Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2146/13.6TBBCL-A.G1
Relator: EDGAR GOUVEIA VALENTE
Descritores: CHEQUE PRESCRITO
ENDOSSADO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O cheque prescrito endossado não é título executivo
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
1 – Relatório.
Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que a C…, CRL (EXQ) moveu a H… (EXC), veio este, em 10.09.2013, deduzir os presentes embargos de executado, invocando, entre o mais, a prescrição do título executivo – cheque exequendo – nos termos do disposto no artº 52º da Lei Uniforme do Cheque (LUCQ).
A EXQ contestou, alegando para o efeito e em síntese que já no requerimento executivo defendeu que o cheque dado à execução tinha o valor de documento particular, funcionando como quirógrafo da obrigação, constituindo, por isso, título executivo nos termos do disposto no artº 46º, alínea c) do CPC, alegando, também, a relação jurídica subjacente à emissão desse mesmo cheque.
Foi então proferido despacho, onde se decidiu julgar procedentes os embargos de executado, com a consequente extinção da execução que corre por apenso.
Inconformada com tal decisão, a EXQ interpôs recurso de apelação contra a mesma, formulando, a final, as seguintes conclusões (transcrição):
“1.a .. A relação subjacente ao cheque não se limita à relação entre o recorrido e a sociedade "A…, Lda", estendendo-se também à recorrente por efeito do contrato de crédito para descontos pré-datados.
2.a .. Não faria sentido que, sendo a referida sociedade livre de transmitir esse cheque, só por esse facto a recorrente ficasse impedida de reclamar do sacador o valor correspondente.
3.a .. O cheque dado à execução contém, assim, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária do recorrido, valendo por isso como título executivo - vd. al. c) n.º 1 art.º 46.0 CPC.”
Conclui pedindo que se conceda provimento à apelação, revogando-se a sentença proferida e julgando-se improcedentes os embargos.
Foram oferecidas contra-alegações pelo EXC, pugnando o mesmo, a final, pela manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2 – Questão a decidir.
Questão única – Não podendo, em consequência da prescrição do direito de acção cambiária, o cheque valer como título executivo nos termos da LUCH, o portador legítimo do mesmo em virtude de endosso pode ou não fazê-lo valer como mero quirógrafo, alegando para o efeito a relação subjacente no requerimento executivo, nos termos da alínea c) do nº 1 do artº 46º CPC.
3 – Fundamentação.
3.1 – De facto.
Foram dados como provados na decisão recorrida os seguintes factos (transcrição):
“1 - A exequente é portadora de um cheque sacado pelo executado, emitido em 30/04/2004 à ordem de A…, Lda, endossado à exequente e por esta apresentado a pagamento em 05/05/2004, conforme documento junto aos autos principais a fls. 4 v.º, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2 - A execução a que estes autos se encontram apensos deu entrada em juízo 09 de Julho de 2013.
3 - No requerimento executivo a exequente alegou, além do mais: «O executado emitiu a favor da sociedade “A…, Lda ” o seguinte cheque: a.. cheque com o n.º 7563013199, com data de 30 de abril de 2004, no valor de € 8950,00, sacado sobre o C…, balcão de Vila Seca - cfr. doc. n.º 1 junto 2.º O executado entregou esse cheque à referida sociedade, que teve sede no lugar da…, Barcelos, pessoa coletiva n.º…. 3.º Essa sociedade foi declarada insolvente pelo tribunal judicial de Barcelos em 7 de março de 2006, tendo sido encerrada a liquidação em 7 de fevereiro de 2008 - cfr. doc. n.º 2 junto 4.º Essa sociedade dedicava-se ao comércio e importação agro-pecuário, designadamente, à importação e venda de animais (vacas e bovinos) e venda de adubos, milhos, silagem, sementes e máquinas agrícolas, entre outros. 5.º O cheque referido no ponto 1.º destinou-se ao pagamento de animais, produtos e máquinas agrícolas, comprados pelo executado a essa sociedade insolvente. 6.º Essa sociedade procedeu ao depósito desse cheque na conta de depósitos à ordem de que era titular na exequente. 7.º Esse cheque destinava-se a amortizar parte do crédito concedido e disponibilizado pela exequente a essa sociedade, em data anterior e no âmbito de um “crédito para descontos pré-datados” e de um “crédito em conta-corrente”. 8.º Ou seja, a exequente concedeu e disponibilizou, antecipadamente, a essa sociedade um certo montante, o qual seria amortizado com o depósito e desconto do referido cheque do executado. 9.º Deste modo, com o desconto desse cheque a exequente via-se paga, automaticamente, do valor correspondente por ela já antes adiantado a essa sociedade. 10.º Sucede que, o executado comunicou ao C…, banco sacado, que esse cheque enfermava de “vício de vontade”, invocando como tal justa causa para “revogar” a ordem de pagamento do mesmo. 11.º Por esse efeito, em 5 de maio de 2004, esse cheque foi devolvido na compensação, com a menção “revogado justa causa - falta ou vício na formação da vontade” - cfr. verso do cheque junto 12.º Ora, a “falta ou vício de vontade” invocada no ponto 10.º deste requerimento executivo, é falsa, uma vez que foi o próprio executado que emitiu e entregou de livre vontade esse cheque à sociedade A…-. 13.º A comunicação referida no ponto 10.º teve por fim, apenas, impedir que o banco sacado efetuasse o pagamento do cheque, descontando o valor correspondente na conta do executado. 14.º A exequente é alheia à relação entre o executado e a referida sociedade. 15.º É legítima titular do cheque e, por isso, pode reclamar do executado o pagamento do respetivo valor. 16.º Bem como, os juros de mora, à taxa legal, que se venceram e vencerão desde a data de devolução do cheque e até efetivo e integral pagamento do respetivo valor. 17.º No dia de hoje, estão vencidos juros de mora no valor de € 4 922,50. 18.º Assim, nesta data, o crédito da exequente sobre o executado soma € 13 872,50 (treze mil, oitocentos e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos). 19.º A exequente é portador legítimo do cheque junto e, por isso, pode acionar o executado - vd. art.ºs 14.º e 40.º da LUCh 20.º A exequente pode reclamar do executado a importância do cheque e os juros de mora desde a data de vencimento do mesmo - vd. art.º 45.º LUCh 21.º Caso se entenda que a ação da exequente contra o executado, baseada no cheque, se encontra prescrita, o mesmo vale como documento particular assinado pelo devedor de reconhecimento da dívida correspondente - vd. al. c) n.º 1 art.º 46.o CPC e n.º 1 art.º 458.º CC - Ac. TRL de 18.12.1997 in CJ, V, pg. 129, entre outros».”
3.2 – De Direito.
A LUCH atribui força executiva ao cheque quando este seja apresentado a pagamento no prazo de 8 dias, começando a contar-se esse prazo a partir do dia indicado no cheque como data de emissão (artº 29º - I e IV), devendo a acção executiva respectiva ser instaurada no prazo de 6 meses contados do termo do prazo para a sua apresentação, sob pena de prescrição (artº 52º).
Atenta a data do cheque em que se baseia a execução e da respectiva apresentação a pagamento (30.04 e 05.05.2004), bem como a data de instauração desta acção executiva (09.07.2013) e o disposto no citado artº 52º da LUCQ, resulta dos autos que a obrigação cartular emergente dos referidos títulos se encontra prescrita, não podendo legalmente aquele cheque valer como título de crédito, e, assim, não constituindo título executivo nos termos do artº 46º, alínea d) do CPC [1].
É hoje dominante em termos doutrinários e jurisprudenciais a tese de que, “quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221º-1 e 223º-1 do CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (art. 458º-1 do CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva e poder ser impugnada pelo executado.” [2]
Este entendimento não é colocado em crise por qualquer das partes nos presentes autos. A divergência centra-se na possibilidade de, nas aludidas circunstâncias (cheque prescrito e alegação da relação causal no requerimento executivo), também a exequibilidade do cheque poder aproveitar ao portador a quem o mesmo foi endossado, ou seja, não no âmbito das relações imediatas entre o subscritor do cheque (devedor) e o beneficiário inscrito da ordem de pagamento (credor), mas já no âmbito de relações mediatas, entre este último e o portador actual do cheque a quem o mesmo foi endossado.
Entendemos que apenas no domínio das relações imediatas, o cheque, nas aludidas circunstâncias, pode valer como título executivo.
Como se pode ler no Acórdão do STJ de 22.10.2010, nada obsta “a que o cheque seja invocável, no âmbito das relações imediatas, como mero quirógrafo de uma relação obrigacional causal, não sujeita a particular forma legal, justificadora da ordem de pagamento dada pelo executado a favor do exequente, desde que este, no requerimento executivo, tenha alegado os factos constitutivos desse débito causal - não mencionado no próprio cheque dado à execução - nos termos actualmente consentidos, de forma expressa, pelo art. 810º, nº3, al. c) do CPC.” [3]
Com efeito, no caso dos autos, o cheque em causa não foi emitido pelo executado em consequência de qualquer negócio (relação fundamental) por ele celebrado com a exequente, não representando, pois, um documento particular assinado pelo devedor no âmbito de uma relação de que foram sujeitos o credor originário e o devedor originário, e para execução dessa relação fundamental. [4]
Com efeito, devemos distinguir com clareza entre relações cartulares e relações substanciais. Cartularmente, podem ser exigidas obrigações decorrentes da subscrição do cheque e do seu endosso. Substancialmente, podem ser exigidas as obrigações que motivam aqueles actos cartulares, pelo que coexistem, como é óbvio, zonas de sobreposição obrigacionistas cartulares/substanciais.
Invoca a recorrente o teor do Acórdão desta Relação de 17.12.2013 [5], onde se entende que não constitui requisito legal para a exequibilidade do cheque prescrito que exequente e executado se encontrem no âmbito das relações imediatas, uma vez que o mesmo não consta do artº 46º, nº 1, alínea c) do CPC, mais ali se considerando que a ordem de pagamento consubstanciada no cheque configura um reconhecimento unilateral de dívida, nos termos do artº 458º do CC, o que dispensaria o credor de provar a relação fundamental.
Salvo o devido respeito, não subscrevemos este entendimento.
Com efeito, entendemos que, “ao contrário das letras e livranças, que contêm uma promessa de pagamento de determinada quantia pecuniária, a natureza do cheque não importa propriamente um acto de reconhecimento, directo e expresso, de uma dívida do executado no confronto do exequente, mas antes uma ordem de pagamento, dirigida a um banqueiro, em benefício do potencial credor da mobilização de fundos decorrente da emissão e entrada em circulação do cheque; implicam estas considerações que o titular do cheque, desprovido dos requisitos da LU, não beneficiará da presunção contida no art. 458º do CC, apenas convocável quanto àquelas declarações confessórias que, pela sua natureza, importem um reconhecimento unilateral, expresso e directo, de uma dívida no confronto do exequente.” [6]
Porém, no caso dos autos, efectivamente a exequente não é a credora que esteve na base da subscrição do cheque pelo executado. A qualidade de credora apenas lhe advém da operação de endosso: “Só que o endosso, como acto jurídico próprio da relação cartular, não pode ser repristinado quando o título de crédito, designadamente por prescrição do direito, deixou de o ser, passando a simples quirógrafo.” [7]
Caso se entendesse que o cheque prescrito continuaria a ter força executiva quando na posse de terceiros ao negócio causal que motivou a sua subscrição, “a obrigação cartular, apesar de prescrita, continuaria a nortear o direito do credor através do título como título de crédito e não já como documento particular” [8], o que se nos afigura claramente violador do artº 46º, nº 1, alíneas c) e d) do CPC.
Por último, a impossibilidade de integração do cheque prescrito endossado no conceito de título executivo recortado pelo citado artº 46º, nº1, alínea c) do CPC resulta também, quanto a nós, da “diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva, sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinado pelo devedor, que - embora não contenha um expresso e directo reconhecimento da dívida exequenda - indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente [9]; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda.”
Em suma, o cheque prescrito endossado não é título executivo e, como tal, mostra-se normativamente escorada a decisão recorrida.
4 – Dispositivo.
Pelo exposto, os juízes da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar totalmente improcedente o recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com a tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Guimarães, 13 de Março de 2014
Edgar Gouveia Valente
Paulo Duarte Barreto
Filipe Caroço
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[1] Redacção anterior à do nCPC, atento o disposto no artº 6º da Lei 41/2013, de 26.06.
[2] Lebre de Freitas in A Acção Executiva, 2012, Coimbra Editora, 5ª edição, página 62. Em idêntico sentido, Lopes do Rego in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. II, Almedina, 2005, 2ª edição, página 25 e Amâncio Ferreira in Curso de Processo de Execução, Almedina, 2009, 11ª edição, páginas 46 e 160/161. Vide também, igualmente em sentido concordante, Fernando Nunes Ribeiro, “Da exequibilidade do título de crédito no caso de prescrição da obrigação cartular ou

quando não reúna todos os requisitos essenciais exigidos pelas Leis Uniformes”, Trabalho publicado no Boletim da ASJP,
V.ª Série / nº 6 / Abril 2008, página 207 e ss e agora também disponível no site institucional do Tribunal da Relação de Coimbra.
[3] Acórdão proferido no processo 172/08.6TBGRD-A.S1 e disponível, como os demais que vierem a ser citados, em www.dgsi.pt.
[4] Utilizámos, com adaptações, um § constante do ASTJ de 27.11.2007 proferido no processo 07B3685, onde se defende posição concordante.
[5] Proferido no processo 780/13.3TBEPS.G1.
[6] ASTJ referido na nota 3.
[7] Acórdão do STJ de 22.05.2003 proferido no processo 03B1281. Em termos semelhantes, vide o Acórdão do STJ de 19.01.2004 proferido no processo 03A3881.
[8] Acórdão do STJ de 18.01.2001 in CJ, ASTJ, ano IX, tomo I, página 72.
[9] Sublinhado da nossa autoria.