Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1185/11.6TAVCT-D.G1
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: REGISTO CRIMINAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – O juízo de prognose favorável feito a propósito da aplicação da suspensão da execução da pena, não é coincidente com o requisito de “… das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes”, exigido pela norma do art. 17 nº 1 da Lei 57/98 de 18-8 para a não transcrição da sentença nos certificados do registo criminal a que se referem os arts. 11 e 12 da referida lei.
II – Não deve ser decidida a não transcrição da sentença num caso em que o arguido foi condenado por crime de tráfico de menor gravidade, embora em pena de prisão suspensa na sua execução, tendo-se provado que durante determinado período vendeu, com regularidade quase diária, heroína e cocaína a vários indivíduos, fazendo dessa atividade modo de vida.
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na Relação de Guimarães:

Nos autos de processo comum singular supra referidos do 2º juízo Criminal de Viana do Castelo, foi proferido o seguinte despacho pelo Senhor Juiz a quo: (transcrição)
«Por ser aplicável o disposto no art. 414/4 do CPP, concordando com a posição assumida pelos Arguidos e MP (na parte do direito), decido alterar a decisão em crise, nos termos requeridos.
Assim, por ser legalmente admitida a aplicação do normativo legal, como doutamente refere a Digna MP, e por entender que a solução encontrada no Acórdão e em especial a circunstância de aqueles terem sido condenados por um crime de tráfico do 25 (menor gravidade) e de terem assumido os factos - circunstância demonstrativa de uma postura em audiência de julgamento conforme à vontade em alterar os respectivos comportamentos.
*
Nestes termos, conforme requerido, altero a decisão em crise, determinando a não transcrição para o crc da condenação para fins de emprego (art. 17° e 11° da Lei 57/98).
Importa referir que, por se tratar de pena suspensa, a verificar-se a sua revogação, necessariamente será dado conhecimento de tal facto ao crc, o que acautela eventuais perigos.
Notifique
Após, remeta boletins DSIC nos termos supra determinados».

Desse despacho recorreu o Ministério Público, concluindo a sua motivação nos seguintes termos: (transcrição)
«1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. 2631, que ordenou a não transcrição no registo criminal da condenação pelo crime de Tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25°, al. a), do DL 15/93, quanto aos arguidos Manuel Meira e Maria José Echeverria (3 anos de prisão, com execução suspensa mediante regime de prova).
2. A decisão de não transcrição, além de ter que ser em pena não privativa da liberdade, exige depois o preenchimento de um requisito substancial: "A condenação do arguido na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, constitui uma "pena não privativa da liberdade", para efeitos do art° 17., n.°1 da Lei n.° 57/98. Daí que, preenchido que seja o requisito que "das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes", o Juiz possa autorizar que essa condenação não seja transcrita no certificado do registo criminal" (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27/02/2013, acessível na Base de Dados do ITIJ, em www.dgsi.pt).
3. Os arguidos traficaram cocaína e heroína quase diariamente durante cerca de um ano, mesmo após mudança de residência, vivendo num meio conotado com o consumo e tráfico, o que aumenta o risco de voltarem a praticar o crime.
4. Os arguidos já no julgamento em Novembro de 2012 falaram numa perspectiva imediata de trabalho que não se concretizou até ao momento e de que tenham feito prova.
5. A isto acresce que a aplicação de uma pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, nunca poderá ser considerada de pouca gravidade, não só pela duração da prisão, como pela sujeição a um regime de prova e não suspensão pura e simples.
6. A confissão em julgamento, face à prova constante dos autos, com escutas, vigilâncias e apreensões, releva pouco em termos de prevenção especial para efeito de previsibilidade de não cometimento de novos crimes, requisito para a não transcrição.
7. O douto despacho recorrido, ao determinar a não transcrição no registo criminal das penas de 3 anos, suspensas na sua execução mediante regime de prova, sem que estivesse demonstrado nos autos a pouca gravidade dos factos e não haver risco de cometimento de novos crimes, violou o art. 17°, n.° 1 da Lei 57/98, de 18/08».

Os arguidos responderam argumentando no sentido da improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual aduz bem elaborada argumentação jurídica tendente a demonstrar a razão do recorrente, defendendo, assim, a procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
Fundamentação
Como é sabido as conclusões da motivação constituem o resumo do pedido e, como tal é o teor de tais conclusões que constitui o âmbito do recurso (artº 412º, nº 1 do C.P.P.).
In casu, a questão fundamental trazida à apreciação desta Relação é a de saber se perante o circunstancialismo invocado nos autos se verificam os requisitos ou pressupostos que permitam decidir pela requerida não transcrição no registo criminal e para efeitos de emprego, nos termos doa artigos 17, nº1 e 11, da Lei 57/98 de 18/08, da condenação de que foram alvo os arguidos Manuel Ricardo Dias Meira e Maria José Zamora Echeverria.
E avançando desde já a solução, diremos que a resposta à questão em apreciação não pode deixar de ser negativa, pelas razões que constam no parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto Ribeiro Soares, com as quais concordamos integralmente.
Assim sendo, seja-nos permitido transcrever o douto parecer em causa:
Tomando posição sobre o recurso, cremos que razão se encontra do lado do recorrente.
De facto, os arguidos Manuel Ricardo Dias Meira e Maria José Zamora Echeverria foram condenados, cada um deles na pena de 3 anos de prisão pela autoria de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p, pelos artigos 21, n.21 e 25, al. a) do DL 15/93 de 22/01. Foi decretada a suspensão da execução destas penas de prisão com sujeição a regime de prova.
Por sua vez, dispõe o art. 17º, n.° 1, da citada Lei 57/98, que os tribunais podem determinar a não transcrição da condenação nos certificados a que se referem os seus artes 11º e 12º, se a pena não for privativa da liberdade ou de prisão até 1 ano, «sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.»
Relevante para o efeito de não transcrição da condenação, como decorre deste normativo, para além do quantum sancionatório específico e limitado, é a verificação das concretas "circunstâncias que acompanharam o crime", ou seja, das contemporâneas do acto criminoso. Destacadas estas circunstâncias, importa, de seguida, efectuar um juízo sobre elas descobrindo perigos da prática de novos crimes.
Há, então, que salientar as circunstâncias que acompanharam o crime e que, como tal, foram dadas como provadas na sentença condenatória.
E nesta logramos evidenciar as seguintes:
a) Os arguidos referidos, "pelo menos desde Maio de 2011", dedicaram-se à compra e à venda de heroína e cocaína;
b) "...os arguidos venderam com uma regularidade quase diária, heroína e cocaína a vários indivíduos, todos eles conhecidos pelo consumo de estupefacientes";
c) Os arguidos deslocavam-se várias vezes por semana à cidade do Porto para ali se abastecerem;
d) Vendiam aqueles estupefacientes directamente aos consumidores, "a diversas horas do dia ou da noite, na sua residência";
e) Faziam-no "com o propósito de obter lucros monetários";
f) Venderam heroína e cocaína pelo menos a 16 consumidores;
g) Os arguidos "não exerciam qualquer profissão remunerada regular, nem auferiam qualquer subsídio de desemprego, pelo que era da revenda destes produtos estupefacientes que retiravam o necessário para o sustento da casa e para a aquisição do veículo automóvel ... ";
h) Os arguidos viviam das transacções de estupefacientes - "dos quais viviam" - fazendo dessa actividade "o seu modo de vida";
j) Os arguidos não tinham antecedentes criminais;
l) O arguido Manuel "Iniciou-se nas drogas leves na adolescência, o que se agravou na companhia da co-arguida, que se associou ao consumo que ambos mantinham à data dos factos".
Em face destas circunstâncias, seguramente que o juízo de perigosidade de continuação de novos crimes surge como imediato. E assim é porque das ditas coetâneas circunstâncias do crime ressalta que os arguidos eram consumidores de estupefacientes, a única actividade que desenvolviam era a compra e venda de heroína e cocaína, que era dela que retiravam o lucro necessário para suportar o sustento da casa, do seu vício e o pagamento do automóvel, e ainda, obviamente, do seu vício. Faziam dela o seu modo de vida. Os perigos para o cometimento de novos crimes são manifestos porque não se vê, objectivamente, donde possam resultam quaisquer rendimentos, mormente do trabalho, acabado que foi o negócio da compra e venda de estupefacientes a que se vinham dedicando em exclusivo.
Assim, cremos, como já dissemos, que o direito se encontra do lado do recorrente.
E acompanhando o sentido exposto, mutatis mutandis, e até com uma pertinente apreciação da conjugação da pretensão aqui formulada pelos arguidos relativa à não transcrição da condenação, com uma decretada suspensão da execução da pena de prisão aplicada, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 05/04/2006, Proc. 0516875, sendo dele relator o desembargador Jorge França. Nesse se exarou:
"A questão única submetida à nossa apreciação prende-se com a análise da bondade do despacho recorrido, que foi no sentido de indeferir o requerimento do recorrente, que pretendia que a sua condenação não fosse transcrita nos certificados a que se referem os art°s 11º e 12º da referida Lei.
Dispõe, a propósito, o artº 17º, 1, da lei n° 57/98, que os tribunais podem determinar a não transcrição da condenação nos certificados a que se referem os seus art°s 11º e 12º, se a pena não for privativa da liberdade ou de prisão até 1 ano, «sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.»
Daqui resulta que, muito embora seja imposição legal a comunicação ao registo criminal das decisões a ele sujeitas (artº 5º cit. Lei), o tribunal tem a faculdade de, uma vez verificados os respectivos pressupostos, determinar que os dados registados não sejam objecto de transcrição nos certificados requeridos para fins de emprego (artº 11º) e/ou nos certificados requeridos (pelos particulares) para outros fins (artº 12º).
No que se refere aos certificados previstos no artº 11º, 1, fácil é a constatação de que o Tribunal não tem que ordenar a não transcrição, já que resulta da lei (tratando-se de imposição aos serviços do registo criminal) que os certificados requeridos para os fins e nas circunstâncias aí referidas, apenas devem conter extracto das decisões aí referidas. Não é assim nos casos previstos no nº 2 desse artº 11º e no n° 1 do artº 12º, sendo esse o campo de aplicação exclusiva da decisão de não transcrição. Por isso, não se pode falar em ilegalidade do douto despacho recorrido, pois que indefere um requerimento nessa parte inconsequente, já que a não transcrição nos certificados (artº 11º, 1), resulta da própria lei e impõe-se aos serviços do registo criminal e não ao tribunal, a este apenas cumpre ordenar que a condenação seja levada a registo criminal.
Como no caso foi aplicada ao recorrente pena de 1 ano de prisão, poderá a respectiva condenação, apesar de levada a registo criminal, não ser objecto de transcrição nos certificados atrás referidos desde que «das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.»
E verdade que na elaboração do juízo de prognose favorável feita a propósito da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena (artº 50º, 1, CP), a sentença condenatória do recorrente atendeu á sua personalidade, às condições da sua vida, ao seu comportamento e às circunstâncias do crime, concluindo, necessariamente, que a ameaça da prisão e a censura do facto realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (nelas incluídas as de prevenção especial).
Mas, não é menos verdade que o juízo a formular, a propósito do campo de aplicação do artº 17º em análise, não é exactamente coincidente com o anteriormente referido, com efeito, se assim fosse, logo se poderia concluir que não deveriam ser transcritas todas as condenações em pena de prisão até 1 ano, desde que a respectiva execução fosse suspensa
No caso concreto destacam-se os seguintes factos atinentes à personalidade do recorrente:
- tendo ele 41 anos de idade à data da condenação, e cerca de 38 à data da prática dos factos, era consumidor de drogas havia mais de 20 anos;
- submeteu-se a tratamento de desintoxicação no dia 14/4/2003;
- actualmente trabalha;
- os actos de tráfico por que foi condenado desenvolveram-se durante cerca de seis meses, denotando alguma organização, ainda que rudimentar (contactos por telemóvel, recebendo as encomendas e combinando o local da entrega, com o concurso de outros dois agentes, recebendo o arguido o dinheiro e entregando os outros a heroína).
Os crimes de tráfico, neles incluído o da previsão do artº 25º referido, são, por natureza, crimes de fácil reiteração, pois que no estado actual da nossa sociedade, com elevada taxa de toxicodependência, aliada aos elevados lucros que podem proporcionar, é forte a solicitação para a sua prática. Acresce, no nosso caso, que o historial do arguido, com mais de 20 anos da sua vida ligada ao consumo, induz fortemente a ideia de que, caso não se consiga reabilitar com êxito da sua dependência, poderá voltar a trilhar os caminhos do tráfico. Daí que seja lícito concluir, sem cair em contradição do que ficou dito acerca dos pressupostos que serviram para a suspensão da execução da pena, que bem andou o M.mo Juiz recorrido em não se decidir pela não transcrição da condenação, pois que as circunstâncias que acompanharam o crime (v.g., por se não ter tratado de um acto isolado de tráfico e denotar mesmo alguma organização) induzem o perigo de cometimento de novos ilícitos."
Em conformidade com o exposto, é patente a razão do recorrente, pelo que o recurso terá que proceder, por não se mostrar verificado um dos requisitos previstos no art. 17º, nº 1 da Lei 57/98, de 18/08, 09 "... das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes".
Resta decidir:
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene o indeferimento da solicitada não transcrição das condenações dos arguidos no registo criminal para "fins de emprego".
Sem custas.