Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1371/16.2T9BRG-A.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: RECLAMAÇÃO PENAL
DESPACHO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PENAL
Decisão: DESATENDIDA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Decisão Texto Integral: Reclamante:AA…(arguido);
Recorrido: Ministério Público;

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I - Relatório

AA…veio reclamar do despacho da Srª. Juiz da Comarca de Braga -Inst. Criminal - J1, datado de 03.04.2017, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, por inadmissibilidade, cujo teor, na parte dispositiva, é o seguinte:
«Não se admite o recurso interposto pelo arguido, a fls. 110 a 119, do despacho proferido a fls. 87 e 88»

Segundo o reclamante o recurso deveria ter sido admitido, apresentando, para tanto e resumidamente o fundamento de que “pretende sindicar a possibilidade processual de ser proferido um despacho que notifica ao arguido a intenção de se proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos do artigo 303° n.° 1 e 5 do Código de Processo Penal, de modo a que lhe seja imputada a prática de um crime mais gravoso de que aquele de que veio acusado, tudo isto no âmbito de urna instrução que apenas foi requerida pelo arguido e sem que tivesse sido realizado qualquer meio de prova”.

Pede que seja dado provimento à reclamação, admitindo-se o recurso objeto de despacho de indeferimento no tribunal a quo.

Respondeu o Mº Pº, pugnando pela confirmação do decidido em 1ª instância.

II - Fundamentação:
As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:
I- Com data de 27.02.2017, foi proferido despacho no qual se decidiu:
«Em face dos elementos de prova indiciária constantes dos autos e dos resultantes da presente fase instrutória, impõe-se proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos, por forma a reconduzi-los à prática de um crime de difamação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao disposto na al. l) do n.º 2 do artº 132º do Cód. Penal.---------------Concedida que foi, de seguida, a palavra ao ilustre defensor do arguido, nos termos e para os efeitos previstos pelo nº 5 do artº 303º do C.P.P., pelo mesmo, no seu uso, foi dito não prescindir da concessão de prazo suplementar de defesa. ----------
-------- De seguida, por ela, Mmª. Srª. Juiz, foi proferido o seguinte: ---------------- DESPACHO-
Atento o posicionamento manifestado pelo arguido, e a coberto que se dispõe no nº 1 do artº 303º do C.P.P., aplicável por remissão do nº 5 do mesmo normativo, concede-se prazo suplementar de defesa, pelo período de 5 (cinco) dias, designando-se, desde já, para continuação dos trabalhos, com a leitura da decisão, se nenhum requerimento de prova se interpuser, o dia 9 de Março de 2017 pelas 14h00m.».
II - O arguido recorreu de tal decisão.
III - Rejeitado tal recurso, deduziu a presente reclamação.
IV - Com data de 27.04.2017 foi proferido despacho de pronúncia no qual se decidiu:
«B) Pronunciar, para julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular,--- AA…, melhor id. a fis. 36, Pelos factos constantes da acusação pública de fis. 36 a 38, para a qual, nesse particular, se remete, dando-se a mesma por reproduzida, nos termos do disposto no art° 307°, n° 1 do Cód. de Proc. Penal, factosesses determinantes da prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art°s 180°, n° 1 e 184°, por referência ao disposto na al. 1) do n°2 do art° 132°, todos do Cód. Penal.».
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A presente reclamação alicerça-se no fundamento de que o despacho que, na fase de instrução e já durante o debate instrutório, comunicou ao arguido uma alteração da qualificação jurídica dos factos - reconduzindo-os à prática de um crime de difamação, ao invés de um crime de injúrias, como vinha acusado, e concedeu prazo ao arguido para os efeitos do artº 303º, nº 5, do CPP - é recorrível.
Salvo o devido respeito, entende-se que não lhe assiste razão.
Embora o processo penal consagre a regra da recorribilidade das decisões, um dos casos de excepção é o de a decisão instrutória pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, como preceitua expressamente o artº 310º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP).
O seu nº 3, que remete para o artº 309º, nº 1, do CPP, salvaguarda a recorribilidade do despacho que indeferir a arguição da nulidade fundada em a decisão instrutória pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
Admitindo-se a unidade do sistema de processo penal e o Código de Processo Penal como um todo coerente, não é concebível uma solução que possa levar a decisões endogenamente contraditórias no âmbito da fase instrutória.
Isto é, como já decidido por este TRG, em reclamação no âmbito do processo nº 1389/15.2T9BRG, não sendo recorrível a decisão instrutória que, pronunciando o arguido pelos mesmos factos da acusação, se limita a qualificá-los juridicamente de forma diferente, do mesmo modo mantém-se a irrecorribilidade do despacho (interlocutório) que no decurso do debate instrutóriocomunica ao arguido a referida alteração da qualificação jurídica, concedendo prazo à defesa, por inexistir alteração dos factos da acusação, sob pena de se permitir que entre pela janela o que não pode entrar pela porta.
Até porque, por um lado, por força da remissão do nº 5 para o nº 1, do artº 303º, do CPP, equipara-se a alteração da qualificação jurídica dos factos à alteração não substancial dos factos e, por outro, não deixou tal alteração de ser comunicada ao arguido, nos termos do citado preceito.
Não estamos, assim, sequer perante uma alteração substancial dos factos, contrariamente ao expendido pelo reclamante.
Esta pressupõe sempre uma alteração de factos, mesmo na vertente de imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A simples alteração de qualificação jurídica não configura uma alteração de factos.

No sentido de clarificar a problemática da qualificação jurídica na instrução, a reforma do CPP de 1998, complementada pela Lei nº 48/2007, de 29.08, veio a acolher na fase de instrução um regime similar ao previsto no artº 358º, nº 3, do CPP, para a fase de julgamento: se dos actos da instrução ou dodebate instrutório resultar uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução, o juiz deve proceder nos mesmos termos da alteração não substancial dos factos (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal…, 2ª ed., pág. 770).


Como é defendido na decisão da Reclamação do TRC, proc. 424/06.0, proferida em 09.02.2006, “o legislador optou, assim, para efeito de recurso, por diferenciar as questões formais e as de mérito da decisão instrutória: para as primeiras admitiu o recurso, enquanto para as segundas expressamente o excluiu”.
Como perfilhado na citada Reclamação, em caso similar, “a diferente qualificação jurídica dos factos não conduz, contrariamente ao que sustenta o reclamante, à admissibilidade do recurso. Aliás, com ou sem recurso, o juiz do julgamento pode sempre entender que os factos têm uma diferente coloração jurídica (art.ºs 358º e 359º do Cód. Proc. Penal), pelo que seria como que inútil o recurso que viesse a ser admitido. Mais, o reclamante pode discutir esse tema em sede de julgamento. Importantes, são os factos. São eles que vinculam tematicamente o tribunal e esses estão definidos em plena conformidade na acusação e na pronúncia.
Existe, pois, a necessária dupla conforme em relação aos factos, a qual não é abalada pela sua diversa qualificação jurídica, e a verificação dessa dupla conformidade exclui, a meu ver, a recorribilidade da decisão instrutória (art.º 310º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal).
Contra isso não argumente o reclamante com a distinção entre facto naturalístico e facto normativo, para daí retirar a conclusão de que afinal os factos constantes da acusação e da pronúncia são diferentes, atenta a diversa qualificação jurídica que lhe foi dada. É que a citada disposição legal (o art.º 310º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal) é bem cristalina quando se refere aos mesmos factos, sendo certo que o legislador não podia ignorar que a pronúncia envolve também o respectivo enquadramento jurídico (art.º 308º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal) e, se quisesse estender a recorribilidade da decisão instrutória também a esse segmento, não teria deixado de o dizer. Optou, de caso pensado, em reservar o recurso apenas para os casos de desconformidade factual ou que versem sobre questões formais e a situação em apreço não se prende com tal temática.”

Em suma, é incontroverso in casu que no despacho recorrido está em causa a pronúncia do arguido por factos idênticos aos da acusação, inexistindo qualquer alteração destes, mas apenas da sua qualificação jurídica.
Assim, tal como é irrecorrível a decisão instrutória com esse fundamento, por força do estatuído no artº 310º, nº 1, do CPP, assim o será o despacho (recorrido) em que, mantendo-se os mesmos factos constantes da acusação, se limita a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica desses factos.
Logo, nos termos conjugados dos artºs 303º, 309º e 310º, todos do CPP, a decisão recorrida é irrecorrível.
Não belisca tal a circunstância de a instrução ter sido requerida pelo arguido – o nº 5, do artº 303º, do CPP, refere-se a tal possibilidade, quer quanto à acusação, quer quanto ao requerimento para a abertura da instrução.
Também não colide com tal o facto de não ter sido precedido de produção de prova.
Do apontado artº 303º, nº1, por remissão do seu nº 5, decorre que a alteração há-de fundar-se nos actos de instrução realizados ou, não os havendo, no debate instrutório que haja tido lugar, como se verificou no caso sub judice.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, desatende-se a reclamação apresentada.

Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em três UC’s.
Guimarães, 19.06.2017.


O Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,
António Júlio Costa Sobrinho