Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
475/15.3T8FAF-A.G1
Relator: ESTELITA MENDONÇA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 44/2001
COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Considerando que o que interessa para efeito da fixação da competência, de acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artº 5º do Regulamento (CE) 44/2001, constituindo a causa de pedir um contrato de compra e venda, não é o lugar do pagamento, nem o lugar em que os bens foram entregues ao transportador, mas o local do destino final dos bens adquiridos pela compradora, é internacionalmente competente Tribunal Francês, por resultar das facturas juntas aos autos pelas partes que o destino da mercadoria é a sede do réu, em França.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção civil do Tribunal da Relação de Guimarães

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Com data de 14/01/2016 foi proferida a seguinte decisão (itálico de nossa autoria para melhor compreensão):
“ (…)
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DESPACHO SANEADOR
Competência internacional
O R. suscita a incompetência dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção, argumentando que são os tribunais franceses os competentes para dirimir o presente litígio.
Para fundamentar a sua tese, alega que decorre do disposto no art.º 59.º do CPC que, em matéria da competência internacional dos tribunais portugueses, prevalece o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, sendo que, nos termos dos art.ºs 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, do Regulamento (CE) 44/2001, são os tribunais franceses os únicos competentes para a presente acção.
O A. respondeu pugnando pela improcedência da suscitada excepção, atento o disposto no art.º 62.º do CPC.
Cumpre apreciar e decidir.
O R. entende que decorre do art.º 59.º do CPC que, em matéria da competência internacional dos tribunais portugueses, prevalece o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais. No caso dos autos, essa competência é, atento o disposto nos art.ºs 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, do Regulamento (CE) 44/2001, dos tribunais franceses.
Afigura-se-nos, contudo, que não assiste razão ao R. porquanto o art.º 59.º do CPC não tem o sentido que dele se pretende retirar.
Estatui o art.º 59.º do CPC o seguinte: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique alguns dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94.º.”
Significa isto, em nosso entender, que o legislador não pretendeu retirar a competência que os art.ºs 62.º e 63.º do CPC atribuem aos tribunais portugueses, mas alargar a respectiva competência de acordo com o estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais.
Assim, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique um dos elementos de conexão previstos nos citados artigos do Cód. Proc. Civil e ainda quando recebam tal competência de regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais.
No caso dos autos, a competência dos tribunais portugueses decorre de forma evidente do elemento de conexão previsto na al. b) do art.º 62.º do CPC, já que o contrato a que se reporta a petição inicial foi celebrado em Portugal e o pagamento dos fornecimentos efectuado também neste país.
Atento o exposto, julgo improcedente a excepção da incompetência internacional suscitada pelo R., considerando competente para tramitar e julgar a acção este tribunal.
Notifique.
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O tribunal é competente em razão da matéria e da hierarquia.-------------
O processo não enferma de nulidades.----------
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão devidamente patrocinadas.-------------
Inexistem quaisquer outras questões de que cumpra conhecer e que obstem ao prosseguimento do processo.----------
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Pedida a palavra pelo ilustre mandatário do R., pelo mesmo foi dito que iria interpor recurso do despacho que julgou improcedente a excepção da incompetência que suscitou.
De imediato, a Mma. Juíza proferiu os seguintes
DESPACHOS
Atento o propósito manifestado pelo R., determino, para salvaguardar o direito das partes a um processo justo e equitativo, que o prazo para aquele interpor recurso do despacho acima proferido apenas comece a correr quando a presente acta for notificada às partes.
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Valor da acção
Fixa-se o valor da acção em € 15 651,67 (quinze mil seiscentos e cinquenta e um euros e sessenta e sete cêntimos) - artigos 306º, nº 1 e nº 2, 299º nº 1, 296º, nº 1, 297º nº 1 e 301º nº 1, todos do NCPC.---
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Depois de debatido o conteúdo dos despachos a que alude o artigo 596º, nº 1 , do CPC, nos termos do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea f), do CPC, passou a Mmª Juíza a proferir, nos termos deste último dispositivo, o seguinte:
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Objecto do litígio
- Decidir do incumprimento do contrato de fornecimento de artigos têxteis, celebrado entre autora e ré, mormente se foi a ré que o incumpriu porque não procedeu ao pagamento do preço, ou se, pelo contrário, foi a autora que incumpriu por haver defeitos nos artigos e por ter ultrapassado os prazos fixados para entrega da encomenda.------
Temas da prova
1 - Apurar em que data deveria a ré efectuar o pagamento do preço dos artigos de vestuário que o autor forneceu.--------
2 - Apurar se o réu procedeu ao pagamento da factura -- FT 1/103.------
3 - Apurar se nos artigos de vestuário fornecidos pela autora, a grelha dos tamanhos e quantidades, visível nas caixas entregues pela autora, não correspondia ao seu conteúdo.----
4 -Apurar quando deveria a autora entregar á ré os artigos de vestuário que forneceu.------
- 5 - Apurar a autora entregou á ré os referidos artigos de vestuário, depois das datas estipuladas, e se tal facto causou prejuízos à ré.------
(…)”

Inconformado com o assim decidido o Réu interpôs recurso terminando com as seguintes CONCLUSÔES:
1 – O Tribunal a quo julgou “improcedente a excepção da incompetência internacional suscitada pelo R., considerando competente para tramitar e julgar a acção este tribunal”, fundamentando que “no caso dos autos, a competência dos tribunais portugueses decorre de forma evidente do elemento de conexão previsto na al. b) do art.º 62.º do CPC, já que o contrato a que se reporta a petição inicial foi celebrado em Portugal e o pagamento dos fornecimentos efectuado também neste país”.
2 – Sucede porém que o Recorrente entende que a invocada excepção da incompetência internacional da Instância Local de Fafe devia ter sido julgada procedente com as devidas e legais consequências.
3 – Mais entende que o despacho recorrido viola o preceituado nos artigos 8.º, n.º 4, da Constituição da República, 249.º, do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, 2.º, 3.º e 5.º, n.º 1 al. a) e b) 1.ª parte, do do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, e 59.º, do Código de Processo Civil.
4 – Nos termos do Art. 8.º, n.º 4, da Constituição da República, a República Portuguesa está vinculada ao primado do Direito da União e resulta do disposto no Art. 249.º, do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que os regulamentos são obrigatórios em todos os seus elementos e directamente aplicáveis em todos os Estados-Membros.
5 – Decorre do Art. 59º, do CPC, que, em matéria de competência internacional dos tribunais portugueses, prevalece o que se encontra estabelecido “em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”.
6 – Sendo o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, que é relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, um regulamento europeu, este diploma prevalece obrigatoriamente sobre o direito interno português, in casu, sobre os artigos 59.º e seguintes do CPC.
7 – Sucede que o Tribunal a quo interpretou o Art. 59.º, do CPC, no sentido em “que o legislador não pretendeu retirar a competência que os art.ºs 62.º e 63.º do CPC atribuem aos tribunais portugueses, mas alargar a respectiva competência de acordo com o estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais. Assim, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique um dos elementos de conexão previstos nos citados artigos do Cód. Proc. Civil e ainda quando recebam tal competência de regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais”.
8 – O Recorrente não pode concordar com tal interpretação que é inconstitucional por violar o disposto no Art. 8.º, n.º 4, da CRP, nem tampouco é este o sentido do preceituado no actual Art. 59.º, do CPC.
9 – Aliás, a primazia do direito comunitário neste domínio mantém-se no Novo Código do Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06, conforme se alcança do seu Art. 59.º. (“Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”).
10 – Este Art. 59.º ressalva desde logo que no âmbito da aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, se salvaguardem as normas constantes de tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente o Estado Português.
11 – Assim e face a tudo quanto supra se expôs, o mencionado Regulamento (CE) 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, é directamente aplicável em Portugal, em matéria civil ou comercial.
12 - Por força do seu Art. 1.º, o Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, “aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição”.
13 – Já o Art. 2.º, n.º 1, do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, consagra como regra, em matéria de competência internacional, a competência dos tribunais do Estado-Membro do domicílio da pessoa demandada.
14 – Por seu turno, o Art. 3.º, n.º 1, do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, prevê a possibilidade de as pessoas com domicílio num Estado-Membro poderem ser demandadas nos tribunais de um Estado-Membro que não seja o do seu domicílio.
15 – O Art. 5.º, do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, prescreve que “uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro: 1 - a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: -no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, - no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados; c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
16 – Nestes termos, a obrigação relevante para efeito de determinação da competência internacional é o lugar de entrega do objecto mediato do contrato de compra e venda celebrado entre o recorrente e a recorrida.
17 – Resulta dos presentes autos que, segundo a Autora, “As mercadorias foram enviadas, transportadas e entregues na sede da R. em França” (Cfr. artigo 7 da petição inicial), o que preenche a previsão da primeira parte da alínea b), do n.º 1, do Art. 5.º, do do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000.
18 – Para além desta alegação por parte da Autora, esta corrobora tal afirmação com as facturas que junta com a petição inicial (“Descarga: V/ Morada”) e os documentos juntos com o requerimento com a Ref.ª 3014243, onde é evidente que a Autora, responsável pela expedição da mercadoria, a terá entregue ao recorrente em França.
19 – Assim e sobre o local onde os bens vendidos foram entregues não existe qualquer discordância entre recorrente e recorrida, antes pelo contrário, ambas estão de acordo em que a entrega dos bens ocorreu em França, já não sucedendo o mesmo quanto ao local em que o contrato foi celebrado e o local dos pagamentos, factos estes que estão controvertidos, pelo que o Tribunal a quo não podia socorrer-se dos mesmos para fundamentar o despacho recorrido.
20 – Por conseguinte e nos termos dos Arts. 2.º, 3.º e 5.º, n.º 1 al. a) e b) 1.ª parte, do do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, a Instância Local de Fafe não é competente para julgar os presentes autos.
22 – “Os Tribunais portugueses não dispõem de competência internacional para os litígios em matéria contratual se, no caso de venda de bens, estes foram, por força do contrato celebrado, entregues noutro Estado” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22.01.2013, disponível in www.dgsi.pt).
23 – Atento todo o exposto e porque é entendimento do recorrente que, provando-se que os bens objecto do contrato de compra e venda foram entregues pela recorrida ao recorrente em França, não se pode concluir que os Tribunais portugueses são competentes para julgar a presente acção, bem pelo contrário.
24 – Deste modo e com o devido respeito, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 8.º, n.º 4, da Constituição da República, 249.º, do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, 2.º, 3.º e 5.º, n.º 1 al. a) e b) 1.ª parte, do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22.12.2000, e 59.º, do Código de Processo Civil.
25 – O Tribunal a quo não podia aplicar aos presentes autos e fundamentar a sua decisão no disposto no Art. 62.º, do CPC.
26 – Em conclusão e uma vez que, como supra se procurou demonstrar, nada existe nos autos, tanto em termos de facto como de direito, que permita atribuir a competência para julgar a presente acção à Instância Local de Fafe - Comarca de Braga, o recorrente entende que se impõe julgar procedente a presente apelação, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se procedente a invocada excepção da incompetência internacional da Instância Local de Fafe – Comarca de Braga, com as devidas e legais consequência.
Atento todo o supra exposto, impõe-se a revogação do despacho proferido, devendo, por conseguinte, ser a apelação julgada procedente, por provada, declarando-se a incompetência internacional da Instância Local de Fafe – Comarca de Braga, com as devidas e legais consequência.
ASSIM SE FAZENDO A INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!

Pela A. foram apresentadas contra-alegações, terminando do seguinte modo:
O douto despacho recorrido fez correcta interpretação das normas legais aplicáveis, e não merece qualquer censura.
E a conexão tanto pode ser real ou pessoal e um outro elemento de conexão muito importante é sem dúvida quando o autor tenha dificuldade apreciável na prepositura da acção no estrangeiro.
Sendo de referir que esta acção tem o valor de €15.651,67 e quanto custaria ao A. propor esta acção em França?
Pelo que nenhuma razão assiste ao recorrente, não havendo dúvidas quanto à competência dos tribunais portugueses.
E, V. Excªs não dando provimento ao presente recurso estão a fazer a costumada JUSTIÇA

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Objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes (artigo 635 do Código de Processo Civil), estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, das conclusões formuladas pelo Apelante resulta que a única questão que é colocada à nossa apreciação é a Competência internacional do tribunal português.
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Vejamos, então.
«A competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras» - Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in ‘Manual de Processo Civil’, 2.ª edição, pág. 198 – devendo aferir-se essa competência face à relação jurídica que se discute na acção, tal como a mesma vem configurada pelo autor.
A referida excepção dilatória deve aferir-se essencialmente, como é natural, face ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor na petição inicial.
Na verdade, a competência é um dos pressupostos processuais positivos relativos ao tribunal e da sua verificação depende o poder de decidir sobre o mérito ou fundo da causa. Ela afere-se pelas normas atributivas de competência para julgar litígios que por, objectiva ou subjectivamente, se conexionarem com ordens jurídicas estrangeiras, se tornam transnacionais.
Como referia A. Varela “Manual de Processo Civil, 2ª edição revista, Coimbra Editora, 1985, página 198.”, “A competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras.”
O artº 59º, do C.P.Civil, dispõe que os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artº 94º (pactos privativo e atributivo de jurisdição), mas isto sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais.
Predomina, na Doutrina e na Jurisprudência, o entendimento de que a competência do tribunal se determina – mais do que a partir da prova dos factos alegados e do seu efeito jurídico – em função do modo como o autor estruturou o seu pedido e a respectiva causa de pedir.
A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe e é a lei processual que fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais (Artºs 37º, nº 2, e 38º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)).
Para Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, página 90) “São vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI (1), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deveriam ser as partes e os termos dessa pretensão. Mesmo quando a lei, não se atendo pura e simplesmente aos termos em que a acção está deduzida, requer a indagação duma circunstância extrínseca (valor ou situação dos bens pleiteados, domicílio do Réu, lugar do contrato ou do facto ilícito, etc) é através desses termos que há-de saber-se qual o ponto a indagar”.
A questão da competência internacional surge quando no pleito se desenham elementos em conexão com outra ordem jurídica, para além da portuguesa.
Nesta matéria, o que está em causa é verificar os limites da jurisdição do Estado Português; definir sobre se, relativamente àquela acção concreta, os tribunais portugueses, no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, assumem o direito e se impõe o dever de exercitar a função jurisdicional (Manuel de Andrade, obra citada, página 88).
As normas de competência internacional servem-se normalmente de alguns elementos de conexão com a ordem jurídica nacional, para atribuição de competência aos tribunais dessa mesma ordem jurídica, para o conhecimento de uma certa acção.
A competência internacional refere-se aos casos que, na perspectiva da ordem jurídica portuguesa, apresentam uma conexão com outras ordens jurídicas e que, por isso, exigem a aplicação das regras da competência internacional.
Deste modo, a competência internacional dos tribunais portugueses é a competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecerem de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresenta, igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.
Nos termos do disposto no art. 8º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
A competência internacional dos tribunais portugueses é determinada ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, Regulamento este que é directamente aplicável a todos os Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (artigos 1.º, 68.º e 76.º e, em Portugal, o artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa) e prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas no Código de Processo Civil.
Este Regulamento estabelece a regra do domicílio como factor de conexão essencialmente relevante para a determinação da competência internacional do tribunal, no sentido de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado – artigo 2.º n.º 1 – ou seja, a regra geral, em matéria de competência internacional, é o foro do domicílio do réu, seja qual for a sua nacionalidade.
Contudo, a regra do domicílio ou sede, como factor de determinação da competência judiciária, não é absoluta, existindo casos em que é possível instaurar a acção nos tribunais de Estado-Membro diverso daquele onde o sujeito passivo esteja domiciliado ou sedeado – por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do Capítulo II (artigo 3.º n.º 1).
Para efeitos do Regulamento em análise, as sociedades comerciais têm domicílio no lugar em que tiverem a sua sede social, a sua administração principal ou o seu estabelecimento principal – artigo 60.º n.º 1 – no caso dos autos, o domicílio do réu (empresa individual) é França.
No que concerne aos critérios especiais de determinação de competência, supra referidos, releva essencialmente, o disposto no artigo 5.º n.º 1 a) do Regulamento, segundo o qual, em matéria contratual, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, estabelecendo a alínea b) desse artigo que o lugar de cumprimento da obrigação será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues e, no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Por último, a alínea c) previne que se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a).
É entendimento corrente e, ao que se sabe – conforme é salientado no Acórdão do STJ de 21/06/2011, in CJ/STJ, ano XIX, Tomo II, pág. 131 -, unânime na doutrina e na jurisprudência que, “subjacente ao critério especial acolhido no artigo 5.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento, esteve a ponderação de que o foro do lugar do cumprimento da obrigação é o mais bem colocado para a condução do processo, bem como aquele com o qual, em geral, o litígio apresenta a conexão mais estreita e que, com o objectivo de limitar divergências associadas ao recurso à aplicação das regras de direito de conflitos do Estado do foro, na referida alínea b) se “estabeleceu um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação” nas concretas situações de venda de bens e de prestação de serviços, adoptando uma “solução prática (designação pragmática do local da execução) que assenta num critério puramente factual, sempre aplicável qualquer que seja a obrigação em litígio, incluindo quando esta obrigação consista no pagamento da contrapartida pecuniária do contrato”.
Ou seja, a obrigação relevante é apenas a obrigação característica do contrato – neste caso, a entrega dos bens – e não a correspondente obrigação de pagamento de uma quantia em dinheiro, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação – cfr. acórdãos do STJ de 08/06/2006 e de 08/04/2010, A. C. Neves Ribeiro, in «Processo Civil da União Europeia», 2002, pág. 68, L. Lima Pinheiro, in «Direito Internacional Privado», III, pág. 80 e ss e Dário Moura Vicente, in «Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001», in Scientia Iurídica, n.º 293, pág. 362/63, todos citados no Ac. do STJ a que supra se fez referência.
E o lugar da entrega dos bens é o da entrega efectiva, ou seja, o destino final dos bens, e não o local onde estes sejam colocados à disposição pelo fornecedor para posterior transporte.
De outro modo, o critério especial da alínea b) do n.º 1 do art. 5. °, teria reduzido interesse prático. Na verdade, é sabido que na grande maioria dos contratos de compra e venda internacional, o transporte das mercadorias é assegurado por empresa transportadora. Logo, admitir que o local de entrega possa ser o do Estado-Membro exportador, implicaria desconsiderar completamente o elemento de conexão com o Estado Membro importador, esvaziando de sentido a referida alínea b), e contrariando a prioridade atribuída pelo legislador comunitário ao critério da alínea b) em detrimento do critério da alínea a), prioridade que resulta claramente da alínea c) do n.º 1 do art. 5. °.
O que releva, como já vimos, é o local da entrega dos bens, sendo, também, irrelevante, o facto de a entrega das mercadorias em território português ser efectuada por FCA, uma vez que tal se destina, apenas, a regular os termos e condições da venda, definindo o momento da transferência das obrigações e responsabilidades legais do exportador sobre o produto exportado, “pelo que são irrelevantes para a aferição da competência do tribunal para conhecer do mérito da presente acção que tem como causa de pedir uma compra e venda” – Ac. do STJ de 23/10/2007, in www.dgsi.pt.
Considerando que o que interessa para efeito da fixação da competência é, não o lugar do pagamento, nem o lugar em que os bens foram entregues ao transportador, mas o local do destino final dos bens adquiridos pela compradora, tem de concluir-se que o tribunal internacionalmente competente é o Tribunal Francês, pois resulta das facturas juntas aos autos pelas partes que o destino da mercadoria era a sede do réu em França, mais concretamente Aubervilliers (cfr. fls. 35, 36, 45, e 46 v.º)
As normas de competência internacional, em jeito de normas de conflito, delimitam o exercício da função jurisdicional pelo conjunto dos tribunais portugueses no quadro de relações jurídicas conexas com mais de uma ordem jurídica estrangeira.
As regras de incompetência internacional, salvo a mera violação de algum pacto privativo de jurisdição, integram a chamada incompetência absoluta, de conhecimento oficioso em qualquer estado do processo, até ao trânsito em julgado da sentença sobre o mérito da causa, consequenciante da absolvição do réu da instância (artigos 101º, 102º e 105º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Relativamente à segunda razão apresentada pela apelada, da grave inconveniência que poderá advir de intentar uma acção deste valor em França, anota-se que a competência internacional está colocada numa acção declarativa e não numa acção executiva, e ademais, não se vislumbra qualquer impedimento duma decisão proferida por tribunais franceses ser executada em França, e além disso, nessa matéria remete-se para o normativo do artigo 39º, segundo o qual «uma decisão proferida num Estado-Membro que aí tenha força executória pode ser executada noutro Estado-Membro sem que seja necessária qualquer declaração de executoriedade».
A infracção das regras da competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional, salvo quando haja mera violação de um pacto privativo de jurisdição, determina a incompetência absoluta do tribunal (artº 101º, do CPC).
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Decisão:
Por isso e nos termos expostos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida no que diz respeito à competência do tribunal internacionalmente competente para conhecer da presente acção, julgando-se procedente a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para o julgamento da acção e, consequentemente, absolver a Ré da instância nos termos dos artigos 99º, n º 1, 576º, n º 2 e 577º, n º 1, a), do C.P.C.
Custas pela apelada.
Guimarães, 2 de Maio de 2016.