segundo (abaixo do primeiro) dos valores premiados.

O jogo era accionado automaticamente com a introdução de uma moeda de 0,50€ ou 1,00€ que permitiam, respectivamente, uma ou duas jogadas.

A inserção das moedas despoletava, de modo automático e sem qualquer intervenção do jogador, um movimento giratório da luz dos leds que compunham a conferência acima referida.

Este movimento giratório poderia terminar, de forma aleatória, fixo em qualquer dos seus leds da conferência, o qual permanecia aceso.

Caso o último led aceso fosse verde, o jogador ganharia o valor do correspondente algarismo, que apareceria no visor inferior no centro daquela conferência, e o jogador poderia receber em numerário, o valor correspondente ao exibido no painel da máquina. Se o último led fosse vermelho, o jogador nada ganharia.

A diferença decisiva entre este jogo e o referido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência está no facto daquele atribuir aleatoriamente valores a que correspondiam quantias em dinheiro, enquanto este atribuía uma cápsula contendo, no seu interior uma senha que poderia dar direito a um prémio.

As máquinas a que o Acórdão nº 4/2010 se refere «funcionam como uma espécie de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume uma dimensão pouco significativa, pois a expectativa é limitada ou predefinida e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação, ao contrário do que sucede com os jogos do casino, mesmo em máquina, possibilitando uma série praticamente ilimitada de jogadas, numa espécie de encadeamento mecânico e compulsivo, em que o jogador corre o risco de se envolver emocionalmente» (Acórdão desta Relação de 13 de Abril de 2015, proferido no Processo nº 485/13.5EAPRT.G1).

O funcionamento dos jogos de uma e outra máquina assume, assim, características diferentes.

O Supremo Tribunal de Justiça, apreciando um recurso de decisão contra a jurisprudência fixada, no qual estava em causa uma máquina de jogo, em tudo, idêntica à dos presentes autos, pronunciou-se no sentido que vimos defendendo, no seu Acórdão de 27 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt).

Aí se lê:

«O jogo da máquina dos presentes autos não tem assim as características da máquina a que se reportou o supra referido acórdão de fixação de jurisprudência, o qual apreciou a situação de máquinas de jogos expostas ao público em cafés, sem autorização da DGJ, máquinas para serem utilizadas pelos frequentadores de tais cafés, nas quais o jogador introduz moeda no manípulo fazendo sair, de forma aleatória, cápsula contendo senhas, ficando o jogador na expectativa de receber um prémio em dinheiro, ou em coisas com valor económico, caso as senhas contidas no interior da cápsula uma, ou mais, tenha escrito um número que seja coincidente com outro inscrito no cartaz, não pagando tais máquinas, directamente, ficha ou moedas.

(…)

Na verdade, (…)

“No caso em apreciação as máquinas examinadas, cujas características constam da matéria apurada acima transcrita, desenvolvem jogos em tudo semelhantes ao modo de operação típico do jogo de roleta, de fortuna e azar, cuja exploração só pode ser realizada em casinos. O jogador só tem intervenção activa no início do jogo quando coloca a moeda na máquina, não podendo através da sua perícia influenciar o resultado que fica exclusivamente dependente da sorte ou do acaso, podendo auferir uma vantagem patrimonial de valor variável ou nem sequer auferir qualquer prémio.

A mesma máquina não desenvolve tema de espécie de rifa ou tômbola, independentemente de ser mecânica ou eléctrica.

O jogo na referida máquina apresenta como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte, que se premiadas traduzem-se as mesmas em dinheiro».

Seguiram esta orientação, além do mais, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 14 de Janeiro de 2015 (processo nº 6/11.4EASTR.C1); de 1 de Julho de 2015, (www.dgsi.pt), da Relação de Lisboa de 28 de Outubro de 2014 (processo nº 592/13.4GAMTA.L1).

Donde, o jogo da máquina apreendida nestes autos deve ser classificado como um jogo de fortuna ou azar, nos termos dos artigos 1º e 4º, nº1, al. g, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, porquanto, não pagando directamente prémios em fichas ou dinheiro, desenvolve temas próprios de jogos de fortuna ou azar (em tudo semelhante ao modo de operação de um jogo de roleta) e apresenta como resultado pontuações (susceptíveis de serem convertidas em dinheiro) dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte (sem qualquer intervenção da perícia do jogador).

Tudo isto para dizer, que, os factos indiciados se subsumem no ilícito penal previsto no artigo 108º, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, devendo, por isso, proceder o recurso, com a pronúncia da recorrente.

VI - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao Recurso interposto pelo Ministério Público, ordenando que o despacho recorrido seja substituído por outro que pronuncie a arguida, Leonilda S. pelos factos e crime imputado na acusação.

Guimarães, 2 de Novembro de 2015

Alcina da Costa Ribeiro

Luís Coimbra