Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
165/13.1TAPVL.G1
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
EXIGÊNCIAS ESSENCIAIS
REJEIÇÃO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O requerimento de abertura de instrução deve configurar, equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada e, bem assim, deve conter o elemento subjectivo da infracção, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães


I. RELATÓRIO
1. Após despacho de arquivamento, de harmonia com o disposto no art. 277º n.º 2 do Código de Processo Penal, proferido pelo Magistrado do Ministério Público a fls. 139 a 141, e inconformada com o mesmo, veio a (entretanto constituída) assistente Leonor M., a fls. 147 a 152, requerer a Abertura da Instrução.

2. Remetido o processo à distribuição como Instrução, pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal (JIC), no dia 14.04.2015, foi proferido despacho em que decidiu rejeitar liminarmente o requerimento para abertura de instrução.

3. Inconformada com tal despacho, no dia 14.05.2015, veio a assistente a interpor recurso (constante de fls. 187 a 194), extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“A) O presente recurso tem como objecto o douto Despacho de rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução por inadmissibilidade legal.
B) O meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal “ a quo” considera, no seu despacho de rejeição, que “(…) a assistente não fez no requerimento de abertura de instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena.”,
C) Considerando ainda o Tribunal “a quo” que “a assistente aflora (e muito de leve) a factualidade alegadamente em causa no caso em apreço.”
D) A par dos requisitos do artigo 287º do CPP em que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais mas deve conter em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente a não acusação, a indicação dos actos de instrução que pretenda levar a cabo, os meios de prova não considerados, bem como a remissão para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.
E) Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a Assistente requereu a abertura de Instrução, na qual narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção directa do Arguido José C. nos mesmos e, para tal, apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo, assim, o disposto no n.º 2 do artigo 287º, do CPP.
F) Ou seja, a Assistente narrou sinteticamente que tomou conhecimento que a propriedade do seu veículo automóvel, com a matrícula ..-..-.., havia sido transferida para outrem sem a sua intervenção e autorização.
G) Seguidamente, o relatório pericial concluiu que a assinatura aposta no Requerimento de Registo Automóvel não é da autoria da Assistente.
H) A testemunha Maria J. confirmou que foi o Arguido José C. quem lhe vendeu o veículo em questão e lhe entregou toda a documentação já preenchida.
I) Actualmente, consta do Registo Automóvel como proprietária do veículo Laurentina C., que é mãe do Arguido.
J) Acrescentou ainda a Assistente que o Arguido esteve sempre na posse do veículo em questão, circulando diariamente com o mesmo.
K) Todos estes factos demonstram claramente que o Arguido José C. teve total intervenção nas referidas transmissões de propriedade, com o único intuito de causar prejuízo à Assistente e obter para si um benefício ilegítimo, utilizando para o efeito um documento que falsificou.
L) Além disso, sendo este veículo automóvel um bem comum do casal, o Arguido cometeu um crime de furto por exceder a sua quota parte na divisão deste bem.
M) Concluiu então a Assistente que, por todos os factos expostos, fica por demais claro e evidente que o Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito de haver para si um bem que também pertence à Assistente, ora Recorrente, fazendo uso de meios fraudulentos para fazer “desaparecer” do património comum do casal o veículo automóvel em questão e com isso prejudicar a Assistente no momento da partilha, o que o Arguido previu e quis, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
N) Portanto, não estamos perante insuficiente factualidade, sabendo através de tal Requerimento de Abertura de Instrução quem, quando e de que forma foram praticados determinados factos e que esses factos constituem crime, no caso em apreço, um crime de falsificação de documento e um crime de furto.
O) Requereu ainda a Assistente diligências de prova, que não foram tidas em conta e que deveriam ter sido consideradas.
P) Não só a Recorrente descreveu os factos, como alegou quais as disposições violadas, sendo perfeitamente inteligível o entendimento de quais os factos que estão em causa, e a razão pela qual a Recorrente entende dever haver acusação, pelo que o Requerimento de Abertura de Instrução deveria ter sido admitido.
Q) O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo, ao rejeitar liminarmente o Requerimento da Assistente para Abertura da Instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto nos artigos 283º e 287º, do CPP.
Nestes termos e nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido substituindo-se por outro que decida de harmonia com as antecedentes conclusões, admitindo-se o requerimento apresentado pela Assistente e declarando-se aberta a Instrução, sendo assim feita uma correcta aplicação da lei e a mais elementar
JUSTIÇA.”

4. O recurso foi admitido por despacho de fls. 195.
5. O Ministério Público junto do tribunal recorrido, a fls. 199 a 202, respondeu ao recurso, concluindo que no sentido da sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
6. O arguido não respondeu ao recurso
7. Nesta Relação, a Exma Procurador-Geral Adjunta (a fls. 210 a 212), sufragando posição evidenciada pelo magistrado do Ministério Público da primeira instância, emitiu parecer no sentido que o recurso deve ser julgado improcedente.
8. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.
9. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objecto do recurso
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a questão a decidir consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente deveria ou não ter sido rejeitado; neste âmbito se apreciará a admissibilidade do convite ao aperfeiçoamento.
*
2. A decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida:
“Requerimento de abertura da instrução de fls. 147 e seguintes.
Conforme resulta da lei processual penal, a instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» – artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Finda a instrução, o juiz deverá proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia, sendo certo que a opção por um ou por outro se relaciona com o facto de até ao encerramento da instrução se haver logrado ou não recolher indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança – artigos 308.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Efectivamente, nesta fase não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão-só indícios de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido, sendo certo que a decisão a proferir no final desta fase não é uma decisão jurisdicional de mérito, mas sim uma decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase do julgamento.
Deve, assim, o juiz de instrução compulsar e ponderar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
No fundo, a fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações – Acórdão da Relação de Lisboa de 12/07/1995, CJ, XX, 4.º, pág. 140, e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128.
Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, podem requerer a abertura de instrução o arguido e o assistente, esclarecendo a lei quem pode constituir-se como assistente em processo penal.
Estatui o artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, referindo-se ao requerimento de abertura de instrução, que o mesmo deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».
Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vide Acórdão da Relação de Lisboa de 12/05/1998, BMJ n.º 477.º, pág. 555; da Relação do Porto de 15/04/1998, BMJ n.º 476.º, pág. 487; da Relação de Lisboa de 2/12/1998, BMJ n.º 482.º, pág. 294; da Relação de Lisboa de 21/10/1999, CJ, XXII pág. 158; Relação de Lisboa de 9/02/2000, CJ, XXIII, 1.º, 153).
Se assim é podemos então concluir que, por força da conjugação do artigo 287.º, n.º 2, com o artigo 309.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público – aquele que aqui importa ter em conta –, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287.º, n.º 2, in fine, a contrario sensu).
Pelas razões acima aludidas, no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia (cfr., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/1993, CJ, XVIII, 3.º, pág. 243 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/11/1993, CJ, XVIII, 5.º, pág. 61).
Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público.
Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do Ministério Público.» – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.
Citamos, a título meramente exemplificativo e por todos os Acórdãos proferidos relativamente a esta questão, a argumentação aduzida pelo Acórdão n.º 358/04 desse Tribunal, publicado na IIª Série do D.R. n.º 150, de 28 de Junho de 2004, págs. 9647/8:
«(...) A questão da constitucionalidade suscitada implica, pois, uma breve análise do estatuto processual do assistente.
O ofendido tem o direito de intervir no processo nos termos da lei (artigo 32º, n.º 7, da Constituição).
O assistente tem, em geral, no processo penal português, a posição de colaborador do Ministério Público (artigo 69º do Código de Processo Penal), a quem compete exercer a acção penal (artigo 219º, n.º 1, da Constituição).
Trata-se de uma solução que, por um lado, potência a eficácia da investigação, já que admite a participar no processo um sujeito envolvido no conflito social inerente à prática do crime (e, nesta medida, contribui para a boa aplicação do direito), e, por outro, é uma solução que cria condições de pacificação social, dado reconhecer o estatuto do sujeito processual à vítima do crime, que tem assim a possibilidade de intervir, através de actuação própria, na realização da justiça penal.
O estatuto do assistente encontra-se, genericamente, definido no artigo 69º do Código de Processo Penal. Integra esse estatuto a faculdade de requerer a abertura da instrução (artigo 287º do Código Penal).
O reconhecimento do assistente como sujeito processual, bem como o seu estatuto processual não despublicizam, no entanto, o processo penal. Com efeito, o processo penal tem essencialmente natureza pública, pois é ao Estado que cabe o exercício da acção penal (note-se que mesmo nos crimes particulares é o Ministério Público que dirige a investigação).
Por outro lado, cabe sublinhar que o processo penal português tem como vertente fundamental a tutela das garantias de defesa. Desse modo, o estatuto do assistente não é equiparável ao do arguido.
A apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos remete, pois, para a ponderação dos valores e princípios, por vezes conflituantes, que conformam a estrutura processual bem como as várias soluções no plano infra constitucional.
O assistente, já se referiu, tem a faculdade de requerer a abertura da instrução. Tal faculdade, no caso concreto, foi exercida na sequência da prolação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público.
Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos?
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.
Por último, não releva para o juízo de não inconstitucionalidade que se formula a circunstância de o artigo 391º-B do Código de Processo Penal (que contém a disciplina do processo abreviado) admitir a narração dos factos por remissão para o auto de notícia. Como refere o Ministério Público, no processo abreviado está em causa pequena criminal idade e só pode ter lugar quando existem provas simples e evidentes e, também, indícios claros da prática do crime. São essas circunstâncias que legitimam uma tramitação célere e desformalizada. No entanto, sempre se dirá que o estatuto do assistente não tem (nada o impõe) que se equiparar totalmente ao do Ministério Público. Não existe, pois, paralelismo entre a situação invocada e a dos autos, pelo que o argumento do recorrente não colhe.
Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação (...).».
Na posse destes considerandos, revertamos e vejamos do caso concreto.
Lendo-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente verifica-se que o mesmo, salvo o devido respeito, pouco ou nada diz quanto aos factos em apreço nos autos, limitando-se, no essencial, a avançar as razões da sua discordância (legítimas, certamente) com o despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
Com efeito, a assistente aflora (e muito de leve) a factualidade alegadamente em causa no caso em apreço.
Repare-se que a assistente não faz qualquer referência à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, impondo ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática dos imputados crimes.
Constatamos, assim, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigada, a assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.
De sublinhar ainda que não é ao juiz de instrução criminal que incumbe seleccionar na alegação que constitui a denúncia aqueles factos que concretamente, a terem-se por suficientemente indiciados, poderiam permitir a imputação ao denunciado na fase da instrução de um qualquer ilícito penal, nomeadamente o crime de ofensa à integridade física simples.
Relembra-se o que já foi dito sobre a exigência que, in casu, devia conter o requerimento do assistente não só para que os denunciados possam, eventualmente, ser pronunciado pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem definitivamente assegurados os seus direitos de defesa e lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis (cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, Anotado, 9.ª edição, pág. 541).
Assim se respeitarão, então, os princípios basilares que subjazem ao processo penal: estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do(s) arguido(s) contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e a possibilitar-lhe(s) a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
Como, aliás, se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1997 (in CJ, XXII, 3.º pág. 143), «o requerimento de abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é que define e limita o respectivo objecto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminadoras». Mais adiante ainda se anota: «não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor».
O não acatamento pelo assistente desta exigência torna-se depois insuprível: «face à indiscutível ausência no requerimento de abertura de instrução do necessário conteúdo fáctico», o despacho de pronúncia que, porventura, viesse a ser proferido na sua sequência «seria nulo» ou, até, «juridicamente inexistente» (cfr. neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Fevereiro de 2000, in CJ, XXV, 1.º, pág. 153).
Com efeito, não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante das várias alíneas do n.º 3 do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados – e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa –, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal», e, por isso, «inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes» (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de Outubro de 2001, in CJ, XXVI, 4. º, pág. 141).
Também que se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação do constante naquelas alíneas «a instrução será a todos os títulos inexequível» (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, “Inquérito e Instrução” in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Ed. do C.E.J., Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120).
Em síntese, a instrução é inadmissível, por falta de objecto (artigo 287.º, n. º 3), impondo-se, pois, a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Donde que a conclusão indubitável de que se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público, não obedecer aos requisitos contemplados no artigo 283.º, n.º 3 – aplicável nomeadamente por força da remissão operada pelo artigo 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal –, que a lei exige para a acusação pública, tal requerimento não pode deixar de considerar-se nulo (tal como sucede, aliás, com a acusação pública deduzida sem observância de tais requisitos).
Importa por fim referir que já perfilhamos, no seguimento de diversa Jurisprudência existente ao tempo, o entendimento de que nestas situações haveria lugar a despacho de aperfeiçoamento.
Sucede, porém, que tal a questão ficou definitivamente esclarecida com a publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no D.R. I Série-A n.º 212, de 4 de Novembro de 2005, que fixou jurisprudência no sentido de não haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentando nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Concluímos, assim, que o requerimento de abertura da instrução em apreço terá forçosamente de ser liminarmente rejeitado.
*
Decisão.
Nestes termos, sem necessidade de ulteriores considerações e tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito, decido rejeitar, por inadmissível, o requerimento de abertura da instrução em apreço.
*
Custas a cargo da assistente, fixando-se em 1 UC a respectiva taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
*
Registe na pasta própria, notifique e, transitado em julgado, proceda á devolução à C.R.A. competente dos documentos juntos aos autos para efeitos de realização de prova pericial.
*
Oportunamente arquive os autos.”

3. E, por se mostrar por demais relevante para a decisão deste recurso, passaremos também a transcrever (na parte que tem relevância para o presente recurso) o requerimento de abertura de instrução em causa:
“LEONOR M., Ofendida/Queixosa nos autos de Inquérito à margem identificados, notificada do douto Despacho de Arquivamento proferido pelo Ministério Público, vem mui respeitosamente, requerer a V. Exa. a sua constituição como ASSISTENTE, nos termos e para os efeitos do artigo 68°, 11.0 1, a) e b) do Código de Processo Penal.
Ainda, por estar em tempo, por ter legitimidade e por não poder concordar com o douto Despacho de Arquivamento proferido, vem requerer a ABERTURA DE INSTRUÇÃO, nos termos do artigo 287° do Código de Processo Penal e com os fundamentos seguintes:
I- (…)
II- DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO:
4.° Por outro lado, cumpre dizer que o Ministério Público fez errada interpretação das provas constantes dos autos e assim concluiu pela insuficiência de indícios acerca da verificação e imputação ao Arguido do crime de falsificação de documento.
8.° Ora, a este respeito cumpre dizer que, relativamente à assinatura aposta no campo reservado ao Sujeito Passivo do Requerimento de Registo Automóvel, o relatório do exame pericial é absolutamente conclusivo ao admitir “(...) como muitíssimo provável que a escrita suspeita da assinatura não seja da autoria de LEONOR M..”
9.° Não restando assim dúvidas de que a ora Assistente não assinou qualquer documento e nem autorizou a venda que aquele documento acabou por declarar.
10.º Acresce ainda que, no referido exame pericial apenas foi analisada a escrita manual da assinatura do nome da ora Assistente, não tendo sido analisadas as restantes escritas manuais constantes do mesmo Requerimento de Registo Automóvel,
11.º O Relativamente às quais é possível verificar, a olho nu e por simples comparação com o Auto de recolha de autógrafos efectuado para o mesmo exame pericial, a sua absoluta semelhança com a escrita do Arguido.
12.º Além disso, é a própria Maria J.., testemunha inquirida a folhas 38, quem confirma que “(...) Comprou o veículo ligeiro de passageiros de matrícula .. ..-.. -.., marca BMW, no mês de Abril do corrente ano, ao Sr. José C. (...)“,
13.° Tendo referido ainda que não conhece a esposa do Arguido e que foi este quem lhe entregou todos os documentos do veículo e a declaração de venda devidamente preenchida.
14.° Esta mesma testemunha refere ainda que em Setembro do mesmo ano de 2014 vendeu o mesmo veículo a Laurentina S., que reside em ….
15.° Ora, esta Laurentina S. é Laurentina C., pessoa que consta actualmente como proprietária do veículo em questão no Registo Automóvel — Cfr. Documento 1,
16.° A qual é mãe do Arguido, conforme se pode verificar pelo documento de identificação do mesmo e que consta já dos autos.
17.° Assim sendo, dúvidas não restam quanto à total intervenção do Arguido nas referidas “transmissões de propriedade” do veículo em questão, com o único intuito de causar prejuízo à ora Assistente e ainda obter para si um beneficio ilegítimo,
18.° Utilizando para o efeito um documento, o Requerimento de Registo Automóvel ora em causa, cujo facto jurídico, o contrato verbal de compra e venda, é inexistente e por isso mesmo falso.
19.° Assim, deve o Arguido ser pronunciado relativamente ao crime de falsificação de documento, nos termos do disposto no artigo 256°, n.° 1, alíneas d) e e) do Código Penal.
III - DO CRIME DE FURTO:
20.° Acresce ainda que, o veículo automóvel ora em causa nunca saiu da posse do Arguido, sendo este quem o conduz desde que a ora Assistente abandonou o lar conjugal, e é visto actualmente a circular diariamente com o mesmo veículo, nomeadamente quando se desloca à Póvoa de Lanhoso para as visitas quinzenais ao filho menor de ambos — Cfr. Documento n.° 2.
21.° Mais, o Arguido colocou o mesmo veículo automóvel para venda através de um anúncio num sítio da Internet, acessível a qualquer pessoa, com a descrição pormenorizada das características do veículo e com o seguinte contacto telefónico: ……..— Cfr. Documento n.° 3,
22.° Pelo que, deverá a operadora TMN ser notificada para identificar o titular daquele numero de telefone, o que se requer.
23.° Ora, a Assistente adquiriu o veículo com a matrícula .. ..-..-.. em 19 de Agosto de 2011, sendo por isso um bem comum do casal.
24.° Sendo o mesmo veículo automóvel indivisível, e tendo o Arguido se apoderado do mesmo, excedendo assim a sua quota parte na divisão deste bem comum, comete o crime de furto, previsto pelo artigo 203° do Código Penal.
25.° É este o entendimento da doutrina, referindo-se a título de exemplo o Dr. Paulo Pinto de Albuquerque, conforme a sua anotação ao artigo 203° no “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora — 2008, entre outros.
26.° Por tudo o exposto, fica claro e evidente que o Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito de haver para si um bem que também pertence à ora Assistente,
27.° Usando de meios fraudulentos para fazer “desaparecer” do património comum do casal o veículo automóvel ora em questão, e com isso prejudicar a Assistente no momento da partilha, o que previu e quis, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
28.° Cometeu assim o Arguido um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256°, n.° 1, alíneas d) e e), e um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203°, todos do Código Penal, devendo por isso ser emitido despacho de pronúncia e ser o Arguido submetido a julgamento.
Pelo exposto, uma criteriosa análise da prova produzida e constante do inquérito impõe que seja proferido despacho de pronúncia do Arguido José C., nos termos supra indicados.
Assim, requer a V. Ex.a, nos termos do disposto no artigo 287° do CPP, se digne admitir o presente e declarar aberta a Instrução.
Mais requer a junção aos autos dos documentos que seguem com o presente e ainda a notificação da TMN para identificar o titular do seguinte número de telefone: …...
(…) .
PROVA DOCUMENTAL:
Os documentos já constantes dos autos, bem como aqueles cuja junção se requer com o presente e cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos e legais efeitos.
PROVA TESTEMUNHAL:
O teor dos depoimentos já prestados nos autos.
Junta: 3 (três) Documentos (…)”

Antes de entrarmos na apreciação do caso concreto, importa tecer algumas considerações gerais relacionadas especialmente com o requerimento de abertura de instrução que seja apresentado na sequência de um despacho de arquivamento do inquérito.
No âmbito do processo penal e perante o despacho proferido pelo Ministério Público, determinando o arquivamento do inquérito, o assistente tem ao seu alcance diferentes procedimentos, alternativos, para atacar tal arquivamento.
Assim, pode requerer a abertura de instrução, se o procedimento não depender de acusação particular (portanto, no caso de crimes de natureza pública e semi-pública), relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação [artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal]; se optar por não requerer a abertura de instrução, pode suscitar a intervenção hierárquica (artigo 278.º, n.º 2, do mesmo diploma legal).
Releva aqui, na questão em análise, a primeira opção.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Ao lançar mão da instrução, quando o Ministério Público se abstém de acusar, o assistente promove uma verdadeira fiscalização da legalidade da actuação do MP, atribuindo-lhe o legislador legitimidade para submeter aquela apreciação à jurisdição (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2009, pág. 153).

Nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.
Ao requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente e sempre de acordo com a norma antes citada, é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) – isto é, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
Importa realçar que, abstendo-se o Ministério Público de acusar (é este um pressuposto essencial para legitimar a intervenção do assistente), o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, para possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória.
Não satisfaz essa exigência o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e do qual não constem expressamente os elementos mencionados nessas alíneas b) e c) do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Com efeito, o artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal preceitua, relativamente ao requerimento de instrução, que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente … à não acusação … e dos factos que …se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º nº 3, alíneas b) e c).” (sublinhado nosso)
Este último artigo, na sua alínea b) preceitua que “a acusação contém sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática” e a na sua alínea c) preceitua a exigência da “indicação das disposições legais aplicáveis.”
Lembre-se que a instrução tem como escopo definido no artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal «a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento
De referir ainda que a necessidade da suficiência do requerimento de abertura de instrução e a sua relevância expressam-se, nomeadamente, nos termos dos artigos 303.º, n.º 1, e 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Na primeira das normas, estabelece-se o procedimento perante a alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução; tais procedimentos – diferentes, consoante se trate de uma alteração não substancial ou de uma alteração substancial dos factos – exigem e pressupõem a descrição precisa de factos, o que mais se acentua quando estamos perante a abstenção de acusação pelo Ministério Público. Na segunda das normas citadas estabelece-se que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
O n.º 3 do citado artigo 287.º do Código de Processo Penal estabelece que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Insere-se na inadmissibilidade legal da instrução, nomeadamente, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, perante a não dedução de acusação pública, que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que imputa ao arguido e pelos quais pretende que este venha a ser pronunciado.
A conclusão não se altera perante a remissão para o auto de notícia ou para a denúncia que tenham dado origem ao processo.
Chamado a apreciar a norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação, expressando o seguinte entendimento:
«Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
(…) [A] exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»

Suscita-se agora a questão de saber se, perante esta omissão, é admissível o convite ao aperfeiçoamento.
A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005), fixou jurisprudência nos seguintes termos.
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»
E nos termos deste mesmo acórdão de fixação de jurisprudência o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil, ao princípio da cooperação, conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4.º do CPP.
(…) A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP.
A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada – o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.
(…) O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.
Sem acusação formal o juiz está impedido, escreve o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 175, de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.
(…) O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra».
Este entendimento é seguido, entre muitos outros, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 2006 (processo 06P3526) e de 20 de Junho de 2012 (processo 8/11.0YGLSB.S2), e deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de Junho de 2012 (processo 135/10.1TALSA.C1) e de 26 de Outubro de 2011 (processo 30/10.4TAFVN-A.C1), todos acessíveis através do site www.dgsi.pt., bem como o acórdão da Relação do Porto, de 04/10/2006 (in CJ Ano XXXI, tomo IV, pag 200) No mesmo sentido mesmo sentido se pronuncia também Maia Gonçalves (“Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 17.º edição, página 692, em anotação ao artigo 287.º).

Por outro lado, chamado a apreciar a constitucionalidade do artigo 287.º do Código de Processo Penal perante este entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 636/2011, de 20 de Dezembro de 2011 (publicado no Diário da República, II Série, de 26/11/2012), decidiu:
«Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)».
Neste acórdão, em sede de fundamentação, a dado passo é dito:
«Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à [...] não acusação”, o n.º 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do acto praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo n.º 2 do mesmo preceito.
Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do n.º 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a protecção das garantias de defesa), não é jurídico-constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.
A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afectar os direitos de defesa do arguido, porquanto a peremptoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correcção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspectos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima».

Mas mais, como referem Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.ª edição, tomo II, pág. 140, em anotação ao artigo 283.º “No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação (…). ( sublinhado é nosso).
Assim sendo, o requerimento para a abertura da instrução há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
É que não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução, tendo em conta a indicação constante do requerimento de instrução, como se depreende do disposto no art. 288.º, n.º4, do Código de Processo Penal.
Ou seja, o requerimento de abertura de instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução.
Daí que, se tal requerimento não satisfizer as exigências a que alude a alínea b) do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal (aplicável ex vi do artigo 287º nº 2 do mesmo diploma), e aderindo ao decidido no já mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, conjugado também com o mencionado acórdão do TC nº 636/2011, não haverá lugar a convite ao aperfeiçoamento do requerimento que tenha sido apresentado.

Depois de tecidas estas considerações gerais, vejamos agora o caso dos autos:
No caso em análise, com o requerimento de abertura de instrução (RAI) que supra transcrevemos na parte que ao caso releva, pretendia a assistente que - com a junção que faz de 3 documentos para prova do alegado em 15º, 20º e 21º do RAI, conjugados com os documentos já constantes do inquérito e com os depoimentos prestados também em sede de inquérito – o arguido viesse a ser pronunciado por “um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256°, nº 1, alíneas d) e e), e um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203°, todos do Código Penal”.

Todavia, independentemente de saber se aquando da denúncia a assistente formalizou ou não queixa pelo também invocado crime de furto simples, considerando apenas o que foi alegado no RAI, da forma/modo como foi alegado e o que com o mesmo era visado, é manifesta a falta de razão da recorrente no recurso apresentado.

Concordamos com o que é dito na decisão recorrida. Com efeito, recordemos o que a dado passo desta, é referido expressamente:
Lendo-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente verifica-se que o mesmo, salvo o devido respeito, pouco ou nada diz quanto aos factos em apreço nos autos, limitando-se, no essencial, a avançar as razões da sua discordância (legítimas, certamente) com o despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
Com efeito, a assistente aflora (e muito de leve) a factualidade alegadamente em causa no caso em apreço.
Repare-se que a assistente não faz qualquer referência à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, impondo ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática dos imputados crimes.
Constatamos, assim, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigada, a assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.”

Corresponde à realidade o que é dito.
Com efeito, no essencial, o requerimento de abertura de instrução em causa contém os motivos de discordância da assistente perante o despacho de arquivamento, mas não enumera os factos concretos e objectivos que considera terem sido praticados pelo denunciado (factos esses nus e cruz, reveladores de uma certa realidade) nem, muito menos, situa ou concretiza em que contexto espácio-temporal as, “ao de leve” afloradas condutas do arguido terão sido praticadas. O que por demais se revela no RAI em apreço é que a assistente, criticando o modo de procedimento seguido pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito e desfecho que este veio a ter, limitou-se a tirar conclusões do que, segundo a sua versão, o arguido possa ter feito.
Com efeito, ao longo do RAI não surgem enunciados factos, desde logo a nível objectivo, susceptíveis de configurar o imputado cometimento dos crimes de falsificação de documento e de furto simples.
Relativamente a este último ilícito, a nível objectivo, apenas são enunciados argumentos conclusivos e termos de direito no sentido de “o arguido se [tenha] “apoderado” do mesmo [do veículo], “excedendo assim a sua quota parte na divisão desse bem comum…”, sem que em lado algum desse mesmo requerimento, e no âmbito de um, legalmente exigido, esboço acusatório, sequer, tenha concretizado de que forma o arguido se “apoderou” ou tenha feito seu tal veículo. A isso ainda acresce que o crime de furto pressupõe o carácter alheio (em relação ao agente) da coisa subtraída e que, ao nível subjectivo, o agente tenha conhecimento e consciência de que a coisa subtraída não lhe pertence.
Por outro lado, e sem sequer trazer à colação a total ausência de concretização fáctica para chegar à conclusiva «total intervenção do Arguido nas referidas “transmissões de propriedade” do veículo em questão”» importa também não esquecer que, sendo o também imputado crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º nº 1 d) e e) do Código Penal, um crime necessariamente doloso, não resultam também alegados factos tendentes à imputação dos elementos intelectual e volitivo do dolo – os quais, também, não mereceram atenção da assistente – traduzidos, respectivamente na representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes, bem como na consciência de que esse facto é censurável e na vontade de realização do mesmo. E, a par disso, para o preenchimento de tal tipo de crime, exige-se ainda um específico dolo, traduzido numa particular intenção de praticar o crime que no caso é a intenção do agente causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou até de obter benefício ilegítimo para si ou para outra pessoa ou de facilitar, executar ou encobrir outro crime.
Segundo Helena Isabel Gonçalves Moniz (in “O crime de falsificação de documentos”, Almedina, 1993, pág. 37, nota 25) “O dolo específico, como a própria designação indica, exige, para além da intenção de realização do crime, uma particular intenção aquando da sua realização - o agente tem que ter procedido tendo em vista um certo fim.
Assim sendo, só é punível pelo crime de falsificação de documentos o que agiu com aquele específico dolo”.
É que não existem presunções de dolo e, assim sendo, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir de circunstâncias externas da acção concreta. Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico – penal lesado pela conduta proibida.
Como ensina Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142].
Em idêntico sentido refere o acórdão do TRC de 30.09.2009 [cf. proc. n.º 910/08.7TAVIS.C1] “São elementos subjectivos do crime, com referência ao elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo do ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.
Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)”.
Ou seja, por muito que a recorrente/assistente esgrima em sentido contrário, é incontornável que, no RAI que apresentou, a assistente não deu cumprimento, como lhe competia, à exigência assinalada nas alínea b) do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 287º nº 2 do mesmo diploma legal. Em tal RAI, e salvo o muito devido respeito por opinião contrária, no essencial, como supra dissemos, a assistente limita-se a criticar/analisar a actuação do Ministério Público quer por falta de acuidade ao que no inquérito fora dito especialmente pela testemunha Maria J.) e ao que constava dos documentos juntos durante o inquérito. Todavia, isso não bastava para que tal RAI pudesse ser recebido: na prática, tinha que evidenciar o perfil/projecto de uma acusação para que não “recebesse” logo o despacho recorrido.
Comungamos das palavras expressas pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto, Dr António Pinto Tomás, aquando do parecer que emitiu no âmbito do Processo nº 458/12.5TAMMV.C1 (processo em cujo acórdão o ora relator também foi relator) e que passaremos a transcrever: “o requerimento de abertura de instrução deve configurar, equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada, bem assim deve conter o elemento subjectivo da infracção, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento.”
Sem a narração dos factos que preenchessem a objectividade necessária para o preenchimento dos aventados crimes de furto e de falsificação de documento, acrescida da narração dos elementos que a nível subjectivo complementassem tais tipos legais de crime, não se mostra minimamente perfectibilizada a imputação criminosa e, sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de recebimento do requerimento de instrução.
E se fosse ultrapassada a fase processual em que o requerimento de abertura de instrução podia ter sido rejeitado por falta de alegação de factos (quer do tipo objectivo quer do tipo subjectivo), na fase de instrução restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos do artigo 303º do mesmo diploma. Mas um obstáculo intransponível logo se ergueria com a possível comunicação da alteração (neste caso também de indicação/narração) dos factos.
É que o regime de alteração, seja substancial ou não, sempre pressupõe que os factos que inicialmente constam da acusação/requerimento de instrução ou pronúncia constituam crime. Considerando que o alegado no RAI não configura/preenche os elementos constitutivos de qualquer crime, jamais a mesma poderia ser suprida, sendo que, tal como supra defendemos, na esteira do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005, não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do RAI.
Assim sendo, e sem necessidade de mais considerandos, bem andou o tribunal a quo ao rejeitar o requerimento para abertura da instrução.
Naufraga, pois, a pretensão da recorrente, sendo de manter a decisão recorrida.

III. – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Condena-se a recorrente em 3 (três) UC’s de taxa de justiça (arts. 515º nº 1 b) do Código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado este com a Tabela III anexa a tal Regulamento), sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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(Elaborado e revisto pelo relator, o primeiro signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Guimarães, 2 de Novembro de 2015

(Luís Coimbra)

(Maria Manuela Paupério)