Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1147/10.0GAFLG-B.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: RECUSA
RECUSA DE JUÍZ
SUSPEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECUSA PENAL
Decisão: RECUSA INDEFERIDA
Sumário: I – A pena para a falsidade do testemunho é diferente conforme a mentira seja dita antes ou depois da testemunha ser advertida das consequências penais a que se expõe. No julgamento o juiz é a entidade que faz essa advertência, normalmente durante a prestação do depoimento, quando existem indícios de que a testemunha pode estar a afastar-se da verdade.
II – Esta advertência implica que o juiz dê a conhecer que, pelo menos, acha plausível a falta de credibilidade do depoimento. Isso não pode ser considerado motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade relativamente à parte que arrolou a testemunha.
III – O facto do juiz ter confrontado uma testemunha com uma circunstância capaz de abalar a credibilidade do seu o seu depoimento não é fundamento para a sua recusa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 3º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, no processo comum com intervenção do tribunal singular 1147/10.0GAFLG, a arguida Estrela S..., foi pronunciada como autora de um crime de homicídio por negligência grosseira, em consequência de acidente de viação.
Durante o julgamento, deduziu o incidente de recusa da sra. juíza Carla F....
No essencial, alega o recusante:
Aquando da inquirição de uma testemunha de defesa (que a recusante não identifica mas que se trata de Germano G...), a sra. juíza confrontou a testemunha com uma série de questões, designadamente sobre o número de acidentes de viação que já presenciara e o número de vezes em que fora testemunha de acidentes de viação.
Fez as perguntas num tom agressivo e de algum enquistamento pessoal contra a testemunha. Tirou conclusões em voz alta, fez comentários depreciativos sobre o depoimento da testemunha e alusões à alegada presença da testemunha noutros julgamentos.
A sra. juíza não tratou da mesma forma testemunhas arroladas por outros sujeitos processuais, que só apareceram na fase de julgamento. Relativamente a estas teve sempre uma atitude de quase paternalismo.
*
A sra. juíza respondeu pronunciando-se pela improcedência da recusa.
Neste relação o sr. procurador geral adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do incidente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
Resulta dos documentos juntos aos autos que Germano G... foi arrolado como testemunha neste processo e ainda nos seguintes:
- 317/10.6TBFLG – acidente de viação alegadamente ocorrido em 11 de Maio de 2009, em que um veículo conduzido por Daniel S... foi embatido por outro veículo propriedade de Paulo Dias Teixeira – fls. 106 e ss.
- 1514/10.0TBFLG – acidente de viação alegadamente ocorrido em 6 de Agosto de 2009, em que um veículo conduzido pela testemunha Germano terá atropelado o Daniel S... – fls. 116 e ss.
- 2217/11.3.TBFLG – acidente de viação alegadamente ocorrido em 7-7-2011, em que a testemunha Germano, conduzindo um veículo do Daniel S..., embateu num outro veículo de Óscar C... – fls 150 e ss.
Há uma coincidência, pelo menos curiosa, nas conexões da testemunha Germano e do dito Daniel S... com os três acidentes em causa.
A sra. juíza, ao pronunciar-se sobre a recusa nos termos do art. 45 nº 3 do CPP, indicou outros processos em que o Germano G... também está arrolado como testemunha: 2134/13.2TBFLG, 2031/06.8TBFLG, 40/12.7TBFLG, 242/04.0TBFLG, 1513/10.1TBFLG, 1230/03.9TBFLG-A e 944/09.4TBFLG.
Vejamos então.
O art. 43 nº 1 do CPP prevê que a intervenção de um juiz possa ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Ao contrário do que acontece no CPC, em que os fundamentos de suspeição invocáveis pelas partes estão taxativamente fixados no art. 120, aquela norma limita-se a uma formulação genérica.
Mas isto não significa um alargamento significativo das causas de recusa do juiz no processo penal, desde logo, porque não se descortina qualquer razão, nomeadamente de natureza constitucional, para que as garantias de independência e imparcialidade do juiz sejam distintas consoante a matéria por ele julgada (penal, cível, administrativa, etc....).
De um modo geral, pode-se dizer que a causa de recusa do juiz há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objeto da sua decisão – cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, pag.439 e ss. Esses especiais contacto e/ou relação deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz – cfr. ac. RE de 5-3-96, CJ, tomo II, pag. 281.
No caso destes autos a arguida Estrela S..., para fundamentar o pedido de recusa, não alega qualquer facto donde seja possível concluir que o sra. juiz tem com ela, com qualquer outro sujeito processual, ou com o objeto do processo qualquer relação ou contacto suscetível de pôr em causa o sua independência.
O que vem alegado é diferente: a sra juíza manifestou dúvidas quanto ao depoimento da testemunha Germano G.... Ou seja, o que se questiona não é a relação da julgadora com algum dos sujeitos processuais ou com o objeto do processo, mas falta de confiança da julgadora na testemunha.
É certo que o CPP contém a norma do art. 343 nº 2: “Se o arguido se dispuser a prestar declarações, o tribunal ouve-o em tudo quanto disser (…) sem manifestar qualquer opinião ou tecer quaisquer comentários donde possa inferir-se um juízo sobre a culpabilidade”.
Mas esta norma não é aplicável às testemunhas. Apenas diz respeito ao arguido e decorre do específico estatuto que ele tem no processo penal.
O Código de Processo Civil prevê expressamente o incidente da contradita, no qual a testemunha pode ser confrontada com “qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento (…) por diminuir a fé que ela possa merecer” – arts. 521 e 522 do CPC.
O Código de Processo Penal não contém incidente similar, formalmente regulado, mas as razões que lhe estão subjacentes relevam da mesma forma para a jurisdição penal e cível. Na jurisdição penal o juiz, por força do princípio da investigação, tem um especial dever de procurar a verdade material, dentro dos parâmetros fixados pelo objeto do processo, para além dos contributos dos diversos sujeitos processuais.
Ora, suscitando-se ao julgador dúvidas sobre “qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento” é não só normal, mas impõe-se, que ele confronte a testemunha sobre a matéria. Isso em nada colide com o seu dever de imparcialidade. Nem nada revela quanto a uma hipotética e pretensa especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objeto da sua decisão. Quando muito poderá revelar alguma desconfiança em relação à testemunha, mas não predisposição em relação à parte.
Questão diferente será saber se a julgadora, no modo como expressou as suas dúvidas, ultrapassou a contenção e a urbanidade que se esperam de quem tem o ofício de julgar. Essa questão, no entanto, se existir, o que só por mera hipótese se coloca, seria fundamento para eventual responsabilidade disciplinar, mas não para recusa do juiz.
De outro modo, estaria encontrada a fórmula infalível para se conseguir o afastamento do juiz, sempre que algum sujeito processual pressentisse que o julgamento não lhe corria de feição.
Deixa-se um exemplo:
A testemunha presta depoimento sob juramento. Se mentir, comete um crime público (art. 360 do Cod. Penal). A pena para a falsidade do testemunho é diferente conforme a mentira seja dita antes ou depois da testemunha ser advertida das consequências penais a que se expõe (cfr. nºs 1 e 3 do art. 360 do Cod. Penal). No julgamento, o juiz é a entidade que faz essa advertência, normalmente durante a prestação do depoimento, quando existem indícios de que a testemunha pode estar a afastar-se da verdade.
Esta advertência implica que o juiz dê a conhecer que, pelo menos, acha plausível a falta de credibilidade do depoimento. Isso não pode ser considerado motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade relativamente à parte que arrolou a testemunha. De outro modo, sempre que durante a inquirição o juiz, em cumprimento de comandos legais, advertisse a testemunha sobre quem tem suspeitas de faltar à verdade, haveria motivo para ser recusado, por “demonstrar um pré-juízo quanto à mesma” (ponto nº 14 do requerimento). O que seria um absurdo.
No caso, os desembargadores não conhecem os exatos contornos do envolvimento da testemunha Germano G... nos Procs. 2134/13.2TBFLG, 2031/06.8TBFLG, 40/12.7TBFLG, 242/04.0TBFLG, 1513/10.1TBFLG, 1230/03.9TBFLG-A e 944/09.4TBFLG, mencionados na pronúncia da sra. juíza.
Porém, os factos que ressaltam dos Procs. 317/10.6TBFLG, 1514/10.0TBFLG e 2217/11.3.TBFLG têm suficiente singularidade para que, quem julga neste processo, confronte a testemunha com eles. É da experiência dos tribunais que há pessoas que se dispõem a testemunhar falsamente. Há mesmo as chamadas testemunhas “profissionais”. O confronto da testemunha com os outros casos permite à testemunha justificar-se e revela lealdade por parte da sra. juíza. A Justiça seria pior servida se a sentença descredibilizasse o depoimento, sem previamente a testemunha ter sido confrontada com os factos que podem afetar a sua credibilidade.
Finalmente, ao contrário do que perpassa por todo requerimento, o juiz penal não tem um papel de ouvinte passivo do que vai sendo dito. Nem, ainda menos, existe norma ou princípio que imponha que se advertir uma testemunha, deverá proceder do mesmo modo relativamente às testemunhas arroladas por outros sujeitos processuais (cfr. ponto nº 23 do requerimento). Seria outro absurdo.
O pedido de recusa deve ser indeferido face aos termos e fundamentos com que foi deduzido. A sua sorte não está dependente da prova, ou não prova, de qualquer facto alegado. Por isso, é manifestamente infundado – art. 45 nº 4 do CPP

DECISÃO

Os juízes desta Relação recusam o requerimento de recusa da juiz por manifestamente infundado.
A arguida/requerente pagará a soma de 7 UCs – art. 45 nº 7 do CPP.
Remeta, de imediato, cópia deste acórdão ao tribunal de primeira instância.