Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3201/18.1T8VCT.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
REPARTIÇÃO DE CULPAS
MORTE
TERCEIROS COM DIREITO A INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- De um ponto de vista puramente físico/naturalístico, um acidente de viação é um embate de dois objectos, que se deslocavam no espaço-tempo, e cujas trajectórias se cruzaram a determinado momento. Deste ponto de vista não faz sequer sentido falar-se em culpa. O conceito de culpa implica violação de regras de conduta.

II- A condução de veículos motorizados envolve perigo, devido à proximidade entre os veículos, à velocidade que atingem, e à inércia, que os impede de parar instantaneamente perante um obstáculo.

III- Daí a existência de um conjunto de regras de conduta e de cautela a que todos os condutores e peões devem obedecer, o Código da Estrada.

IV- Logo, um condutor ou um peão que respeite todas as regras estradais, sejam as normas específicas seja o dever geral de cuidado, jamais pode ser visto como culpado de um acidente. Pelo contrário, o culpado de um acidente de viação será sempre aquele condutor que imediatamente antes do mesmo violou uma ou mais regras estradais ou o dever geral de cuidado.

V- Havendo concorrência de culpas, num caso em que o peão atravessou a estrada a cerca de 30 metros de uma passagem de peões, num local com total visibilidade, e foi mortalmente atropelado por automóvel em excesso de velocidade cujo condutor vinha distraído, é equitativo repartir a culpa na proporção de 85% para o condutor e 15% para o peão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

J. C., M. C., C. V., P. M., V. C., A. S., B. M., e M. S., todos com os sinais dos autos, intentaram contra Seguradoras X, SA, esta acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, na qual pediram a condenação da ré a pagar-lhes a quantia global de € 299.971,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos próprios e pela perda da vida e sofrimento do falecido S. S., acrescida dos juros que se vencerem à taxa legal desde a data da citação e até ao integral pagamento.

Alegaram, em essência, os prejuízos materiais e os danos não patrimoniais decorrentes do sinistro que descrevem, do qual resultou a morte do seu pai e avô, S. S., e cuja ocorrência imputam à conduta ilícita e culposa do condutor do veículo seguro na ré, acrescentando que este foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, por decisão já transitada em julgado.

A ré apresentou contestação, alegando a sua versão do acidente, cuja ocorrência imputa ao falecido, mais impugnando os danos e os montantes alegados e alegando que os autores B. M. e M. S., netos do falecido, não têm direito à indemnização peticionada.

Os autores vieram exercer o direito de contraditório, em articulado próprio.

Dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova, ao abrigo do disposto no art.º 596º, do NCPC.

Após, realizou-se a audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença, que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a ré Seguradoras X, SA a pagar:

-ao autor J. C. a quantia de 262,56 (duzentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento e a quantia de € 19.833,33 (dezanove mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento;
-à autora M. C. a quantia de 262,56 (duzentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento e a quantia de € 19.833,33 (dezanove mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento;
-ao autor C. V. a quantia de 262,56 (duzentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento e a quantia de € 19.833,33 (dezanove mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento;
-à autora P. M. a quantia de 262,56 (duzentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento e a quantia de € 21.958,33 (vinte e um mil, novecentos e cinquenta e oito euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento;
-à autora V. C. a quantia de 262,56 (duzentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento e a quantia de € 21.958,33 (vinte e um mil, novecentos e cinquenta e oito euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento;
-ao autor A. S. a quantia de € 19.833,33 (dezanove mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento;
-ao autor B. M. a quantia de 131,28 (cento e trinta e um euros e vinte e oito cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento;
-à autora M. S. a quantia de 131,28 (cento e trinta e um euros e vinte e oito cêntimos), acrescida de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento;
absolvendo-a do restante peticionado.

Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I - DA ERRÓNEA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

A)
1. Os Recorrentes consideram terem sido incorrectamente julgados o ponto 32 e 25 da matéria de facto dada como provada.
2. São os seguintes os meios de prova que impunham decisão diversa sobre o referido ponto da matéria de facto: - o documento composto por fls. 8 do processo crime junto aos autos com a petição inicial, respectivo doc. nº 1); o documento constituído pela participação do acidente de viação elaborado pela GNR; o documento intitulado “Relatório Final” – Relatório Técnico de Acidente de Viação, junto as autos e elaborado pelo cabo da GNR L. P. (também ouvido como testemunha nos autos), incluindo os respectivos anexos (inspecção ocular e relatório táctico fotográfico); o depoimento testemunhal do cabo L. P. – excerto 24:25 a 25:40 da respectiva gravação de 31 de Janeiro de 2019; o depoimento testemunhal de E. E. – excertos 11:00 a 12:00, 36:45 a 37:40 da primeira gravação de 31-1-2019, iniciada às 11:02 (primeiro depoimento da testemunha nestes autos), e excertos 47:30 a 48:35 da segunda gravação de 31-1-2019, iniciada às 14:11 (segundo depoimento da testemunha nestes autos); o depoimento testemunhal de J. F. – excertos de 03:55 até 4:20, 25:40-25:55 da respectiva gravação de 31-1-2019;
3. No entender dos Recorrentes, a questão de facto enunciada no ponto 32 dos factos provados deveria ter sido decidida no sentido de que do mesmo passasse a constar a seguinte redacção: “O S. S. iniciou e realizou o atravessamento da via a uma distância igual ou superior a 48 metros depois dessa passadeira, atento o sentido de Ponte de Lima – Arcos de Valdevez;”
4. No entender dos Recorrentes, a questão de facto enunciada no ponto 25 dos factos provados deveria ter sido decidida no sentido de que do mesmo passasse a constar a seguinte redacção: “Aquele veículo tinha ingressado na Estrada Nacional nº 201 provindo da Rua Dr. ..., a qual entronca à direita daquela primeira estrada, atento, nela, o sentido Ponte de Lima- Arcos de Valdevez, a cerca de 96,50 metros do local do embate.”
5. O facto 32 não goza neste processo qualquer presunção – nomeadamente aquela (ilidível) que resulta do disposto no artigo 623º do CPC, quanto à oponibilidade a terceiros de decisão penal condenatória.
6. O elemento de prova invocado na sentença (por remissão, a ténue alteração no rasto de travagem) é manifestamente insuficiente a criar no julgador a convicção suficiente do facto 32 dos factos provados.
7. O Tribunal não verificou a existência dessa “ténue alteração” da marca de travagem, nem faz referência na sentença a tal circunstância para fundamentar a decisão quanto ao facto 32.
8. Trata-se de uma mera opinião de uma testemunha sobre aquilo que ela mesma apelida de “ténue” alteração da impressão de uma marca de pneu, compatível com uma “leve mudança” de trajectória, “sugestiva” de resistência que “indicia um eventual ponto de contacto com o peão” – indicada como mera “possibilidade” com a qual o Tribunal não se pode bastar.
9. Tal alegada alteração é de tal forma ténue que não é visível na recolha e registo fotográfico, em fotogramas de pormenor, tirados de técnico habilitado e experimentado na recolha de vestígios - 28 a 30 do Anexo IV do relatório elaborado pela testemunha L. P., como o próprio admite.
10. Assim e totalmente desacompanhada por outros meios de prova, não poderia nunca o Tribunal considerá-la idónea a decidir com segurança pela sua veracidade.
11. Logo no próprio dia do acidente, como consta da participação – mormente do croquis e da respectiva legenda – o símbolo representado imediatamente em frente à posição final do veículo representa “O local provável de embate indicado pelo condutor do veículo nº 1”, o qual, somada a distância da passadeira ao início do rasto de travagem (22,30m, m) do croquis), a distância do rasto de travagem do rodado direito (21,10 m, p) do croquis, e o comprimento do próprio veículo (4,659 metros, cfr. fls. 8 do processo crime cuja cópia está junta aos autos), perfaz a distância de 48,059 metros.
12. Além disso, há também consonância entre testemunhas que se encontravam no local em firmar que o embate ocorreu já aquando da paragem do veículo, após a produção do ruído causado pela travagem - caso dos depoimentos insuspeitos e espontâneos das testemunhas E. E. e J. F..
13. Com a procedência da alteração do facto vertido em 32, automática e necessária se tornará também a distância vertida no facto 25 – já que toma por referência um local de embate que, por via da alteração requerida, será fixado a 16,5 metros do da originalmente considerado, pelo que se imporá também a sua alteração nos termos requeridos e para que a extensão que do mesmo consta passe a ser de 96,50 metros e não 80 metros.

B)
14. Os Recorrentes consideram ter sido incorrectamente julgado o ponto a. da matéria de facto dada como não provada.
15. São os seguintes os meios de prova que impunham decisão diversa sobre o referido ponto da matéria de facto: o documento constituído pela participação do acidente de viação elaborado pela GNR; o documento constituído pelo auto de inquirição da testemunha E. E. em sede de inquérito, junto com a petição inicial, a fls. 158 desse mesmo inquérito; o documento intitulado “Relatório Final” – Relatório Técnico de Acidente de Viação, junto as autos e elaborado pelo cabo da GNR L. P. (também ouvido como testemunha nos autos), incluindo os respectivos anexos (inspecção ocular e relatório táctico fotográfico); o depoimento testemunhal do cabo L. P. – excertos 29:15 até 30:00 da respectiva gravação de 31 de Janeiro; o depoimento testemunhal de E. E. – excertos 6:20-6:45, 7:50-8:10, 9:00 a 9:20, 24:00 a 26:20, 27:10 a 27:30, 33:15 a 33:30, 34:55 a 35:20, 36:00 a 36:10 da primeira gravação de 31-1-2019, iniciada às 11:02 (primeiro depoimento da testemunha nestes autos), e excertos 46:00 a 46:30, 48:40 a 51:00, 54:15 a 56:20 da segunda gravação de 31-1-2019, iniciada às 14:11 (segundo depoimento da testemunha nestes autos);
16. A questão de facto enunciada no ponto a. dos factos não provados deveria ter sido dada como provada.
17. Foi erradamente valorado o depoimento testemunhal de E. E., única testemunha integral do acidente e que depôs de forma segura e credível.
18. Foi dado desproporcionado ênfase às diferenças constatadas entre o depoimento que esta testemunha prestou em sede criminal e nos presentes autos.
19. Para o cidadão comum, a solenidade do acto de inquirição em juízo, e o ambiente intimidatório que muitas vezes resulta das instâncias e contra-instâncias (sobretudo num julgamento por homicídio, com as famílias dos intervenientes presentes na sala), são um factor de severa afectação da estabilidade emocional e discursiva, sendo certo que é muito mais “pesado” e solene o ambiente num julgamento por homicídio, temporalmente muito próximo acontecimento fatídico e com familiares e amigos próximos a assistir às instâncias (como aconteceu no Tribunal de Ponte de Lima), por oposição a estes autos, de mera natureza cível, substancialmente removidos em tempo e emotividade dos factos a que a testemunha teve de depor.
20. Sendo assim de compreender uma maior serenidade, segurança e nível de clareza e detalhe quanto à capacidade de discurso e reminiscência desta testemunha.
21. Esta testemunha não se veio agora “lembrar” de dar esta versão – do atravessamento da esquerda para a direita – a estes autos, ex novo: em fase de inquérito e em sede de declarações por si prestadas a OPC (mais uma vez, em diligência desprovida da carga emotiva e da pressão de um julgamento por homicídio), a testemunha E. E. já tinha relatado que foi da esquerda para a direita da via (atento o sentido de marcha do veículo) que o peão fez a sua travessia em que acabou por ser colhido (auto de fls. 158 e seguintes do inquérito junto com a petição inicial).
22. Esta constatação abala irremediavelmente o argumento com que a sentença recorrida fundamenta a desvalorização e descrédito absolutos a que votou esta prova testemunhal, tratando-se antes de um elemento concreto de prova existente nos autos – o auto de inquirição de E. E. em sede de inquérito – totalmente ignorado pelo julgador (não há qualquer referência ao mesmo na fundamentação de sentença) e que, devidamente apreciado, esvazia de nexo e de conteúdo a motivação encontrada pelo julgador para desconsiderar em absoluto o depoimento da mencionada testemunha.
23. O Tribunal, na sua fundamentação, omite e ignora em absoluto que ainda antes do julgamento crime já esta testemunha tinha dado a versão dos factos que trouxe ao julgamento deste processo, e em sentido convergente com o que relatou nos autos.

C)
24. Os Recorrentes consideram ter sido incorrectamente julgado o ponto 34 da matéria de facto dada como provada, já no que ao facto supra descrito diz respeito, entra a sentença recorrida numa contradição insanável entre factos provados, revelada pelo próprio teor dos mesmos,
25. O que configura vício de nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do artigo 615º, nº 1, c) do CPC – que expressamente se invoca.
26. Isto resulta da simples confrontação do teor dos factos 9, 11, 15, 25 e 37 com o teor o facto ora impugnado – facto 34.
27. Embora aí se faça constar distância superior a 30 m, e sendo certo que essa distância vai necessariamente até aos 80 metros, era essa a extensão que deveria ter ficado a constar do dito facto 36.
28. Caso se venha a dar como provado, como se espera, que o peão efectuou a travessia da esquerda para a direita atento o sentido de marcha do veículo, o veículo (atenta a velocidade de que vinha animado) estaria certamente a mais de 80 metros aquando do início dessa travessia,
29. Ou, em alternativa e tendo em conta o teor do facto 25, a travessia já se tinha iniciado quando o veículo segurado ingressou na Estrada Nacional.
30. Um veículo animado da velocidade de 68 quilómetros/hora percorre 18,88 metros por segundo, pelo que, no início da travessia, e em trajectória linear do carro, o mesmo teria de estar a (5,6 * 18,88) 105,79 metros do ponto de embate.
31. Já que o veículo só ingressou na Estrada Nacional a 80 metros do embate (ou a 96,50, em caso de procedência da impugnação feita em A)), só duas soluções possíveis restam: ou a velocidade de que vinha realmente animado o veículo era muito superior a 68 quilómetros hora.
32. A questão de facto enunciada no ponto 34 dos factos provados deveria ter sido decidida no sentido de que do mesmo passasse a constar a seguinte redacção: “Por sua vez, o condutor do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH podia ter avistado o peão S. S. quando se encontrava a uma distância superior a 96,50 metros do local onde o referido peão se encontrava a proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201;”
33. Ou, caso não proceda a impugnação feita dos factos nº 25 e 32, defendida em A) supra, deve o facto vertido no ponto 34 passar a ter a seguinte redacção: “Por sua vez, o condutor do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH podia ter avistado o peão S. S. quando se encontrava a uma distância superior a 80 metros do local onde o referido peão se encontrava a proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201;”

D)
34. Os Recorrentes consideram ter sido incorrectamente julgado o ponto g. da matéria de facto dada como não provada,
35. São os seguintes os meios de prova que impunham decisão diversa sobre o referido ponto da matéria de facto: o documento constituído pela participação do acidente de viação elaborado pela GNR; o documento constituído pelo auto de inquirição da testemunha E. E. em sede de inquérito, junto com a petição inicial, a fls. 158 desse mesmo inquérito; o documento intitulado “Relatório Final” – Relatório Técnico de Acidente de Viação, junto as autos e elaborado pelo cabo da GNR L. P. (também ouvido como testemunha nos autos), incluindo os respectivos anexos (inspecção ocular e relatório táctico fotográfico); o depoimento testemunhal de E. E. – excertos 2:30 a 3:10, 9:00 a 10:00, 14:00 a 16:00, 24:00 a 26:20 da primeira gravação de 31-1-2019, iniciada às 11:02 (primeiro depoimento da testemunha nestes autos), e excertos 48:40 a 53:00 e 54:15 a 56:20 da segunda gravação de 31-1-2019, iniciada às 14:11 (segundo depoimento da testemunha nestes autos);
36. No entender dos Recorrentes, a questão de facto enunciada no ponto g. dos factos não provados deveria ter sido decidida no sentido de que se desse tal facto por provado.
37. Dão-se por reproduzidos os argumentos vertidos no ponto B) supra, no que toca à credibilidade do depoimento da testemunha E. E..
38. Impõe-se que o depoimento não seja absolutamente descredibilizado como o foi em primeira instância, por evidente omissão do facto de que aquela testemunha não apresentou, neste julgamento, ex novo, a versão dos factos que constam do seu relato (por eventual contraste com o seu depoimento em julgamento crime) mas antes ele é coincidente com o seu testemunho ainda anterior a esse julgamento, tomado em sede de inquérito desse mesmo procedimento criminal.
39. Assim, também resultou do depoimento da testemunha E. E. que o peão, antes do embate, e por força do ruído provocado pela súbita travagem do veículo que seguia na sua direcção, se apercebeu da sua aproximação, interrompendo a sua marcha, rodando o seu corpo na direcção da proveniência do veículo, avistando-o, e logo aí “paralisando” por segundos, suspendendo a sua marcha incapaz de reagir ou escapar ao embate que se sucedeu.
40. A circunstância de que o peão tomou aquela conduta nos instantes que precederam o atropelamento, torna obrigatória a conclusão pela veracidade do facto g. – ditam as regras da experiência que a pessoa que se encontre a atravessar a estrada e se depare com o súbito aproximar de uma viatura na sua direcção, parando na sua travessia e voltando-se para a avistar, sem meio de lhe escapar, se apercebe de que a sua morte será inevitável e sente, necessariamente, desespero e angústia.
41. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, sem prejuízo do douto suprimento, as normas jurídicas contidas nos artigos 413º, 414º, e 342º do CC.

II – DA DECISÃO DE DIREITO

A REPARTIÇÃO DA CULPA

42. O condutor do veículo atropelante foi exclusivamente culpado pela eclosão do acidente, e que a percentagem da condenação da Ré deve assim fixar-se em 100% dos montantes indemnizatórios fixados.
43. Conclusão que é válida proceda ou não a impugnação da matéria de facto deste recurso.
44. Ficou provado nos autos que o condutor efectuava uma condução absolutamente temerária, distraída, desconsiderando em absoluto a segurança de pessoas e bens que transitavam e circundavam a via, conduzindo a velocidade muito acima do legalmente imposto, em zona ladeada por habitações e comércio, de grande afluência de trânsito pedonal e constantes atravessamentos da via por peões, em local que conhecia bem e onde passava diariamente, em zona de semáforos e várias passadeiras sinalizadas.
45. Foi confessado pelo próprio condutor que nem sequer viu o peão que atropelou.
46. Foi relatado por várias testemunhas que a viatura estivera na iminência de atropelar um peão que atravessava a via na passadeira que existe antes do local do embate.
47. A distância de 96,50 ou, sem conceder, 80 metros do local onde se deu o embate representa uma distância à qual o condutor estava obrigado a ver e parar/abrandar a sua marcha assim evitando em absoluto o embate, qualquer que fosse a distância à passadeira a que o peão atravessasse a estrada.
48. Se o veículo transitasse a menos de 50 quilómetros/hora, o embate não teria acontecido.
49. Não basta ter-se por verificado que o peão atravessou a menos de 50 m da passadeira para que tenha de se lhe atribuir qualquer culpa no atropelamento: impõe-se que, cumulativamente, se mostrem provados factos que demonstrem um efectivo vínculo causal entre essa distância não regulamentar e a eclosão do embate.
50. Não há qualquer facto que permita concluir que a travessia do peão a menos de 50 metros da passadeira efectivamente contribuiu para a eclosão do acidente ou um agravamento das suas consequências.
51. Nenhum facto permite concluir que a travessia do peão, por ter sido feita ali e não a 10 ou até 20 metros no sentido de Arcos de Valdevez constituiu uma surpresa ou evento súbito e inopinado ao condutor que o atropelou.
52. A distância do atravessamento para passadeira foi absolutamente irrelevante: o mesmo acidente ter-se-ia dado qualquer que tal distância fosse,
53. Este condutor teria atropelado qualquer peão e só as infracções por si cometidas foram causais do acidente e das respectivas consequências.

OS MONTANTES INDEMNIZATÓRIOS

DOS DIREITOS ADQUIRIDOS POR VIA HEREDITÁRIA

54. Dando-se como provado o facto não provado g. impor-se-á arbitrar pela existência de um dano não patrimonial resultado desse sofrimento de que a vítima ainda padeceu.
55. Tal montante deverá ser fixado, nesta sede, no montante de € 16.000,00 – conforme peticionado nos autos pelos Recorrentes,
56. Valor esse a dividir pelos Recorrentes na proporção de um oitavo a cada um,
57. Incluindo os Recorrentes B. M. e M. S., também eles legítimos credores de tais quantias, atenta a qualidade de herdeiros do falecido.
58. Mais se insurgem os Recorrentes contra o quantum fixado a título de ressarcimento pela perda do direito à vida do peão atropelado, transmitido hereditariamente aos Recorrentes, o qual, por respeito à suprema dignidade do direito em causa e à prática jurisprudencial generalizada, entendem os Recorrentes que, segundo prudente juízo de equidade, a indemnização pela perda da vida não pode ser inferior a €80.000,00 (oitenta mil euros).
59. Sob pena de violação da norma prevista no artigo 70º e 483 do CC.
60. Incluindo nos beneficiários de tais montantes, também, os Recorrentes B. M. e M. S., também eles legítimos credores de tais quantias, atenta a qualidade de herdeiros do falecido.

DANOS NÃO PATRIMONIAIS PRÓPRIOS

61. Todos os Recorrentes – incluindo os Recorrentes B. M. e M. S. – têm direito a ver-lhes arbitrado o montante indemnizatório indicado em sede de petição inicial, a título de danos não patrimoniais próprios emergentes do falecimento da vítima do atropelamento objecto destes autos.
62. Atenta a factualidade dada como provada em 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61 e 62, todos os Autores são titulares de um direito legítimo ao ressarcimento e tutela, por via indemnizatória.
63. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 496º do CC, sem prejuízo de douto suprimento.
64. Pelo que se mantém por adequado e equitativo o estipular da quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) como indemnização a este título, a pagar a cada um dos Autores.

A recorrida contra-alegou, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I- A decisão proferida quanto aos factos dos pontos 25 e 32 não resulta, apenas, do teor do relatório final do Cabo L. P., mas sim da conjugação de vários outros elementos de prova, devidamente mencionados na fundamentação da douta sentença;
II- No que toca a esses factos deve ter-se em conta, desde logo, o depoimento do autor C. V., perito averiguador de acidentes de viação, o qual, no seu depoimento gravado, o NH não dispunha de um sistema de travagem que permitisse ao seu condutor alterar a trajectória desse veículo depois de os seus rodados bloquearem, pelo que seria de esperar que deixasse na via rastos em linha reta, ou seja, a direito (cfr passagens dos minutos 5m08s e 26m31 e 26m38s do seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 22/01/2019, entre as 10h46m55s e as 11h25m28s)
III- Daí que se afigure especialmente relevante um desvio, ainda que ténue, que os rastos de travagem do NH apresentavam, o qual foi directamente percepcionado pelo cabo L. P. na inspecção directa ao local
IV- Esse desvio é indicativo de que, no ponto onde se verificava, o NH se deparou com um obstáculo, cuja massa não era suficiente para gerar uma relevante alteração de trajectória (como o seria o corpo do A. S.), mas, ainda assim, susceptível de provocar um desvio dela.
V- Por isso, tal como se concluiu no relatório final constante dos autos do processo de inquérito apenso e foi declarado pela testemunha L. P. no seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 31/01/2019, entre as 16h43m08s e as 14h14m25s, nas passagens dos minutos 24m27s a 25m36s, 26m38s a 28m31s, aquele elemento aponta no sentido de que foi no ponto da sua verificação que se deu o embate, 9,20 metros depois do início da travagem
VI- Esta conclusão de que o embate ocorreu no decurso da travagem efectuada pelo carro e não na sua parte final está sustentado em prova suficiente e credível, inclusive de cariz técnico.
VII- Nenhum elemento de prova indicado pelos AA nas suas alegações de recurso militou em sentido diverso do que se considerou provado.
VIII- O local provável do embate indicado pelo condutor do automóvel não pode ser entendido como correspondendo a um local exacto;
IX- A testemunha J. F. declarou expressamente no seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 31/01/2019, entre as 15h35m04s e as 16h02m45s, nas passagens dos minutos 25m39s a26m57s que não podia garantir se o embate ocorreu no fim, no meio ou no início da travagem, tendo reconhecido que a sua “opinião” de que foi no fim dela decorria de dedução lógica, baseada no facto considerar que, de outra forma, o carro teria passado sobre o peão
X- Porém, nessa dedução não teve a testemunha em conta a possibilidade de o peão ter sido projectado - que se provou no ponto 39 – o que retira qualquer sustentação à opinião que formulou.
XI- O depoimento da testemunha E. E. não é crível, nem sustenta a alteração da decisão proferida quanto a matéria de facto, em qualquer um dos pontos impugnados.
XII- Desde logo e em primeiro lugar, importa referir que ouvida integralmente a gravação do seu depoimento não se encontrou nele qualquer referência ao facto de o embate se ter dado no inicio, a meio, ou no fim da travagem.
XIII- Por outro lado, a versão dos factos apresentada por esta testemunha variou ao longo do tempo, tendo declarado, em dois momentos distintos, sob juramento e perante um juiz, factos totalmente contrários entre si.
XIV- Isso mesmo se encontra reflectido na fundamentação da decisão proferida quanto à matéria de facto constante da douta sentença.
XV- Nas declarações que prestou na audiência de julgamento do processo-crime instaurado na sequência da morte do A. S., gravadas no ficheiro áudio 20190131141131_1491512_2871824.wma de 31/01/2019), esta testemunha afirmou que viu o peão uma primeira vez na berma da estrada situada do lado da “…” (o lado esquerdo, atento o sentido do NH) e que, de seguida, deu a volta para estacionar nesse lado da estrada e, depois de sair do carro, voltou a ver o peão, mas já no meio da estada e declarou que desconhecia de onde o peão iniciou o atravessamento da via, nomeadamente se o fez da direita para a esquerda, ou o inverso, atendendo ao sentido do carro, já que só o viu pela segunda vez parado na estrada, quando este estava prestes a ser colhido já no meio da estrada (cfr passagens dos minutos 00m37s a 2m53, 8m33 a 8m40, 8m49s a 9m21s, 9m37s a 10m36s, 10m50s a 11m21sm 18m19s a 18m28s, 22m58s a 23m26s, 33m10s a 34m17s, 38m20s a 38m49s)
XVI- Já nas declarações que prestou na audiência de julgamento da presente ação (gravadas no ficheiro áudio 20190131110249_1491512_2871824.wma, de 31/01/2019) a mesma testemunha apresentou uma versão inteiramente distinta dos factos, dizendo agora ter visto o peão ia a atravessar a estrada da esquerda para a direita atento o sentido do carro, ter visto o peão a andar e não só parado e que a primeira vez que o viu foi já no meio da estrada, e não antes na berma (cfr passagens dos minutos 2m a 2m06s, 2m26s a 2m30s, 3m31s a 3m40s, 4m21s a 4m33s, 5m57s a 7m14s, 9m08s a 9m39s, 23m55s a 24m31s e 25m10s a 25m14s)
XVII- Ou seja, não é possível reconhecer credibilidade a uma testemunha que, em dois momentos diferentes, descreve de forma distinta o mesmo acontecimento.
XVIII- Em suma, nada impõe a alteração da decisão proferida quanto a estes pontos da matéria de facto, existindo antes elementos de prova que, de forma convincente e suficiente, apontam no sentido dado como provado.
XIX- De todo o modo, nunca poderia ser dado como provado que o embate ocorreu a distância igual ou superior à de 48,059 metros, já que é essa a distância a que ficou a frente do NH da passadeira.
XX- Não se provou que o peão tenha atravessado a estrada da esquerda para a direita, atento o sentido do automóvel, pelo que se impunha a decisão proferida quanto à alínea a) dos factos não provados.
XXI- Do depoimento da testemunha E. E. não se retira tal factualidade.
XXII- A E. E. declarou, expressamente, no decurso das declarações que prestou na audiência de julgamento do processo-crime instaurado na sequência da morte do A. S., gravadas no ficheiro áudio 20190131141131_1491512_2871824.wma de 31/01/2019), mais precisamente nas passagens dos minutos 33m10s a 33m44s e 38m20s a 38m49s, que não sabia em que sentido o peão efectuou o atravessamento, já que só o viu já parado no meio da estrada instantes antes do embate.
XXIII- Não pode, portanto, ser dado qualquer crédito ao depoimento de uma testemunha que afirmou duas coisas diametralmente opostas, sob juramento e perante dois juízes, sobre o sentido em que avançava o peão.
XXIV- As declarações que essa testemunha prestou perante OPC não foram precedidas de juramento, nem foram sujeitas a contraditório, pelo que não são atendíveis.
XXV- De resto, mesmo na audiência de julgamento realizada nestes autos, esta testemunha disse que só olhou para a estrada quando ouviu o barulho da travagem, não sendo crível que, na fracção de segundos que mediou entre a travagem e o embate tivesse podido aperceber-se do sentido de marcha do peão.
XXVI- De referir, ainda, que foi com base nas declarações da E. E. que o Tribunal da Relação deu como não provado no processo-crime que o peão tenha atravessado da esquerda para a direita, não sendo concebível que esse mesmo depoimento servisse agora para dar como provado o facto inverso.
XXVII- Em face do exposto, nenhum elemento de prova impõe decisão diversa da proferida quanto ao facto da alínea a) dos factos dados como não provados.
XXVIII- Não indicam os AA qualquer meio de prova que impusesse decisão diversa da proferida quanto ao facto do ponto 34 da matéria dada como provada, o que impede a sua alteração
XXIX- Nesse ponto da matéria de facto, o Tribunal pronunciou-se sobre a distância de visibilidade de que dispôs o automobilista quando o peão ingressou na via, o que não se confunde com a visibilidade propiciada pelas características do local.
XXX- Não há, portanto, qualquer contradição entre esse facto e os demais dados como provados na sentença
XXXI- As conjecturas que os AA formulam quanto à distância a que se encontrava o automóvel do peão quando este ingressou na estrada não estão sustentadas em qualquer facto provado ou elemento de prova;
XXXII- Faltariam sempre dados suficientes para que se formulasse um juízo no sentido de que o carro, mesmo na hipótese de se ter como provado que o sentido do atravessamento era da esquerda para a direita, se encontrasse à dita distância de 80 metros, já que essa conclusão dependeria do apuramento da velocidade de marcha do peão, a qual não se provou.
XXXIII- Deve, pois, manter-se a decisão proferida quanto ao facto do ponto 34.
XXXIV- Não poderia o Tribunal dar como provado que o peão se apercebeu de que a sua morte era inevitável, o que lhe provocou ainda desespero e angústia, tendo por base o depoimento de uma testemunha (a E. E.) que, além de várias outras contradições já acima enunciadas, declarou sob juramento e perante um juiz, , expressamente, que não sabia se o peão se apercebeu da inevitabilidade do atropelamento (cfr declarações prestadas na audiência do processo crime, gravadas no ficheiro áudio 20190131141131_1491512_2871824.wma, de 31/01/2019, aos minutos 12m12 a 23m17s)
XXXV- Além disso, nas declarações que prestou na audiência de discussão e julgamento nestes autos (ficheiro áudio 20190131110249_1491512_2871824.wma de 31/01/2019), não resultou minimamente demonstrado que o peão tenha tido a percepção de que a morte era inevitável e que isso o tenha angustiado, já que a testemunha em causa se limitou a referir que, a dado momento e na iminência do embate, o peão se voltou para o carro e foi colhido (cfr passagens dos minutos 2m26s a 2m30s, 4m21s a 4m33s, 9m02s a 9m50s, 14m11s a 14m40s)
XXXVI- Nem mesmo o facto – de duvidosa fiabilidade, atendendo às declarações que a mesma testemunha prestou na audiência de julgamento do processo-crime – de esta testemunha ter referido que na iminência do embate o peão se voltou para o carro permite concluir que o A. S. se tenha chegado a aperceber da iminência da morte e que isso o tenha angustiado.
XXXVII- Assim, nada impõe a alteração da decisão proferida quanto a este facto, a qual se deve manter.
XXXVIII- De resto, mesmo que o Tribunal desse crédito às declarações (sempre contraditórias entre si) da testemunha E. E., só poderia considerar provado, apenas, que o A. S., na iminência da colisão, se voltou para o veículo atropelante, por ter sido apenas isso que a dita testemunha afirmou.
XXXIX- Não se justificando a alteração da decisão proferida quanto à matéria de facto, impunha-se a repartição da responsabilidade estabelecida na douta sentença
XL- Mas, mesmo que fosse alterada a decisão quanto aos pontos impugnados, essa decisão deveria ser mantida
XLI- O peão A. S. atravessou a estrada – não interessando aqui qual o sentido em que progredia – fora de uma passadeira e em local onde poderia e pôde avistar o automóvel em aproximação à mesma distância que este o poderia ter visto.
XLII- A entrada de um peão na estrada fora de uma passadeira, constitui um facto inesperado para um automobilista, com o qual não tem de contar
XLIII- Sendo certo que sobre o condutor impendia o dever de cuidado, já não é exigível que se aperceba antecipadamente, muito menos já depois de uma passadeira, que um peão atravessará a estrada; em contraponto, o peão, antes mesmo de atravessar e sabendo qual é a sua intenção, tem um melhor domínio de todos os perigos que o circundam, o que sobre si faz recair o especial dever de não agir de um modo que possa causar embaraço para o transito e perigo para a sua integridade física.
XLIV- Ainda que venha a ser alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto, é inquestionável que o falecido cometeu a infracção ao art.º 101º, nº 3, do CE, uma vez que não utilizou a passagem de peões existente no local para a travessia da via em segurança.
XLV- Essa infracção deu causa ao acidente, na medida em que o peão se colocou numa posição que constituiu um obstáculo à progressão do veículo.
XLVI- A possibilidade de ser evitada uma colisão não constitui um aspecto de decisiva relevância no sentido de que só ao automobilista cabe a responsabilidade pela eclosão do acidente.
XLVII- Com a devida diligência, o autor, antes de atravessar a estrada, poderia ter-se apercebido da velocidade com que o automóvel se aproximava de si e concluir, portanto, que o atravessamento da estrada naquele momento geraria o risco de acidente.
XLVIII- Portanto, a inevitabilidade da colisão, ainda que seja decorrência da velocidade de que ia animado o NH, é, também, resultado da inobservância pelo peão do seu dever de cuidado, que passaria por aguardar pela passagem do veículo antes de atravessar.
XLIX- A presunção de culpa que impendia sobre o automobilista foi ilidida, na medida em que se provou que um comportamento ilícito da vítima contribuiu para a verificação do acidente.
L- Essa presunção apenas dispensa o lesado de provar a culpa efectiva do lesante, mas não impede que se conclua que para a ocorrência do evento danoso concorreu, também, a actuação da própria vítima, como foi o caso, com a consequente repartição da responsabilidade.
LI- Assim, deve ser mantida a decisão proferida no que toca à responsabilidade.
LII- As verbas indemnizatórias arbitradas na douta sentença são adequadas aos danos sofridos e devem ser mantidas.
LIII- Não se provou que o A. S. tenha antecipado a morte
LIV- Mesmo que se considerasse provado, apenas, que se voltou na iminência da colisão, daí não se concluiria que se apercebeu da inevitabilidade da morte.
LV- E ainda que fosse dado como provado o facto da alínea g), seria excessiva a verba pretendida pelos demandantes.,

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto
b) há culpas repartidas
c) valor da indemnização por danos não patrimoniais

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. No dia -8.04.2014, pelas 18.00 horas, ocorreu um embate, na Estrada Nacional nº 201, ao quilómetro nº 33,950, na freguesia de ..., da vila e concelho de Ponte de Lima, em que foram intervenientes: o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula NH, pertencente a Y, Lda e conduzido por D. R. e o peão S. S..
2. Na altura da ocorrência do embate, o condutor do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH conduzia-o em cumprimento de ordens e instruções e por um itinerário que a sociedade Y, Lda, sua entidade patronal, lhe havia, previamente, transmitido e dentro do seu horário de trabalho.
3. A Estrada Nacional nº 201, no local do embate configura uma curva descrita para o lado esquerdo, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez.
4. O piso da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, no local do embate, era pavimentado a asfalto, encontrando-se limpo, seco e em bom estado de conservação.
5. Na altura do embate, o tempo estava bom e seco e era sol alto.
6. A faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, no local do embate tem uma largura total de 7,70 metros, é dividida em duas hemi-faixas de rodagem distintas, cada uma delas, destinadas a um sentido de marcha, separadas, entre si, através de uma “zona de raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas”.
7. A hemi-faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201 situada do lado Norte é destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido Arcos de Valdevez - Ponte de Lima (sentido de marcha Rotunda de … - Rotunda de ...).
8. E a hemi-faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201 situada do lado Sul é destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido Ponte de Lima - Arcos de Valdevez (sentido de marcha Rotunda de ... - Rotunda de ...).
9. A hemi-faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, situada do lado esquerdo, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez tem uma largura de 02,90 metros.
10. A hemi-faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, situada do lado direito, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez tem uma largura de 03,10 metros.
11. A “zona de raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas”, situada ao meio das duas referidas hemi-faixas de rodagem da referida via tem uma largura de 1,70 metros.
12. Pelas suas margens, a faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201 apresentava bermas, destinadas ao trânsito de peões, com uma largura de 1,60 metros, a situada do lado esquerdo, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez e com uma largura de cerca de 1,50 metros, a situada do lado direito, tendo em conta o referido sentido.
13. Essas duas referidas bermas eram delimitadas em relação à faixa de rodagem asfáltica da Estrada Nacional nº 201, através de linhas, pintadas a cor branca, sem quaisquer soluções de continuidade: linhas delimitadoras contínuas – Marcas M19.
14. Quem se encontrar no local do embate consegue avistar a faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, a “zona de raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas” e as suas duas bermas, destinadas ao trânsito de peões, em toda a sua largura, ao longo de uma distância superior a 100,00 metros, em direcção a Arcos de Valdevez e em direcção a Ponte de Lima.
15. Para quem circula pela Estrada Nacional nº 201, no sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez, consegue avistar-se a faixa de rodagem, a “zona de raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas” e as suas duas bermas asfálticas, destinadas ao trânsito de peões, em toda a sua largura, em direcção ao local do embate numa altura em que se encontra, ainda, a uma distância superior a 100 metros antes de lá chegar.
16. Pelas suas duas margens, a Estrada Nacional nº 201, no local do embate e antes de lá chegar, para quem circula em qualquer dos seus dois sentidos de marcha, era, como é, ladeada por casas de habitação, por blocos de apartamentos e por estabelecimentos comerciais, todos eles com os seus respectivos acessos a deitar directamente para a via.
17. A marginar as duas bermas asfálticas que ladeavam a faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, entre estas e os estabelecimentos comerciais ali existentes, existiam, à data do embate:

a) pela margem direita, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez uma zona pavimentada a asfalto, destinada ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, com uma largura de 7,10 metros;
b) pela margem esquerda, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez uma zona pavimentada a asfalto, destinada ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, com uma largura de 9,20 metros.
18. Para quem circulava pela Estrada Nacional nº 201, no sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez existiam, entre a Rotunda de ... e o local onde eclodiu o sinistro, fixos em suporte vertical, os seguintes sinais de trânsito:
a) um sinal, fixo em suporte vertical, de forma triangular, com a sua orla vermelha e com o seu fundo branco, sobre o qual se encontrava, como se encontra, pintada a cor preta uma silhueta humana, de forma estilizada, em jeito de caminhar sobre uma zona de traços pretos em posição paralela uns em relação aos outros: sinal indicativo da aproximação de passagem para peões – SINAL A16a; e
b) uma passadeira para o atravessamento de peões - MARCA M11.
19. Para quem circula em qualquer dos dois sentidos de marcha, fixo em suporte vertical, nas duas margens da Estrada Nacional nº 201, quer do lado Poente – do lado de Ponte de Lima/Rotunda de ... -, quer do lado Nascente – do lado de Arcos de Valdevez/Rotunda de ... -, junto a essa “passadeira para o atravessamento de peões”, para quem circula no sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez, um sinal indicativo da existência e da presença da referida passadeira para o atravessamento de peões – MARCA M11 – SINAL H7;
20. No local do embate processava-se diariamente e de forma permanente, intenso tráfego de peões, através das duas bermas asfálticas e pelos espaços destinados ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, que ladeiam a Estrada Nacional nº 201, pelas suas duas margens.
21. E ainda um intenso tráfego de peões que procediam e que procedem ao atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201.
22. O condutor do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH conhecia o local onde eclodiu o embate e tinha a sua residência habitual e permanente na freguesia de …, concelho de Ponte de Lima.
23. Nas referidas circunstâncias de espaço e tempo, o S. S. iniciou e desenvolveu o atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201.
24. Por sua vez, o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH transitava pela Estrada Nacional nº 201, ao quilómetro nº 33,950, em ..., concelho de Ponte de Lima, no sentido Ponte de Lima - Arcos de Valdevez, pela metade direita da faixa de rodagem da referida via, e a uma velocidade, situada entre os 59,90 Km/h e os 68,1 Km/h.
25. Aquele veículo tinha ingressado na Estrada Nacional nº 201 provindo da Rua Dr. ..., a qual entronca à direita daquela primeira estrada, atento, nela, o sentido Ponte de Lima – Arcos de Valdevez, a cerca de 80 metros do local do embate.
26. O veículo de matrícula NH era um veículo de marca Mercedes-Benz, modelo Vito, com matrícula de … de 1999 e 1,87 m de largura.
27. Nas apontadas circunstâncias de tempo, o referido veículo circulava com uma carga com um peso de, no máximo, 70 kg (excluindo o peso do condutor).
28. Quando chegou ao termo da Rua Dr. …, no limiar do seu entroncamento na Estrada Nacional nº 201, o condutor do veículo de matrícula NH imobilizou essa viatura.
29. Depois de ter reiniciado a sua marcha e entrado na Estrada Nacional nº 201, o condutor do dito prosseguiu o seu rumo no sentido Ponte de Lima - Arcos de Valdevez.
30. Depois de percorrer cerca de 55 metros no sentido Ponte de Lima - Arcos de Valdevez, o veículo de matrícula NH atingiu a parte inicial (ou seja, a situada mais próximo de Ponte de Lima) da passadeira destinada à travessia de peões existente na via.
31. Depois de ter transposto essa passadeira, o condutor do mesmo avistou o peão S. S. a realizar o atravessamento da via fora da passadeira destinada ao trânsito de peões.
32. O S. S. iniciou e realizou o atravessamento da via a uma distância de cerca de 31,50 metros depois dessa passadeira, atento o sentido Ponte de Lima - Arcos de Valdevez.
33. A referida passadeira era avistável a esse peão no local onde iniciou e realizou o atravessamento da estrada.
34. Por sua vez, o condutor do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH podia ter avistado o peão S. S. quando se encontrava a uma distância superior a 30m do local onde o referido peão se encontrava a proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201.
35. O referido condutor accionou o sistema de travagem do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH, tendo deixado marcados no pavimento da metade direita da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez, rastos de travagem, com o comprimento de:
a) 19,70 metros, correspondentes aos seus rodados esquerdos;
b) 21,10 metros, correspondentes aos seus rodados direitos.
36. E foi embater com o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH contra o corpo do S. S..
37. O embate ocorreu sobre a metade direita da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez, a uma distância de um metro da supra-referida “zona de raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas”, ali existente e a cerca de 2,8 metros do limite direito da estrada, atento o sentido Ponte de Lima - Arcos de Valdevez.
38. Essa colisão verificou-se primeiro entre a parte frontal esquerda, junto à linha média da parte frontal, do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH e o corpo do S. S. e de seguida no pára-brisas da viatura.
39. Em consequência do embate, o S. S. foi projectado para sua frente, em direcção Arcos de Valdevez, tendo ficado prostrado no solo, cerca de 3 a 5 metros à frente do local onde o veículo se imobilizou e sobre a metade direita da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez, com a sua cabeça apontada em direcção Arcos de Valdevez e os pés apontados em sentido contrário.
40. O veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH, após o embate, imobilizou a sua marcha sobre a metade direita da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201, tendo em conta o sentido Ponte de Lima-Arcos de Valdevez, com a sua parte lateral esquerda a facear com a “zona de raias oblíquas delimitadas por linhas contínuas”, ali existente, sobre o eixo divisório da faixa de rodagem da referida via, com os seus rodados no termo do lado de Arcos de Valdevez/Rotunda de ... – dos rastos de travagem e com a sua parte frontal apontada em direcção a Arcos de Valdevez.
41. Por acórdão da Relação de Guimarães proferida no processo Comum nº 187/14.5GAPTL que correu termos pelo Juízo de Competência Genérica, Juiz 1, de Ponte de Lima, e já transitado em julgado, o condutor do veículo de matrícula NH, D. R., foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 250 dias de multa, à razão diária de € 6,00, no montante global de € 1.500,00 e, ainda, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria por um período de 7 meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, conforme documento constante de fls. 231 a 277v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos (cfr. fls. 756 e seguintes do processo apenso por linha).
42. Em consequência do embate, o peão sofreu hematoma subcutâneo, na região temporal e parietal esquerda, otorragia bilateral, equimoses arredondadas, medindo a maior delas o comprimento máximo de três (3) centímetros, localizadas na região frontal esquerda, equimose com 2x5 cm, localizada na face antero-lateral esquerda e sinais de lesões traumáticas locais, equimose; com abrasão de 14x8 cm, localizada na região da cabeça do fémur esquerdo, escoriações arredondadas múltiplas dispersas pela face interna do joelho esquerdo, medindo a maior delas o diâmetro máximo de quatro centímetros; hematoma volumoso da região temporo-parietal esquerda irregular, com infiltração sanguínea, interessando a couro cabeludo e os tecidos moles subjacentes da região parieto-temporal esquerda, duas fracturas cominutivas no hemicrânio esquerdo, com infiltração sanguínea dos bordos, na região do rochedo direito com 6 e 4 cm de comprimento, traço de fractura dos ossos do crânio, descrita no rochedo direito, com infiltração sanguínea dos seus bordos, hemorragias e sinais de lacerações das meninges, nas áreas correspondentes às fracturas, sulcos no encéfalo, bem marcados, hemorragia extensa extra e subdural, com hematoma extradural, na região parieto-temporal direita, fractura cominutiva do terço médio do esterno, com infiltração sanguínea dos topos ósseos e dos tecidos moles adjacentes, fracturas dos arcos costais direitos, do primeiro ao oitavo anteriores e do primeiro ao sexto médios e direitos, do primeiro ao décimo anteriores e do primeiro aos sétimo médios, com infiltração sanguínea dos topos ósseos e dos tecidos moles adjacentes (volé costal), derrame pleural bilateral de líquido hemático, com cerca de mil centímetros cúbicos, à direita e de quinhentos centímetros cúbicos à esquerda, parênquima do pulmão direito congestionado, com coloração vinosa, exteriorizando-se líquido seroso escuro à sua expressão, extensas áreas de contusão dispersas, pela face anterior do pulmão direito, parênquima do pulmão esquerdo muito congestionado, com coloração vinosa, exteriorizando-se grande quantidade de líquido seroso à sua expressão, múltiplas lacerações dispersas do pulmão esquerdo, pela sua face anterior, parênquima acastanhado e muito congestionado do fígado, fractura cominutiva, com infiltração, dos topos do úmero e de cotovelo do membro superior direito, lesões essas que lhe determinaram a morte.
43. O aludido S. S. foi assistido no local do sinistro pelos Bombeiros Voluntários de Ponte de Lima e, posteriormente, transportado, de ambulância, para a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, EPE – ULSAM, EPE, de Ponte de Lima.
44. Foi recebido no Serviço de Urgência do Hospital …, de Ponte de Lima, onde foi certificado o seu óbito pelas 19.30 horas do mesmo dia.
45. O S. S. nasceu no dia -.01.1940, conforme documento de fls. 279 e 279v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
46. Por procedimento simplificado de habilitação de herdeiros celebrado em 30.04.2014, foram declarados herdeiros do aludido S. S., os seus filhos, J. C., C. V., M. C. e P. M.; a neta, V. C., por direito de representação do pai pré-falecido José; e os netos B. M. e M. S. por funcionamento do direito de representação do descendente A. S. que repudiou a herança do seu pai, S. S., por escritura pública de 17.04.2014, conforme documentos constantes de fls. 279 a 296 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
47. O falecido era uma pessoa saudável, muito alegre, bem disposta e muito apegada à vida.
48. Sempre levou uma vida sadia e de intensa dedicação ao trabalho e à sua família.
49. À data do embate, o S. S. encontrava-se reformado.
50. Mas explorava, com fins lucrativos, uma barraca/restaurante ambulante em feiras semanais e anuais, bem como em diversas festas e romarias no Minho.
51. Sendo o aludido S. S., com o auxílio de familiares e empregados, quem organizava e geria todos os trabalhos de transporte, montagem e desmontagem da sua barraca/restaurante, tratava da aquisição e mercadorias e géneros indispensáveis à sua exploração e supervisionava os trabalhos de serviço de balcão.
52. Com o que auferia um rendimento anual não concretamente apurado, mas nunca inferior a € 5.000,00.
53. As autoras P. M. e V. C. sempre residiram com o seu falecido pai e avô e sempre colaboraram com o mesmo na exploração da sua barraca/restaurante.
54. O autor A. S. também residiu com o seu pai durante período não concretamente apurado.
55. Os demais filhos do falecido, embora vivendo em locais e em casas separadas, telefonavam semanalmente ao seu pai, respectivamente, e, à excepção da autora M. C., visitavam-no, pelo menos, todos os meses.
56. O autor J. C. fazia as feiras e as festas, com a sua própria barraca/restaurante, junto à do seu pai.
57. O autor C. V. visitava o seu falecido pai, pelo menos, uma vez por mês.
58. E a M. C. visitava o seu falecido pai, praticamente todos os anos, nas férias de verão.
59. E todos os autores, pessoalmente ou pela via telefónica, partilhavam com o falecido S. S., os seus aniversários e as festas anuais da Páscoa e do Natal.
60. Todos os autores dedicavam ao seu pai e avô um afecto e uma ternura incomensuráveis, tendo sempre se mantido muito unidos e o amparo moral e afectivo uns dos outros.
61. O falecido rodeava, também ele, permanentemente, de atenção e carinho os seus filhos e netos.
62. A morte do S. S. causou a todos os autores, um profundo desgosto e angústia, tendo-os deixado inconsoláveis, para o resto das suas vidas.
63. Com o funeral da vítima e com os serviços fúnebres, despenderam os herdeiros do S. S., em 30.04.2014, a quantia de 2.950,00 €, tendo recebido da Segurança Social um subsídio para tal efeito, no valor de € 1.256,66.
64. Em consequência do embate, ficaram destruídos as peças de vestuário e o calçado que o sinistrado usava, nomeadamente um par de calças, um cinto em pele, uma camisa, uma camisola interior, um par de cuecas, um par de meias e um par de sapatos, em valor não inferior a € 160.00.
65. À data do embate, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH encontrava-se transferida para a ré, através de contrato de seguro, válido e eficaz, titulado pela apólice nº 140000529987.
*
B. Factos Não Provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, que:

a- o peão procedeu ao atravessamento da via da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo automóvel, em passo ligeiro;
b- o peão procedeu ao atravessamento da via da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo automóvel, em passo rápido;
c- antes de iniciar o atravessamento da via, o S. S. olhou para a sua esquerda ou direita;
d- antes de iniciar o atravessamento da via, o S. S. não tomou qualquer precaução, não tendo olhado para a sua esquerda ou direita;
e- quando o S. S. iniciou a travessia o veículo de matrícula NH já se encontrava à distância de si de menos de 15 a 20 metros;
f- o condutor do veículo de matrícula NH guinou à sua esquerda, numa tentativa de se desviar do peão;
g- o peão apercebeu-se que a sua morte era inevitável, o que lhe provocou ainda desespero e angústia;
h- os autores tenham despendido a quantia de € 400,00 em flores.

IV
Conhecendo do recurso.

Em primeiro lugar os recorrentes impugnam o julgamento da matéria de facto.
Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Numa breve síntese, o recorrente tem de formular conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º,4 e 641º,2,b); tem de especificar, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (art. 640º,1,a); tem de especificar, na motivação, os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que deveriam levar a solução diversa; tem de indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação em que se funda; e tem de tomar posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
Ora, da leitura das alegações dos recorrentes resulta que estes cumpriram o ónus de alegação que a lei impõe. Indicaram quais os pontos de facto que consideram mal julgados, indicaram qual a resposta que em seu entender o Tribunal deveria ter dado a esses pontos de facto, e indicaram os meios de prova que em seu entendimento justificavam decisão diferente, avançando argumentação nesse sentido.
Podemos então conhecer do recurso sobre matéria de facto.
Trata-se de averiguar se a decisão da primeira instância contém erros de julgamento, quer os que os recorrentes lhe imputam, quer outros que sejam de conhecimento oficioso, que justifiquem a sua alteração.
A definição dos parâmetros que permitem ajuizar de um erro de julgamento, ou de qualquer outro vício da decisão que leve a uma alteração da decisão da matéria de facto consta do artigo 662º CPC.

Dispõe esse artigo, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto” o seguinte:

1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

O nº 1 deste artigo contém o que podemos chamar de regime-base: se não for necessária a produção de qualquer outro meio de prova, contendo o processo todos os elementos necessários para decidir, quando os factos provados, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, a Relação deve decidir nesse sentido.
O nº 2 indica outros caminhos que a Relação pode seguir, se considerar que é necessária a renovação da produção da prova, ou a produção de novos meios de prova, ou se considerar que a decisão recorrida é deficiente, obscura ou contraditória, ou que é necessária a ampliação desta, ou ainda que a decisão recorrida não se mostra devidamente fundamentada sobre algum facto essencial, caso em que ordena que essa fundamentação seja completada.

Como ensina Abrantes Geraldes, o novo CPC recusou qualquer solução que pudesse reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, assim como recusou a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto. O legislador restringiu a possibilidade de revisão a concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.

Ainda numa perspectiva abstracta, importa partir de alguns dados empíricos importantes. O primeiro é que a realidade dos acidentes de viação caracteriza-se pela velocidade e fluidez dos eventos. A esmagadora maioria dos acidentes de viação começa, desenvolve-se e termina em apenas escassos segundos. A segunda constatação tem a ver com as limitações da prova testemunhal: é sabido que a atenção do ser humano aos eventos que decorrem à sua volta é extremamente limitada e focada em pormenores. Assim, procurar saber o que aconteceu num determinado acidente de viação que durou poucos segundos, que não foi filmado por nenhuma câmara de vídeo, e que foi presenciado por pessoas diferentes colocadas em sítios diferentes, e com capacidades de observação e de atenção igualmente diferentes, é uma tarefa de grande complexidade, que não pode assentar apenas em um ou dois meios de prova isolados. Tem antes de assentar na análise e conjugação de todos os meios de prova disponíveis, uns de natureza subjectiva, outros de natureza objectiva, aferindo aqueles por estes, de forma a que, após a análise de cada elemento de facto de per si, e de cada prova isoladamente considerada, seja possível proceder à síntese final, e obter uma descrição o mais possível aproximada à realidade. A tarefa de descobrir a verdade, que já de si é difícil, pelas razões acabadas de expor, no caso da prova testemunhal sofre um aumento de complexidade decorrente, umas vezes da postura tendenciosa de uma ou outra testemunha, outras de dificuldades de percepção, e outras ainda de excesso de subjectividade na percepção/relato dos eventos. Daí que a prova testemunhal, por definição, não seja tarifada, estando sujeita à regra da livre apreciação (art. 607º,5 CPC).
Nessa tarefa, a de chegar à verdade possível, as Relações deparam-se com uma dificuldade suplementar, mas que é ultrapassável: é que “a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (video) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no Tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância. Na verdade existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador” (1).
Ou seja, o registo audio da prova não permite captar na totalidade aquilo que a Psicologia designa de “comunicação não-verbal”. E para um juiz que tem perante si dois relatos divergentes sobre os mesmos factos essenciais, essa comunicação não-verbal assume uma importância determinante na conclusão final sobre a veracidade dos depoimentos.
Assim, a priori, numa situação destas, um recurso da decisão sobre matéria de facto assente apenas no entendimento do recorrente, necessariamente divergente do entendimento do Tribunal recorrido, estará na esmagadora maioria dos casos votado ao fracasso.
Só assim não será se da análise da decisão e sua fundamentação se verificar a existência de algum erro manifesto, contradição, ou alguma incoerência ou implausibilidade, que coloque sérias dúvidas sobre a justeza da decisão, ou se for manifesto que, das duas versões testemunhais apresentadas perante o Tribunal, aquela na qual este se apoiou para julgar a matéria de facto for notoriamente menos credível que a outra, que o Tribunal a quo desvalorizou.
Dito isto, vamos começar por dizer que da leitura da decisão recorrida, conjugada com a prova, documental, testemunhal e pericial que foi produzida, não resulta qualquer erro na apreciação ou julgamento da prova. Concretamente, não resultam os erros apontados pelos recorrentes.
Dentro daquilo que se designa por “dinâmica do acidente”, os recorrentes colocaram em causa, essencialmente, o local do embate, a distância entre a passadeira e o local onde o peão iniciou o atravessamento, a distância a que o condutor do veículo automóvel podia ter avistado o peão, e a direcção com que o peão procedeu ao atravessamento da via, se da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo automóvel. Ora, quanto a estes aspectos, o Tribunal recorrido apresenta uma fundamentação clara e convincente, baseada essencialmente na participação do acidente, no teor do “exaustivo e esclarecedor relatório final elaborado no âmbito do processo crime” e, em muito particular, os registos fotográficos recolhidos para a sua elaboração, devidamente concatenados com o depoimentos da testemunha L. P., agente da GNR responsável pela investigação do aludido processo crime, o qual confrontado com o aludido relatório explicou de forma assertiva, coerente e conhecedora as conclusões constantes do dito relatório, que manteve. Mais se esclarece na sentença recorrida que este depoimento, pela sua clareza e profundidade foi absolutamente determinante para o convencimento do tribunal relativamente ao local do embate e o local onde o peão e o veículo ficaram imobilizados na via após o embate, quanto à parte do veículo seguro onde ocorreu a colisão; quanto à travagem realizada pelo condutor do veículo seguro antes do embate; e ainda à distância a que o condutor do veículo avistou o peão e à distância a que o embate ocorreu da passadeira ali existente.
Depois da audição deste depoimento, esta Relação não vislumbra aqui qualquer erro de julgamento. O depoimento é claro, objectivo e detalhado, e daí que tenha merecido total credibilidade ao Tribunal recorrido, merecendo-a igualmente desta Relação. Merece especial destaque a explicação que a testemunha apresentou para os cálculos que incluiu no seu relatório, sobre por exemplo o tempo de reacção do condutor ao avistamento do peão, e, sobretudo, a parte em que a testemunha refere que admitiu uma ligeira alteração na orientação na marca de travagem, como sendo compatível com o embate no peão; explica que o veículo tem uma massa muito superior ao peão, mas que mesmo assim é possível ver a oscilação na marca de travagem, uma ligeira inflexão, que não é muito perceptível no suporte fotográfico, mas que no local era mais perceptível.
Ainda tivemos em conta a explicação apresentada sobre a determinação do sentido de marcha do peão, nomeadamente quando a testemunha esclareceu que quando elaborou o seu relatório não teve acesso ao relatório da autópsia.
Igualmente tivemos em conta a explicação da testemunha para ter considerado a distância entre o ponto fixado como o do embate e a passadeira.
E não há razão para não acreditar nestas percepções da testemunha, a qual é um profissional com experiência na análise de acidentes de viação.

O Tribunal recorrido não deixou de mencionar que apenas os depoimentos do condutor do veículo seguro e da testemunha E. E. disseram ter assistido directamente ao embate. Porém, acrescentou logo a seguir que esses dois depoimentos não se revelaram coincidentes, nem minimamente consistentes, explicando porquê. Concretamente, quanto ao depoimento prestado pela testemunha E. E., o mesmo não mereceu credibilidade, pela sólida razão de ser parcialmente contraditório com o depoimento por ela prestado em audiência de julgamento no processo crime, com a agravante de ser o depoimento actual, mais longínquo no tempo em relação aos factos, o que se revela mais rico de pormenores, pormenores que a testemunha não conseguiu fornecer quando a sua memória estava bem mais fresca. E diga-se que a tentativa de explicação apresentada pelos recorrentes, salvo o devido respeito, não convence minimamente. Pode ler-se na sentença recorrida que “a testemunha não conseguiu explicar de forma cabal e congruente qual a razão pela qual, em 2015, aquando da realização do processo crime, disse não ter a certeza em que sentido atravessava o peão e, actualmente, decorridos cerca de cinco anos do sucedido, veio afirmar que o mesmo se encontrava a atravessar da esquerda para a direita”. Outra afirmação da testemunha que não mereceu credibilidade foi a de o veículo seguro ter parado imediatamente após o embate, o que não se mostra compatível e consentâneo com a demais prova produzida, como de seguida explicou.
E, com efeito, depois de ouvir a gravação do depoimento não podemos senão concordar com o julgamento feito, pois as contradições com o depoimento anterior são incontornáveis, sobre o momento em que pela primeira vez avistou o peão. Essas contradições surgem aliás devidamente expostas nas contra-alegações da recorrida, conclusões XI a XXIIII.
Também não colhe a referência ao auto de declarações da testemunha em sede de inquérito. Como é sabido, e sobretudo no processo penal, a prova que conta é a prova produzida em audiência de julgamento, sendo que existem fortíssimas condicionantes para que o depoimento de uma testemunha perante órgão de polícia criminal seja lido em audiência de julgamento. Assim, bem andou o Tribunal em ater-se apenas às declarações da testemunha em audiência de julgamento, únicas que podem ser devidamente valoradas, e foram obtidas sob contraditório.
Os recorrentes manifestam opinião divergente da do Juiz a quo quanto a ter dado o facto nº 32 como provado. Aliás, afirmam que “redunda a sentença em contradição quando rebate as declarações da testemunha E. E. no sentido de que o embate se teria produzido no fim da travagem confrontando-as com o teor do depoimento da testemunha J. A. e ao seu afirmar de que o choque havia sido violento, quando precisamente essa mesma testemunha (J. A.) também afirma peremptoriamente que o embate se dá onde o veículo se imobilizou, afirmação essa que, embora essencial para o julgamento desta matéria de facto, foi largamente ignorada pelo julgador.
Ao contrário do que pretendem os recorrentes, não podemos atribuir credibilidade a essa afirmação, pois a mesma, ela sim, é intrinsecamente contraditória. Se visualizarmos na nossa mente o atropelamento destes autos, rapidamente concluiremos que não é possível que o embate se tenha dado onde o veículo se imobilizou. Pela simples razão que a massa corporal do peão não era suficiente para fazer parar o veículo automóvel. Podemos fazer uma estimativa que não andará muito longe da verdade, que o veículo automóvel pesaria cerca de duas toneladas, e o peão cerca de 70 Kg. Bem se compreende pois, se levarmos em consideração a energia cinética decorrente da velocidade do veículo, que não é fisicamente possível que um corpo humano de aproximadamente 70 Kg, ao ser embatido por um automóvel de 2000 Kg que se desloca a uma velocidade de cerca de 60 Km/h, consiga fazer parar o veículo no ponto do impacto. O efeito, pelo contrário, será muito mais parecido com o de um pontapé numa bola de futebol. Dar credibilidade à afirmação de que o embate se deu onde o veículo se imobilizou, para continuar a usar a mesma figura comparativa, seria como acreditar que um jogador profissional de futebol dá um forte pontapé numa bola parada, a bola absorve toda a energia cinética do pé e do peso do jogador, de forma a que o pé bloqueia no momento do impacto, e a bola avança poucos milímetros.
A afirmação em causa só seria credível se o veículo já estivesse a deslocar-se a uma velocidade muito baixa no momento do impacto, e aí, sim, podemos acreditar que o veículo se tivesse imobilizado no ponto exacto do embate. Só que, a ser assim, o corpo certamente não teria sofrido os danos que sofreu, descritos no relatório de autópsia, que causaram a morte do peão.
Donde, sem mais, não merece credibilidade a referida afirmação.
Assim, não vislumbramos qualquer erro na decisão de dar como provados os factos com que os recorrentes não se conformam, bem como na decisão de dar como não provados os factos a) e g).
Não é sequer necessário o recurso à presunção constante do art. 623º CPC (contra a qual se insurgem os recorrentes), pois os dados objectivos recolhidos no local, conjugados com o depoimento da testemunha L. P., permitem sustentar a convicção do julgador quanto ao facto provado nº 32. Apesar da intensa argumentação dos recorrentes em sentido contrário, o Tribunal recorrido, e esta Relação também, atribuiu credibilidade a L. P., Cabo da GNR, com óbvia experiência nesta matéria, e, acima de tudo, totalmente independente e equidistante das partes.

Assim, também o facto nº 25 se mantém intocado.

Afirmam ainda os recorrentes que o teor do facto 34 (por sua vez, o condutor do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula NH podia ter avistado o peão S. S. quando se encontrava a uma distância superior a 30m do local onde o referido peão se encontrava a proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201) é contraditório com o teor dos factos 9, 11, 15, 25 e 37. Mas, da leitura desses factos não vemos onde esteja a contradição. Logo, sem mais, a arguição de nulidade da sentença improcede.

A conclusão nº 32 dos recorrentes não sendo em si mesma totalmente errada (atento o facto provado nº 25 a referida distância não poderia ser superior a 80 metros), não se afigura útil para a decisão. A própria formulação do facto nº 34 permite a consideração de uma distância superior a 30 metros, que, vendo bem, é o que é relevante para a decisão.

Quanto aos factos não provados, já referimos que secundamos a decisão da primeira instância quanto à não credibilidade do depoimento da testemunha E. E.. E sem essa credibilidade, tais factos não poderiam nunca ser dados como provados.

Assim, concluímos que o julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido não merece censura, sendo de confirmar na íntegra.

Aplicação do Direito

Seguidamente colocam os recorrentes a questão da repartição da culpa no acidente, e afirmam que independentemente da matéria de facto ser alterada ou não, sempre o condutor do veículo automóvel deveria ser considerado como o único culpado no acidente.

Será assim ?
Aferir da culpa num acidente de viação nem sempre é tarefa fácil.

Um acidente de viação é um embate de dois objectos, que se deslocavam no espaço-tempo, e cujas trajectórias se cruzaram a determinado momento. Isto, claro, de um ponto de vista puramente físico/naturalístico. Deste ponto de vista não faz sequer sentido falar-se em culpa.
Então, o que significa perguntar de quem foi a culpa no acidente ?
Significa, numa primeira abordagem, perguntar qual dos intervenientes é que, pela sua conduta, que poderia ter sido evitada, deu origem ao mesmo. Mas assim, considerando e assumindo que os dois intervenientes actuaram de forma livre e consciente, voluntariamente dirigindo-se para o ponto de intercepção, não ficamos mais esclarecidos.
Falar em culpa implica falar em violação de regras de conduta.
A condução de veículos motorizados é uma actividade intrinsecamente perigosa, devido à proximidade a que todos os veículos circulam uns dos outros, e à velocidade que eles são capazes de atingir, e finalmente à inércia, que impede que um veículo em movimento pare instantaneamente perante um obstáculo surgido à sua frente.
Sendo a actividade em causa a condução de veículos e a circulação de peões, a forma encontrada para obstar a esse perigo permanente foi a definição de um conjunto de regras de conduta e de cautela a que todos os condutores e peões devem obedecer (o Código da Estrada). Logo, em abstracto podemos dizer que um condutor ou um peão que respeite todas as regras estradais, sejam as normas específicas seja o dever geral de cuidado, jamais pode ser visto como culpado de um acidente. Pelo contrário, o culpado de um acidente de viação será sempre aquele condutor que imediatamente antes do mesmo violou uma ou mais regras estradais ou o dever geral de cuidado.
E, como a realidade é sempre mais rica que as previsões normativas que sobre ela possam ser feitas, existem com frequência situações em que os dois intervenientes violaram imediatamente antes do acidente o Código da Estrada. E nesses casos estaremos perante culpas repartidas. Que levantam o problema da quantificação das culpas.
Sobre a dinâmica do acidente não temos qualquer reparo a fazer à decisão recorrida.
De uma forma resumida, repare-se: ficou provado que o piso da faixa de rodagem no local do embate era pavimentado a asfalto, encontrando-se limpo, seco e em bom estado de conservação, e que na altura do embate, o tempo estava bom e seco e era sol alto.
Ou seja, condições excelentes para a condução, pelo que não se pode alegar que tenha havido intervenção de factores exteriores aos dois intervenientes.
Os factos provados em 14 e 15 mostram-nos que a visibilidade no local era óptima, para qualquer um dos intervenientes, sendo sempre superior a 100,00 metros
O facto nº 16 mostra-nos que a estrada onde ocorreu o embate, em qualquer dos seus dois sentidos de marcha, era ladeada por casas de habitação, por blocos de apartamentos e por estabelecimentos comerciais, todos eles com os seus respectivos acessos a deitar directamente para a via.
Mais se sabe que no local do embate processava-se diariamente e de forma permanente, intenso tráfego de peões, através das duas bermas asfálticas, e ainda um intenso tráfego de peões que procediam e que procedem ao atravessamento da faixa de rodagem da Estrada Nacional nº 201.
Sucedeu então que S. S. iniciou e desenvolveu o atravessamento da faixa de rodagem, quando nesta se aproximava o veículo automóvel NH a uma velocidade situada entre os 59,90 Km/h e os 68,1 Km/h. O condutor deste veículo atingiu a parte inicial (ou seja, a situada mais próximo de Ponte de Lima) da passadeira destinada à travessia de peões existente na via, transpôs a mesma, e só depois avistou S. S. a realizar o atravessamento da via, a uma distância de cerca de 31,50 metros dessa passadeira. Atentas as características do local, o condutor do NH podia ter avistado S. S. a proceder ao atravessamento da via a uma distância superior a 30m. Ele accionou o sistema de travagem do veículo, tendo deixado marcados no pavimento rastos de travagem com o comprimento de: a) 19,70 metros, correspondentes aos seus rodados esquerdos; b) 21,10 metros, correspondentes aos seus rodados direitos. E apesar disso foi embater contra o corpo do S. S., projectando-o e deixando-o prostrado no solo, cerca de 3 a 5 metros à frente do local onde o veículo se imobilizou, assim causando-lhe a morte.

A sentença recorrida começou por reconhecer, e bem, nos termos do art. 503º,3 CC (e Assento do STJ de 14.04.83), que ficou demonstrado que o veículo de matrícula NH era conduzido ao serviço e no interesse da respectiva proprietária, pelo que está presumida a culpa do seu condutor.
Mas de seguida o Tribunal recorrido foi ainda verificar se o condutor do referido veículo e/ou o peão infringiram normas estradais essenciais à segurança rodoviária e que foram idóneas a produzir o dano sobrevindo.

E a resposta é óbvia:

a) o falecido S. S. cometeu a infracção aos arts. 99º,2,a e 101º,1,3 CE, pois não utilizou a passagem de peões existente no local para a travessia da via em segurança, atravessando fora dessa passagem.
b) o condutor do veículo seguro na ré circulava a uma velocidade na ordem dos 60 a 70 km/hora, para além de superior ao legalmente permitido, era manifestamente excessiva, representando um perigo acrescido de acidente, como veio a acontecer.
É, pois, legítima a afirmação de que se circulasse com a devida atenção e tivesse tido o cuidado de moderar a velocidade, conforme se lhe impunha (art. 25º CE), poderia ter evitado o acidente.
Os dois intervenientes no embate violaram, imediatamente antes do mesmo, regras estradais.
Havendo concorrência de culpas, o Tribunal recorrido entendeu, tendo em conta que as consequências gravosas resultantes do atropelamento são de imputar em grau superior ao veículo automóvel, que a culpa deve ser repartida na proporção de 85% para o condutor e 15% para o peão.
Ora, diga-se desde já que a pretensão dos recorrentes de ser considerado o condutor do veículo automóvel como o único culpado no acidente não pode de todo proceder, pois ao atravessar fora da passadeira, o peão também contribuiu para o acidente. E não se trata de uma contribuição formal, de mera violação de uma regra de trânsito. A existência das passagens para peões, devidamente marcadas no pavimento e assinaladas com sinais verticais, tem necessariamente um efeito psicológico sobre os condutores, que se traduz em estes estarem mentalmente mais atentos à aproximação de peões, até porque sabem que são obrigados a parar para os deixar passar. E o inverso é igualmente verdadeiro: imediatamente após ter passado por uma passagem para peões, o condutor médio não está naturalmente à espera que lhe apareça um peão que se lhe atravesse à frente, fora da passadeira. O peão que assim se comporta, assume automaticamente parte da culpa no acidente.
Daí a conclusão, incontroversa, da existência de culpa dos dois intervenientes.
Quanto à quantificação da culpa pelos intervenientes, não vislumbramos um único argumento para afirmar que a percentagem de 85/15 fixada pelo Tribunal recorrido esteja errada.
Como se afirma na sentença recorrida: “na verdade, e se é certo que tal travessia inadequada da via pública pode constituir surpresa para os condutores, que contariam normalmente com a travessia da faixa de rodagem pelos peões no local para tal adequado, não ficam os condutores dispensados de tomarem as necessárias e gerais precauções na circulação automóvel dentro das localidades (sendo, aliás, facto notório a generalizada infracção à referida regra estradal por parte dos peões, fazendo diminuir ou abalar, em termos práticos, o grau de confiança que se poderia abstractamente inferir da vigência daquela norma estradal); e, muito em particular, não estão dispensados de procurar evitar os acidentes, na medida em que tal lhes seja possível (já que, como é óbvio, a violação da referida norma não “legitima” o atropelamento, que deve ainda ser tentado evitar através de uma condução diligente e dotada da perícia e destreza exigíveis)”.

A diferença de dimensão e massa entre o veículo automóvel e o peão, a diferença de velocidade entre um e outro, a diferença esmagadora dos resultados do embate para cada um deles, confirmam essa repartição de culpas. Podemos ainda ponderar o seguinte:

o peão não deveria ter atravessado naquele local, pois tinha a menos de 50 metros de distância um local próprio para efectuar essa travessia. O condutor do automóvel não devia circular àquela velocidade porque a mesma era superior ao permitido, e não lhe permitia imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, caso lhe aparecesse um obstáculo súbito à frente. Ao mesmo tempo, o condutor, se circulasse com a atenção devida, teria avistado o peão mais cedo, e mais cedo teria travado, aumentando as probabilidades de conseguir evitar o embate.
Por tudo isto, entendemos que está bem fixada a repartição de culpas.

A questão seguinte suscitada pelos recorrentes (dos direitos adquiridos por via hereditária, quantificados em € 16.000,00) dependia de se ter dado como provado o facto não provado g. Como o facto continua não provado, esta parte do recurso improcede.

Mais se insurgem os Recorrentes contra o quantum fixado a título de ressarcimento pela perda do direito à vida do peão atropelado, transmitido hereditariamente aos Recorrentes.

Assim, por respeito à suprema dignidade do direito em causa e à prática jurisprudencial generalizada, entendem os Recorrentes que, segundo prudente juízo de equidade, a indemnização pela perda da vida não pode ser inferior a €80.000,00, sob pena de violação da norma prevista no artigo 70º e 483 do CC. E pretendem que sejam incluídos nos beneficiários de tais montantes, também, os Recorrentes B. M. e M. S., também eles legítimos credores de tais quantias, atenta a qualidade de herdeiros do falecido.

E também não se conformam os Recorrentes com a atribuição, a título de danos não patrimoniais próprios, dos montantes de € 15.000,00 a favor das Autoras P. M. e V. C., e de € 12.500,00 a favor dos Autores J. C., A. S., M. C. e C. V.. Pretendem antes a quantia de € 25.000,00 como indemnização a este título, a pagar a cada um dos Autores.

Ora, vejamos.
"Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem" (art. 496º,2 CC).

Um contributo importantíssimo para a correcta interpretação desta norma é dado pelo Professor Antunes Varela (Das obrigações em geral, volume I, fls. 607 - 7ª edição). Escreve aquele Mestre, referindo-se aos trabalhos preparatórios: "enquanto o nº 3 do artigo 476º da 1ª revisão ministerial do projecto (seguindo ainda a doutrina proposta no Anteprojecto Vaz Serra -art. 759º, nº 2) se limitava a conceder aos familiares da vítima a indemnização dos danos morais que elas próprias houvessem sofrido com a perda da vida do seu cônjuge ou parente, o nº 2 do art. 498º, saído da 2ª revisão ministerial, passou a dizer, muito expressivamente, que por morte da vítima, «o direito à indemnização por danos não patrimoniais» cabe aos ditos familiares, sem distinguir, nessa atribuição, entre os danos morais sofridos pela própria vítima e os causados aos seus parentes ou ao seu cônjuge. No número subsequente (nº 3) é que expressamente se afirma que, no caso de morte, a indemnização tanto abrange uns como outros. E foram estes, sem nenhuma alteração essencial, os textos que se conservaram na redacção definitiva do artigo 496º do Código."

E daqui aquele Professor retira duas conclusões importantíssimas: "a primeira é que nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa, pelos danos morais correspondentes à perda da vida, quando a morte da pessoa atingida tenha sido consequência imediata da lesão. A segunda é que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do art. 496º".

A Jurisprudência tem sedimentado esta interpretação, através de várias decisões do Supremo Tribunal de Justiça que são esclarecedoras. Vejam-se, a mero título de exemplo, os seguintes arestos, sumariados no site do STJ:

a) acórdão de 26-02-2004, relatado pelo Conselheiro Duarte Soares: "o universo das pessoas não lesadas directamente com direito à indemnização por danos morais são apenas as previstas na norma do n.º 2 do art.º 496 do CC e apenas no caso de morte da vítima. Não pode aplicar-se essa norma, extensivamente, ou por analogia, a outras situações para além da morte da vítima porque a restrição em vigor constitui uma opção consciente do legislador.
b) acórdão de 16-06-2005, relatado pelo Conselheiro Neves Ribeiro: "o direito à indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, antes de falecer, e o dano decorrente da sua perda do direito à vida, ambos em consequência de acidente de viação, cabe, em conjunto, e pela precedência indicada no art.º 496, n.º 2, do CC, às pessoas que, também nesta disposição, se mencionam".
c) acórdão de 24-05-2007, relatado pelo Conselheiro Alberto Sobrinho: "a indemnização pela perda do direito à vida cabe, não aos herdeiros da vítima por via sucessória, mas aos familiares referidos e segundo a ordem estabelecida no n.º 2 do art. 496.º do CC, por direito próprio".
d) acórdão de 22-06-2010, relatado pelo Conselheiro Alves Velho: "o direito à indemnização por morte da vítima, consagrado no n.º 2 do art. 496.º do CC, cabe originariamente às pessoas nele indicadas, por direito próprio. Esse direito a indemnização é deferido pela norma, em termos hierarquizados, a grupos de pessoas, em conjunto, que não simultânea ou indistintamente a todas as pessoas nela indicadas, sendo excluídas da respectiva titularidade quer quaisquer pessoas nela não referidas, quer, de entre as referidas, as que resultem afastadas pela precedência da respectiva graduação. O direito a compensação por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, e por si não reclamados antes da morte, cabe às pessoas eleitas pelo legislador de entre as ligadas por certas relações familiares ao falecido, mediante uma transmissão de direitos da personalidade extinta, nos termos da indigitação feita no n.º 2 do art. 496.º e pela ordem aí indicada, transmissão que não corresponde a um chamamento à titularidade desses direito segundo as regras do direito sucessório".

Por isso, estamos perante um regime rígido de atribuição do direito aos danos não patrimoniais por morte da vítima aos familiares mais próximos, e de acordo com a graduação feita no normativo citado. Assim, existindo filhos e netos do falecido, a boa interpretação do citado artigo é que os primeiros afastam os segundos, atenta a sua muito maior proximidade com aquele.

Assim, desde já improcede a pretensão de os autores B. M. e M. S. (netos do falecido) serem também indemnizados pelos danos não patrimoniais, pois assiste razão à sentença recorrida ao excluí-los da indemnização por danos não patrimoniais decorrente da morte de S. S..

Quanto ao valor a atribuir pela perda da vida, importa ver que valores têm vindo a ser aceites pelo STJ.

De acordo com o Acórdão do STJ de 22/02/2018 (Manuel Braz -Relator), “a vida é o bem mais precioso, sendo que, na procura do valor da compensação devida pela mesma não podem deixar de ser tidas em conta as circunstâncias específicas de cada vítima, como a idade, a saúde, a vontade de viver, a situação familiar, a realização profissional, etc. No caso, a vítima era um jovem de 25 ano de idade, solteiro, saudável, com formação académica superior, sendo piloto da Força Aérea, com a patente de alferes, competente, dedicado e com fundadas aspirações de progressão na carreira. Tendo em vista a necessidade de uniformização de critérios, que é uma decorrência do princípio da igualdade, não pode deixar de ter-se como referência o que vem sendo decidido pelos tribunais em casos comparáveis. O STJ vem atribuindo indemnizações pela perda do direito à vida que, na maioria dos casos, oscilam entre 50.000,00€ e 100.000,00€. Pelo que, tudo ponderado, considera-se adequado o valor de 120.000,00€.

Ou, como decidido pelo Acórdão do STJ de 3 de Novembro de 2016 (A. S. Piçarra - Relator), “a reparação do dano morte é hoje inquestionável na jurisprudência, situando-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100 000,00. Ponderadas a idade da vítima (52 anos) e as circunstâncias em que ocorreu o acidente (sem qualquer culpa sua), considera-se ajustada, equilibrada e adequada a indemnização de €60 000,00, a título de dano morte. Essa indemnização é atribuída, em bloco, às pessoas a quem cabe, nos termos do art.º 496º, n.º 2, do Cód. Civil, e repartida entre elas, mesmo que relativamente a alguma destas haja que operar redução, nos termos do art.º 570º, n.º 1, do Cód. Civil”.

Ou, num caso em que o falecido tinha 33 anos, era uma pessoa saudável, exercia funções como militar, e veio a falecer em consequência das lesões e sequelas que sofreu em acidente de viação, para o qual em nada contribuiu, e que antes é de imputar à negligência grosseira do condutor do veículo seguro, entendeu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2019 (Oliveira Abreu - Relator), fixar em €80.000,00 a compensação da perda do direito à vida.

Ou seja, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a sedimentar valores da indemnização pela perda da vida que não são fixos, antes variam na proporção inversa da idade do falecido. E, diga-se, bem se compreende que assim seja.

Sem pretensões de entrar no ramo da análise filosófica sobre o conceito de vida, e mais concretamente, da vida humana, podemos partir do postulado de que toda e qualquer vida humana tem a mesma dignidade e o mesmo valor, de um ponto de vista ético ou moral. A essa luz, poder-se-ia defender que o valor a atribuir a título de indemnização pela perda da vida deveria ser sempre o mesmo independentemente da idade do falecido. Porém, compreende-se que os Tribunais tenham enveredado por outro caminho. Quando se fala em indemnização, está-se a falar de uma forma de ressarcimento por um dano concreto sofrido. À primeira vista esse dano é a perda da vida. Mas podemos olhar para a situação de outro prisma, mais concreto. A vida, temos de o reconhecer, é um bem temporário, que apenas vai durar um determinado período de tempo. Nenhuma vida humana é eterna. Donde, quando alguém morre podemos considerar que, verdadeiramente o que aquela pessoa perdeu não foi a vida, foi tempo de vida. A vida, iria sempre perdê-la. E assim, para a abordagem judicial da questão, que tem de atribuir um valor a título de indemnização, e partindo de um valor de esperança de vida média, é possível entender que quanto mais nova era a pessoa falecida, maior foi o dano sofrido, em termos de tempo de vida perdido, ergo maior deve ser a indemnização. E inversamente, quanto mais idosa era, menor foi o dano e menor deverá ser o valor a ressarcir.

Daqui retiramos, conjugados com os vários casos retirados da Jurisprudência citada, a que poderíamos acrescentar muitas outras decisões, que, considerando a idade do falecido (74 anos), a decisão recorrida não merece censura.

Finalmente, sobre a questão do ressarcimento dos danos não patrimoniais próprios, que a sentença recorrida valorou em € 15.000,00 quanto às autoras P. M. e V. C., e em € 12.500,00 para os autores J. C., A. S., M. C. e C. V., e que os recorrentes entendem que deveria ser antes a quantia de € 25.000,00, como indemnização a este título, a pagar a cada um dos Autores, vejamos como a decisão recorrida fundamentou essa disparidade.

Pode ler-se na sentença proferida que “conforme se provou, as autoras P. M. e V. C. sempre residiram com o seu falecido pai e avô e o autor A. S. também residiu com o seu pai durante período não concretamente apurado. Os demais filhos do falecido, embora vivendo em locais e em casas separadas, telefonavam semanalmente ao seu pai, respectivamente, e, à excepção da autora M. C., visitavam-no, pelo menos, todos os meses.
O autor J. C. fazia as feiras e as festas, com a sua própria barraca/restaurante, junto à do seu pai. O autor C. V. visitava o seu falecido pai, pelo menos, uma vez por mês. E a M. C. visitava o seu falecido pai, praticamente todos os anos, nas férias de verão. E todos os autores, pessoalmente ou pela via telefónica, partilhavam com o falecido S. S., os seus aniversários e as festas anuais da Páscoa e do Natal. Todos os autores dedicavam ao seu pai e avô um afecto e uma ternura incomensuráveis, tendo sempre se mantido muito unidos e o amparo moral e afectivo uns dos outros. O falecido rodeava, também ele, permanentemente, de atenção e carinho os seus filhos e netos. A morte do S. S. causou a todos os autores, um profundo desgosto e angústia, tendo-os deixado inconsoláveis, para o resto das suas vidas. Assim, em equidade, considerando o afecto que reciprocamente sentiam e carinho que mutuamente se dedicavam, tendemos a valorar o sofrimento das autoras P. M. e V. C. com a perda do seu pai e avô, respectivamente, com quem mantiveram toda a vida uma convivência mais próxima e diária, em € 15.000,00. Em contrapartida, valora-se o sofrimento de cada um dos outros filhos do sinistrado (os autores J. C., A. S., M. C. e C. V.) em € 12.500,00, dado que a sua dor parece-nos, sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, ainda que muito relevante, não ser tão premente nem acutilante quanto a de quem com ele desde sempre conviveu de forma diária e mais estreita”.

Ora, a leitura feita pelo Tribunal recorrido parece-nos avisada, ponderada e correcta, justificando devidamente a diferença dos valores arbitrados com base nas diferenças da convivência e proximidade física dos familiares com o falecido. A determinação dos valores arbitrados também nos parece prudente. Não vislumbramos aqui qualquer erro de julgamento.

E assim, o recurso improcede na íntegra.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 31/10/2019

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)

1 - Conselheiro Abrantes Geraldes, ob cit, fls. 286.