Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4475/15.5T8VCT.G1
Relator: PEDRO ALEXANDRE DAMIÃO E CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PRIVADO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: \UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: “I. Para se apurar da competência material do tribunal para o conhecimento da acção, apenas há que entrar em linha de conta com a causa de pedir e o pedido tal como configurados na petição inicial.
II. À luz da legislação vigente, a jurisdição administrativa é competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público.
III. Já no que concerne às pessoas colectivas de direito privado, essa competência da jurisdição administrativa só surge nos casos em que aquelas entidades privadas actuem no exercício de prerrogativas de poder público ou sujeitas às disposições ou princípios de direito administrativo.
IV. Significa isto que, ao contrário do que hoje sucede com as pessoas colectivas de direito público, a distinção entre actuação de gestão pública e actuação de gestão privada continua a ter relevância, não apenas no plano substantivo, mas também no plano processual, no que respeita à actuação destas entidades privadas para efeitos da sua responsabilização civil.
V. No caso concreto, decorre da configuração que o Autor efectua na petição inicial que a eventual responsabilização da Ré, Concessionária de Auto-Estradas, a título de responsabilidade extracontratual, surge no âmbito das acções ou omissões atinentes ao exercício por parte desta de prerrogativas de poder público que lhe foram concedidas no âmbito do quadro legal e contratual jurídico-administrativo mencionado pelo próprio Autor na petição inicial (para efeitos de construção de uma obra pública que é integrada no domínio público), pelo que, nos termos dos arts. 4º, nº 1, al. h) do ETAF e 1º, nº 5 da Lei 67/2007, de 31/12 (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas), a pretensão deduzida pelo Autor consubstancia uma questão de natureza jurídico-administrativa, a ser dirimida na respectiva jurisdição”
Decisão Texto Integral: Comarca de Viana do Castelo- Barcelos- juízo central cível – (J2)

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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrentes: AA e esposa, BB;

Recorrida: Euroscut Norte, Sociedade Concessionária da Scut do Norte Litoral, S.A.

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AA e esposa, BB propuseram a presente acção contra Euroscut Norte, Sociedade Concessionária da Scut do Norte Litoral, S.A., pedindo a condenação da mesma a pagar-lhes uma indemnização de 60.000,00 €, a título de responsabilidade civil extracontratual.
A Ré apresentou defesa por excepção invocando a incompetência absoluta do Tribunal para conhecer da acção.
Alega a mesma que celebrou com o Estado Português, em 17 de Setembro de 2001, um contrato de concessão de obras públicas, com vista à concessão da concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação, em regime de portagem sem cobrança aos utentes, de determinados lanços de auto-estrada no Norte Litoral.
A Concessionária, ora Ré, foi, então, designada como entidade a quem devia ser atribuída a Concessão, através do despacho conjunto do Ministro das Finanças e do Secretário de Estado das Obras Públicas, de 3 de Março de 2001.
Através do Decreto-Lei n." 23412001, de 28 de Agosto, foram aprovadas as Bases da Concessão. Posteriormente, através da Resolução do Conselho de Ministros n." 39-C/2010, foi "( ... ) aprovada a minuta do contrato de alteração ao contrato de concessão da concepção, projecto, construção, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados designada por Norte Litoral em anexo à presente resolução, da qual faz parte integrante, a celebrar entre o Estado Português, representado pelos Ministros de Estado e das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, com a faculdade de delegação, e a Euroscut Norte - Sociedade Concessionária da SCUT Norte Litoral, S. A ( ... )".
No âmbito do contrato administrativo em apreço, a Concessionária, ora Ré, tinha como obrigação a condução e controlo dos processos expropriativos necessários à execução do contrato, sendo, para o efeito, investida dos necessários poderes de autoridade por via do contrato (cfr. Bases XXII e XXIII).
Diz ainda a Ré que não sofre contestação o facto de as normais, legais e contratuais atribuírem poderes à Concessionária para, entre outros, conduzir os processos de expropriação necessários à execução da obra pública concessionada. O que, aliás, resulta como possibilidade conatural a tais contratos, assim prevista no Código dos Contratos Públicos:
"( ... ) Artigo 409º - Exercício de poderes e prerrogativas de autoridade
1 - As entidades adjudicantes podem conceder a execução ou a concepção e execução de obras públicas ou a gestão de serviços públicos.
2 - Mediante estipulação contratual, o concessionário pode exercer os seguintes poderes e prerrogativas de autoridade:
a) Expropriação por utilidade pública;
b) Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público;
c) Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável à utilização do domínio público, da ocupação ou do exercício de qualquer actividade nos terrenos, edificações e outras infra-estruturas que lhe estejam afectas. ( ... )".
Significa isto, segundo a Ré, que a responsabilização da Concessionária por acções ou omissões no âmbito do exercício de tais prerrogativas, exercidas no âmbito do quadro legal e contratual jurídico-administrativo acima mencionado (para efeitos de construção de uma obra pública que é integrada no domínio público), consubstancia uma questão de natureza jurídico-administrativa, a ser dirimida na respectiva jurisdição.
Com efeito, diz a Ré, é perfeitamente identificável o ius imperii e, por outro lado, a actuação no âmbito de deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público.
Entende a Ré que é facilmente subsumível a questão à tipificação presente no artigo 4.°, nº 1, alínea i) ou h) do ETAF, consoante seja a versão de 2002 ou de 2015.
Sendo que, em coerência, encontramos no nosso ordenamento jurídico a Lei n." 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n." 3112008, de 17 de Julho, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas ("RRCEE").
No que ao caso interessa, refere a Ré, devemos atentar no artigo 1º, n." 5 do RRCEE, onde se dispõe o seguinte: "( ... ) As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sej am reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. ( ... )".
Termina a Ré dizendo que deve ser julgada procedente, por provada, a excepção de incompetência absoluta, por ser o caso da competência da jurisdição administrativa.
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Na sequência, o Tribunal de 1ª Instância veio pronunciar-se sobre a excepção dilatória invocada, tendo concluído com seguinte decisão:
“ … Nos termos do disposto no art. 99° do CPC, verificada a incompetência absoluta da instância central cível, absolve-se a Ré da instância (arts. 576° n° 2, 577° aI. a), 278° n° 1 aI. a), todos do CPC) …”.
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É justamente desta decisão que o Autor/Recorrente veio interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“Em conclusão:
1.º incontroverso que a incompetência absoluta de um tribunal, nomeadamente no que respeita à matéria, se pode encontrar no modo como o objecto da respectiva acção judicial nos é exposta, através da respectiva causa de pedir e pedido.
2.ºO disposto no art.º 211.º, n.º 1 da CRP, prescreve que: -“Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.” E o ponto 3 do mesmo comando, prescreve: -“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Por sua vez
3.ºNos termos do art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), na redacção actual, é estatuído que são cometidos aos Tribunais Administrativos a apreciação e resolução dos conflitos que contendam, e nomeadamente, com a fiscalização da legalidade das normas jurisdicionais e demais actos jurídicos, ainda que praticados por agentes privados, maxime as concessionárias dos Poderes Administrativos.
4.ºO objecto da proposta acção sub judice, e quer no que se reporta à parcela de terreno sobrante S1, e objectos nesta contidos, quer no que tange à parcela sobrante S2 e sua inerente transformação em zona non aedificandi, consiste na fixação do justo valor indemnizatório a atribuir aos ora recorrentes pela sofrida expropriação.
Assim
5.º As referidas, parcela sobrante S1 e objectos nela contidos e a parcela sobrante S2, resultaram do processo expropriativo n.º 431/06.2TBVCT do então 2.º Juízo Cível da Comarca de viana do Castelo.
Na verdade
6.ºA ré, Scut Norte Litoral, S.A., na qualidade de concessionária da Administração do Estado, procedeu à expropriação da parcela de terreno n.º 41, parte integrante de um prédio dos Recorrentes, para sobre ela fazer decorrer a auto-estrada A28, e assim satisfazer um relevante Serviço Público.
Daí que
7.ºSendo pelo objecto da acção, configurado pela respectiva causa de pedir e pedido, através dos seus factos essenciais, que se classifica a jurisdição dos tribunais pelos quais a acção deve tramitar e, por isso, encontrando-nos no âmbito de uma relação jurídica de jurisdição administrativa, a acção sub judice deveria decorrer pelos Tribunais Administrativos.
8.ºSó que sendo forçosamente de conceber que, quer o Processo Expropriativo, quer o Processo Comum por indemnização extracontratual, que com aquele se conexiona, são regidos por normas e institutos de Jurisdição Cível e de Jurisdição Administrativa;
9.ºNecessariamente que haveremos de classificar e separar as normas e institutos jurídicos que, por um lado, presidem a tais Processos Expropriativos e, pelo outro, aos Processos Comuns com aqueles conexionados.
Assim
10.ºPorque da primeira fase jurisdicional, constando do processo expropriativo, como constam, as normas e instituto jurídicos, tais como Declaração de Utilidade Pública (DUP), tomada de posse administrativa e a respectiva Vistoria Ad Perpetuam Rei Memoriam, necessariamente que tais normas e institutos apenas se confinam ao domínio da relação Jurisdição Administrativa, Vide art.ºs, e nomeadamente, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º e de 17.º a 21.º do Código das Expropriações.
11.ºA segunda fase jurisdicional, do dito processo expropriativo, sendo por natureza litigiosa, e porque tendo por objecto a fixação do valor a pagar aos expropriados pelo objecto das respectivas expropriações, decorre, necessariamente, pela Jurisdição do Tribunal Judicial.
12.ºCabem nesta segunda fase processual, e nomeadamente, a arbitragem do objecto das expropriações, representada pelos art.ºs 37.º e 42.º do Código das Expropriação, a interposição dos recursos jurídicos no caso da não-aceitação dos valores indemnizatórios pelos bens afectados. De que assim sucede, vide o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 19 de Junho de 2014, n.º 256, Tomo II, ano XXII, sumariado em Col. Jur., maxime págs. 37.
13.º Efectivamente, desde tempos recuados, e nomeadamente da Lei de 23 de Julho de 1850, passando pelo Dec-lei 129/84 de 27 de Abril, sempre os Tribunais Comuns chamaram a si a resolução dos conflitos inerentes à fixação do valor dos bens imóveis a expropriar, e sempre que tais processos comuns se conexionassem com processos expropriativos em que as partes são os particulares e os Serviços Públicos da Administração Estadal.
Nestes referenciados termos, vide art.º 4.º, n.º 1, alínea f) do Dec-lei supra referenciado, onde vem, prescrito: -“Estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto”, (n.º 1 do citado art.º 4.º): -“Questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público”;
14.ºE também, pela voz autorizada do Prof. Alves Correia, in Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, 1982, pág. 154/155, tendo em vista a incontornável defesa da justa indemnização, pelo objecto das expropriações por utilidade pública, a pagar aos respectivos expropriados, veio ensinar que as respectivas acções por responsabilidade civil extracontratual, deviam decorrer nos respectivos processos comuns pelos Tribunais Judiciais. Neste sentido, vide o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 746/96 de 29 de Maio, deste referido ano, inédito, e na doutrina supra citada, o Prof. Alves Correia, Ob. citada, a propósito de Aspectos Históricos do Conceito de Expropriação.

15.ºConcludentemente, e tal como se poderá verificar a págs. 38, Tomo II, n.º 256, no Ac. do Tribunal dos Conflitos – e que nestas alegações vimos seguindo de perto: -“Situam-se, pois, no âmbito da competência material da ordem dos tribunais judicias as acções que (…) tem como objecto o arbitramento da justa indemnização pela oneração do seu direito, determinante da desvalorização do bem pela constituição lícita de uma servidão administrativa por acto de entidade concessionária de serviço público.”
16.ºAssim, Senhores Juízes Venerandos Desembargadores, se até ao presente comentamos o Ac. do Tribunal dos Conflitos, de 19 de Junho de 2014, supra citado, tomando-o como exemplo a seguir no que concerne à opção pelos Tribunais Comuns na resolução dos conflitos derivados da fixação do valor a pagar aos expropriados, nos casos de expropriação por utilidade pública, doravante comentaremos o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de Fevereiro de 2008, descrito in http://www.dgsi.pt e, similarmente ao supra citado acórdão do Tribunal dos Conflitos, concluiremos caírem no âmbito da jurisdição cível as acções comuns conexionadas com o processo expropriativo.
17.ºDaí que se alcance em ambos os citados acórdãos, uma absoluta concordância nas partes fulcrais que presidem às acções comuns de responsabilidade civil extracontratual, quando conexionadas com processos expropriativos para que tais acções comuns caiam na jurisdição dos tribunais cíveis!...
Efectivamente
18.ºEm ambos os citados Acórdãos se doutrina a existência de duas fases jurisdicionais nos processo expropriativos e, naturalmente, nas acções comuns conexionadas com estes conexionadas, e é feito corresponder a uma, à 1.ª, a jurisdição administrativa, à outra, a 2.ª, a jurisdição cível e, do mesmo passo, são integradas em cada uma destas duas fases, os institutos e diligências parcelares que lhes correspondem, e tudo nos termos das precedentes conclusões n.ºs 10.ª, 11.ª e 12.ª. Vide págs. 6 do referenciado Ac. do STA e pontos 8 e 9 das alegações.
19.º Assim, se em ambos os citados Acórdãos se concluí pela existência de duas fases jurisdicionais e das relações jurídicas que lhes corresponde, (à 1.ª, a relação jurídica administrativa e à 2.ª, a relação jurídica dos Tribunais Comuns), também é prescrito nesses mesmos dois Acórdãos, e em termos similares, que a justa indemnização pela ablação ou afectação dos bens aos particulares expropriados, pelas concessionárias ao Serviço dos Poderes Públicos, só se consegue através dos Tribunais Comuns. Vide pág. 37 do sempre referenciado Ac. de 19 de Junho de 2014: -“-“A composição desse conflito (…) deverá ser, nessa perspectiva, da competência dos tribunais judiciais, na medida em que estará em causa a determinação do montante da justa indemnização pelo sacrifício do direito de propriedade do particular e é vedada à jurisdição administrativa a competência para dirimir litígios relativos a direitos reais de natureza privada [artigo 4º, nº1, alínea f), do ETAF, na versão do Dec-Lei nº129/84, de 27 de Abril].” Vide ainda pontos 10 e 11 das alegações.
20.ºAinda na convergência das prescrições em ambos os acórdãos em citação, no sentido de serem os Tribunais Comuns a dirimirem os conflitos ocorridos na fixação do montante indemnizatório, pese embora se considerar ser a jurisdição administrativa a competente para a atribuição das indemnizações, pela imposição dos sacrifícios, por razões de interesse público, esta posição doutrinal, considerada de carácter geral, foi, no entanto, derrogada pelas normas especiais, que presidem ao Código das expropriações e demais Diplomas Legais. Vide págs. 8 do citado Ac. do STA.
21.ºE à mesma conclusão – de que as normas do regime geral foram derrogadas pelas normas especiais -, chegou o Tribunal dos Conflitos, e tal como o previne o citado Acórdão de 19 de Junho de 2014, a págs. 36, Tomo II:-“… a resolução cabal da questão da competência suscitada nos presentes autos exige ainda que se proceda a uma segunda ordem de ponderações, destinadas a apurar se o critério que rege a determinação da competência material não estará abrangido por regime especial, não derrogado pelas normas gerais, atrás referenciadas, e que a situe antes no domínio das competências materiais dos tribunais judiciais…”(os sublinhados são nossos)
22.ºComo conclusiva demonstração de que as acções comuns de responsabilidade civil extracontratual, quando conexionadas com processos expropriativos e, na sua causa de pedir entra a fixação do valor dos bens expropriados em termos de ser conseguida uma justa indemnização, tais acções comuns são tramitadas nos Tribunais Comuns, foram consequentemente referenciados nos dois supra citados acórdãos (do Tribunal dos Conflitos de 19/6/2014, publicado in http://www.dgsi.pt/jcon, e do Supremo Tribunal Administrativo de 14/2/2008, in http://www.dgsi.pt/jsta!...
23.º Para além de decorrer da Lei (Código das Expropriações e demais Diplomas com este conexos), serem os Tribunais Comuns a dirimirem os litígios objectivados nas acções comuns de responsabilidade civil extracontratual, logo que estas se conexionem com os processos expropriativos por Utilidade Pública, do decurso de tais acções comuns pelos Tribunais Cíveis, resultam relevantes benefícios, traduzidos em mais celeridade processual e num tipo de instrução probatória mais abrangente. Vide ponto 14 das alegações.
24.ºDecerto que – e tal como a págs. 3 das alegações o enunciamos -, se o que se pede na acção sub judice é uma justa indemnização pela total desvalorização da parcela de terreno sobrante S1 e objectos nesta contidos e pela depreciação da parcela sobrante S2 pela sua transformação em zona non aedificandi, (parcelas sobrantes do prédio expropriado aos AA.), então, e tal como se vem argumentando, não existe qualquer incompetência absoluta dos Tribunais Cíveis para que a presente acção não possa continuar tramitando nestes mesmos Tribunais, e até à respectiva decisão final.
25.ºDe que assim vem sendo decidido, (no sentido de que pese embora serem os tribunais administrativos onde se encontra a sede competente para a atribuição das indemnizações resultantes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público), mas porque só genericamente tal acontece, as respectivas normas gerais são derrogadas pelas normas especiais, resultantes da Lei especial (Código das Expropriações e demais Diplomas Legais com este conexionados), passemos à transcrição da págs. 8 do sempre citado Ac. do STA (http://www.dgsi.pt), onde Mário Aroso de almeida, e Carlos Cadinho, in 2005, págs. 180/181, previnem: -“…tanto do art.º n.º 1 do ETAF, como do art.º 37.º, resulta, portanto que a jurisdição administrativa é a sede naturalmente competente para atribuir as indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público. E esta é a regra que o ETAF e o CPTA instituem. Esta regra é, no entanto, derrogada por disposições especiais como a do Código das Expropriações, que seguindo de resto uma velha tradição, confere aos Tribunais Judiciais a competência para atribuir as indemnizações devidas por expropriações.”
26.ºE, para concluirmos com a doutrinação do citado Prof. Mário Aroso, a preceito prevenida in Novo Regime do Processo dos Tribunais Administrativos, Anotado, Almedina, aqui deixamos a seguinte transcrição: -“Se ou enquanto o Código das Expropriações não for revisto (ou substituído), num sentido que altere a solução tradicional, o sector das indemnizações por expropriação ficará, assim, excluído do âmbito de aplicação do art.º 37.º, n.º 2, g), continuando a inscrever-se no âmbito de competências dos tribunais judiciais.”(os sublinhados são nossos)
27.ºE também o Supremo Tribunal de Justiça, na sua posição de uma das três mais elevadas Instâncias jurisdicionais – e tal como é apontado no sempre citado Ac. de 19.06.2014 -, tem repetidamente julgado sobre o arbitramento da justa indemnização, devida pelos danos decorrentes da constituição de servidões administrativas, sem pôr em causa, para tal, a competência dos tribunais judiciais.
28.ºA sentença em impugnação, ao decidir não serem os Tribunais Cíveis os competentes para dirimir o litígio exposto na acção sub judice, haveria de violar, e nomeadamente, o art.º 8.º, n.ºs 1 e 3 do C. das Expropriações, bem como, o art.º 9.º do Código Civil, no espírito dos seguintes art.ºs, 38.º, n.º 3, 45.º, 46.º, n.º 2, 51.º, n.º 3, 71.º, n.ºs 1 e 4 todos do Código das Expropriações, o art.º 1308.º do Código Civil e o art.º 62.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, e sempre com o suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso encontrar provimento nesse Venerando Tribunal e, em consequência, ser decidido ter o Tribunal da Comarca a competência absoluta em razão da matéria, para o prosseguimento dos autos da proposta acção cível.”
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Foram apresentadas contra-alegações, onde a Recorrida apresentou as seguintes conclusões:
“III – CONCLUSÕES
A) Bem andou a sentença impugnada ao decidir pela verificação da excepção da incompetência material, sendo Injusto e injustificado o ataque desferido pelos ora Recorrente;
B) Com efeito, a configuração da demanda, da lavra dos Recorrentes, não deixa margem para duvidas quanto, por um lado, aos intuitos de obterem ganhos injustificados, após já terem recebido a justa indemnização em sede de expropriação e, ainda, uma outra indemnização, que, convenientemente, esquecem;
C) Como, por outro lado, a pertença do processo na jurisdição administrativa, atenta a actividade em causa e a pretensão efectivamente deduzida;
D) O branqueamento do pedido e causa de pedir apresentados, tentando transvestir o processo num processo de expropriações, quando este já correu os seus termos, não só não responde à questão que levou ao juízo ora impugnado, pois que não estamos perante um processo de expropriação, como é a cabal desmonstração de que, em qualquer jurisdição, os Recorrentes carecem de razão, estando a sua pretensão condenada ao insucesso.
NESTES TERMOS,
E no mais de direito que V. Exas, Venerandos Desembargadores, doutamente, suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, em consequência, a decisão do Tribunal a quo.”
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente apenas coloca a seguinte questão que importa apreciar:
-saber qual o tribunal materialmente competente para decidir o litígio dos autos, se os tribunais comuns, se os tribunais administrativos
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto provada com interesse para a discussão do objecto do recurso:
1. Teor da decisão proferida que constitui o objecto do presente recurso que aqui se dá como reproduzida na íntegra.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Como supra se referiu as questões que importa apreciar e decidir consistem em:
- saber qual o tribunal materialmente competente para decidir o litígio dos autos, se os tribunais comuns, se os tribunais administrativos.
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Como é sabido, a incompetência material do tribunal – incompetência absoluta – constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância (arts. 60º, nº 2, 96º, 97º, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. a), todos do CPC).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo, assim, um dos elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida.
A competência, como se referiu, como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor (pedido e causa de pedir).
Na verdade, para decidir qual das normas corresponde a cada um dos “índices” de competência, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção, isto é, há que atender, apenas, ao modo como o autor delineia o pleito na petição inicial, quer quanto aos elementos objectivos – causa de pedir e pedido –, quer quanto aos elementos subjectivos – identidade dos sujeitos.
Assim, a competência afere-se pelo pedido do autor, sendo uma questão a resolver, unicamente, de acordo com os termos da pretensão do autor (compreendidos, aí, os respectivos fundamentos)(1).
Nesta conformidade, “… o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor.”(2).
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A competência em razão da matéria contende com as diversas espécies de tribunais, comuns ou especiais, estatuindo-se as normas delimitadoras da jurisdição desses tribunais de acordo com a matéria ou o objecto do litígio.
Importa verificar quais as regras processuais aplicáveis ao caso concreto.
O art. 64º do CPC preceitua que “… são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional… “.
Do mesmo modo, o art. 144, nº 1, da LOSJ, prescreve que “ … aos Tribunais administrativos… compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas…” .
Sobre a competência dos tribunais administrativos rege o art. 4.º do seu estatuto (ETAF/ Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na versão então em vigor, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro que entrou em vigor 60 dias depois da publicação- sendo que a presente acção deu entrada no Tribunal em 4.12.2015).
Dispõe esta norma- na parte potencialmente aplicável ao caso concreto- no seu nº 1 que:
“1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa …a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas:
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;(…).»
Por sua vez do artigo 1º, nº 5 da Lei 67/2007 de 31/12 (a qual aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas) resulta que:
“5 - As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”.
Significa isto, para o que aqui importa, que a competência dos tribunais administrativos abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual daqueles sujeitos privados, desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Já veremos em que termos.
Antes de entrar nessa questão, importa aqui explanar, de uma forma sintética, o regime aplicável relativamente às questões de responsabilidade civil extracontratual emergentes da conduta de órgãos, funcionários ou agentes das pessoas colectivas de direito público que integrem a Administração Pública (als. f) e g) do nº1 do art. 4º do ETAF)
Ora, “…no que diz respeito aos danos emergentes da actuação da Administração Pública, o preceito não distingue, entretanto, consoante essa actuação seja ou não desenvolvida no exercício da função administrativa, na imediata prossecução de fins públicos, ao abrigo de disposições de direito Administrativo, etc.. Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual emergentes da conduta de órgãos, funcionários ou agentes das pessoas colectivas de direito público que integrem a Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada…”(3).
A este propósito, e no que concerne aos actos praticados por pessoas colectivas de direito público, escreveu-se no acórdão do STJ de 10-4-2008(4) que tal distinção “não releva para determinação da competência jurisdicional, certo que a lei seguiu critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente do direito substantivo aplicável”.
Tem-se entendido que existiu, por banda do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram suas.
Sucede que o regime introduzido pelo ETAF, além de ter atribuído essa competência aos tribunais administrativos relativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas colectivas de direito público (vide alíneas f) e g) do referido art. 4º, nº 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado, foi ainda mais além, ao aplicar essa mesma competência inclusivamente à responsabilidade civil extracontratual dos próprios privados, desde que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (al. h)).
Vejamos, agora, de que modo, essa atribuição de competência, se mostra efectuada, no que concerne à responsabilização extracontratual das pessoas colectivas de direito privado.
Ora, a competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual destas entidades privadas, como se viu, está dependente de, a estas entidades, poder ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Convoca-se aqui, como também já se referiu, a aplicação do citado art. 1º, nº 5 da Lei 67/2007.
Ora, decorre, desta disposição que, mesmo em relação às entidades privadas, o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado aplica-se, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo:
1) “no exercício de prerrogativas de poder público”;
2) ou que sejam “regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Ou seja, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
“ Significa isto que, ao contrário do que hoje sucede com as pessoas colectivas de direito público, a distinção entre actuação de gestão pública e actuação de gestão privada continua a ter relevância, não apenas no plano substantivo, mas também no plano processual, no que respeita à actuação das entidades privadas a que a lei confere a titularidade de prerrogativas de poder público ou cuja actividade é parcialmente regulada por normas de direito administrativo. Com efeito, em relação a essas entidades, só a responsabilidade civil extracontratual emergente das actuações de gestão pública… se rege pelo RRCEE e é, por isso atribuída à competência dos tribunais administrativos…”(5).
Concretiza, assim, este art. 1º nº 5 da Lei 67/2007 (RRCEE), na prática, o princípio delineado no art. 4º nº 1 al. h) do ETAF que, recorde-se, atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público
Indica, pois, aquela disposição, as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos do referido art. 4º nº 1 al. h) do ETAF.
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Aqui chegados, e ainda antes de revertermos para o caso concreto, importa liminarmente afastar todas as considerações que o Recorrente desenvolve em torno do processo de expropriação, pois que, sendo pacífico o que o Recorrente afirma quanto à atribuição da competência aos tribunais comuns para dirimir tal processo, a verdade é que, no caso concreto, a pretensão deduzida pelo Autor, tal como ela foi configurada na petição inicial, não contende com o referido Processo de expropriação(6), nem com a atribuição da “justa indemnização” típica daquele processo (conforme o Recorrente agora, em sede de recurso, parece querer alegar).
Na verdade, a pretensão do Autor desenvolve-se no âmbito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual intentada contra a Ré Euroscut Norte - Sociedade Concessionária da Scut do Norte Litoral, S.A. com vista a obter a condenação desta última no pagamento de indemnização respeitante à desvalorização alegadamente ocorrida em duas parcelas sobrantes e numas benfeitorias, em virtude da construção da A28, ou seja, a pretensão do Autor tem por fundamento alegados factos praticados pela Ré no âmbito da actividade por ela desenvolvida como concessionária de obra pública, regida pelo direito público.
Ora, o acórdão do Tribunal de Conflitos citado pelo Recorrente tem por objecto “… o arbitramento da justa indemnização devida ao proprietário pela oneração do seu direito, determinante da desvalorização do bem pela constituição lícita de uma servidão administrativa por acto de entidade concessionária de serviço público, mesmo que aquela não seja decorrência de um precedente processo expropriativo…” (como se refere no próprio Acórdão do Tribunal de Conflitos), situação que não contende (nem é análoga) com a configurada pelo próprio Autor na petição inicial.
Nessa medida, todas as considerações desenvolvidas pelo Recorrente (e a Jurisprudência e Doutrina citadas) não têm aplicação ao caso concreto.
Concorda-se, aliás, com o que a Recorrida refere quanto a este ponto, quando conclui que: “Em suma, a configuração dos Recorrentes, do seu pedido e causa de pedir, não quadra, nem podia, com a alegação ora apresentada, pois que… de duas, uma: ou está em causa a justa indemnização e essa, de facto, deve ser atribuída num processo que corre termos nos Tribunais Comuns, o que deve fazer fundar o presente litígio, porque esse processo é o processo de expropriação, que já teve lugar e onde, com transito em julgado já foi arbitrada a justa indemnização, ou está em causa actividade que não é indemnizável no processo expropriativo, mas que pode ser considerada em acções de responsabilidade civil extracontratual (parecendo ser esta a configuração da demanda feita pelos Recorrentes)…”.
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Aqui chegados, e feitas estas distinções, importa aplicar o identificado critério de competência ao caso concreto, tendo em conta, no entanto, a ideia já referida de que essa aplicação deve ser efectuada em função dos termos em que o autor formula a sua pretensão na petição inicial.
Na verdade, conforme já se referiu, para se decidir qual das normas corresponde a cada um dos “índices” de competência, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção, isto é, há que atender, apenas, ao modo como o autor delineou o pleito na petição inicial (e não no Recurso), quer quanto aos elementos objectivos – causa de pedir e pedido –, quer quanto aos elementos subjectivos – identidade dos sujeitos.
Ou seja, a competência afere-se pelo pedido do autor, sendo uma questão a resolver, unicamente, de acordo com os termos da pretensão do autor (compreendidos, aí, os respectivos fundamentos)
Ora, não podem existir dúvidas que, no caso concreto, o fundamento da presente acção é a imputação à Ré de factos que consubstanciam a sua responsabilização, a título de responsabilidade civil extracontratual.
É o Autor que expressamente afirma essa configuração na petição inicial (invocando expressamente os arts. 483º, 487º, 561º e 563º do CC).
Além disso, esclarece o Autor que: “ averiguado que está não constituírem os danos (por si alegados como fundamento da indemnização) resultantes da impossibilidade de acesso à parcela sobrante SI e benfeitorias, nela existentes, em danos directamente resultantes do simples acto administrativo da tomada de posse do objecto da expropriação …mas sim e apenas que tais danos ou prejuízos só se constituem em actos subsequentes e resultantes das obras de construção da A28” (danos esses que não foram dirimidos no processo de expropriação, conclui mais à frente- v. arts. 112 a 116 da petição inicial)
Por outro lado, pretendendo, como se vê das suas próprias alegações, o A./Recorrente ser ressarcido com vista a receber uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da Ré, pela alegada prática de factos ilícitos na qualidade de concessionária da SCUT respectiva, tem que se concluir que a sua eventual responsabilização, tendo em conta o atrás explicitado, pode inserir-se no âmbito de aplicação do art.° 1°, nº 5, da Lei 67/2007, de 31/12.
Na verdade, decorre da configuração que o Autor efectua na petição inicial que essa eventual responsabilização da Concessionária Ré surge no âmbito das acções ou omissões atinentes ao exercício por parte desta de prerrogativas de poder público, que lhe foram concedidas no âmbito do quadro legal e contratual jurídico-administrativo(7), mencionado pelo próprio Autor na petição inicial (para efeitos de construção de uma obra pública que é integrada no domínio público), pelo que, nos termos dos dispositivos legais citados, a pretensão deduzida pelo Autor consubstancia uma questão de natureza jurídico-administrativa, a ser dirimida na respectiva jurisdição.
Com efeito, nos presentes autos, como se referiu, estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual intentada pelo Autor contra a Ré Euroscut Norte - Sociedade Concessionária da Scut do Norte Litoral, S.A. com vista a obter o pagamento de indemnização respeitante à desvalorização alegadamente ocorrida em duas parcelas sobrantes e numas benfeitorias, em virtude da construção da A28, ou seja, a pretensão do Autor tem por fundamento alegados factos praticados pela Ré – “subsequentes (à expropriação) e resultantes das obras de construção da A 28”- no âmbito da actividade por ela desenvolvida como concessionária de obra pública, regida pelo direito público.
Nesta medida, julga-se que, dentro da ordem de ideias explanadas, surge, como uma evidência, que a competência em razão da matéria para apreciação da pretensão indemnizatória é, tal como bem decidiu o Tribunal Recorrido, dos tribunais administrativos(8).
Assim, tendo presente o disposto nos normativos legais supra citados, e ainda o objecto desta acção, delineado pelo pedido e causa de pedir elencados pelo Autor, dúvidas não restam de que a pretensão formulada pelo Autor se inclui na previsão legal da al. h) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.
E isto porque os alegados factos (e danos), na configuração dada à acção pelo Autor na petição inicial, terão sido alegadamente praticados pela Ré no exercício de prerrogativas de direito público, o que, como decorre do exposto, permite tornar aplicável a entidades privadas como a Ré o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado (cfr. art. 1º, nº 5 da Lei 67/2007, de 31/12)
Nesta conformidade, julga-se que bem andou o Tribunal Recorrido em julgar procedente a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, excepção essa que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição do réu da instância (arts. 60º, nº 2, 64º, 96º, 97º, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al. a), todos do CPC).
Improcede, pois, o Recurso.
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III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente, mantendo-se a decisão Recorrida.
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Fls. 294: Oportunamente, deverá ser ponderado, pelo Tribunal Recorrido, o requerimento apresentado pelo Autor (cfr. art. 99º do CPC).

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Custas da apelação pelo Recorrente (artigo 527.º nº 1 do CPC).
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Guimarães, 30 de Março de 2017


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(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)

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(Dra. Maria João Marques Pinto Matos)

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(Dra. Elisabete de Jesus Santos de Oliveira Valente)



1. Alberto dos Reis, «Comentário ao Código de Processo Civil», vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, in “ Noções Elementares de Processo Civil “, pág. 91, e Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 104;
2. v. ac. do STJ, de 22.10.2015 (Relator: Tomé Gomes), in dgsi.pt;
3. Mário Aroso de Almeida, in “Manual de processo administrativo”, pág. 171;
4. (relator: Salvador da Costa), in dgsi.pt; no mesmo sentido, acórdão do STJ de 12-2-2007 (relator: Salvador da Costa), in dgsi.pt cujo sumário é o seguinte: Este entendimento encontrou igualmente acolhimento no onde se afirmou, em sumário, que “1- O âmbito de jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo direito público ou pelo direito privado. 2. Os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa”;
5. Mário Aroso de Almeida, in “Manual de processo administrativo”, pág. 172; no mesmo sentido, v. o ac da RG de 22.9.2016 (relator: Isabel Silva), in dgsi.pt em que o presente Relator interveio como Adjunto.
6. Refira-se que decorre do processo que o processo de expropriação já correu os seus termos, ficando concluído, após os recursos pertinentes, com a atribuição da justa indemnização, na jurisdição civil.
7. Cfr. art. Artigo 409.º do Código dos Contratos Públicos “ - Exercício de poderes e prerrogativas de autoridade: 1 - As entidades adjudicantes podem conceder a execução ou a concepção e execução de obras públicas ou a gestão de serviços públicos. 2 - Mediante estipulação contratual, o concessionário pode exercer os seguintes poderes e prerrogativas de autoridade: a) Expropriação por utilidade pública; b) Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público; c) Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável à utilização do domínio público, da ocupação ou do exercício de qualquer actividade nos terrenos, edificações e outras infra-estruturas que lhe estejam afectas. (…)”.
8. V. entre outros, o ac. do Tribunal dos Conflitos de 25.3.2015 (relator: Teresa Sousa), in dgsi.pt onde se refere: “: I. A concessão de serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa e por essa circunstância adquiram intrinsecamente natureza de actos privados a serem regulados pelo direito privado. II. Apesar de ser uma sociedade anónima, a lei atribuiu á Concessionária, no contrato de concessão aprovado pelo DL n.° 86/2008, de 28/5, poderes, prerrogativas e deveres de autoridade típicos dos atribuídos ao Estado, que representa. III. Assim, a sua eventual responsabilização por actos ou omissões dessa sua actividade insere-se no quadro de aplicação da norma do art. 1.º, n.° 5, da Lei n.° 67/2007, e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para conhecer do litígio, nos termos do disposto no art. 4.º, n.° 1, alínea i), do ETAF.