Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
159/15.2T8VLN-B.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PENHOR
CRÉDITOS PRIVILEGIADOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Os créditos garantidos por penhor, quando concorram com créditos dos Trabalhadores, do Estado e da Segurança Social, que gozam de privilégio mobiliário geral, devem ser graduados em primeiro lugar relativamente aos bens sobre os quais foi constituído o penhor, seguindo-se-lhes, pela ordem por que foram mencionados, os créditos privilegiados.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- Nos autos de Reclamação de Créditos apensos ao processo de Insolvência de “L. C. – Construções e Obras Públicas, Unipessoal, Ld.ª”, foi proferida douta sentença que, no concernente à “verba n.º 1” graduou os créditos (reconhecidos) pela forma seguinte:

“1.º As dívidas da massa insolvente saem precípuas;
2.º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado reclamado pela Segurança Social;
3.º Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos garantidos por penhora reconhecidos ao credor Caixa ..., S.A., sem prejuízo da verificação da condição a que está sujeito o crédito no montante de € 27.595,70;
4.º Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos enumerados na lista de credores reconhecidos como privilegiados por força da qualificação como créditos laborais, procedendo-se, se necessário, a rateio;
5.º …; 6.º …; 7.º …”.
Não se conformando com a graduação, a credora, “Caixa ..., S.A.” (Caixa …) traz o presente recurso pedindo que, revogada a decisão, seja a mesma substituída por outra que confira preferência aos seus créditos penhoratícios, relativamente aos créditos privilegiados do “Instituto de Segurança Social, I.P.”, os quais, por seu turno, devem ser graduados após os créditos laborais.
Contra-alegou o “I.S.S., I.P.” propugnando para que se mantenha a graduação.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Colhidos, que se motram, os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Apelante formulou as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos, o crédito pignoratício da Caixa ... foi graduado para ser pago com preferência sobre os demais, excepção feita ao crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, o qual foi preferentemente graduado.
2. Tal graduação assenta no disposto no art. 204.º, n.º 2 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, segundo o qual o crédito da Segurança Social que goze de privilégio mobiliário geral “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
3. Não descurando o disposto naquele normativo, defendemos, porém, uma sua interpretação restritiva, nas situações, como a dos presentes autos, em que, com os créditos pignoratícios e os créditos privilegiados da Segurança Social, concorrem outros créditos que beneficiam de privilégio mobiliário geral, como sejam os créditos laborais.
4. Cremos, pois, ser necessária uma interpretação restritiva daquele normativo, de forma, até, a adequar a sua previsão à de outras normas, com que está em confronto.
5. De facto, dispõe o art. 666.º, n.º1 do Código Civil que “O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, (...) pertencentes ao devedor ou a terceiro”.
6. Por seu turno, o art. 333.º do Código do Trabalho, conferindo aos créditos dos trabalhadores, também, privilégio mobiliário geral, expressamente determina que a graduação desses créditos é feita antes dos créditos (com privilégio mobiliário geral) do Estado e das autarquias locais.
7. Já o art. 749.º, n.º1 do Código Civil determina que “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.”
8. E, finalmente, nos termos do art. 175.º, n.º 1 do CIRE, “O pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes, com respeito da prioridade que lhes caiba, e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados.”
9. Constata-se, assim, haver aquilo que Baptista Machado apelida de <<lacuna de colisão>>, visto que o artigo 204.º, n.º 1 do CCRSPSS determina que o crédito da Segurança Social deve ser graduado a par com o crédito por impostos, o n.º 2 da mesma disposição legal prevê que o crédito da Segurança Social deve prevalecer em detrimento do crédito pignoratício, e por fim, o art. 747.º, n.º 1 do Código Civil estipula que o crédito por impostos deve ser graduado após o crédito pignoratício.
10. Acresce ainda que, no confronto directo entre créditos privilegiados da Segurança Social e créditos laborais, ambos dotados de privilégio mobiliário geral, estes devem ser graduados antes daqueles, apenas assim não ocorrendo quando, para além dos mesmos, concorram ainda créditos pignoratícios, hipótese em que, seguindo a posição vertida na sentença recorrida, os créditos privilegiados da Segurança Social passam a preferir aos créditos laborais.
11. Entendemos, pois, que a lacuna apontada deve ser colmatada através da prevalência absoluta do crédito garantido por penhor, acompanhando de perto a fundamentação do Ac. TRG, proc. n.º 703/13.0TBMDL-K.G1, de 25.MAIO.2017, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b9 479164c3a5542280258155004d7851?OpenDocument.
12. Tal solução compreende-se uma vez que os créditos privilegiados, por privilégio mobiliário geral, não têm a natureza de direitos reais, visto que não recaem sobre coisas certas e determinadas, não conferindo, por conseguinte, direito de sequela, e bem assim, eficácia erga omnes ao respetivo credor, devendo-se por essa razão aplicar o princípio vertido no art. 749.º do Código Civil, conjugado com o disposto no art. 604.º, n.º 2 do Código Civil, donde, os privilégios gerais devem ceder perante os direitos reais de gozo e de garantia.
13. Esta solução harmoniza-se com o sistema de prioridades de pagamentos decorrente do Código Civil, como também respeita os princípios da confiança (o credor deve saber, no momento em que constitui o seu crédito com o que contar), da igualdade (não beneficiado o Estado, nos vários graus da sua administração) e do direito do acesso à justiça (não apenas como direito formal de recurso aos tribunais, mas como direito substantivo de, através destes, ver realizado o seu direito)
14. E, ainda, honra as disposições do CIRE (arts. 172.º, 174.º e 175.º), nos termos das quais, após pagamento das dívidas da massa, deverá ser efectuado o pagamento dos créditos garantidos pelo produto da venda dos bens onerados, sendo que o pagamento dos créditos privilegiados deve ser feito à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes.
15. Por outro lado, a interpretação propugnada não comporta prejuízos desmesurados aos interesses públicos do Instituto da Segurança Social, não sendo despiciendo que, tendo a Caixa .../recorrente concedido crédito à Insolvente, permitiu-lhe desenvolver a sua atividade, com o que a mesma gerou receitas e, assim, pagou contribuições à Segurança Social, por si e pelos seus trabalhadores.
16. Acresce não ser de olvidar que a Segurança Social dispõe da possibilidade de garantir os seus créditos por um qualquer dos meios de garantia previstos nos arts. 601.º e ss. do Código Civil – v.g. art. 20.º da Lei n.º 110/2009 -, também por este motivo não sendo a solução aqui defendida pela apelante demasiado onerosa para os interesses públicos do Instituto da Segurança Social.
17. Neste sentido, vejam-se ainda os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães - proc. n.º 764/11.6TBBCL-LG1, de 13.OUT.2016, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d6 1bbcfd2459313c8025806e005aebd2?OpenDocument – e do Tribunal da Relação de Coimbra - proc. n.º 6100/16.8T8CBR-C.C1, de 20.JUN.2017, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/-/F82D903265FD3EEF8025816000393BAF.
18. A decisão recorrida é, portanto, violadora do disposto nos artigos 666.º, 749.º e 604.º, n.º 2 do Código Civil e 333.º do Código do Trabalho,
19. devendo ser revogada e substituída por uma outra que confira aos créditos pignoratícios da CAIXA ... preferência relativamente aos créditos privilegiados do Instituto de Segurança Social, I.P., os quais, por seu turno, devem ser graduados após os créditos laborais.
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III.- Por sua vez, o Apelado “I.S.S., IP” conclui assim:

9- O artigo 333.º do Código do Trabalho estabelece que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam: de privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes dos créditos referidos no n.º 1, do artigo 747.º, do Código Civil (o que significa que prevalecem sobre todos os restantes créditos com privilégio mobiliário geral e especial, com excepção do crédito por despesas de justiça – artigo 746.º do Cód. Civil); e, de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, sendo graduados antes dos créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social (ficam assim sujeitos ao regime do artigo 751.º do CC, por força do qual preferirão sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiro).
10- É jurisprudência pacífica de que concorrendo créditos garantidos por penhor com créditos de trabalhadores beneficiados com privilégio creditório mobiliário geral (como sucede in casu), aqueles primeiros (penhor) têm, na pertinente graduação, preferência no pagamento pelo valor dos bens empenhados (neste sentido vide, por todos, o Ac. do TRG de 13.02.2014, processo n.º 1216/13.5TBBCL-A.G1, acessível em www.dgsi.pt).
11- Os privilégios dos créditos da segurança social estão previstos no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, que estabelece no seu artigo 204.º, n.º 1, que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil” (sendo que os créditos referidos neste artigo 747.º do Código Civil são os créditos do Estado por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e depois as autarquias locais), acrescentando o n.º 2 do preceito que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”
12- O artigo 205.º do mesmo Código prescreve que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil”.
13- O regime legal a que aludem estas disposições entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2011, em face da redação conferida pela Lei n.º 119/2009, de 30 de Dezembro ao artigo 6.º do citado CRCSPSS.
14- A norma do artigo 204.º do CRCSPSS é em tudo idêntica à do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 5 de Maio, e, à semelhança do que com esta então sucedeu, não foi acompanhada pela revogação ou alteração do princípio ínsito no artigo 749.º, n.º 1, do CC, à luz do qual se proclamava que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente, isto é, quanto a todos os outros créditos com privilégio mobiliário geral, nomeadamente os elencados no art.º 747, nº 1, do CC, mantém-se o mesmo princípio, ou seja, não valem contra o penhor e seguem a hierarquia resultante do Código, que é a do mencionado art.º 747, n.º 1 do CC.
15- E, como se refere no Ac. do TRC de 11.12.2012 (processo n.º 241/11.5TBNLS-B.C1, acessível em www.dgsi.pt), “não se deve perder de vista, desde logo, a circunstância de, já depois da publicação do actual Código do Trabalho, em 27 de Agosto de 2003, o legislador do CRCSPSS de 2009 ter conservado a precedência do privilégio mobiliário dos créditos da Segurança Social sobre o penhor anteriormente constituído.
16- O que só pode significar que, não podendo ignorar a já falada regra geral da ineficácia dos privilégios mobiliários gerais do art.º 749, nº 1 do CC, também não podia deixar de estar ciente de que, com a hierarquização assim delineada, forçosamente situava o privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social numa situação de primazia relativamente a todos os outros créditos dotados do mesmo privilégio, incluindo os créditos mencionados no art.º 377, nºs 1, al.º a) e nº 2, al.ª a) do CT…Neste quadro, não nos repugna admitir que, ao atribuir-se aos créditos laborais com privilégio mobiliário geral a prioridade aludida no art.º 377, nº 2, al.ª a) do CT na graduação diante “dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747 do Código Civil”, não se tenha querido dizer mais do que isso mesmo, isto é, que há uma preferência quanto aos créditos ali concretamente elencados, e não quanto a quaisquer outros, nomeadamente aos que a eles são de algum modo equiparados.
17- Ora o art.º 204, nº 1, do CRCSPSS só determina que a graduação dos créditos da Segurança Social se faça “nos termos referidos na alínea a)” do mesmo número. Por conseguinte, da conjugação deste preceito com o acima referido – o do art.º 377, nº 2, al.ª a) do CT - não se pode retirar a vontade do legislador em remeter estes créditos para uma posição subalterna face aos créditos laborais. Em consequência, podemos concluir que não há afinal verdadeira colisão entre estas normas, a obstar a que os créditos da Segurança Social, por preferirem ao crédito com penhor anterior, e por força dessa prevalência, sejam pagos antes dos créditos laborais.”.
18- No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do TRC de 10.03.2015 (processo n.º 2558/12.2TLRA-C. C1, acessível em www.dgsi.pt).
19- Note-se ainda que o Tribunal Constitucional já decidiu que a norma prevista no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio (idêntica, como vimos à prevista no artigo 204.º, n.º 2, da Lei 110/2009, de 16 de Setembro) “…não viola o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora – privilégio creditório com justificação constitucional por referência ao artigo 63º da CRP.” – cfr. Acs. n.º 64/09, de 10.02.2009 e 108/09, de 10.03.2009, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
22- Na verdade, é comummente aceite que os privilégios mobiliários gerais não constituem verdadeiros direitos reais de garantia. Assumem-se, outrossim, como meros direitos de prioridade que apenas têm algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais na medida em que prevalecem contra os credores comuns da execução do património do devedor – Citando AC TRC 854/TBTMR-D.C1 DE 18.05.2010.
23- “(…) destarte e, ao contrário do que sucede com os privilégios especiais, os quais, nos termos do artigo 750.º do CC são susceptíveis de prevalecer sobre o direito de terceiro garantido por uma causa de preferência, os privilégios gerais não são, ex vi do art. 749 C. Civ, oponíveis a outros direitos reais como é o caso do penhor (…) - AC TRC 854/TBTMR-D.C1 DE 18.05.2010
24- O penhor é uma verdadeira garantia de cumprimento das obrigações, especial e de cariz real, logo com sequela e oponível erga omnes, versus o privilégio mobiliário geral que se consubstancia como uma mera prioridade de pagamento perante os credores comuns.
25- Destarte, se constituído validamente o penhor, o crédito assim garantido prefere aos que apenas estejam acobertados por aquele privilégio vg. os créditos laborais em processo de insolvência, devendo pois ser graduado antes destes – artºs 666º e 749º do CC.
26- Resulta, portanto, claro que, pela verba sobre a qual está constituído penhor deverão ser pagos em primeiro lugar os créditos privilegiados do aqui recorrido - Instituto da Segurança Social IP, mantendo-se assim a sentença recorrida.
27- No mesmo sentido pronunciou-se o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão, nos autos de processo n.º 565/14.0T8VCT-B.G1, da 2.ª secção Cível e nos termos do qual, além do mais “(…) II – Os créditos da Segurança Social por contribuições indicadas em I, quando beneficiem de privilégio mobiliário geral, prevalecem face ao crédito garantido por penhor, ainda que anteriormente constituído e, bem assim, perante o crédito do trabalhador que, nos termos do art.º 333.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Cód. Do Trabalho, goza também de privilégio mobiliário geral (…)”
28- Pronunciou-se ainda, recentemente, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão, de 21/05/2019, nos autos de processo n.º 4705/17.9T8VIS: “Perante o conflito (de disposições legais) que assim se estabelece entre o art. 333.º/2/a) do C. T. (ao dizer que os créditos laborais tem preferência sobre os créditos com idêntico privilégio do Estado), o referido art. 204.º/1 do CRCSPSS (quando diz que os créditos do ISS se graduam logo após os referidos na alínea a) do n.º 1 do 747.º do CC), a prevalência do privilégio mobiliário geral do ISS sobre qualquer penhor (estabelecida imperativamente pela lei) e a também referida prevalência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral, a solução está em efectuar (quando concorram na mesma graduação um credito garantido por penhor, um crédito do ISS, um crédito de Trabalhadores e um crédito do Estado, todos estes com privilégio mobiliário geral) a seguinte graduação: 1.º: O crédito do ISS; 2.º: O crédito garantido por penhor; 3.º: Os créditos laborais; e 4.º: Os créditos do Estado.”.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões acima transcritas, a única questão a apreciar é da posição em que deve ser graduado o crédito penhoratício da Apelante.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

V.- O essencial da situação sub judicio ficou descrito em I que, por bevidade, se dá aqui por reproduzido.
1.- O penhor é uma garantia real, como tal conferindo ao credor o direito de sequela, tendo eficácia erga omnes.
Deste modo, para se fazer pagar (com preferência em relação aos demais credores que não tenham o crédito garantido), o credor penhoratício tem o poder de fazer vender a coisa, quer ela continue a pertencer ao garante, quer a sua propriedade tenha sido transferida para um terceiro.
2.- O privilégio creditório, nos termos definidos pelo art.º 733.º do C.C., é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.
Há duas classes de privilégios creditórios: os imobiliários e os mobiliários. Aqueles recaem sobre bens imóveis e estes recaem sobre bens móveis.
Uns e outros podem ainda ser gerais ou especiais. Os privilégios mobiliários gerais recaem sobre todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou acto equivalente e os privilégios mobiliários especiais oneram apenas bens móveis de determinada natureza ou origem – cfr. art.os 735.º; 736.º e 737.º, quanto ao privilégio mobiliário geral, e 738.º a 742.º, quanto ao privilégio mobiliário especial, todos do C.C..
Para além dos créditos do Estado e das Autarquias Locais, referidos no art.º 736.º, e dos créditos referidos no art.º 737.º, supramencionados, gozam ainda de privilégio mobiliário geral (com interesse relevante para a decisão) os créditos dos Trabalhadores emergentes do contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, nos termos consagrados no art.º 333.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, e os créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora, de acordo com o estabelecido no art.º 204.º, n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro (que, no seu art.º 5.º, n.º 1, alínea b), revoga o Dec.-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio).
Relativamente à eficácia dos privilégios creditórios em relação a terceiros, em situações de conflito entre os direitos dos credores e os direitos de terceiros estabelecidos sobre os bens que constituem objecto do privilégio, regem os princípios consagrados nos art.os 749.º, para o privilégio (mobiliário ou imobiliário) geral; 750.º, para o privilégio mobiliário especial; e 751.º para o privilégio imobiliário especial, todos do C.C..
Deste modo, posto que não têm a natureza de direitos reais (já que não recaem sobre coisas certas e determinadas e não conferem aos seus titulares o direito de sequela), os privilégios gerais não valem contra os direitos reais de gozo e de garantia, ainda que posteriormente constituídos, prevalecendo, assim, sobre eles, o penhor, a hipoteca, a consignação de rendimentos, a penhora e o direito de retenção, de acordo com o princípio estabelecido no n.º 1 do art.º 749.º do C.C. (cfr., neste sentido, designadamente, Ac. do S.T.J. de 31/10/1990, in B.M.J. 400, págs. 640-645; P. LIMA e A. VARELA, in “Código Civil Anotado”, I, pág. 738; e ALMEIDA COSTA, in “Direito das Obrigações”, 12.ª ed., revista e actualizada, pág. 971), remetendo o n.º 2 para as leis do processo o estabelecimento dos limites ao objecto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à massa insolvente, bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração de insolvência – cfr., para o que ora interessa, o disposto no art.º 97.º do C.I.R.E., que, nas alíneas a) e b) do n.º 1, estabelece a extinção dos privilégios creditórios gerais e especiais de que gozam os créditos do Estado, das Autarquias Locais e da Segurança Social, constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência, e as garantias reais, nos termos referidos nas alíneas c), d) e e).
E assim é que, em processo de insolvência, depois de pagas as dívidas da massa insolvente, nos termos do art.º 172.º, pagar-se-ão os créditos garantidos pelo produto da venda dos bens onerados com a garantia real, nos termos do art.º 174.º, seguindo-se-lhes os créditos privilegiados, que serão pagos “à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes”, conforme o disposto no art.º 175.º.
A questão que o presente recurso coloca é a de saber se este princípio deve conhecer algum desvio, designadamente, derivado da prevalência do privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social sobre a garantia real, que é o penhor.
Com efeito, o n.º 2 do art.º 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Providencial da Segurança Social (Lei n.º 110/2009), à semelhança do que já dispunha o n.º 2 do art.º 10.º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, estabelece a prevalência do privilégio mobiliário geral (de que gozam os créditos da segurança social por quotizações e respectivos juros de mora) sobre “qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
Esta prevalência cria uma situação de conflito na graduação dos créditos já que, por aplicação do princípio estabelecido no art.º 749.º do C.C., o crédito penhoratício prevalece sobre os créditos dos Trabalhadores com privilégio mobiliário geral, os quais, por sua vez, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 333.º do Cód. do Trabalho (Lei 7/2009, de 12/02), prevalecem sobre os créditos do Estado, das Autarquias Locais, e da Segurança Social - refira-se que, enquanto o n.º 1 do art.º 10.º do Dec.-Lei 103/80 graduava os créditos da Segurança Social “após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do art.º 747.º do Código Civil”, o n.º 1 do art.º 204.º da Lei n.º 110/2009 gradua-os “nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil”, daqui se inferindo que estes créditos deverão ser pagos imediatamente a seguir aos do Estado, a par dos créditos das Autarquias Locais, se os houver.
3.- Perante esta situação de conflito geraram-se duas correntes jurisprudenciais consagrando soluções de interpretação divergentes:
i) uma que gradua em primeiro lugar os créditos do Estado, seguidos dos créditos das autarquias locais e da segurança social, e só em último lugar o crédito penhoratício – assim, v. g., o Ac. da Rel. de Coimbra, de 16/05/2000 (e jurisprudência aí citada, in Colectânea de Jurisprudência (C.J.), ano XXV, Tomo III, págs. 9-12).
ii) a segunda que gradua em primeiro lugar o crédito penhoratício e só depois os outros créditos, pela ordem acima indicada – v. g. o Ac. da Rel. do Porto de 15/09/2011 (e jurisprudência aí citada, in C.J., ano XXXVI, Tomo IV, págs. 173-176).
O Ac. do S.T.J. de 29/04/1999 refere ainda uma terceira posição que sustenta que em primeiro lugar se dê pagamento ao crédito da Segurança Social, seguindo-se-lhe o crédito garantido pelo penhor e, por último, os créditos por impostos. Rejeita, porém, esta posição com a afirmação de ela não ter “correspondência, nem na letra nem no espírito, com qualquer das formulações normativas em confronto” (in C.J., Acórdãos do S.T.J., ano VII, tomo II, pág. 77).
Defende a Relação de Coimbra (primeira posição) que a letra do art.º 10.º do Dec.-Lei n.º 103/80 “abrange directamente a hipótese de concorrência dos três créditos em causa, determinando que os créditos da Segurança Social se graduam logo após os do Estado (n.º 1) mandando depois graduá-los antes dos créditos penhoratícios (nº 2) devendo ser postergada a hipótese de o legislador não ter previsto essa hipótese, subjacente que está a essa norma, se não mesmo aí claramente expressa”, pelo que, tratando-se de “um regime especial deve prevalecer sobre o regime geral do art.º 749º do CC”. Afirma-se ainda que “o artigo 10º em causa tem de ser lido e interpretado “por inteiro” como um bloco normativo que consubstancia um intencional desvio do comando resultante dos artºs 666º, nº 1 e 749º do CC” (loc. cit., pág. 11).
Já, porém, a Relação do Porto (segunda posição), partindo da premissa de que “enquanto garantia de cumprimento de obrigações, especial e de natureza real, o penhor beneficia de sequela e é oponível erga omnes, designadamente quando concorre com o privilégio mobiliário geral, o qual apenas confere prioridade ou mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns”, decidiu que “na graduação de créditos respeitante a bens móveis em que concorram créditos garantidos por penhor, créditos laborais abrangidos pelo art. 377º do Cód. do Trabalho e créditos por contribuições à Segurança Social, estando todos estes últimos garantidos por privilégio mobiliário geral, devem ser graduados por esta mesma ordem”.
Na fundamentação afirma-se que face à especialidade do n.º 2 do art.º 10.º do Dec.-Lei n.º 103/80 (ao qual corresponde, hoje, o n.º 2 do art.º 204.º da Lei n.º 110/2009) se concorrerem apenas créditos da Segurança Social, beneficiários de privilégio mobiliário geral com créditos garantidos por penhor o crédito da primeira “deve ser graduado à frente do direito do credor penhoratício”.
Esta foi a posição que já havia defendido o Ac. da Rel. do Porto, de 12/01/1984, que, aderindo ao decidido pela 1.ª Instância, propugnou pela interpretação restritiva daquele dispositivo legal “como dispondo para o caso de concurso apenas entre crédito da Previdência e crédito garantido por penhor” (in C. J., ano IX, Tomo 1, pág. 213).
O Ac. da Relação de Coimbra, de 23/04/1996 (no qual se fundamentou a Relação do Porto), defende existir aqui “o que Baptista Machado chama «lacuna de colisão», ou seja, uma contradição normativa entre normas da mesma hierarquia que entrem em vigor na mesma data…: um espaço jurídico à primeira vista duplamente ocupado fica a constituir um espaço jurídico desocupado, uma lacuna”, e o preenchimento desta lacuna far-se-á, de acordo com o disposto no n.º 3 do art.º 10.º do C.C., pela criação de uma norma “que privilegie o substantivo em relação ao processual, que respeite o princípio substantivo de que «o privilégio não vale contra terceiros … titulares de direitos oponíveis ao exequente», que respeite o princípio da confiança, sabendo cada um - cada credor, no momento da constituição do seu crédito – com o que conta, que respeite o princípio da igualdade não privilegiando o Estado, nos vários graus da sua administração, em função do cidadão, que assegure o direito constitucional do acesso à justiça, não apenas como direito formal do recurso aos tribunais, mas como direito substantivo de, através dos tribunais, ver realizado o seu direito”, acrescentando ser esta, ao que parece, “a mais recente evolução legislativa, que caminha no sentido de pôr o Estado mais actuante, mas apenas através da sua actuação dinâmica, passe o pleonasmo, e não através de privilégios que o façam aproveitar do dinamismo (e do património) dos cidadãos.” (in C.J., ano XXI, Tomo II, pág. 38).
Aderindo a esta fundamentação, acrescenta o supracitado Acórdão da Rel. do Porto de 15/09/2011 (segunda posição), que “há que ter em linha de conta que os privilégios creditórios em geral assumem natureza excepcional, certo é que, à margem do princípio da autonomia privada, afectam o princípio da igualdade entre credores (art. 604º, nº 1, do Código Civil)”, e sendo normas excepcionais “não podem ser aplicadas por analogia e, em relação a elas deve prevalecer o critério da sua interpretação restritiva” (loc. cit., pág. 175).
O S.T.J., no Acórdão de 17/01/1995, numa graduação de créditos em processo de falência, graduou em primeiro lugar o crédito garantido por penhor mercantil anterior à Lei 17/86 (lei dos salários em atraso), fazendo-lhe seguir os créditos emergentes do contrato de trabalho, e em terceiro lugar os créditos do Estado, ficando para último lugar os créditos comuns (in C.J., Acs. do S.T.J., ano III, Tomo I, págs. 22-24). Seguiram esta ordem quanto aos dois primeiros créditos, v.g. os Acs. do mesmo S.T.J. de 30/05/2006 e 10/05/2007 (in C.J., Acs. do S.T.J., respectivamente, ano XIV, Tomo II, pág. 113, e ano XV, Tomo II, pág. 61).
Nesta Relação de Guimarães, pronunciaram-se sobre a questão os Acórdãos de 13/02/2014 (ut Proc.º 1216/13.5TBBCL-A.G1, in www.dgsi.pt) de 13/10/2016 que contém uma resenha completa de referências jurisprudenciais com relação a ambas as teses em confronto, (ut Proc.º 764/11.6TBBCL-I.G1, in www.dgsi.pt), e de 25/05/2017 (ut Proc.º 703/13.0TBMDL-K.G1, in www.dgsi.pt) todos seguindo a posição do Acórdão da Relação do Porto de 15/09/2011 (segunda posição), graduando em primeiro lugar o crédito garantido pelo penhor.
No Acórdão, também, desta Relação, de 31/03/2016, aderindo, embora, ao entendimento seguido no Ac. de 13/02/2014, discorda-se, porém, da afirmação de que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social só deve prevalecer nas situações em que concorre apenas com um crédito penhoratício, por considerar injustificável a existência de uma efectiva colisão normativa “a obstar que os créditos da Segurança Social, por preferirem ao crédito com penhor anterior, e por força dessa prevalência, sejam pagos antes dos créditos laborais”, defendendo não ser consentânea “com o comando do artº 8º, nº3, in fine, do CC, e, bem assim, com uma interpretação racional do artº 204 do CRCSPSS a solução de fazer depender a ordem de graduação de concreto crédito da circunstância aleatória de o concurso envolver ou não créditos do Estado, e, ademais, deixando outrossim a defesa de interesses prioritários do Estado como o são o da importância social da sustentabilidade da Segurança Social à mercê de factores que escapam ao próprio Estado”, decidindo graduar o crédito da Segurança Social em primeiro lugar, seguido do crédito garantido pelo penhor e em terceiro lugar os créditos dos trabalhadores (ut Proc.º 565/14.0T8VCT-B.G1, in www.dgsi.pt) (deste modo optando pela posição que o S.T.J. havia liminarmente rejeitado, no já referido Acórdão de 29/04/1999, “por não ter correspondência nem na letra nem no espírito” dos art.os 749.º do C.C. e 10.º do Dec.-Lei 103/80 – cfr. C.J., Acs. do STJ, ano VII, tomo II, págs. 76-77).
4.- O Tribunal Constitucional (T.C.), no Ac. n.º 363/2002, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do art.º 11.º do mencionado Dec.-Lei n.º 103/80, e do art.º 2.º do Dec.-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, “na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 51.º do Código Civil” (in D.R. n.º 239, Série I-A, de 16/10/2002, págs. 6777-6780).
Este juízo de inconstitucionalidade terá de manter-se face ao art.º 205.º da Lei n.º 110/2009, que transcreve, sem alterações, o supramencionado art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 103/80.
Fundou o Tribunal Constitucional o seu juízo de inconstitucionalidade na violação do princípio da confiança “na medida em que, gozando o privilégio de preferência sobre os direitos reais de garantia, de que terceiros sejam titulares, sobre os bens onerados, esses terceiros são afectados sem, no entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer da existência do crédito, protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus do privilégio, devido à inexistência do registo”.
O princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.º da Constituição, ainda segundo o mesmo Tribunal Constitucional “postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se podia moralmente e razoavelmente contar” (cfr. Ac. supramencionado, citando o Ac. n.º 160/2000).
Na fundamentação da decisão fez-se ainda referência à finalidade prioritária do registo predial, que “radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas”, enquanto que “o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à segurança social”. Assim, uma vez que o crédito da segurança social não está sujeito a registo, “o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da segurança social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece”.
Já no que se refere à prevalência do privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social sobre qualquer penhor, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional o art.º 10.º, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 103/80 (actual n.º 2 do art.º 204.º da Lei 110/2009) tendo em consideração as finalidades que estão subjacentes ao sistema de segurança social.
Dentre outros, pronunciou-se neste sentido, o Acórdão n.º 64/2009, de 10/02/2009, que ponderou: a) o limite temporal do privilégio, imposto pelo art.º 97.º, n.º 1, alínea a), do C.I.R.E.; b) que a Segurança Social não dispõe relativamente aos bens móveis do meio equivalente ao previsto no art.º 12.º do Dec.-Lei 103/80 (hipoteca legal sobre imóveis existentes no património das entidades patronais); c) desvalorizou a falta de publicidade, que fundou o juízo de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 363/2002, por, diferentemente do que se passa com a hipoteca, o penhor não estar sujeito a registo; d) e, reconhecendo, embora, que o princípio da confidencialidade tributária tem repercussões na publicidade daquele privilégio, fez ressaltar que o legislador vem permitindo “a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontra regularizada”.

Relativamente ao princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito Democrático, consagrada no art.º 2.º da Constituição, refere ainda aquele Aresto (seguindo o Acórdão n.º 287/90) que “A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:

a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e, ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo 18º da Constituição, desde a 1ª revisão).

Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária”.
Ora, conclui, “relativamente à norma em apreciação não se pode sequer afirmar uma mutação na ordem jurídica. Por um lado, de há muito que o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior; por outro, na falta de registo público, a ordem jurídica instituída não criou expectativas jurídicas atinentes à segurança do comércio jurídico que a norma impugnada tenha alterado”, pelo que o referido art.º 10.º, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 103/80 “não viola o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora – privilégio creditório com justificação constitucional por referência ao artigo 63º da CRP.” (in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, Cons.ª Maria João Antunes).
5.- Na situação sub judicio o Tribunal a quo seguiu a segunda das duas posições acima expostas, e a Apelante entende dever ser seguida a primeira, graduando-se o seu crédito em primeiro lugar (não se seguindo, pois, a ordem estabelecida pelo art.º 747.º do C.C.).
Ponderados os fundamentos de uma e outra das referidas posições, entendemos dever aderir à segunda, acolhendo os seus fundamentos que têm suporte legal e melhor se conjugam com o sistema de prioridades de pagamento que o Código Civil consagra.
Como se deixou referido no Acórdão de 25/05/2017, não se menosprezando, embora, a importância fundamental das contribuições para a sustentabilidade da Segurança Social, “e sem minimizar o interesse público por ela prosseguido, o certo é que o próprio legislador as situa em terceiro lugar na ordem de pagamentos, nas situações em que os créditos delas derivados concorrem com créditos dos trabalhadores e com créditos do Estado”.
Como igualmente aí se deixou referido, “Vistas as coisas sob a perspectiva dos interesses do Banco temos de reconhecer que, com a concessão do crédito à Insolvente decerto permitiu que ela prosseguisse com a laboração, gerando receitas que terão acabado por entrar nos cofres da Segurança Social, através das contribuições pagas por si e pelos seus trabalhadores, e do Estado, através dos impostos, e temos de reconhecer ainda, pelas regras da experiência comum, e atento o seu objecto comercial, que se soubesse da existência das reclamadas dívidas talvez não concedesse o crédito, pelo menos sem outras garantias mais consistentes – daí a relevância do acesso à informação em situações como esta”.
Finalmente, cumpre fazer evidenciar que a Segurança Social desde a entrada em vigor da Lei n.º 110/2009 já dispõe da possibilidade de garantir os seus créditos por um qualquer dos meios de garantia previstos nos art.os 601.º e sgs. do C.C. – cfr. art.º 20.º.
Deve, pois, revogar-se a decisão impugnada, alterando a ordem de graduação de créditos nos termos referidos pela Apelante.
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C) DECISÃO

Considerando quanto acima fica expoto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, pelo que, revogando a decisão impugnada, graduam os créditos, na parte em que ora interessa, pela forma seguinte, relativamente à verba n.º 1:

1.º As dívidas da massa insolvente saem precípuas;
2.º Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos garantidos por penhora reconhecidos ao credor Caixa ..., S.A., sem prejuízo da verificação da condição a que está sujeito o crédito no montante de € 27.595,70;
3.º Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos enumerados na lista de credores reconhecidos como privilegiados por força da qualificação como créditos laborais, procedendo-se, se necessário, a rateio;
4.º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado reclamado pela Segurança Social;
Custas da apelação pelo Apelado.
Guimarães, 08/07/2020

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho