Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
103/13.1TCGMR.G1
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: SEGURO DE VIDA
PRÉMIO DE SEGURO
FALTA DE PAGAMENTO
ABUSO DE DIREITO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Não é abusivo o exercício do direito de ação do A. que reclama o pagamento do capital do seguro contratado, não obstante ter deixado de, na vigência do contrato, pagar os prémios de seguro devidos, sem que a seguradora tenha resolvido o mesmo.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

…– COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., Ré nos autos de ação declarativa com processo ordinário, à margem melhor identificados em que é autor J…, notificada da sentença final proferida nestes autos, mas com a mesma não se podendo conformar, vem dessa sentença interpor recurso.
Pede que se profira Acórdão que, revogando a sentença recorrida, declare a ação improcedente, por não provada, e a ré, aqui recorrida, completa e integralmente absolvida dos pedidos que o autor contra si formulou.
Funda-se nas seguintes conclusões:
Primeira: O Autor, ao intentar a presente ação, age em abuso de direito porquanto pretende que os contratos de seguro de vida celebrados com a aqui ré e recorrente sejam por esta cumpridos, e efetuadas por esta recorrida as prestações a que se vinculou nos termos desse contrato, quando igualmente resultou desses contratos, para o Autor e sua falecida esposa, a obrigação do pagamento dos respetivos prémios de seguro, obrigação esta que o autor e sua falecida esposa culposamente não cumpriram pelo relevantemente longo período de 15 meses antes do sinistro/falecimento da esposa do autor.
Segunda: Na verdade, tal comportamento culposo do autor e sua falecida esposa, por se traduzir numa mora continuada e recorrente, injustificada e injustificável, faz com que o exercício do direito por parte do autor exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico, tanto mais que representa, na prática, a exigência do cumprimento por parte da aqui recorrida da sua prestação contratual, quando o autor atuou duma forma completamente omissiva da sua própria contraprestação, nisso ocorrendo um desequilíbrio no campo do contratado, o que legitima a recorrida não cumprir aquilo a que se obrigou, e ilegítimo o exercício do direito que os contratos em causa consagraram ao autor.
Terceira: Por outro lado, o não pagamento atempado e pontual dos prémios dos contratos de seguro em questão, durante 15 meses, e sem que durante todo esse tempo o autor e sua esposa tenham retomado o pagamento devido ou regularizado, total ou parcialmente tal situação de mora a eles imputável, representa mais de uma simples mora, mas antes um incumprimento definitivo, cujos efeito se equivalem à da resolução contratual, designadamente por demonstrarem que o A. e sua esposa “perderam o interesse” – objetivamente avaliado – nos contratos em causa, “voltando costas” aos mesmos, do que tudo resulta que, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, não deveriam ter sido considerados mais válidos e vigentes os mesmos contratos.
Quarta: Deveria, outrossim, de ter sido dado como provado que a aqui ré e recorrente interpelou, por cartas registadas, enviadas para a morada de residência do autor e sua esposa, no sentido do pagamento dos prémios de seguro e sob a cominação de anulação/resolução contratual, nos termos que vêm demonstrados e evidenciados nos documentos juntos com a contestação sob os nº s 4, 5, 6 e 7, uma vez que, tendo tais cartas sido enviadas por aviso
postal registado, tal é suficiente para ficar igualmente demonstrado que as mesmas cartas chegaram ao conhecimento do autor e sua esposa, com a consequente resolução dos contratos em causa.
Quinta: Sem prescindir, sempre deve ser revogada a decisão recorrida na parte em que condenou a ré e aqui recorrente no pagamento ao autor da quantia de € 1.500,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, não só porque, à luz do depoimento da testemunha A…, não foi por este produzida prova inequívoca de que o autor tenha sofrido danos morais relevantes e merecedores da tutela do direito, devendo ser considerados não provados os factos que vieram a propósito a ser dados como provados na decisão recorrida, ou seja, o constante dos pontos 16. e 17. dos correspondentes “Factos Provados”.
Sexta: Ainda que assim não se entenda, o que ficou apenas provado e demonstrado foi que o autor andava preocupado com a recusa do pagamento dos capitais seguros por parte da ré, mas não “angustiado” ou em “sofrimento diário” por causa dessa recusa, sendo que essa preocupação se revelou ser apenas uma contrariedade, um incómodo ou qualquer outro sentimento semelhante que, por não revestirem gravidade relevante, não merecem a tutela do direito, conforme os ditames do nº 1 do artigo 496º do Código Civil.
Sétima: Porém e ainda sem prescindir, acaso se considere que o autor teria, em princípio, o direito de ser indemnizado pela ré e aqui recorrente nos termos decididos pelo Meritíssimo Juiz a quo, o facto de o autor, ao não ter efetuado o pagamento dos prémios do seguro, como lhe competia, sendo essa a razão da recusa por parte da ré e aqui recorrente, concorreu determinante, relevante e exclusivamente para a situação de recusa criada, pelo que a indemnização que em princípio seria devida deve, no entanto, não o ser e antes ser efetivamente excluída, como o determina o nº 1 do artigo 570º do Código Civil.

J… apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Para melhor compreensão, exaramos, seguidamente, um breve resumo dos autos.
J… intentou a presente ação de condenação com processo comum contra COMPANHIA DE SEGUROS…, S.A., alegando que por escritura pública outorgada em 23-07-2001, foi celebrado o contrato de “compra e venda e mútuo com hipoteca”, nos termos do qual a empresa “A…, Lda.” declarou vender ao A. e à mulher, uma fração autónoma. Nessa mesma escritura interveio como terceiro outorgante o Banco…, S.A., na qualidade de mutuante, tendo o A. e a mulher, na qualidade de mutuados, confessado dever aquela instituição bancária a quantia de 8.000.000$00. Já após a incorporação do Banco… na C…, mais precisamente em 11-07-2008, o A. e o cônjuge celebraram outro mútuo com hipoteca, nas mesmas condições do anterior, mas agora pelo valor de 20.000,00 euros. Como consta das cláusulas dos documentos particulares que fazem parte das ditas escrituras dos contratos de mútuo com hipoteca, o A. e a mulher obrigaram-se a contratar um “seguro de vida” associado a cada um dos créditos concedidos pela C…. Para esse efeito, a C… fez o A. e a falecida mulher assinar os respetivos boletins de adesão, os quais deram origem às apólices de seguro da Ré - ramo vida grupo -, com referência às contas dos empréstimos supra indicados, nsº21532020016146 e 00352042003914255. Em ambos os contratos de “seguro vida” celebrados com a aqui R., ficou acordado que o beneficiário do seguro era a C…. (no primeiro o B…., antes da incorporação); ou seja: em caso de morte do A. ou da mulher, era-lhe garantido o recebimento do capital em dívida referente aos ditos contratos de mútuo; Tais contratos de “seguro vida” iniciaram-se com a celebração das escrituras referidas. Acontece que, em 22-07-2012, a mulher do A. veio a falecer, por força de um acidente de viação que sofreu (atropelamento). Apesar de várias vezes instada pelo A., a R. recusou-se a acionar os seguros supra indicados, nomeadamente no que diz respeito ao pagamento do capital em dívida à C…., e à restituição da diferença desse valor que eventualmente o A. tenha a receber. E esse facto tem-lhe causado angústia e sofrimento diários; caso a R. cumprisse a sua obrigação, os processos executivos deixavam de existir, e o A. deixaria de ter esta preocupação diária (problema de poder ficar sem a casa).
Termina peticionando que a R seja condenada a:
1. Reconhecer a validade dos contratos de seguro vida celebrados com o A. e a mulher;
2. Pagar ao A. o capital seguro contratado, nos termos das apólices referidos;
3. Pagar a, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 2.500,00 euros;
4. Pagar ao A. os juros de mora sobre o capital seguro desde a citação, até
integral pagamento;
A R. Seguradora contestou alegando, em síntese, que os seguros em causa já não estavam válidos à data do sinistro por falta de pagamento, resolução essa que foi comunicada ao R.
O A replicou alegando que não teve conhecimento de nenhuma comunicação a por fim aos contratos de seguro.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento e, após, foi proferida sentença que decidiu:
1. Reconhecer a validade dos contratos de seguro celebrados entre A. e a sua falecida mulher e a R. , titulados pelas apólices n.º 5.001.500 e 5.001.202;
2. Condenar a R. a pagar ao mutuante o montante do valor em dívida à data de 22.7.2012.
3. Condenar a R. a pagar ao A. o remanescente da capital seguro, caso o haja, acrescido de juros moratórios às taxas legais e supletivas em vigor desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
4. Condenar a R. a pagar ao A. € 1500,00 a título de compensação acrescido tal valor de juros moratórios às taxas legais e supletivas em vigor desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
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Sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, as conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – O A. Age em abuso de direito?
2ª – Houve incumprimento definitivo, cujos efeitos equivalem à resolução contratual?
3ª – O Tribunal errou no julgamento da matéria de facto?
4ª – O não pagamento por parte do A. concorreu de forma determinante para a situação de recusa, pelo que a indemnização deve ser excluída?
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Razões de lógica processual impõem que comecemos pela questão enunciada em terceiro lugar: o erro de julgamento da matéria de facto.
Este vício vem invocado a dois passos: de um lado, pretende-se que se dê como provado que a R. interpelou, por cartas registadas, enviadas para a morada de residência do A. e sua esposa, no sentido do pagamento dos prémios de seguro e sob a cominação de anulação/resolução contratual; por outro, pretende-se que se considerem não provados os factos constantes dos pontos 16. e 17. dos correspondentes “Factos Provados”.
Aqui invoca-se o depoimento da testemunha A…; ali os documentos 4 a 7 juntos com a contestação.
Os documentos 4 e 5 correspondem a cópias de cartas, com referência a cada uma das apólices em causa, enviadas sob registo simples, para o A., avisando que se procederá à anulação do contrato de seguro se, em 30 dias, os recibos de dívida não estiverem pagos. E os documentos 6 e 7 traduzem cópias de cartas enviadas à C….
Ocorre, porém, que sob o ponto 20, se deu como provado que “Face ao não pagamento atempado dos prémios de seguro a R. em 16.05.2011, enviou ao A. relativamente a cada um dos contratos de seguro (apólices 5001500 e 5001502), cartas registadas para pagamento e cominação de resolução do contrato.”
Donde, não se vê em que é que resida a discordância da Recrte..
É certo, que na sua alegação a mesma vai mais longe, pretendendo que se dê como provada, não só a realização da declaração de resolução, como também a da sua chegada ao respetivo conhecimento ao autor e esposa.
Ora, de um ponto de vista, as conclusões delimitam o objeto do recurso, pelo que não tendo a questão sido levada às mesmas, o respetivo conhecimento está-nos vedado. Por outro lado, jamais o envio sob registo simples daquelas missivas com aquele teor poderia levar à pretendida conclusão.
Questão distinta é o que se pode inferir, por presunção, da prova da matéria constante do ponto 20. Mas, esse é um domínio distinto e adiante nos referiremos ao mesmo.

No que concerne aos pontos 16 e 17 dos factos provados, insurge-se a Recrte. contra a respetiva decisão defendendo que tal matéria deveria ter sido considerada não provada em presença do depoimento proferido pela testemunha acima identificada.
Consta ali que:
16. O não pagamento por parte da R. traz o A. angustiado e com sofrimento diário em virtude de não conseguir liquidar o empréstimo à C…
17. Caso a R. pagasse à C… o A. deixaria de ter essa preocupação diária.
Ouvido o depoimento em causa – e só esse fundamentou a decisão recorrida – entendemos que o mesmo é inconsistente. Na verdade, o que resulta claro deste depoimento é que o A. ficou abalado com a morte da esposa, facto que ainda o perturba. A testemunha, disse que “ele na altura disse que não basta perder a mulher, como agora também não me pagam a casa, não sei das quantas…” Reforçou, após, que o A. ainda hoje não está bem e que vai ao cemitério quase todos os dias. Mais adiante, ainda mencionou que o A “tá sempre a falar nesse assunto”. Porém, o irmão não lhe contou porque é que a Companhia não pagava e também desconhece qual a quantia devida pelo irmão.
Concluímos, assim, pela inconsistência destas declarações para fundamentar aquela matéria, não obstante as insistentes perguntas quer do mandatário, quer mesmo, do Tribunal.
Deste modo, a matéria em causa considera-se não provada, pelo que se excluirá do elenco dos factos provados.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. Por escritura pública outorgada em 23-07-2001, foi celebrado o contrato de “compra e venda e mútuo com hipoteca”, nos termos do qual a empresa “A…, Lda.” declarou vender ao A. e à mulher, pelo preço de onze milhões de escudos, a fração autónoma designada pela letra C, habitação Tipo t-três, no segundo andar a norte/nascente, garagem número dez no rés-do-chão, descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº1384.
2. Nessa mesma escritura interveio como terceiro outorgante o Banco…, S.A., na qualidade de mutuante, tendo o A. e a mulher, na qualidade de mutuados, confessado dever aquela instituição bancária a quantia de 8.000.000$00 – 39.903,83 euros na moeda atual.
3. Dessa escritura pública faz parte integrante o documento particular onde se encontram elencadas as cláusulas contratuais referentes ao contrato de mútuo celebrado entre o A., a mulher, e o dito banco, as quais, por brevidade, se dão por integradas e reproduzidas.
4. Já após a incorporação do Banco… na C…, mais precisamente em 11-07-2008, o A. e o cônjuge celebraram outro mútuo com hipoteca, nas mesmas condições do anterior, mas agora pelo valor de 20.000,00 euros.
5. Como constam das cláusulas dos documentos particulares que fazem parte
das ditas escrituras dos contratos de mútuo com hipoteca, o A. e a mulher obrigaram-se a contratar um “seguro de vida” associado a cada um dos créditos concedidos pela C…
6. Para esse efeito o A. e a falecida mulher assinaram os respetivos boletins de adesão.
7. Em ambos os contratos de “seguro vida” celebrados com a aqui R., ficou acordado que o beneficiário do seguro era a C…. (no primeiro o B…, antes da incorporação);
8. Em caso de morte do A. ou da mulher, era-lhe garantido o recebimento do capital em dívida referente aos ditos contratos de mútuo;
9. Tais contratos de “seguro vida” iniciaram-se com a celebração das escrituras referidas.
10. Acontece que, em 22-07-2012, a mulher do A. veio a falecer, por força de um acidente de viação que sofreu (atropelamento)
11. Para o empréstimo nº 0035204200025826085), vigorava a apólice nº 5.001.500 e respetivas Condições Particulares
12. Para o empréstimo nº 0035204200039142085), vigorava a apólice nº 5.001.202 e respetivas Condições Particulares.
13. Por convenção entre a aqui R., o A. e sua falecida esposa e igualmente a C…, os prémios de seguro eram devidos em vencimentos ou periodicidades mensais.
14. O A. e sua falecida esposa obrigaram-se a pagar tais prémios de seguro por débito na conta de depósitos à ordem, da sua titularidade e com o nº 2042002661930, aberta ou constituída na entidade mutuante C….
15. A R. não pagou qualquer valor à C… ou ao A.
16. (excluído)
17. (excluído)
18. O A. e sua falecida esposa deixaram de pagar os prémios de seguro devidos nos termos contratados a partir dos que se venceram relativamente a Fevereiro de 2010 e meses seguintes.
19. E jamais retomaram posteriormente esse pagamento ou efetuaram, ainda que posterior ou tardiamente, o mesmo pagamento.
20. Face ao não pagamento atempado dos prémios de seguro a R. em 16.05.2011, enviou ao A. relativamente a cada um dos contratos de seguro (apólices 5001500 e 5001502), cartas registadas para pagamento e cominação de resolução do contrato.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Detenhamo-nos, agora, sobre as questões de cariz jurídico, supra enunciadas, a primeira das quais se prende com o abuso de direito por parte do A..
Esta é uma questão nova, nunca abordada no processo. Contudo, sendo o abuso de direito de conhecimento oficioso, passamos a conhecer.
Alega a Recrte. que o Autor, ao intentar a presente ação, age em abuso de direito porquanto pretende que os contratos de seguro de vida celebrados consigo sejam por si cumpridos, e efetuadas por esta recorrida as prestações a que se vinculou nos termos desse contrato, quando igualmente resultou desses contratos, para o Autor e sua falecida esposa, a obrigação do pagamento dos respetivos prémios de seguro, obrigação esta que o autor e sua falecida esposa culposamente não cumpriram pelo relevantemente longo período de 15 meses antes do sinistro/falecimento da esposa do autor.
Conclui, assim, que, tal comportamento culposo do autor e sua falecida esposa, por se traduzir numa mora continuada e recorrente, faz com que o exercício do direito por parte do autor exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico, tanto mais que representa, na prática, a exigência do cumprimento por parte da aqui recorrida da sua prestação contratual, quando o autor atuou duma forma completamente omissiva da sua própria contraprestação, nisso ocorrendo um desequilíbrio no campo do contratado, o que legitima a recorrida a não cumprir e ilegítima o exercício do direito que os contratos em causa consagraram ao autor.
Vejamos!
O A. e a sua falecida mulher celebraram com a R. dois contratos de seguro, nos quais ficou acordado que o beneficiário do seguro era a C… (no primeiro o B…, antes da incorporação). Em caso de morte do A. ou da mulher, era-lhe garantido o recebimento do capital em dívida referente a dois contratos de mútuo também celebrados. Acontece que, em 22-07-2012, a mulher do A. veio a falecer, por força de um acidente de viação que sofreu. Antes, porém, o A. e sua falecida esposa deixaram de pagar os prémios de seguro devidos nos termos contratados a partir dos que se venceram relativamente a Fevereiro de 2010 e meses seguintes, jamais retomando os pagamentos. Face ao não pagamento atempado dos prémios de seguro a R. em 16.05.2011, enviou ao A. relativamente a cada um dos contratos de seguro (apólices 5001500 e 5001502), cartas registadas para pagamento e cominação de resolução do contrato.
Previamente ao abuso de direito propriamente dito, consignamos que, após consulta à página WEB dos CTT, obtivemos a informação de que o registo simples é aquele que é depositado na caixa de correio do destinatário (sem prova de receção pelo próprio ou por outrem).
Trata-se de uma modalidade introduzida no comércio postal que pretendeu fazer face a elevados volumes de correspondência expedida e que não dá garantia de efetivo recebimento por parte do destinatário, apenas garantindo a emissão. Logo, a partir da respetiva emissão, não se pode inferir a receção, como parece pretender a Recrte..
Deste modo, a circunstância de a mesma ter enviado ao A., relativamente a cada um dos contratos de seguro (apólices 5001500 e 5001502), cartas registadas para pagamento e cominação de resolução do contrato, tratando-se, como evidenciam os autos, de registos simples, não é apta a inferir o recebimento por parte dos destinatários de tais cartas e, correspondentemente, não se pode inferir o conhecimento do respetivo conteúdo.
Por outro lado, é certo que o Artº 224º/2 do CC dispõe que é considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
Ocorre, contudo, que caberia à R. provar os factos que enformam esta culpa, designadamente provando o efetivo depósito na caixa postal do destinatário, ato esse que falhou no caso concreto.
Conforme decorre do que se dispõe no Art.º 334º do CC é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé. O instituto do abuso do direito é um meio de que se deve lançar mão para evitar situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da ação, o faz de uma maneira que, objetivamente, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça prevalecente na comunidade.
O abuso de direito traduz-se num exercício anormal de um direito próprio, verificando-se, como se salienta no Ac. do STJ de 15/09/2010, “quando um determinado comportamento, aparentando configurar o exercício de um direito, se traduz, afinal, na não satisfação dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na correspondente negação de interesses sensíveis de terceiros” (disponível www.dgsi.pt, proc.º 254/07.1TTVLG.P1.S1).
Como ali também se diz, recordando jurisprudência anteriormente firmada, “... agir de boa-fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”.
Ora, compulsados os factos em presença nesta ação, não se vê como recorrer a esta figura de forma a neutralizar o direito do Recrdº, porquanto não se evidencia nenhuma situação que permita concluir, sem margem para dúvidas, pela atuação manifestamente desconforme ao instituto da boa-fé ou por algum desequilíbrio no exercício do direito.
É certo que a matéria fática evidencia a falta de pagamento das obrigações contratuais assumidas pelo Recrdº. Mas, em bom rigor, a Recrte. não usou da diligência devida, porquanto, podendo por termo ao contrato, não logrou efetuar os passos correspondentes.
E, tendo a sentença declarado a validade dos contratos de seguro e verificado o evento contratualizado, não se nos configura como anormal o exercício do direito decorrente da vigência de tais contratos, pelo que não resta á R. senão assumir a sua responsabilidade.
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A 2ª questão que enunciámos prende-se com o incumprimento do A., que a R. pretende tratar coimo definitivo e equivalente a resolução contratual.
Esta é, porém, uma questão nova, nunca abordada ao longo do processo.
Como é sabido, os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais (Artº 627º/1 do CPC).
Dito de outra forma, os recursos “são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre” (Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 147).
Assim, “a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões que já tenham sido submetidas ao tribunal de categoria inferior” (António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime, Almedina, 25).
Desta regra, excecionam-se apenas as questões de conhecimento oficioso, o que não é, manifestamente, o caso.
Ora, não tendo a R., ora Recrte., suscitado na 1ª instância a questão que ora nos ocupa, este Tribunal está impedido de conhecer da mesma.
Termos em que não se conhece da questão em apreciação.
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Resta a exclusão da indemnização, elencada como quarta questão.
Esta questão está intimamente conexionada com o arbitramento de indemnização por danos de natureza não patrimonial.
Ora, como se viu a reapreciação da matéria de facto ditou o desaparecimento do elenco dos factos provados da matéria que fundamentava a condenação nesta indemnização.
Logo, a normal consequência da procedência da impugnação de facto, é a revogação da sentença na parte em que, fundando-se em tal matéria, arbitrou a indemnização, o que se decide sem necessidade de outros considerandos.
Assim, fica prejudicado o conhecimento da presente questão.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, modificar a decisão de facto nos termos sobreditos e revogar a sentença no segmento em que condena no pagamento da quantia de 1.500,00€ e juros (ponto 4 do decisório), confirmando-a quanto ao mais.
Custas por ambas as partes na proporção de vencidas.
Notifique.
Guimarães, 10/07/2014
Manuela Fialho
Paulo Barreto
Filipe Caroço